Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 827/2023-T
Data da decisão: 2024-07-15   Outros 
Valor do pedido: € 136.204,60
Tema: Contribuição sobre o Sector Rodoviário (CSR). Direito de União Europeia. Competência dos tribunais arbitrais. Ineptidão da petição. Legitimidade.
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SUMÁRIO:

 

I - Não tendo o Tribunal de Justiça, no Despacho Vapo Atlantic (processo C-460/21), colocado em causa a qualificação da CSR como uma imposição indireta para efeitos do artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE, conclui-se que aquele tributo é um desdobramento do ISP e, como tal, um imposto.

II – Assentando o regime jurídico da CSR num princípio de repercussão legal, as entidades adquirentes de combustível e que suportem o encargo do tributo gozam de legitimidade processual para impugnar judicialmente os atos de liquidação, nos termos do artigo 18.º, n.º 1, a) da LGT. Mesmo que se entenda que o regime jurídico da CSR não assenta num princípio de repercussão legal, há que reconhecer que o repercutido adquirente de combustíveis alega a titularidade de um interesse legalmente protegido para efeitos do artigo 9.º, n.º 1 do CPPT, tendo legitimidade para intervir no processo tributário nessa qualidade.

III – O regime jurídico da Contribuição de Serviço Rodoviário, constante da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, é incompatível com o Direito da União Europeia, mormente com artigo l.°, n.° 2, da Diretiva 2008/118/CE.

IV – A repercussão de um imposto – legal ou não – é uma questão de facto, que depende de fatores inerentes a cada transação comercial e será mais ou menos provável consoante as caraterísticas do mercado. Uma vez provada a repercussão do imposto, mostra-se constituído, na esfera jurídica das adquirentes de combustível, o direito à restituição do imposto indevidamente liquidado pela AT e por aquelas indevidamente suportado.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Fernando Araújo (Árbitro-Presidente), Sílvia Oliveira e Marta Vicente, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem Tribunal Arbitral, constituído em 05-02-2024, acordam no seguinte:

 

I – Relatório

 

1. A..., S.A., titular do n.º de identificação fiscal ..., e B...– SROC, S.A.,  titular do n.º de identificação fiscal ..., ambas com domicílio fiscal no ..., ..., n.º..., ...º, ...-... Lisboa (doravante, Requerentes), apresentaram, em 20-11-2023, pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em matéria Tributária (doravante, RJAT), com as alterações subsequentes, e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, alterada pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, que vincula vários serviços e organismos do Ministério das Finanças e da Administração Pública à jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa.

 

2. No pedido de pronúncia arbitral, as Requerentes pedem:

(i) a anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado em

27-04-2023 junto da Alfândega do Jardim do Tabaco; 

(ii) a anulação dos atos de liquidação de CSR praticados pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas declarações de introdução no consumo (DIC) submetidas pela C..., S.A., e dos consequentes atos de repercussão da referida CSR consubstanciados nas faturas referentes à gasolina e gasóleo rodoviários adquiridos nos anos de 2019 a 2022;

(ii) a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do montante de €136.204,60 indevidamente suportado pelas Requerentes, acrescido de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º, n.ºs 1 e 3, d) da LGT.

 

3. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT ou Requerida).

 

4. Em 21-11-2023, o pedido de constituição de Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT. 

 

5. As Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, al. a) e do artigo 11.º, n.º 1, al. a), ambos do RJAT, o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo devido. Em 30-11-2023, a Requerida apresentou requerimento, dirigido ao Presidente do CAAD, solicitando a identificação dos atos de liquidação cuja apreciação se pretende.

 

6. Foram as partes notificadas da designação dos signatários, não tendo manifestado vontade de a recusar (cf. artigo 11, n.º 1, al. b) e c) do RJAT, em conjugação com o disposto nos artigos 6.º e 7 do Código Deontológico do CAAD), pelo que, ao abrigo da al. c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 05-02-2024. 

 

7. O Tribunal Arbitral, por despacho com data de 05-02-2024, concedeu 10 (dez) dias às Requerentes para se pronunciarem, querendo, sobre o teor do requerimento da Requerida de 30-11-2023, tendo aquelas optado, nesta fase, por não o fazer. A necessidade, ou não, da identificação dos atos tributários objeto de impugnação será analisada infra, aquando da apreciação da defesa por exceção deduzida pela Requerida. Assim, em 08-04-2024, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho, notificado na mesma data, ordenando a notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo e solicitar, querendo, a produção de prova adicional (cf. artigo 17.º do RJAT).

 

8. A Requerida apresentou resposta, em 10-05-2024, remetendo o Processo Administrativo. Em 13-05-2024, o Tribunal arbitral proferiu Despacho concedendo 10 (dez) dias às Requerentes para se pronunciarem sobre a defesa por exceção deduzida pela AT – o que aconteceu, por requerimento com data de 28-05-2024 (com junção de 7 documentos).

 

9. Considerando os elementos constantes dos autos, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho, em 31-05-2024, dispensando a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e concedendo às Partes a faculdade de apresentarem alegações escritas – as Requerentes no prazo de 10 dias contados da notificação do despacho, e a Requerida no prazo de 10 dias contado da notificação das alegações das Requerentes, ou da falta de apresentação das mesmas. As Requerentes apresentaram alegações escritas por requerimento com data de 19-06-2024, reiterando tudo quanto disseram em intervenções anteriores. A Requerida apresentou alegações escritas em 21-06-2024, remetendo para o que foi dito na resposta.

 

10. Compulsado o PPA e as respostas, a posição das Partes é, em síntese, a seguinte: 

 

(a) As Requerentes alegam que a sua fornecedora de combustíveis – a C..., S.A. – repercutiu nas respetivas faturas a CSR correspondente aos litros de combustível adquirido, no montante global de €136.204,60;

 

(b) O regime jurídico da CSR, instituído pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, é incompatível com o Direito da União Europeia (DUE), uma vez que o tributo, tal como recortado pelo legislador nacional, não tem subjacente “motivos específicos” na aceção do artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE, tendo sido criado por razões puramente orçamentais, conclusão evidenciada pelo Tribunal de Justiça no Despacho Vapo Atlantic (C-460/21). Portanto, atentos os princípios do primado e do efeito direto associados ao DUE, tem o Tribunal Arbitral o dever de afastar a aplicação do regime jurídico da CSR e, em coerência, anular os atos de liquidação de CSR, feridos de um vício de ilegalidade abstrata.

 

(c) Dever a que, como aponta a jurisprudência consolidada do Tribunal de Justiça, também as entidades administrativas estão sujeitas. Neste sentido, estariam verificados os requisitos para que a AT tivesse, em sede do procedimento de revisão oficiosa (artigo 78.º, n.º 1 da LGT), anulado os atos tributários em crise, por se verificar um “erro imputável aos serviços”, mormente um erro de direito, por aplicação de normas de direito interno desconformes com o DUE (pontos 9.º a 60.º do PPA). 

 

(d) As Requerentes peticionam, finalmente, o reembolso dos montantes indevidamente pagos a título de CSR, bem como a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º, n.ºs 1 e 3, d) [pontos 61.º a 72.º do PPA].

 

(e) A Requerida apresentou defesa por exceção e defesa por impugnação. Na sua resposta, suscita as exceções dilatórias da incompetência do tribunal em razão da matéria (com dois fundamentos distintos), ilegitimidade processual e substantiva das Requerentes, ineptidão da petição inicial, caducidade do direito de ação e falta de pagamento de valores a título de CSR por parte das Requerentes.

 

(e) Quanto ao fundo, considera que as Requerentes não lograram fazer prova de ter adquirido e pago combustível e suportado o encargo do pagamento da CSR por repercussão. Atento o disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, não incumbe à Requerida fazer a prova da não repercussão, nem é possível presumir a existência de repercussão quando se está perante uma repercussão meramente económica.

 

(f) Defende-se, ainda, argumentando que inexiste qualquer decisão judicial – do Tribunal de Justiça ou de outro Tribunal – que tenha declarado ou julgado a inconstitucionalidade ou ilegalidade do regime jurídico da CSR. Contesta a apreciação do Tribunal de Justiça no sentido de que não estão subjacentes àquele tributo “motivos específicos” para efeitos do preceituado no artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE. Finalmente, louvando-se no acórdão Danfoss (processo C-94/10), do Tribunal de Justiça, a AT relembra que um Estado-membro se pode opor a um pedido de reembolso de um imposto indevido, apresentado pelo adquirente/comprador sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, desde que, à luz do direito desse Estado-membro, seja possível ao adquirente exercer uma ação civil de repetição do indevido e o reembolso dos montantes indevidamente suportados não se mostre, na prática, impossível ou excessivamente difícil. 

 

II – Saneamento

 

11. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT.

12. As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

13. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo uma vez que foi apresentado no prazo previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 10º do RJAT.

14. O processo não enferma de nulidades.

15. Tendo em consideração a matéria de exceção suscitada pela Requerida (da incompetência do Tribunal em razão da matéria, da ineptidão da petição inicial, da caducidade do direito de ação, da ilegitimidade processual e substantiva das Requerentes), importa apreciar, preliminarmente, estas matérias, começando pela da incompetência do Tribunal, que é de conhecimento prioritário [artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT].

 

a)    Questão da incompetência relativa do Tribunal Arbitral em razão da matéria

 

16. Na Resposta, a AT arguiu a exceção dilatória de incompetência relativa do Tribunal Arbitral em razão da matéria, nos termos dos artigos 576.º, n.º 1 e 577.º, a) do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, e) do RJAT (pontos 132.º a 156.º). Entende, em síntese, que a CSR é uma contribuição financeira, estando a sua sindicância, por conseguinte, excluída da competência material dos tribunais arbitrais tributários, à luz do disposto no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. 

 

17. As Requerentes pugnaram pela improcedência da exceção de incompetência relativa, alegando que a CSR deve, apesar do nomen iuris, ser qualificada como uma contribuição especial por maiores despesas, sendo o seu propósito o de remunerar a entidade responsável pela gestão da rede rodoviária nacional, repercutindo sobre os utilizadores os respetivos custos (pontos 61.º e 64.º da pronúncia sobre as exceções). Visto que as contribuições especiais são legal, jurisprudencial e doutrinalmente consideradas impostos, as Requerentes concluem que todos os atos tributários relacionados com a CSR são plenamente arbitráveis, à luz do disposto no artigo 2.º do RJAT e no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março (ponto 68.º da pronúncia sobre as exceções).

 

O Tribunal Arbitral é competente ainda que se entenda que a CSR é uma contribuição financeira. Isto porque o artigo 2.º da Portaria de vinculação deve ser interpretado em linha com o artigo 2.º do RJAT, que atribui à jurisdição arbitral tributária competência para declarar a ilegalidade de atos de liquidação de “quaisquer tributos”, ou seja, de impostos, taxas e contribuições financeiras (artigo 3.º, n.º 2 da LGT). Uma interpretação daquele normativo que excluísse as contribuições financeiras do âmbito material dos tribunais arbitrais tributários seria, por isso, inconstitucional, por violação do princípio constitucional da legalidade, consagrado no artigo 112.º, n.º 6 da CRP (pontos 71.º a 78.º da pronúncia sobre exceções).

 

Vejamos:

 

18. O âmbito da jurisdição arbitral tributária conhece as limitações impostas por lei e por Regulamento. Com efeito, segundo a al. a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação de pretensões de declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de retenção na fonte e de pagamento por conta. Por sua vez, o artigo 4.º do mesmo regime faz depender a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais de portaria dos membros do Governo responsáveis, onde se estabeleça, designadamente, “o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos”. Em cumprimento desta delegação legislativa, a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, definiu o objeto da vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD como abrangendo “as pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida”. 

 

19. A referência aos “impostos” que se encontra no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, pode ser interpretada de duas formas. 

 

20. Para uma linha jurisprudencial, a designação relevante para efeitos de definição de competência é a designação adotada pelo legislador, e não aquela que o intérprete ou aplicador do direito possam reputar mais adequada. Pretende-se, com esta posição, obstar a que a jurisdição dos tribunais arbitrais se veja dependente da incerteza inerente às diversas perspetivas doutrinais sobre a destrinça entre taxa, imposto e contribuição financeira (cf. acórdão do CAAD de 29-05-2023, processo n.º 31/2023-T; e já antes, com idêntico entendimento, os acórdãos do CAAD de 22-07-2022, processo n.º 788/2021-T, e de 16-10-2018, processo n.º 115/2018-T). Ao passo que, num outro entendimento jurisprudencial, a aferição da jurisdição dos tribunais arbitrais já dependerá do resultado que o intérprete alcance através da qualificação dos tributos em função das suas caraterísticas e do seu regime jurídico (cf., por exemplo, acórdão do CAAD 05-01-2023, processo n.º 304/2022-T; e acórdão do CAAD de 15-01-2024, processo n.º 375/2023-T). Sobre esta questão, o Tribunal arbitral entende que, havendo jurisprudência que aponte para uma determinada classificação, não pode o intérprete e aplicador do direito deixar de daí retirar as devidas conclusões em matéria de jurisdição.

 

21. A Constituição refere-se abertamente a três modalidades de tributos – impostos, taxas e contribuições financeiras (artigo 165, n.º 1, al. i) da CRP). Para cada um destes tributos, em razão do tipo de ablação patrimonial que representam para o contribuinte, prevê a Constituição um acervo de regras formais, orgânicas e materiais distinto, embora com semelhanças no plano dos tributos bilaterais (taxas e as contribuições financeiras). 

 

22. A divisão tripartida dos tributos afirmou-se com a revisão constitucional de 1997, por oposição à summa divisio, até aí vigente, entre impostos e taxas. Com a inclusão de um segundo tipo de tributos bilaterais (as contribuições financeiras) o teste da bilateralidade, segundo qual os tributos rigorosamente bilaterais seriam taxas e os tributos não rigorosamente bilaterais seriam impostos, deixou de ser determinante no processo de qualificação. Se antes da revisão de 1997 o processo de qualificação não era simples, uma vez que uma plêiade de tributos merecia uma qualificação distinta daquela para que remeteria o seu nomen iuris (princípio da irrelevância do nomen iuris), o contencioso constitucional da qualificação dos tributos tornou-se, a partir dessa data, ainda mais complexo, atenta a proliferação de tributos híbridos, a meio-caminho entre taxas e impostos. 

 

22. Assim, o imposto é uma prestação pecuniária e coativa, com estrutura unilateral. Cada um é chamado a contribuir para os encargos da comunidade independentemente de receber algo em troca, na medida da sua força económica ou da sua capacidade de pagar (princípio da capacidade contributiva). Os impostos pretendem arrecadar receitas para custear as despesas públicas gerais do Estado (artigo 5, n.º 1 da LGT). Coerentemente, visto que os impostos agridem o património do particular de forma mais intensa que outros tributos, a Constituição sujeita-os a um regime formal e orgânico bastante rigoroso (reserva de lei integral), colocando sob a alçada do legislador parlamentar todo o regime jurídico de cada um dos impostos. 

 

23. Já as contribuições financeiras são prestações pecuniárias coativas, assentes numa estrutura bilateral, exigidas como contrapartida de uma prestação administrativa de que presumivelmente os respetivos sujeitos passivos, por integrarem um determinado grupo homogéneo, beneficiaram ou causaram. 

 

24. A constitucionalização das contribuições financeiras, promovida pela revisão de 1997, visou abarcar uma categoria de tributos que, embora não possuíssem uma estrutura unilateral, não compartilhavam da bilateralidade rigorosa das taxas. Todavia, a circunstância de o legislador de revisão ter optado por subordinar as contribuições financeiras a um regime formal e orgânico semelhante ao das taxas é suficientemente revelador de que a estrutura e a finalidade das contribuições financeiras se aproximam mais dos tributos bilaterais do que dos tributos unilaterais.

 

25. Como se esclarece no acórdão n.º 344/19, do Tribunal Constitucional, a propósito da “taxa” SIRCA:

 

A criação de tributos dirigidos à compensação de prestações presumidas e admissibilidade de um quadro amplo de incidência das taxas torna mais diluída a fronteira entre as diferentes categorias de tributos e muito mais delicada a respetiva qualificação. Se atendermos à «natureza» que assume a prestação do ente público, a linha de fronteira entre as diferentes categorias de tributos públicos pode demarcar-se do seguinte modo: se o pressuposto de facto gerador do tributo é alheio a qualquer prestação administrativa ou se traduz numa prestação meramente eventual, estamos perante um imposto; se o facto gerador do tributo consubstancia uma prestação administrativa presumivelmente provocada ou aproveitada por um grupo em que o sujeito passivo se integra, estamos perante uma contribuição; se o facto gerador do tributo é constituído por uma prestação administrativa de que o sujeito passivo seja efetivo causador ou beneficiário, ou por um facto que, de acordo com as regras da experiência, constitui um indicador seguro da existência daquela prestação, estamos perante uma taxa”.

 

26. A “prova do algodão” entre imposto e contribuição financeira é dada, portanto, pela identificação expressa ou implícita de uma prestação administrativa – ainda que grupal ou presumida, no caso das contribuições financeiras. Em termos coadjuvantes, a jurisprudência constitucional reconhece igualmente a importância do critério finalístico, admitindo que a consignação da receita do tributo – por oposição ao financiamento das despesas públicas gerais – pode constituir uma orientação relevante no esclarecimento da sua natureza. Como se lê no acórdão n.º 268/2021, do Tribunal Constitucional, a propósito da Contribuição sobre o setor bancário:

 

A distinção entre as três categorias tributárias parte da consideração simultânea de um critério finalístico a par de um critério estrutural ou do pressuposto e da finalidade do tributo (...). Em linha com a conclusão que antecede, tem sido sublinhada pela jurisprudência do Tribunal a importância de atender, ainda, ao elemento teleológico do tributo (critério finalístico), na medida em que este pode constituir um indicador determinante no esclarecimento da sua natureza (...). Nesta perspetiva, a consignação de receitas à entidade pública competente para financiar as prestações subjacentes aos tributos que as geram constitui, por regra, «uma qualidade reveladora da natureza comutativa destes tributos, por tal consignação significar que a receita não pode ser desviada para o financiamento de despesas públicas gerais» (Acórdãos nºs 539/2015, 320/2016, 7/2019, 255/2020). (v. Acórdãos n.ºs 344/2019 e 255/2020)”.

 

27. Com base nestes critérios, o Tribunal Constitucional qualificou como contribuições financeiras tributos tão variados como as taxas de regulação e supervisão económica (acórdão n.º 365/2008), a taxa pela utilização do espectro radioelétrico (acórdão n.º 152/2013), as penalizações pela emissão de carbono (acórdão n.º 80/2014), a Contribuição extraordinária sobre o setor energético (acórdão n.º 7/2019), a taxa de segurança alimentar mais (acórdão n.º 539/2015) ou a contribuição sobre o setor bancário (acórdão n.º 268/2021). Foram ainda qualificadas como contribuições financeiras a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica (cf. acórdão do STA de 10.05.2023, processo n.º 0191/20.4BEVIS), assim como a taxa de promoção e de coordenação do Instituto da Vinha e do Vinho (cf. acórdão do STA de 26.09.2018, processo n.º 0299/13.2BEVIS 01007/17), ou a taxa anual devida pelo exercício da atividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações eletrónicas (acórdão do TCA de 29.09.2022, Processo n.º 21/13.3 BELRS); 

 

28. Uma vez denotada a estrutura bilateral ou pelo menos comutativa do tributo, as eventuais inconsistências ou incoerências do seu regime jurídico deverão ser tratadas no âmbito do princípio da igualdade material, tomado como critério de equivalência, ferindo de inconstitucionalidade material as normas do regime jurídico do tributo que o contrariem (cf., neste sentido, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 344/2019, sobre a taxa SIRCA, e n.º 101/2023, sobre a Contribuição extraordinária do setor energético, quando aplicada aos operadores do setor do gás).

 

29. Ora, a Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (artigo 1.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto) e constitui “a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis” (artigo 3.º, n.º 1). Por financiamento da rede rodoviária entende-se “a respetiva conceção, projeto, conservação, exploração, requalificação e alargamento” (artigo 3.º, n.º 2). 

 

30. A incidência objetiva do tributo coincide com a do ISP, ou seja, o tributo incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos (ISP) e dele não isentos (artigo 4.º, n.º 1). E o mesmo sucede com a incidência subjetiva, uma vez que os sujeitos passivos do tributo coincidem com os sujeitos passivos do ISP (artigo 5.º, n.º 1). Além disso, é aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC), na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações (artigo 5.º, n.º 1). Finalmente, o produto da CSR constitui receita própria da concessionária da rede rodoviária nacional, a EP – Estradas de Portugal, E. P. E, que, entretanto, passou a denominar-se Infraestruturas de Portugal, S.A (artigo 6.º). 

 

31. Destarte, não obstante a operação “cosmética” que o legislador ensaia na Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, ao identificar como facto tributário a utilização da rede rodoviária nacional, consignando a receita do tributo à respetiva concessionária, a Infraestruturas de Portugal, a CSR aproxima-se de um simples desdobramento do ISP, partilhando com este a incidência objetiva e subjetiva, bem como os aspetos da liquidação e cobrança (cf. Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2.º ed., reimpressão, Almedina, 2021, p. 384, nota n.º 8).[1]

 

Como se lê no acórdão do CAAD de 13-11-2023, processo n.º 410/2023-T, não existe “qualquer nexo específico entre o benefício emanado da actividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos sujeitos passivos”. Na verdade, «o financiamento da rede rodoviária nacional é assegurado pelos respectivos utilizadores, que são os beneficiários da actividade pública desenvolvida pela EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (agora IP), verificando-se, no entanto, que a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”. Falta à CSR, portanto, a estrutura comutativa ou de bilateralidade difusa que subjaz às contribuições financeiras e que as distingue dos impostos. 

 

32. Esta conclusão é corroborada pelo Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, o qual, em razão dos princípios da interpretação conforme e do primado do Direito da União Europeia, se projeta como elemento determinante na qualificação do tributo. Efetivamente, segundo a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a qualificação de uma tributação, um imposto, uma taxa ou um direito, à luz do Direito da União Europeia, compete ao Tribunal de Justiça, em função das caraterísticas objetivas de imposição, independentemente da qualificação que lhe é dada pelo direito nacional (cf. acórdãos Istituto di Ricovero e Cura a Carattere Scientifico (IRCCS) — Fondazione Santa Lucia, processo C-189/15, §29; e Test Claimants in the FII Group Litigation, processo C-446/04, §107, entre outros). 

 

33. É certo que, no processo arbitral que motivou o pedido de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça (Processo n.º 564/2020-T), o Tribunal qualificou a CSR como um imposto, formulando as questões prejudiciais com base nesse pressuposto. Entende o Tribunal arbitral, todavia, que na decisão em que culminou esse pedido de reenvio – o Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21 – o Tribunal de Justiça não colocou em causa essa qualificação, precisamente por considerar que, pela sua estrutura e regime jurídico, a CSR preenchia as caraterísticas de uma imposição indireta, concretamente, de um imposto indireto sobre os produtos petrolíferos. Por outras palavras, foi o legislador português que, não obstante apelidar o tributo “contribuição”, definiu a respetiva incidência subjetiva, objetiva, liquidação e cobrança em termos análogos às do ISP. Em condições que levaram o Tribunal de Justiça a assumir que a CSR teria uma finalidade exclusivamente orçamental para efeitos do artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE, e que poderia entravar as trocas comerciais pondo em causa o efeito útil da harmonização levada a cabo pela Diretiva no domínio do imposto sobre produtos petrolíferos (Despacho Vapo Atlantic, §26). 

 

34. Não constituindo a qualificação da CSR uma questão puramente interna, há que concluir que a CSR é um imposto indireto para efeitos da Diretiva 2008/118/CE, e consequentemente, também para efeitos da legislação portuguesa que se enquadre no âmbito de aplicação da Diretiva, como é o caso da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto. Ou seja, se o Tribunal de Justiça tratou a CSR como um desdobramento do ISP, não pode o intérprete e aplicador português deixar de fazer o mesmo, procurando uma interpretação e aplicação uniformes do Direito da União.

 

35. Termos que se julga improcedente a exceção dilatória de incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria.

 

b)    Exceção da incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, por outra via

 

36. A AT suscita, na sua resposta, a incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria, mas por outra via (ou em razão da causa de pedir), exceção dilatória cuja procedência acarreta a absolvição da ré da instância (artigo 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, a) do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, e) do RJAT).

 

37. Sustenta que o pedido formulado pelas Requerentes, que passa pela declaração de ilegalidade do regime da CSR (pontos 157.º a 178.º da Resposta), extravasa o âmbito da jurisdição arbitral tributária prevista no artigo 2.º do RJAT, que assenta num contencioso de mera anulação. Este não consente “o escrutínio sobre a integridade de normas emanadas no exercício da função político-administrativa do Estado” (ponto 161.º), “não sendo da competência do tribunal arbitral (...) a fiscalização da legalidade de normas em abstrato, sem enquadramento processual impugnatório de ato concreto de liquidação” (ponto 162.º). Uma interpretação do artigo 2.º do RJAT que permitisse a apreciação dos pedidos formulados pelas Requerentes seria, no entender da AT, inconstitucional, porquanto vedada pela letra e pelo espírito da lei (ponto 163.º da Resposta).

 

38. As Requerentes contestam esta exceção, sublinhando que o objeto do pedido arbitral é a declaração de ilegalidade de atos tributários de repercussão e das liquidações de CSR que lhes estão subjacentes, em razão da aplicação, pela AT, de um regime jurídico que é comprovadamente incompatível com o DUE. Configurando-se tal vício, como amiúde qualificado pelo STA, como um vício de ilegalidade abstrata, que é um vício de violação de lei (pontos 79.º a 86.º da pronúncia sobre exceções). 

 

39. A exceção dilatória invocada pela AT não procede. Vejamos. 

 

40. As Requerentes não pedem a declaração de ilegalidade do regime jurídico onde está consagrada a CSR (Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto). Pedem, na verdade, a anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa e, bem assim, a anulação dos atos de liquidação de CSR e dos atos de repercussão do tributo sobre a sua esfera jurídica, inerentes às faturas juntas com o PPA. Fazem assentar, porém, a anulação das liquidações num vício de ilegalidade abstrata, por oposição à ilegalidade concreta, porquanto o que está em causa é a ilegalidade do tributo (por desconformidade do ato legislativo que o criou com a CRP ou por incompatibilidade com o DUE), e não a ilegalidade do ato que faz aplicação da lei ao caso concreto (cf. acórdão do STA de 20-03-2019, processo n.º 0558/15.0BEMDL 0176/18). 

 

41. O controlo incidental ou concreto da constitucionalidade das normas assenta, precisamente, na destrinça entre questão principal e questão de constitucionalidade. Como se lê no artigo 204.º da CRP, pedra angular do modelo de fiscalização concreta português, “nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas contrárias à Constituição”.

 

42. In casu, mesmo que a inconstitucionalidade ou a incompatibilidade com o DUE seja o catalisador da impugnação, o feito submetido a julgamento não é a inconstitucionalidade da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, nem tão-pouco a sua incompatibilidade com o Direito da União, mas a ilegalidade dos atos de liquidação de CSR (artigo 99.º do CPPT).

 

43. A idiossincrasia do modelo português de fiscalização concreta é a de que todos os juízes, em todos os tribunais, têm não só o poder-dever de verificar a conformidade constitucional das normas legais aplicáveis (poder-dever de exame), mas também de recusar a sua aplicação caso concluam pela sua inconstitucionalidade (poder-dever de rejeição). Não podendo, então, o juiz, nos termos do artigo 204.º CRP da Constituição, aplicar normas inconstitucionais, ele fica obrigado a decidir, seja a pedido das partes seja oficiosamente, a referida questão de constitucionalidade, isto é, tem de decidir previamente se a norma em causa é ou não inconstitucional. “E, como o Tribunal Constitucional tem também vindo a afirmar, os Tribunais Arbitrais (necessários ou voluntários) são também tribunais, dispondo do poder-dever de verificar a conformidade constitucional de normas aplicáveis no decurso de um processo arbitral e de recusar a aplicação das que considerem inconstitucionais” (cfr. acórdão do CAAD de 13-11-2023, processo n.º 410/2023-T). 

 

44. Aliás, num modelo como o português, que não conhece a figura da ação direta de constitucionalidade, entendida como o direito dos cidadãos de pedirem ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade de normas, a possibilidade de os particulares, nos feitos submetidos a julgamento, suscitarem a questão de constitucionalidade é imprescindível para assegurar o direito fundamental de acesso à justiça constitucional e a uma tutela jurisdicional efetiva em matéria constitucional. Por essa razão, não poderia o RJAT – agora sim, sob pena de inconstitucionalidade – deixar de consagrar a figura do recurso de constitucionalidade quando, na decisão arbitral, se recuse a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade ou se aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada no processo (artigo 24.º, n.º 1 do RJAT). 

 

45. Idêntico raciocínio é aplicável, mutatis mutandis, à incompatibilidade com o Direito da União. Também aqui, por força do princípio do efeito direto, conjugado com o princípio do primado, estão todos os tribunais nacionais, nos feitos submetidos a julgamento, sob o dever de desaplicar as normas de direito interno incompatíveis com o Direito da União. Não podendo um tal dever ficar na dependência de regras internas que atribuam aos tribunais superiores competência exclusiva para afastar a aplicação dessas normas. Foi esse o dito do Tribunal de Justiça no acórdão Simmenthal, processo C-106/77: “[Q]ualquer juiz nacional tem o dever de, no âmbito das suas competências, aplicar integralmente o direito comunitário e proteger os direitos que este confere aos particulares, considerando inaplicável qualquer disposição eventualmente contrária ao direito interno, quer seja esta anterior ou posterior à norma comunitária” (§21). 

 

46. A sustentar o seu argumento, a AT invoca os acórdãos do STA (ponto 165.º da Resposta), proferidos no âmbito dos processos n.ºs 01390/17 e 0637/15. Mas também aqui sem acerto. Com efeito, o que estava em causa no primeiro daqueles arestos era uma ação popular administrativa na forma de providência cautelar de suspensão de eficácia do disposto na norma do artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos, na redação introduzida pelo artigo 217.º da Lei n.º 42/2016, de 29 de dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2017. Já no segundo, o STA limitou-se a declarar a incompetência absoluta para a apreciação da legalidade de atos emitidos no exercício da função político-legislativa (artigo 4.º, n.º 2, a) do ETAF), ajuizando que o ato em causa – um decreto-lei – apesar da sua natureza individual e concreta, não continha um ato administrativo sob a forma legislativa que o Tribunal pudesse apreciar. O que, como facilmente se percebe, nada tem que ver com um pedido de ilegalidade de um ato de liquidação de um imposto, que não é um ato da função político-legislativa, mas um ato caraterístico da função administrativa. 

 

47. Acrescenta a AT, nos pontos 166.º a 178.º da Resposta, que os atos de repercussão não integram o âmbito material de competência dos tribunais arbitrais tributários, tal como definido no artigo 2.º, n.º 1 do RJAT. Os atos de repercussão não são atos tributários, não se reconduzindo a atos de liquidação, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, nem a atos de fixação da matéria tributável quando não deem origem à liquidação de tributos, atos de determinação da matéria coletável ou atos de fixação de valores patrimoniais.

 

48. Também aqui não assiste razão à Requerida. O pedido de pronúncia arbitral não tem por objeto a anulação de atos de repercussão per se, mas antes a anulação dos atos de liquidação de CSR posteriormente repercutida sobre os adquirentes de combustível. Neste sentido, caso a anulação das liquidações venha a ser julgada procedente, impõe-se à AT, nos termos do artigo 100.º da LGT e do artigo 22.º da CRP, “a reposição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade” e, nessa medida, também a eliminação dos atos de repercussão, sem a qual não haverá reposição da situação atual hipotética. 

 

49. Termos em que julga improcedente a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal arbitral em razão da matéria.

 

c)     Questão da ineptidão da petição inicial

 

50. A Requerida alega, nos pontos 22.º a 65.º da sua defesa, a ineptidão da petição inicial, com a consequente nulidade de todo o processo, ao abrigo dos artigos 186.º, n.º 1, 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, al. b) do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, al. c) do RJAT.

 

51. Acrescenta que o PPA não cumpre os pressupostos vertidos no artigo 10.º, n.º 2 do RJAT porquanto não identifica o ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral, nem as declarações de introdução no consumo que deram origem às liquidações de CSR por parte da AT. Existe, no entender da AT, contradição entre o pedido e a causa de pedir, por não ser possível discernir se o objeto do pedido são as liquidações ou as repercussões, ao mesmo tempo que se indica como causa de pedir a desconformidade da CSR com o DUE (pontos 54.º a 65.º da Resposta). E, acrescenta, a AT não tem forma de suprir esta omissão, atenta a impossibilidade de estabelecer qualquer correspondência entre os atos de liquidação de CSR junto do fornecedor de combustível e as faturas de aquisição de combustível apresentadas pelas Requerentes (ponto 27.º). Isto acontece porque os sujeitos passivos declaram a introdução de combustível no mercado em múltiplas alfândegas, submetendo as exigidas DIC, combustível esse destinado a múltiplos clientes e depois revendido a outros tantos. Portanto, as transações de combustível em que a CSR terá sido alegadamente repercutida não têm por base um ato de liquidação específico. Por outro lado, alega a Requerida que também não é possível fazer qualquer correspondência entre as quantidades de produtos introduzidas no consumo e as quantidades de produto adquiridas pelas Requerentes à sua fornecedora, por a liquidação de CSR ter como referência uma base tributável (artigo 91.º, n.º 1 do CIEC) que não é mantida nas vendas subsequentes (ponto 40.º da Resposta).

 

52. As Requerentes, na resposta às exceções arguidas pela Requerida, argumentam que os atos de repercussão estão identificados nos autos e que, quanto aos atos de liquidação da CSR, carrearam para o processo todos os elementos de que dispunham (e poderiam dispor), cumprindo, por isso, o disposto no artigo 10.º, n.º 2, b) do RJAT. Em situações como a presente, em que as Requerentes suportam o tributo por intermédio de repercussão legal, e não têm na sua posse os atos de liquidação, cabe à AT, através dos meios ao seu dispor e dos poderes de indagação, averiguar a correlação entre os atos de repercussão legal e os atos de liquidação de CSR que os antecedem (ponto 102.º da pronúncia sobre as exceções). Interpretação diferente do artigo 74.º da LGT violaria de forma grosseira os princípios constitucionais da proporcionalidade e do acesso ao direito, em conjugação com o direito fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva (artigos 18.º e 20.º da CRP). 

 

53. Segundo as Requerentes, tal interpretação entraria em colisão, ainda, com o princípio da efetividade, vigente no DUE, uma vez que tornaria impossível ou excessivamente difícil o exercício, pelas Requerentes, do seu direito a obter a restituição do imposto indevidamente suportado (ponto 105.º da pronúncia sobre as exceções). Subsistindo dúvidas sobre a quem incumbe o ónus de identificar e juntar aos autos os atos tributários, as Requerentes instam o Tribunal arbitral a que promova o reenvio prejudicial nos termos do artigo 267.º do TFUE. 

 

54. Finalmente, encontra-se o pedido arbitral, no parecer das Requerentes, em total sintonia com a causa de pedir. O pedido, ou o efeito jurídico pretendido pelo autor, é a declaração de ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas de aquisição de combustível juntas aos autos e das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela AT com base nas DIC submetidas pelo sujeito passivo, e a condenação da AT no reembolso às Requerentes das quantias indevidamente pagas, acrescidas de juros indemnizatórios. A causa de pedir consiste no facto de tais atos tributários terem sido praticados mediante aplicação de normas desconformes com o DUE, mormente com o artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE (pontos 120.º a 127.º da pronúncia sobre as exceções). 

 

Vejamos: 

 

55. O RJAT não contém regime próprio em matéria de exceções e nulidades processuais, aplicando-se, nesta matéria, a título subsidiário, o disposto no CPPT, no CPTA e no CPC, como decorre do previsto no artigo 29.º, n.º 1, a), c) e e) do RJAT (respetivamente). 

 

56. A ineptidão da petição inicial é uma exceção dilatória cuja verificação conduz à abstenção de conhecimento do mérito da causa e à absolvição do réu da instância (artigo 278, n.º 1, al. b) do CPC). Trata-se de uma exceção de conhecimento oficioso, conforme preceituado no artigo 196.º do CPC e também no artigo 89.º, n.ºs 2 e 4, al. b), do CPTA e no artigo 98.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do CPPT. 

 

57. Do artigo 186.º, n.º 1 do CPC consta uma lista fechada de situações geradoras de ineptidão da petição inicial: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis. De acordo com o n.º 3 do mesmo dispositivo, ainda que os factos essenciais alegados sejam insuficientes, se a ré contestar, decorrendo da contestação que interpretou convenientemente a petição inicial e os pedidos, impugnando expressamente o que foi alegado pelo Autor e, em consequência, requerendo a sua absolvição daqueles, não procede a arguição de ineptidão da petição inicial que eventualmente seja arguida.

 

58. Ora, a exceção relacionada com a ineptidão da petição inicial não procede, porquanto não se verifica nenhuma das situações elencadas no artigo 186.º do CPC. Ao contrário do alegado, não existe contradição entre o pedido e a causa de pedir. As Requerentes pedem a anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, o qual por sua vez incidiu sobre os atos de liquidação de CSR referentes ao período entre 2019 e 2022, suportada pelas Requerente através de repercussão legal. A causa de pedir não é a repercussão de um tributo inválido, antes a liquidação de um tributo incompatível com o direito da União, a cujo reembolso o adquirente de combustível tem direito na medida em fique demonstrada a repercussão. Anuladas as liquidações, eliminam-se, igualmente, as consequências que com base nelas se hajam produzido, mormente os atos de repercussão legal na esfera jurídica das Requerentes. 

 

59. Quanto à questão da identificação dos atos de liquidação impugnados, a que alude a al. b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, importa referir que, não sendo as Requerentes sujeitos passivos do imposto, nem os diretos responsáveis pela sua liquidação, mas apenas as entidades que alegadamente suportam o encargo por efeito da repercussão, não lhes compete o ónus de identificação e de comprovação dos atos de liquidação repercutidos, sendo antes sobre a Autoridade Tributária que impendia o ónus de realizar, no âmbito do procedimento de revisão oficiosa, as diligências que permitiriam verificar a existência dos atos de liquidação do imposto, ao abrigo do princípio do inquisitório e do dever de colaboração com os contribuintes (cfr. acórdão do CAAD de 14-05-2024 relativo ao Processo n.º 790/2023-T, §15-16).

A eventual dificuldade que a AT possa ter na identificação das liquidações a que ela própria procedeu junto dos fornecedores de combustíveis é um problema de organização dos seus serviços, que não pode ser imputado nem trazer desvantagem às Requerentes (cfr. acórdão do CAAD de 13-11-2023 relativo ao Processo n.º 410/2023-T).

As Requerentes fizeram tudo quanto poderiam ter feito, juntando os documentos que tinham à sua disposição. Exigir às Requerentes a identificação dos atos de liquidação numa situação com este recorte, em que o repercutido não tem meios para proceder a essa identificação nem ela se assume como imprescindível para a apurar da legalidade da liquidação de CSR que as faturas coonestam, constituiria uma interpretação dos normativos sob apreciação em desalinho com o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado nos artigos 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4 da CRP (cfr. acórdão do CAAD de 13-11-2023 relativo ao Processo n.º 410/2023-T). 

 

60. Nestes termos, entende o Tribunal Arbitral que improcede a alegada exceção de ineptidão da petição inicial.

 

d)    Questão da caducidade do direito de ação

 

61. A AT invoca, seguidamente, vários argumentos relacionados com a tempestividade do pedido de revisão oficiosa, que foi objeto de indeferimento tácito cuja anulação se peticiona, e com a tempestividade do pedido arbitral (pontos 179.º a 194.º).

 

62. Argumenta, em primeiro lugar, que não logrando as Requerentes a identificação dos atos de liquidação impugnados, não é possível apurar da tempestividade do pedido de revisão oficiosa recebido em 18-05-2023 e, consequentemente, a tempestividade do PPA ora apreciado (pontos 180.º a 181.º da Resposta). 

 

63. Depois, ainda que superado este obstáculo, é entendimento da AT que o pedido de revisão é intempestivo, não sendo aplicável o prazo de quatro anos previsto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT, uma vez que inexiste in casu “erro imputável aos serviços”. Ao proceder às liquidações de CSR impugnadas, a AT manteve-se fiel ao princípio da legalidade da administração, estando-lhe vedado atuar de forma diversa (ponto 187.º da Resposta). Além disso, não foi ainda proferida qualquer decisão interna que declare com força obrigatória geral o vício da violação do direito da União (ponto 188.º da Resposta).

 

64. Alega, ainda, que o artigo 15.º do CIEC, onde estão previstas regras gerais de reembolso em caso de erro na liquidação, expedição ou exportação dos produtos sujeitos a imposto, é lex specialis relativamente ao artigo 78.º da LGT. De acordo com aquele normativo, só os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução do consumo dos produtos em território nacional têm, no prazo de três anos a contar da liquidação do imposto, legitimidade para apresentar o pedido de reembolso (artigo 15.º, n.ºs 2 e 3 do CIEC). Prazo que, em 27-04-2023, data da receção do pedido de revisão oficiosa, já estaria terminado. 

 

65. Assim, sendo a caducidade do direito de ação uma exceção dilatória nos termos do artigo 89.º, n.ºs 1, 2 e 4, k) do CPTA, deve nessa medida, a Requerida ser absolvida do pedido ou da instância (ponto 194.º da Resposta). 

 

66. As Requerentes argumentam que o prazo aplicável é o prazo de 4 anos a contar da data da liquidação, constante do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, uma vez que a AT, ao liquidar a CSR, incorreu em “erro imputável aos serviços”, em especial num erro de direito, aplicando normas contrárias ao Direito da União (pontos 216.º a 264.º da pronúncia sobre exceções). Ao contrário do que alega a Requerida, também as autoridades administrativas nacionais estão sob o dever de assegurar a plena eficácia do DUE, cabendo-lhes desaplicar as normas internas incompatíveis com o DUE (ponto 243.º da pronúncia sobre exceções). Invocam, ademais, que qualquer interpretação do artigo 78.º, n.º 1 da LGT que conclua que a AT não está sempre obrigada a proceder à revisão do ato de liquidação que traduza uma aplicação de norma interna desconforme com uma disposição de uma diretiva dotada de efeito direto é manifestamente inconstitucional, por violação dos princípios da prossecução do interesse público, da legalidade e da justiça, consagrados no artigo 266.º da CRP (ponto 254.º da pronúncia sobre as exceções). Os artigos 15.º e 16.º do CIEC – defendem as Requerentes – não são aplicáveis à CSR. Isto porque o artigo 5.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, remete a regulação dos aspetos da liquidação, cobrança e pagamento da CSR para o disposto no CIEC, na LGT e no CPPT, deixando de fora os meios e prazos de reação para contestar o tributo (pontos 129.º a 133.º da pronúncia sobre exceções). 

 

66. Segundo entende este Tribunal Arbitral, também esta exceção deve ser julgada improcedente, atenta a análise a seguir efetuada.

 

67. O artigo 15.º do CIEC contém um conjunto de disposições comuns às várias modalidades de reembolso previstas no Código, seja o reembolso por erro (artigo 16.º), o reembolso na expedição (artigo 17.º), o reembolso na exportação (artigo 18.º), reembolso na retirada do mercado (artigo 19.º) e outros casos de reembolso (artigo 20.º), nos seguintes termos:

 

Artigo 15.º

Regras gerais do reembolso

1 - Constituem fundamento para o reembolso do imposto pago, desde que devidamente comprovados, o erro na liquidação, a expedição ou exportação dos produtos sujeitos a imposto, bem como a retirada dos mesmos do mercado, nos termos e nas condições previstas no presente Código.

2 - Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo imposto. 

3 - O pedido de reembolso deve ser apresentado na estância aduaneira competente no prazo de três anos a contar da data da liquidação do imposto, sem prejuízo do disposto na alínea a) do artigo 17.º e na alínea a) do artigo 18.º. 

4 - O reembolso só pode ser efectuado desde que o montante a reembolsar seja igual ou superior a (euro) 25. 

 

68. Ora, como se lê no acórdão do CAAD de 14-05-2024, referente ao Processo n.º 790/2023-T, o regime especial previsto nos artigos 15.º e seguintes do CIEC vale para o reembolso com fundamento em erro na liquidação ou em caso de expedição ou exportação. Ora, no presente processo o que está em causa não é um pedido de reembolso tout court, mas uma declaração de ilegalidade de atos de liquidação de um imposto, à qual se pode seguir, verificados os demais pressupostos, a condenação da AT na restituição do imposto indevidamente pago.

 

69. Resulta, por outro lado, do n.º 1 do artigo 78.º da LGT que a revisão do ato tributário prevista naquele dispositivo constitui um meio de correção de erros na liquidação de tributos levado a cabo pela própria administração tributária (a revisão é da competência de quem praticou o ato tributário), e que pode partir da iniciativa do sujeito passivo, no prazo da reclamação administrativa (reclamação graciosa) e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou da iniciativa da administração, no prazo de 4 anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.

 

70. É entendimento pacífico da jurisprudência do STA que, para efeitos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT e em face da teleologia que subjaz ao instituto da revisão, este não abrange apenas os pedidos de revisão oficiosa da iniciativa da administração tributária, mas também a revisão do ato de liquidação requerida pelo sujeito passivo e como tal abrangida pelo prazo alargado de 4 anos. A revisão é, portanto, um afloramento do dever de revogação de atos tributários ilegais, que encontra arrimo nos princípios da legalidade, da justiça, da igualdade e da imparcialidade, que são princípios fundamentais da atividade administrativa (cf. artigo 266.º, n.º 2 CRP e artigo 55.º da LGT). E «face a tais princípios, não se vê como possa a Administração demitir-se legalmente de tomar a iniciativa de revisão do acto quando demandada para o fazer através de pedido dos interessados já que tem o dever legal de decidir os pedidos destes» (acórdão do STA, 11.05.2005, processo n.º 0319/05). 

 

71. Neste sentido, a revisão do ato tributário prevista no n.º 1 do artigo 78.º da LGT é um modo de reação complementaraos meios administrativos e contenciosos gerais e especiais, que tem o seu campo primordial de aplicação naquelas situações em que já não é possível a impugnação do ato tributário, ou seja, em todos os casos em que o contribuinte, não logrou lançar mão, por sua iniciativa, dos processos impugnatórios previstos na lei (cf. decisão arbitral do CAAD de 24.06.2021, processo n.º 500/2020-T). Como se lê no acórdão do STA de 08-06-2022, processo n.º 0174/19.7BEPDL, “[e]m função do respetivo, integral, conteúdo normativo, o art. 78.º da LGT consubstancia, no âmbito da proteção dum Estado de Direito, um depósito de garantias, acrescidas, de defesa e reposição da legalidade, concedidas aos sujeitos de relações jurídico-tributárias”.

 

72. Assim, ainda que versassem sobre a mesma matéria, os mecanismos de reembolso previstos nos artigos 15.º e ss. do CIEC não afastam a aplicação do artigo 78.º da LGT ao caso sub judice. O procedimento de revisão oficiosa assume-se, tanto pela sua localização sistemática (na LGT), como pelo substrato teleológico que lhe preside, como uma garantia dos contribuintes que acresce às previstas no CIEC ou noutra legislação especial

 

73. Esta modalidade de revisão do ato tributário só é possível nas situações em que haja “erro imputável aos serviços”, aqui compreendido não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como, também, o erro de direito, do qual tenha resultado, para o contribuinte, uma liquidação de imposto superior ao devido. Essa imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação afetada pelo erro (cf., entre outras, a decisão arbitral do CAAD de 24.03.2022, processo n.º 615/2021-T, e, entre outros, os acórdãos do STA de 12.02.2001, recurso n.º 26233, de 11.05.2005, recurso n.º 0319/05, de 26.04.2007, recurso n.º 39/07, de 14.03.2012, recurso n.º 01007/11 e de 18.11.2015, recurso n.º 1509/13). 

 

74. Como se lê no acórdão do STA de 12.02.2001, recuperado recentemente no acórdão do STA de 03.06.2020, «havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efetuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte (...)» (cf. acórdão do STA de 03.06.2020, processo n.º 018/10). E não valerá a pena invocar que, ao contrário dos tribunais – que têm, nos termos do artigo 204.º da CRP, “acesso direto” à Constituição – não goza a Administração Tributária do poder-dever de desaplicar normas inconstitucionais e, por maioria de razão, normas contrárias ao direito da União. Com efeito, desde a prolação do acórdão Fratelli Costanzo, pelo Tribunal de Justiça, existe jurisprudência constante no sentido de que o princípio do primado – e o seu corolário prático, o princípio do efeito direto – estende à administração pública o dever de desaplicar as disposições de direito nacional contrárias a uma norma de direito da União que goze de efeito direto (acórdão Fratelli Costanzo, processo 103/88, em particular, § 31).

 

75. Assim, havendo – como se demonstrará claramente infra – erro imputável aos serviços, o prazo para apresentar o pedido de revisão oficiosa é de 4 anos após a liquidação, e não de 120 dias, como sustenta a AT e, dado que o referido pedido de revisão respeita ao período compreendido entre abril de 2019 e dezembro de 2022, tendo sido recebido pela AT em 27-04-2023 (cf. Documento n.º 06 junto com o PPA), deverá ser considerado tempestivo.

 

76. Por outro lado, o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa formou-se em 27-08-2023, ou seja, decorridos os quatro em que a AT fica constituída no dever de decidir (artigo 57.º, n.º 1 da LGT). Por conseguinte, o PPA, apresentado em 20-11-2023, é também tempestivo (artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT).

 

77. Pelo que, pelas razões expostas, improcede a exceção relacionada com a caducidade do direito de ação. 

 

e)     Questão da ilegitimidade das Requerentes 

 

78. A AT pugna, nos pontos 66.º a 130.º da sua defesa por exceção, pela ilegitimidade processual ativa das Requerentes, o que, nos termos dos artigos 576.º, n.º 1 e 2 e 577.º, a) CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, e) RJAT, consubstancia uma exceção dilatória, que, se verificada, implica a absolvição da Requerida da instância. 

 

79. Segundo a AT, atento o regime especial previsto nos artigos 15.º e 16.º do CIEC, só o sujeito passivo que declarou os produtos para consumo e a quem foi liquidado o imposto tem legitimidade para requerer a revisão oficiosa e, consequentemente, para apresentar o pedido de pronúncia arbitral. Ora, o sujeito passivo da CSR é o sujeito passivo do ISP, aplicando-se as mesmas regras em termos de liquidação e cobrança (artigo 5.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto).  

 

80. Por outro lado, a AT alega que as Requerentes carecem de legitimidade à luz do disposto no artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT, porquanto no caso concreto não estará em causa uma situação de repercussão legal, mas de mera repercussão económica ou de facto. A repercussão económica depende da decisão dos sujeitos passivos de, no âmbito das suas relações comerciais, regidas pelo direito civil, procederem, ou não, à transferência parcial ou total da carga fiscal para os seus clientes (ponto 97.º da Resposta). As Requerentes não só não conseguem demonstrar que o valor pago pelos combustíveis que adquiriram às suas fornecedoras inclui o montante pago a título de CSR pelo sujeito passivo que introduziu o combustível no mercado, como não conseguem demonstrar que não o repassaram no preço dos serviços prestados aos seus clientes ou consumidores finais (pontos 102.º e 103.º da Resposta). E sem a possibilidade de identificar os atos de liquidação subjacentes às transações posteriores a Requerida poderia, no limite, ser sucessivamente condenada a pagar os mesmos montantes de CSR a todo e qualquer operador económico interveniente na cadeia comercial (ponto 128.º da Resposta). 

 

81. As Requerentes invocam que são parte legítima do procedimento e processo tributários, seja nos termos do artigo 9.º, n.º 1 do CPPT, visto que são titulares de um interesse legalmente protegido, seja nos termos do artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT, por o regime jurídico da CSR pressupor a repercussão legal do imposto e não a mera repercussão económica ou de facto (pontos 56.º a 95.º do PPA). Entendem que o legislador pretendeu onerar, única e exclusivamente, o consumidor de combustível (enquanto putativo utilizador da rede rodoviária nacional) e não quem está a montante (os fornecedores de combustível) ou a jusante desta transação, designadamente os adquirentes dos bens e serviços dos consumidores de combustível (pontos 5.º a 18.º e 134.º a 139.º da pronúncia sobre as exceções). Avançam, assim, que qualquer interpretação das disposições conjugadas dos artigos 18.º, n.º 3 e 78.º da LGT e do artigo 9.º do CPPT que conclua no sentido da ilegitimidade das Requerentes constitui uma violação dos princípios constitucionais do acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva, por não acautelar os direitos dos repercutidos (artigo 20.º da CRP), e da igualdade, por discriminar negativamente os repercutidos relativamente aos demais sujeitos da relação jurídico-tributária (artigo 13.º da CRP) [ponto 182.º da pronúncia sobre exceções]. 

 

Vejamos.

 

82. A legitimidade é a qualidade de ser parte ativa ou passiva num procedimento ou processo tributários. Trata-se de um requisito cuja verificação condiciona a apreciação da questão de fundo e não de uma condição de procedência do pedido. Razão pela qual, nesta fase, se atende à configuração da relação jurídica tal como alegada pelo autor, sem cuidar de saber se o direito invocado efetivamente existe na sua esfera jurídica [Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado e comentado, vol. I, 2006, p. 120 (anotação ao art. 9.º)].

 

83. A lei tributária parte de um conceito amplo de legitimidade, que não coincide plenamente com a qualidade de sujeito ativo ou passivo na relação jurídica tributária, abrangendo a AT, os contribuintes, os substitutos, os responsáveis, outros obrigados tributários e “quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (artigo 9.º, n.º 1 do CPPT). Neste sentido, estão abrangidos tantos quantos possam dizer-se afetados pelo que venha a ser decidido no procedimento ou processo tributários, ou seja, que tenham nele um interesse económico a defender (Rui Duarte Morais, Manual de procedimento e processo tributário, Almedina, 2012, p. 58). Por outro lado, o artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT, embora privando quem suporte o imposto por repercussão legal da qualidade de sujeito passivo da relação jurídica tributária, estende ao repercutido legal as garantias dos contribuintes, concretamente o direito de reclamação, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral.

 

84. Entende o Tribunal arbitral que, seja pela via do artigo 9.º, n.º 1 do CPPT, seja pela via do artigo 18.º, n.º 1, a) da LGT, as Requerentes têm legitimidade processual para apresentar a presente ação. É certo que o CIEC não continha, até à entrada em vigor da Lei n.º 24-E/2022, 30 de dezembro, uma norma semelhante à do artigo 37.º do CIVA, ou seja, uma norma que previsse expressamente o dever de incluir no preço a pagar pelo adquirente dos bens a importância de imposto liquidada pela AT ao sujeito passivo. Todavia, entende o Tribunal arbitral que a referência à “repercussão legal” inscrita no artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT terá de abranger todos aqueles casos em que a lei, direta ou indiretamente, faz assentar o regime jurídico do tributo num princípio de repercussão legal do imposto, ou seja, em que a lei pretende que a ablação patrimonial do imposto seja suportada, não pelo sujeito passivo, mas pelo titular da manifestação de capacidade contributiva que lhe dá causa.

 

85. É o que sucede com a CSR, que, como dispõe o artigo 3.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, constitui “a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo de combustíveis”. A manifestação de capacidade contributiva que dá causa à CSR – e que o legislador entendeu tributar – não é a introdução dos combustíveis no mercado, mas o próprio consumo de combustíveis por parte dos utilizadores da rede rodoviária nacional.

 

86. A nova redação do artigo 2.º do CIEC, introduzida pelo artigo 6.º da Lei n.º 24-E/2022, 30 de dezembro, limita-se a reconhecer abertamente aquilo que já resultava do regime jurídico dos IEC na versão anterior, ou seja, que o ISP e a (entretanto extinta) CSR assentam num princípio da repercussão legal.[2]

 

87. O alcance subjetivo do artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT encontra igualmente reconhecimento na doutrina jus tributária. Neste sentido, Jorge Lopes de Sousa escreveu, ainda antes da alteração legislativa de que resultou a atual redação do artigo 2.º do CIEC:

 

Nos casos de repercussão legal do imposto, apesar de aquele que suporta o encargo do imposto não ser sujeito passivo, é-lhe assegurado o do direito de reclamação, recurso e impugnação [art. 18º, nº 4, da LGT]. São casos de repercussão legal os do IVA e dos impostos especiais de consumo, pois, em face dos respetivos regimes legais, a lei exige o pagamentos dos tributos aos intervenientes no processo de comercialização dos bens ou serviços, visando fazer com que eles venham a ser pagos pelos consumidores finais, que são os titulares da capacidade contributiva que se pretende Tributar” [Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado e comentado, vol. I, 2006, p. 106 (anotação ao art. 9.º)].

 

88. Também Sérgio Vasques pugna pela indistinção, para efeitos da aplicação do n.º 2 do artigo 54.º da LGT (“As garantias dos contribuintes previstas no presente capítulo aplicam-se também à autoliquidação, retenção na fonte ou repercussão legal a terceiros da dívida tributária, na parte não incompatível com a natureza destas figuras”), entre a repercussão prevista para o IVA e a repercussão que vale para os impostos especiais sobre o consumo:

 

“O artigo 54.º, n.º 2 da LGT acrescenta ainda que as garantias dos contribuintes se aplicam também à autoliquidação, retenção na fonte ou repercussão legal a terceiros da dívida tributária, “na parte não incompatível com a natureza destas figuras”. A. Lima Guerreiro (2001), 254, observa a propósito que as normas de procedimento da LGT se aplicam à repercussão obrigatória que podemos dizer existir no contexto do IVA em virtude da obrigação geral da menção em factura, e a uma repercussão facultativa, que mais frequentemente encontramos na área dos impostos especiais sobre o consumo, taxas e contribuições. E, bem vistas as coisas, faltam razões para distinguir entre uma e outra modalidade de repercussão, quando está em jogo facultar defender o repercutido contra a exigência de tributo superior ao devido (...)” [Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2021, p. 402, nota n.º 35].

 

89. Independentemente da leitura que se faça do artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT, a legitimidade processual das Requerentes resulta, também, do artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT e do conceito amplo de legitimidade que aí se sufraga (Bruno Botelho Antunes, “Impugnação judicial em retenções na fonte – uma nova perspetiva sobre o interesse processual”, Fiscalidade, n.º 37, 2009, pp. 101-112). Ou seja, mesmo que se entenda que o regime jurídico da CSR não assenta num princípio de repercussão legal, há que reconhecer que o adquirente de combustíveis alega a titularidade de um interesse legalmente protegido para efeitos do artigo 9.º, n.º 1 do CPPT, podendo intervir no processo tributário nessa qualidade (cfr., neste sentido, o acórdão do CAAD de 13-11-2023, processo n.º 410/2023-T, a decisão do CAAD de 08-11-2023, Processo n.º 294/2023-T). Isto independentemente da repercussão se achar provada nos autos, já que a questão da prova da repercussão será apreciada posteriormente, na matéria de facto e na fundamentação de direito.

 

90. A Autoridade Tributária refere ainda que as Requerentes, não sendo sujeitos passivos do imposto, carecem não apenas de ilegitimidade processual, mas também de ilegitimidade substantiva, que constitui uma exceção perentória e conduz à absolvição do pedido, nos termos dos artigos 576.º, n.ºs 1 e 3 e 579.º do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, e) do RJAT (ponto 131.º da Resposta).

 

91. Mas não lhe assiste razão. A chamada legitimidade substancial ou substantiva tem que ver com a efetividade da relação jurídica material, interessando já ao mérito da causa e, nesse sentido, constitui um requisito da procedência do pedido e não uma condição para a apreciação do mérito.

 

92. Neste sentido, a legitimidade substantiva só pode ser analisada em função dos factos que sejam dados como provados ou não provados, ou seja, aquando da apreciação do mérito do pedido, não consubstanciando, em coerência, uma exceção perentória (cfr. acórdão do CAAD de 14-05-2024, referente ao Processo n.º 790/2023-T).

 

93. O que vem de dizer-se é extensível à alegada inexistência de prova de efetiva repercussão da CSR por efeito da aquisição de combustíveis, a que a Requerida se refere no ponto 124.º da Resposta. Essa é matéria de prova que terá de ser analisada no âmbito da decisão arbitral quanto ao fundo e que não integra, em si, uma qualquer exceção, nem dilatória, nem perentória. 

 

III – Matéria de facto

 

94. Preliminarmente, e no que diz respeito à matéria de facto, importa salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas Partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada [cfr. artigo 123º, nº 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e artigo 607º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29º, nº 1, alíneas a) e), do RJAT].

 

95. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito.

 

a)    Factos provados 

 

96. Consideram-se provados os seguintes factos:

 

A.   As Requerentes são sociedades que, por ocasião do exercício da sua atividade, adquirem combustível.

B.    No período compreendido entre abril 2019 e dezembro de 2022, a A... adquiriu à C... S.A. 430.874,45 litros de gasóleo rodoviário, 155.080,38 litros de gasolina e 256,44 kgs de GPL auto. 

C.    No mesmo período, a B... adquiriu à C..., S.A. 551.165,29 litros de gasóleo rodoviário, 156.432,90 litros de gasolina e 528,39 kgs de GPL auto.

D.   A C..., S.A. repercutiu nas respetivas faturas a CSR correspondente a cada um desses consumos, tendo as Requerentes, por conseguinte, suportado integralmente este encargo, num total de €136 204, 60 (€ 61.350,60, pela A... e € 74.854,00, pela B...).

E.    A C..., S.A. é sujeito passivo de ISP/CSR, tendo apresentado, no período compreendido entre abril de 2019 e dezembro de 2022, e-DIC, ou seja, declarações de introdução no consumo de produtos petrolíferos.

F.    Em 27-04-2023, as Requerentes apresentaram, perante a Alfândega do Jardim do Tabaco, um pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação da Contribuição de Serviço Rodoviário, referentes ao período entre abril de 2019 e dezembro de 2022, invocando que o encargo da CSR foi repercutido na sua esfera jurídica pela sua fornecedora de combustível, a C..., S.A.

G.   A Autoridade Tributária e Aduaneira não emitiu decisão quanto ao pedido de revisão oficiosa no prazo legalmente cominado para o efeito, considerando-se o pedido tacitamente indeferido a partir de 28-08-2023.

H.   O pedido arbitral deu entrada em 20-11-2023.

 

b)    Factos não provados

 

97. Não se provou que as Requerentes tenham repercutido os montantes suportados a título de CSR sobre os seus clientes.

 

98. Não se verificaram quaisquer factos como não provados com relevância para a decisão arbitral.

 

c)     Fundamentação da decisão da matéria de facto

 

99. No tocante à matéria de facto provada, a convicção do Tribunal Arbitral fundou-se, para além da livre apreciação das posições assumidas pelas Partes e no teor dos documentos juntos aos autos pela Requerente e pela Requeria (processo administrativo).

 

100. Os factos dos pontos A, B, C, F e G resultam da prova documental junta aos autos, mormente dos documentos n.ºs 02 a 03, sintetizados no documento n.º 01. O facto do ponto E foi alegado pelas Requerentes e tem por base as Declarações da C..., S.A sob os Documentos n.º 04 e 05. A Requerida reconhece que a  C..., S.A. é titular de “estatuto fiscal no âmbito dos IEC” (ponto 120.º da Resposta). E apesar de alegar não ser possível identificar as liquidações nem as correspondentes alfândegas de liquidação, a AT não enjeita que, durante aquele período, a C..., S.A. apresentou declarações de introdução no consumo (DIC) de combustível e que liquidou o correspondente ISP/CSR. Se tal não tivesse efetivamente acontecido, a AT não teria quaisquer dificuldades em contraditar a qualidade de sujeito passivo da C..., S.A. durante aquele hiato temporal.

 

101. A Requerida impugna o teor das faturas juntas com o PPA por estas não consubstanciarem fatura-recibo, nem recibo, nem nota de crédito, nem a conjugação de documentos (contabilísticos ou outros), que permitam comprovar o pagamento dos montantes alegados pelas Requerentes (pontos 121.º, 123.º e 205.º da Resposta). Contudo, o Tribunal arbitral entende que as referidas faturas, quando conjugadas com as Declarações da C..., S.A. sob os documentos n.º 04 e 05, constituem prova suficiente das quantidades de combustível adquiridas e de que as Requerentes pagaram à C... S.A. os montantes nelas registados.

 

102. A AT contesta a ocorrência de repercussão (facto constante do ponto D), invocando que os documentos juntos com o PPA carecem, em absoluto, de aptidão para atestar que as Requerentes tenham pago e suportado integralmente o encargo da CSR por repercussão na sua esfera jurídica (ponto 199.º da Resposta). Tão-pouco foi junto aos autos qualquer prova do pagamento ao Estado do ISP/CSR por parte do sujeito passivo, prova que poderia ser feita mediante apresentação dos respetivos Documentos Únicos de Cobrança e das Declarações Aduaneiras de Importação / Documentos administrativos Únicos com averbamento do número de movimento de caixa (ponto 210.º da Resposta). À luz do artigo 74.º, n.º 1 da LGT e do artigo 342.º do Código Civil, o ónus da prova de factos constitutivos do direito recai sobre quem o invoca, ou seja, sobre as Requerentes, que não beneficiam de qualquer presunção no sentido de que a repercussão tenha ocorrido (ponto 223.º da Resposta). Exigir que seja a Requerida a fazer prova de que não houve repercussão, que corresponde a um facto negativo, configura uma exigência de “prova diabólica”, que se afigura inconstitucional à luz do princípio da proporcionalidade e do direito a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrados nos artigos 2.º e 20.º da CRP (ponto 225.º da Resposta).

 

103. Finalmente, a AT sublinha que as Requerentes não demonstraram, como lhes competia, que o preço dos bens e serviços prestados aos seus clientes não comportou, a jusante, a repercussão da CSR, não tendo, com isso, demonstrado que suportou efetivamente o encargo relativo ao imposto (ponto 230.º da Resposta). Vejamos:

 

104. O artigo 74.º, n.º 1 da LGT dispõe, efetivamente, que “o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”. Incumbe, nessa medida, às Requerentes alegar factos que demonstrem que o direito ao reembolso do imposto (ilegalmente liquidado), por estas suportados através do mecanismo da repercussão, se constituiu na sua esfera jurídica.

 

105. Por outro lado, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a repercussão de um imposto não se presume mesmo quando seja legalmente exigida a incorporação do imposto no preço de venda dos bens (repercussão legal), ou mesmo que, habitualmente, no domínio do comércio, o imposto seja parcial ou totalmente repercutido. Neste sentido, para o Tribunal de Justiça, a repercussão tributária – legal ou não – é uma questão de facto, que depende de fatores inerentes a cada transação comercial e será mais ou menos provável consoante as caraterísticas do mercado, mormente a sua elasticidade ou inelasticidade (Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, §44). Como se lê no acórdão Weber’s Wine, processo C-147/01, §96:

 

«(...)

[o] Tribunal de Justiça sublinhou, designadamente, que, mesmo que a legislação nacional conceba as imposições indirectas de modo a que estas sejam repercutidas no consumidor final e, habitualmente, no domínio do comércio, tais imposições indirectas sejam parcial ou totalmente repercutidas, não é possível afirmar, em geral, que a imposição é de facto repercutida em todos os casos. Na verdade, a repercussão efectiva, parcial ou total, depende de vários factores próprios a cada transacção comercial e que a diferenciam de outras situações, noutros contextos. Consequentemente, o problema da repercussão ou não de cada imposição indirecta constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, o qual aprecia livremente os elementos de prova que lhe são submetidos.

(...)».

 

106. Neste sentido, o Tribunal arbitral dá como provado o facto do ponto D, isto é, a repercussão integral da CSR sobre as Requerentes, respaldada nas faturas de aquisição de combustível juntas aos autos sob os documentos n.ºs 02 e 03 e nas declarações emitidas pela C... S.A., juntas sob os documentos n.ºs 04 e 05, as quais têm o seguinte teor:

 

“C..., S.A., pessoa coletiva n.º ..., com sede na Rua ..., ..., ... -... Lisboa, pela presente declara, para os devidos efeitos, que a Contribuição de Serviço Rodoviário por si entregue, na qualidade de sujeito passivo, junto dos cofres do Estado, por referência ao combustível rodoviário fornecido à empresa A..., S.A. (NIF –...), nos anos de 2019 a 2022, foi por si integralmente repercutida na esfera da referida empresa.”; e

“C..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., ..., ...-... Lisboa, pela presente declara, para os devidos efeitos, que a Contribuição de Serviço Rodoviário por si entregue, na qualidade de sujeito passivo, junto dos cofres do Estado, por referência ao combustível rodoviário fornecido à empresa B..., S.A. (NIF –...), nos anos de 2019 a 2022, foi por si integralmente repercutida na esfera da referida empresa.”

 

107. Ora, o Tribunal Arbitral entende que as declarações são credíveis e que a AT não logrou contraditar a sua autenticidade. Na verdade, não se deteta motivo para que os fornecedores de combustíveis procedessem à declaração de que repercutiram o tributo a quem a própria lei indica que o deve suportar caso tal declaração não correspondesse à realidade.

 

108. As declarações contêm uma afirmação contundente: a de que sempre que forneceu combustível às Requerentes a C... S.A. incorporou no preço de venda o montante de CSR, correspondente a €0,11 por litro. A circunstância de as declarações serem genéricas, e não fornecimento a fornecimento, deve ser entendido, à luz do artigo 236.º do Código Civil, no sentido de que se reportam a todos os fornecimentos de combustíveis efetuados pela declarante às Requerentes num determinado período. Existe, assim, prova bastante da ocorrência de repercussão, conjugando a prova documental produzida com as regras da experiência e da prática. Note-se que o Tribunal Arbitral não presume a repercussão da CSR sobre as Requerentes. Mas também não obnubila os meios de prova que as Requerentes submeteram à sua apreciação e que entende serem suficientes para a demonstração dos factos alegados, à luz do princípio da livre apreciação da prova e das regras da experiência, que apontam para a ocorrência de repercussão.

 

109. Ao contrário do que alega a Requerida (ponto 230.º da Resposta), não incumbe às Requerentes fazerem prova de que não repercutiram os montantes suportados a título de CSR sobre os seus clientes. Não é por estar em causa outro momento da cadeia comercial que são diferentes as regras sobre o ónus da prova: a repercussão não se presume – eis o dito do Tribunal de Justiça. Esta asserção não varia em função do tipo de repercussão tributária, como também é insensível aos segmentos do circuito económico do bem ou serviço transacionado.

 

110. Assim, se os factos provados evidenciam que houve repercussão da CSR pela C... S.A, não demonstram, todavia, que tenha havido repercussão da CSR pelas Requerentes sobre os seus clientes, conforme facto dado como não provado (vide ponto 97., supra).

 

IV – Fundamentação de direito

 

a)    Da ilegalidade das liquidações: a questão da violação do Direito da União

 

111. A questão que vem colocada é a de saber se a Contribuição de Serviço Rodoviário, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que constitui um imposto incidente sobre os combustíveis rodoviários também sujeitos ao Imposto sobre Produtos Petrolíferos, e que se encontra enquadrada pela Diretiva n.º 2008/118/CE, tem um “motivo específico” na aceção do artigo 1.º, n.º 2, dessa Diretiva.

 

112. A AT defende-se por impugnação contrariando a asserção de que a CSR não tem um “motivo específico” na aceção do 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE (pontos 234.º a 243.º da Resposta). Invoca que o contrato de concessão da rede rodoviária nacional adstringe a CSR à prossecução de objetivos não orçamentais, mormente de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental. Insiste que inexiste qualquer decisão judicial transitada em julgado – do Tribunal de Justiça ou de outro Tribunal – que tenha declarado ou julgado a inconstitucionalidade ou ilegalidade do regime jurídico da CSR. Não havendo contrariedade entre a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto e o DUE, não existe “erro imputável aos serviços”, seja para efeitos do pedido de revisão oficiosa, seja para efeitos da condenação em juros indemnizatórios.

 

112. As Requerentes, louvando-se no Despacho do Tribunal de Justiça, Vapo Atlantic, processo C-460/21, e em jurisprudência anterior do mesmo Tribunal, alegam que não preside à CSR qualquer “motivo específico”, distinto do subjacente ao ISP. Solicitam, por conseguinte, ao Tribunal arbitral que, em linha com o princípio do primado do Direito da União, ínsito no artigo 8.º, n.º 4 da CRP, desaplique as normas da Lei n.º 55/2017, de 31 de agosto, e declare a ilegalidade dos atos de liquidação de CSR.  

 

113. Importa, num primeiro momento, atentar nos efeitos do Despacho Vapo Atlantic. As decisões do Tribunal de Justiça em sede de reenvio prejudicial (artigo 267.º TFUE) têm valor declarativo, definindo o sentido a atribuir a uma norma de DUE (originário ou derivado) desde o momento em que esta entrou em vigor. A interpretação declarada pelo Tribunal de Justiça passa a ser parte integrante da norma de DUE. Como é sabido, o Tribunal de Justiça não é competente para, em sede de reenvio prejudicial, declarar a ilegalidade de atos de direito interno. Essa é uma competência do órgão jurisdicional nacional. Todavia, uma vez que o instituto do reenvio prejudicial procura assegurar o princípio da interpretação e aplicação uniformes do DUE, as interpretações do Tribunal de Justiça vinculam todos os demais órgãos jurisdicionais nacionais chamados a interpretar e aplicar aquela norma. 

 

114. Naquele Despacho, foi o Tribunal de Justiça chamado a responder, entre outras, à seguinte questão: “O artigo 1.°, n.º 2, da Diretiva [2008/118], e designadamente a exigência de “motivos específicos”, deve ser interpretado no sentido de que a finalidade de um imposto é meramente orçamental quando a sua criação é feita com o objetivo de financiar empresa pública concessionária da rede nacional de estradas, por ocasião da renovação da sua concessão, e à qual a receita do imposto fica genericamente afetada, e a sua estrutura não atesta a intenção de desmotivar um qualquer consumo?”.

 

115. Entendeu o Tribunal de Justiça que a resposta à questão prejudicial poderia ser claramente deduzida da jurisprudência ou não suscitava qualquer dúvida razoável, pelo que estariam verificados os pressupostos para que pudesse pronunciar-se através de Despacho fundamentado, nos termos do artigo 99.º do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

 

116. O que aconteceu, em termos que o Tribunal Arbitral sintetiza da seguinte forma (§§ 20-36):

a)    A Diretiva 2008/118/CE não se opõe a que os Estados-membros estabeleçam outras imposições indiretas para além do imposto especial sobre o consumo mínimo. Mister é que tais imposições, no sentido de não entravar as trocas comerciais, sejam cobradas por “motivos específicos” e sejam conformes com as normas fiscais da União aplicáveis ao imposto especial de consumo e ao imposto sobre o valor acrescentado no que diz respeito à determinação da base tributável, à liquidação, à exigibilidade e ao controlo do imposto (artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva). 

b)    O facto de um imposto ter uma finalidade orçamental não obsta a que possa ter uma finalidade específica na aceção da Diretiva. Mas a existência de um motivo ou finalidade específicos pressupõe que se possa estabelecer, a partir do regime jurídico do tributo, uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa. 

c)    A alocação da receita do tributo ao financiamento de atribuições administrativas, em particular a adjudicação da receita da CSR ao financiamento da concessionária da rede rodoviária nacional, constitui um elemento relevante, ainda que insuficiente, para que se logre identificar um motivo específico. 

d)    Para que se considere que a imposição indireta prossegue efetivamente uma finalidade específica, mormente de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental, é necessário que o produto desse imposto seja obrigatoriamente utilizado para reduzir os custos sociais e ambientais associados à utilização da rede rodoviária nacional. O que não acontece com a CSR, cuja receita se destina, mais amplamente, a assegurar o financiamento da atividade de conceção, projeto, construção, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional. Acresce que a estrutura da CSR, nomeadamente a matéria coletável ou a taxa de tributação, não espelha, em termos suficientemente precisos, o propósito de reduzir a sinistralidade, dissuadir os sujeitos passivos do tributo de utilizarem a rede rodoviária nacional ou incentivar a adoção de comportamentos menos nocivos para o ambiente.

e)    A CSR tem uma finalidade puramente orçamental, na aceção da Diretiva 2008/118/CE. 

 

117. No Despacho analisado, o Tribunal de Justiça afirma claramente que as finalidades específicas apontadas pela AT – a redução da sinistralidade e a sustentabilidade ambiental – não se mostram suficientemente respaldadas na estrutura do tributo, em termos de matéria coletável ou da taxa de tributação aplicável. Esta asserção não é infirmada pelo que eventualmente resulte do clausulado do contrato de concessão da rede rodoviária nacional ou de Relatórios da atividade da concessionária, ao contrário do que sugere a Requerida. O Tribunal de Justiça é muito claro no sentido de que não se prova uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa só porque a entidade a quem está legalmente alocada a respetiva receita assumiu compromissos no âmbito da redução da sinistralidade ou da proteção do ambiente.

 

118. Não tendo sido alegados elementos que permitam chegar a outra conclusão, entende o Tribunal Arbitral que a CSR é uma imposição indireta que não prossegue um motivo específico na aceção da Diretiva 2008/118/CE. Consequentemente, as liquidações emitidas pela AT à C... S.A., que estão subjacentes à cobrança de CSR às Requerentes, enfermam de vício de lei, por incompatibilidade das normas dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º e 6.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, com o artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE.

 

119. E, a referida ilegalidade justifica a anulação das liquidações, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT, bem como a anulação do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa.

 

b)    Questões de conhecimento prejudicado

 

120. Resultando do exposto a declaração de ilegalidade das liquidações de CSR subjacentes às facturas juntas aos autos, por vício que impede a sua renovação, fica prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC), o conhecimento das restantes questões colocadas.

 

c)     Restituição do imposto

 

121. A Requerida insiste, na defesa por impugnação, que não deve haver lugar à restituição do imposto indevidamente liquidado por, segundo o acórdão Danfoss, processo C-94/2010, do Tribunal de Justiça, um Estado-membro poder “opor-se a um pedido de reembolso de um imposto indevido apresentado pelo comprador final sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais, desde que, quem tiver suportado afinal o encargo possa, nos termos do direito interno, exercer uma acção civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo” (pontos 244.º a 250.º da Resposta). 

 

122. O Tribunal de Justiça tem declarado reiteradamente que os Estados-membros estão, em princípio, obrigados a restituir os impostos cobrados por um Estado-membro em violação do Direito da União. Esta obrigação conhece apenas uma exceção, reiterada no Despacho Vapo Atlantic: um Estado-membro só se pode opor ao reembolso de um imposto indevidamente cobrado à luz do direito da UE quando as autoridades nacionais provarem que o imposto foi suportado na íntegra por pessoa diferente do sujeito passivo e que o reembolso do imposto implicaria um enriquecimento sem causa deste último (Despacho Vapo Atlantic, §39-42; acórdão Weber’s Wine, processo C-147/01, §93-94).

 

123. Mesmo quando se prove a ocorrência de repercussão, a restituição do imposto ao sujeito passivo não consubstancia necessariamente um enriquecimento sem causa, porquanto aquele pode sofrer prejuízos associados à diminuição das suas vendas, por comparação com produtos sucedâneos não sujeitos a idêntica imposição. A circunstância de a lei prever a repercussão não dispensa a AT ou o particular (consoante os casos) de demonstrar que essa repercussão ocorreu, cabendo a decisão ao órgão jurisdicional nacional decidir, a partir da livre apreciação dos elementos de prova que lhe tenham sido submetidos (Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, §44).

 

124. Em nome da autonomia processual dos Estados-membros, o Direito da União não reclama que o direito processual dos Estados-membros preveja um mecanismo de reação do suportador económico do imposto (o adquirente ou comprador) diretamente junto das autoridades fiscais dos Estados-membros, desde que este possa exercer uma ação civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo e que o reembolso não seja na prática impossível ou excessivamente difícil (acórdão Danfoss, processo C-94/10, §29). No entanto, caso a reparação do dano sofrido pelo comprador que suportou o encargo económico do imposto indevido nele repercutido se revele impossível ou excessivamente difícil, o princípio da efetividade exige que esse comprador tenha a possibilidade de dirigir o seu pedido de indemnização diretamente contra o Estado, sem que este possa validamente opor-lhe a falta de nexo direto de causalidade entre a cobrança do imposto indevido e o dano sofrido pelo comprador (idem, §38). 

 

125. Tudo isto a demonstrar que, mesmo aqueles Estados-membros que não confiram legitimidade direta ao adquirente / comprador, terão, em certas circunstâncias, de acautelar vias processuais que permitam a restituição do imposto, não podendo, nesses casos, invocar obstáculos jurídicos à compensação do dano sofrido. Ou seja, na eventualidade de a ação civil de restituição do indevido tornar impossível ou excessivamente difícil a recuperação do que foi indevidamente suportado, o Estado-membro tem de estar preparado para receber e dar satisfação ao pedido de reembolso, não lhe bastando alegar que não houve repercussão do imposto sobre o adquirente / comprador, ou – acrescente-se – que não lhe é possível identificar os atos de liquidação do imposto a montante praticados. 

 

126. Por outro lado, o Direito da União não se opõe a que aquele que economicamente suportou o imposto possa obter diretamente das autoridades fiscais nacionais a restituição do montante de imposto cujo encargo suportou, caso em que a questão do reembolso ao sujeito passivo (prestador ou fornecedor de bens e serviços) não chega, dessa forma, a colocar-se (acórdão Comateb, processo C-192/95 a C-218/95, §24).

 

127. Assim, nada obsta, portanto, a que o Estado-membro preveja vias processuais que assegurem ao adquirente/comprador recuperar o imposto indevidamente suportado diretamente junto das autoridades fiscais nacionais. O entendimento amplo de legitimidade processual constante do artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT, que abrange qualquer pessoa que possa dizer-se diretamente afetada pelo que no processo possa vir a ser decidido, dá arrimo à pretensão do adquirente / comprador. Por essa razão, de nada vale evocar o dito do Tribunal de Justiça no acórdão Danfoss, processo C-94/10. O que aí se diz é que o direito da União não obriga os Estados-membros a assegurar uma via processual direta em benefício do comprador / adquirente, desde que assegurada uma ação civil de repetição do indevido. Mas não inibe, bem entendido, os Estados-membros de consagrarem uma tal via processual de reação, no exercício da autonomia que lhes é reconhecida nestas matérias. E é isso que, no entender do Tribunal arbitral, acontece no caso português.

 

128. O Tribunal Arbitral deu como provada a repercussão da CSR sobre as Requerentes, pelas razões expostas na fundamentação da matéria de facto.

 

129. Conforme jurisprudência reiterada do Tribunal de Justiça, a repercussão de um imposto – legal ou não – é uma questão de facto, sobre a qual não recai qualquer presunção e que deve ser apreciada pelo órgão jurisdicional nacional de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, em função das regras da experiência.

 

130. Pelas mesmas razões, o Tribunal arbitral não deu como provado que as Requerentes tenham transferido para o preço dos bens ou serviços prestados aos seus clientes os montantes suportados a título de CSR nas aquisições de combustível. Considerou, concretamente, que se a prova junta aos autos, apreciada à luz das regras da experiência e tendo em conta o setor económico em causa, aponta no sentido de que o sujeito passivo do imposto – a C..., S.A. – repercutiu a CSR sobre os adquirentes de combustível, não demonstra, todavia, que as Requerentes tenham repercutido sobre os seus clientes o imposto suportado na aquisição de combustível.

 

131. Por estas razões, mostra-se constituído na esfera jurídica das Requerentes o direito ao reembolso do imposto ilicitamente liquidado, suportado por intermédio da repercussão legal. Atenta a incompatibilidade do regime jurídico da CSR com o DUE, nos termos já expostos, o Tribunal Arbitral decide declarar a ilegalidade e anular as liquidações de CSR, com as consequências que daí advêm, ou seja, com eliminação dos atos de repercussão da CSR sobre as Requerentes.

 

d)    Juros indemnizatórios

 

132. A par do pedido de anulação das liquidações de CSR, e do consequente reembolso da importância que indevidamente pagaram em excesso, as Requerentes pedem ainda que se lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º, n.ºs 1 e 3, d) da LGT (pontos 61.º a 72.º do PPA). A AT argumenta que, na eventualidade de o Tribunal Arbitral declarar a ilegalidade das liquidações de CSR, a norma aplicável em matéria de juros indemnizatórios é a do artigo 43.º, n.º 3, c) da LGT, por subjacente à reabertura da via contenciosa ter estado um pedido de revisão oficiosa por iniciativa do contribuinte.

 

133. Dispõe o n.º 1 do artigo 43.º da LGT que “[S]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”. No n.º 3 do mesmo preceito pode ler-se o seguinte: “São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias: (...) c) Quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária”(d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução”.[3]

 

134. Ora, conforme resulta de tudo quanto vem de ser dito, as liquidações (agora anuladas) assentaram em erro imputável aos serviços, da qual resultou o pagamento de uma dívida tributária em montante superior ao legalmente devido. Tal erro consistiu na aplicação, por parte da AT, de normas de direito interno – as normas que integram a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto – incompatíveis com normas de direito derivado da União, dotadas de efeito direto.

 

135. Todavia, ao contrário do que, neste ponto, sustentam as Requerentes, não existe decisão judicial transitada em julgado que tenha declarado ou julgado inconstitucional ou ilegal a norma legislativa em que se fundou a liquidação. Tal decisão não será, certamente, a decisão do Tribunal de Justiça no Despacho Vapo Atlantic, já que a declaração de ilegalidade (muito menos de inconstitucionalidade) de normas de direito interno não faz parte das competências daquele Tribunal. Este, no quadro dos seus poderes em sede de reenvio prejudicial, esclarece o modo como deve ser interpretado o direito originário ou derivado da União (reenvio de interpretação) ou aprecia se um determinado ato de direito derivado da União está conforme ao direito originário (reenvio de validade). Tão-pouco se conhecem decisões judiciais transitadas em julgado – pelo menos, não foram tais decisões juntas aos autos nem o Tribunal arbitral tem delas conhecimento oficiosamente – em que haja sido declarada a ilegalidade ou a inconstitucionalidade das normas da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto. Pelo que não estão verificados os pressupostos para que seja aplicada a alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT. 

 

136. É jurisprudência constante do STA que, tendo havido um pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação (agora anulados), os juros indemnizatórios são devidos desde a data em que se tenha completado um ano sobre a formulação do pedido, de acordo com o disposto na al. c) do n.º 3 do mesmo preceito, conforme jurisprudência firmada (cf., entre outros, os acórdãos do STA de 20.05.2020, processo 05/19.8BALSB, prolatado pelo pleno da Secção de contencioso tributário; e de 03.06.2020, processo n.º 018/10.5BELRS 095/18). 

 

137. Alicerça o STA este arrazoado na circunstância de o contribuinte, podendo ter obtido anteriormente a anulação do ato de liquidação, se ter temporariamente desinteressado da recuperação do que foi liquidado em excesso pela administração tributária, até à apresentação do pedido de revisão oficiosa «(...) A reposição da legalidade poderia ter sido provocada por iniciativa do contribuinte que a não desenvolveu, o que justifica que o direito a juros indemnizatórios haja de ter uma extensão mais reduzida por contraposição à situação em que o contribuinte suscita a questão da ilegalidade do acto de liquidação imediatamente após o desembolso da quantia em questão, nomeadamente nos três meses seguintes ao termo do prazo de pagamento voluntário usando o processo de impugnação do acto de liquidação» – cf. acórdão do STA de 11.12.2019, processo 058/19.9BALSB. 

 

138. O STA não tem subtraído a esta jurisprudência as situações em que o pedido de revisão oficiosa tem por base um erro de direito, por aplicação de normas de direito interno incompatíveis com o Direito da União (na sequência de uma decisão do Tribunal de Justiça em sede de reenvio prejudicial), como acontece no presente caso (cfr., por exemplo, o acórdão do Pleno da secção de contencioso tributário do STA de 24-01-2024, processo n.º 0108/23.4BALSB). Além disso, não devem distinguir-se, para efeitos de aplicação da alínea c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, as situações em que é deduzido o pedido de revisão e a administração revê o ato mais de um ano após a dedução desse pedido, daquelas em que a administração não revê o ato, mas este vem a ser anulado judicialmente após mais de um ano a contar desse pedido.

 

139. Uma vez que o pedido de revisão oficiosa deu entrada em 27-04-2023, conclui-se que são devidos juros indemnizatórios a partir de 27-04-2024.

 

V- Decisão

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal arbitral em:

 

a) Julgar improcedentes as exceções suscitadas pela AT;

b) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

c) Anular as liquidações de CSR subjacentes às faturas anexadas com o pedido de pronúncia arbitral, emitidas pela C..., S.A. às Requerentes, anulando-se assim os atos de repercussão subsequentes;

d) Julgar procedente o pedido de reembolso das quantias indevidamente pagas, a título de CSR, pelas Requerentes, no montante de € 136.204,60 e condenar a Administração Tributária a restituir-lhes essas quantias, acrescidas de juros indemnizatórios, a partir de 27-04-2024. 

 

Valor da causa: De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 136.204,60[4]indicado pelas Requerentes, sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Custas: Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, a cargo da Requerida.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 15 de julho de 2024

 

Os Árbitros

 

Fernando Araújo

(Presidente do Tribunal arbitral)

(Vencido, nos termos da declaração que junta)

 

Sílvia Oliveira

(Árbitro Adjunto)

(Com declaração de voto)

 

Marta Vicente

(Árbitro Adjunto e Relatora)

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Voto vencido por quatro ordens de razões:

 

1. NÃO HÁ, NEM HOUVE, REPERCUSSÃO LEGAL DA CSR

 

Salvo o devido respeito, que é muito, creio que a decisão que ora teve vencimento assenta num equívoco sobre o que seja repercussão legal, alargando esse conceito a situações em que o que está em causa é uma simples repercussão económica, que é tida por “legal” pela circunstância de ser mencionada em preceitos legais, ou até de ser incorporada na “ratio legis” como facto tipificado – mas não presumido nem convertido em previsão da qual decorram automaticamente as consequência de uma genuína repercussão legal. Como se estabeleceu no Despacho proferido pelo TJUE em 7 de Fevereiro de 2022, no Proc. C-460/21: “Com efeito, ainda que, na legislação nacional, os impostos indiretos tenham sido concebidos de modo a serem repercutidos no consumidor final e que, habitualmente, no comércio, esses impostos indiretos sejam parcial ou totalmente repercutidos, não se pode afirmar de uma maneira geral que, em todos os casos, o imposto é efetivamente repercutido. A repercussão efetiva, parcial ou total, depende de vários fatores próprios de cada transação comercial e que a diferenciam de outras situações, noutros contextos. Consequentemente, a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos.” (§44).

Que na CSR estava em causa uma simples repercussão económica era muito claro por várias razões, entre elas avultando a falta de obrigatoriedade de comprovação das parcelas de CSR eventualmente incorporadas, ou não, na facturação de cada agente económico nas suas transacções a jusante – a falta do que pode designar-se por “repercussão formalizada”.

A decisão que ora teve vencimento espelha esse entendimento, na medida em que se sentiu forçada a estabelecer, no elenco dos factos não provados, a repercussão de CSR dos próprios Requerentes na facturação à sua clientela – o que seria inteiramente desnecessário se estivéssemos perante uma verdadeira e própria repercussão legal e formalizada. Assinalar a ausência de prova de repercussão a jusante das Requerentes para a sua clientela é, portanto, contraditório com a premissa de que há repercussão legal.

Ironicamente, essa mesma conclusão quanto à natureza da repercussão reforça-se com a tentativa de criação de uma “repercussão legal retroactiva”, consumada através da alteração da redacção do art. 2.º do CIEC pela Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, quando se lhe procurou conferir alcance “interpretativo”. Primeiro porque essa retroactividade, se fosse válida, confirmaria que, à data dos factos, não havia um regime de repercussão legal que abarcasse a CSR. E depois porque essa tentativa legal é manifestamente inconstitucional, como decorre do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 751/2020, de 25 de Janeiro de 2021, Proc. nº 843/19: “a retroatividade inerente às leis interpretativas é necessariamente material e, caso esteja em causa a interpretação legal de normas fiscais, não pode deixar de estar abrangida pela proibição da retroatividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição”.

 

2. NÃO ESTÁ PREENCHIDO O STANDARD DE PROVA

 

Os sujeitos passivos de CSR documentam com facilidade a introdução no consumo de ISP e de CSR, através de quadros em que aparecem discriminados:

1.     O nº de registo de liquidação

2.     A data do registo de liquidação

3.     O mês de introdução no consumo

4.     Os totais de ISP (e outros)

5.     Os totais de CSR

6.     O total liquidado

Em todos os processos em que os sujeitos passivos de CSR têm vindo peticionar o reembolso da CSR, nunca deixam de juntar esses documentos.

Logo, compreender-se-á que as declarações que os sujeitos passivos de CSR emitem a favor dos seus “repercutidos” não fazem prova de tais liquidações, e menos ainda de eventuais repercussões – quando, ao menos, a totalidade das liquidações daquele operador poderia ser especificado, dando alguns passos em direcção de um standard mínimo de prova.

Existindo tal documentação, as referidas declarações são claramente insuficientes – e decerto nada comprovam, nem podem comprovar, o grau de repercussão económica que possa ter existido, pelas mesmíssimas razões pelas quais não se consegue comprovar a repercussão que tenha acontecido a jusante dos “primeiros repercutidos”.

Sendo assim, e não obstante a minuciosa e escrupulosa fundamentação contida na decisão que ora teve vencimento, considero que os factos D) e E) não estão provados – não estão satisfatoriamente provados, resultam de referências que não permitem satisfazer um standard mínimo de prova.

Numa palavra, não passam de conjecturas; plausíveis, sim, mas conjecturas.

 

3.1 INEPTIDÃO DO PEDIDO: A ININTELIGIBILIDADE

 

Não está em causa, no meu entender, seja a ilegalidade da CSR por incompatibilidade com o direito da União, nem a competência de um tribunal arbitral para julgar um tributo que foi, na verdade, um imposto.

Acompanho, nesses pontos, a decisão tomada neste processo.

Sucede, em contrapartida, que entendo serem procedentes, no caso, várias das excepções apresentadas pela Requerida; começando, por ordem lógica, pela ineptidão do pedido.

Efectivamente, o pedido é ininteligível: não no sentido de não se perceber o que as Requerentes querem, ou de ser impossível à Requerida reagir ao pedido, porque efectivamente reage, sanando a ininteligibilidade nesse sentido, nos termos do art. 186º, 3 do CPC (aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).

Mas é ininteligível num outro sentido, no de insuficiência de identificação do objecto do pedido, de identificação do objecto em termos tais que o tribunal não se limite a proclamações genéricas e abstractas, mas possa avaliar um objecto específico, e retirar consequências concretas dessa avaliação. Como se estabeleceu lapidarmente no Acórdão do TCAS de 30-06-2022 (Proc. nº 138/17.5BELRS), “a petição inicial de impugnação que não identifica o acto tributário impugnado, que não formula a pretensão concreta por referência àquele e que não indica os factos concretos que justificariam a adopção da providência judiciária requerida é inepta”.

Concretizar o pedido, no caso do contencioso de anulação de actos administrativos, implica necessariamente identificar os actos cuja anulação se pretende, como, aliás decorre do artigo 108º do CPPT, quando estipula que “[A] impugnação será formulada em petição articulada, dirigida ao juiz do tribunal competente, em que se identifiquem o ato impugnado e a entidade que o praticou e se exponham os factos e as razões de direito que fundamentam o pedido”.

Lembremos o art. 10º, 2, b) do RJAT:

Artigo 10.º (Pedido de constituição de tribunal arbitral) (…)

2 - O pedido de constituição de tribunal arbitral é feito mediante requerimento enviado por via electrónica ao presidente do Centro de Arbitragem Administrativa do qual deve constar: (…)

b) A identificação do acto ou actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral; (…)”

Podendo invocar-se igualmente o art. 78º do CPTA (aplicável ex vi art. 29º, 1, c) do RJAT):

Artigo 78.º (Requisitos da petição inicial) (…)

2 - Na petição inicial, deduzida por forma articulada, deve o autor: (…)

e) Identificar o ato jurídico impugnado, quando seja o caso;

f) Expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação; (…)”

Ora, o que temos nos presentes autos é a identificação indirecta de transacções nas quais se liquidou presumivelmente um montante – não discriminado – de ISP, CSR e outros tributos.

Na melhor das hipóteses, nesse standard de prova ficou fortemente sugerida, com elevada plausibilidade, a existência de repercussão de CSR previamente liquidada, ainda que uma repercussão não-quantificada.

Sucede, todavia, que os actos de repercussão não são actos tributários, não sendo, portanto, sindicáveis por este tribunal. Só o poderiam ser os actos de liquidação, que, esses sim, são actos tributários. Esses actos de liquidação podem ser comprovados, com facilidade, pelos verdadeiros sujeitos passivos de CSR – mas não o foram. Esses actos não podem ser comprovados por facturação, porque não há repercussão legal e formal, como existe no IVA.

As repercussões meramente económicas não são actos judicialmente impugnáveis; apenas o são as liquidações. Mas estas estão meramente supostas ou implícitas, não estão directamente ou indirectamente provadas, e nem sequer estão especificamente identificadas.

 

3.2. INEPTIDÃO DO PEDIDO: FALTA DE REPERCUSSÃO FORMALIZADA – INSUSCEPTIBILIDADE DE CORRESPONDÊNCIA ENTRE LIQUIDAÇÕES E REPERCUSSÕES

 

É verdade que a identificação e comprovação dos actos de liquidação não resolveria todas as dificuldades – e daí a procedência de outras excepções, como a da ilegitimidade. 

Ainda só quanto à identificação e comprovação dos actos de liquidação, lembremos que na CSR não se passam as coisas do mesmo modo que sucede no IVA. No IVA, os actos de repercussão do imposto no preço cobrado ao adquirente ocorrem anteriormente à liquidação de IVA propriamente dita, determinando a quantificação e a determinação temporal precisas – criando uma correspondência exacta entre o acto de repercussão e a liquidação de IVA.

Mas, no caso da CSR, e não obstante poder admitir-se a existência de um montante não-quantificado de repercussão económica, os actos de repercussão não só não estão formalmente ligados ao acto de liquidação, como nem sequer podem está-lo, dada a própria mecânica do imposto. 

Enquanto no IVA o imposto é devido quando ocorre uma venda ou prestação de serviços (sendo essa transacção que determina o nascimento da obrigação do próprio imposto), no caso da CSR era a introdução no consumo que fazia nascer a obrigação tributária (art.º 8.º do CIEC, aplicável à CSR por remissão do art.º 5.º da Lei que estabelece o regime daquele imposto) – pelo que o facto gerador da CSR ocorria sem qualquer conexão com a transacção em que essa mesma CSR pudesse vir a ser, ou não, total ou parcialmente, repercutida. 

Na CSR, era possível a um sujeito passivo entregar uma declaração de introdução no consumo (DIC), dando origem a uma liquidação de CSR, e não vender qualquer combustível nesse mesmo período – tal como lhe era possível vender, num determinado período, combustível introduzido no consumo, e sujeito a ISP, CSR e outros, em períodos anteriores àquele em que vendia.

Ou seja, na ausência de uma repercussão formalizada, ao estilo do IVA, não seria, nem é, possível, nem à Requerente, nem ao Tribunal, nem à Autoridade Tributária, identificar as liquidações de CSR às quais corresponderiam – a existir repercussão – as facturas dadas como prova. Só as entidades fornecedoras, na melhor das hipóteses, poderiam efectuar uma tal correspondência entre as facturas emitidas e a CSR. Mas tal correspondência não foi realizada; e decerto não o foi com as declarações genéricas, vagas e não-quantificadas, que foram juntas aos autos – as quais nem esboçam uma tentativa de identificação das liquidações, e do nexo entre liquidações e repercussões.

Em suma, inexistem elementos objectivos que permitam estabelecer uma tal correspondência em termos seguros – pelo que o acto impugnado não está satisfatoriamente identificado, em violação dos arts. 10º, 2, b) do RJAT, 108º do CPPT e 78º do CPTA.

Nesse sentido verifica-se ininteligibilidade do pedido, e, em consequência, ineptidão da petição inicial, com a consequência da nulidade de todo o processo, constituindo uma excepção dilatória de conhecimento oficioso, geradora da absolvição da instância, nos termos do art.º 193º n.º 1, 493.º nºs. 1 e 2, 494.º al. b) e 495.º, do CPC.

 

4. A ILEGITIMIDADE DAS REQUERENTES – A AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA

 

A procedência da excepção de ineptidão obstaria ao conhecimento das demais excepções e ao conhecimento do mérito do pedido.

Mas cumpre-me acrescentar o seguinte: nos termos do Despacho proferido pelo TJUE em 7 de Fevereiro de 2022, no Proc. C-460/21, a CSR deve ser reembolsada aos sujeitos passivos do imposto, e não aos seus eventuais “repercutidos”.

Mais, o reembolso a eventuais “repercutidos” deve ser evitado na medida em que, concorrendo com o reembolso aos sujeitos passivos “repercutentes”, pode dificultar ou obstar a este último.

Há uma única razão pela qual o mencionado Despacho admite o reembolso directo a “repercutidos”: quando, provada a repercussão efectiva, o reembolso da CSR redundasse num enriquecimento sem causa dos sujeitos passivos “repercutentes” (§39 do Despacho).

Daí a oposição expressa do TJUE a quaisquer presunções de repercussão, e especificamente à presunção de que, por terem sido concebidos para admitirem a possibilidade de repercussão, os impostos indirectos passem, ipso facto, a presumir-se como efectivamente repercutidos (§§ 43 a 47 do Despacho).

Logo, no caso, não se tendo feito prova dessa repercussão efectiva – nem no seu quid, nem no seu quantum –, nada se podendo concluir quanto a um eventual enriquecimento sem causa do sujeito passivo “repercutente”, falta às Requerentes a legitimidade para peticionarem directamente o reembolso da CSR.

Se não tivesse procedido a excepção de ineptidão do pedido, procederia, pois, com todas as consequências legais, a excepção de ilegitimidade das Requerentes, conduzindo de novo à absolvição da instância.

 

Fernando Araújo

 

 

Declaração de Voto

Em matéria de juros indemnizatórios, tenho recentemente acompanhado um entendimento diferente quanto à fundamentação do direito aos juros, em casos iguais ao aqui analisado (nomeadamente, no P 101/2024-T), nos termos do qual se entende, em síntese, o seguinte:

O regime substantivo nacional do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT que, no seu nº 1, reconhece o direito como quando se determinar em processo de reclamação graciosa ou impugnação judicial que houve erro imputável aos serviços.

O pedido de revisão do acto tributário é equiparável a reclamação graciosa quando é apresentado dentro do prazo da reclamação administrativa (como se refere nos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12-7-2006, processo n.º 0402/06; de 14-11-2007, processo 0565/07; de 30-09-2009, processo n.º 0520/09; de 12-09-2012, processo n.º 0476/12; do Pleno de 03-06-2015, processo n.º 0793/14; de 18-11-2015, processo n.º 01509/13).

Quando o pedido de revisão oficiosa é apresentado após o termo do prazo da reclamação graciosa, os juros indemnizatórios não são regulados pelo n.º 1 do artigo 43.º da LGT, mas sim pela alínea c) do n.º 3 do mesmo artigo, só sendo devidos decorrido um ano após a data de apresentação do pedido de revisão oficiosa e até à data da emissão das respectivas notas de crédito, como decidiu o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo no acórdão uniformizador m.º 4/2023, de 30-09-2020, proferido no processo n.º 040/19.6BALSB, publicado no Diário da República, I Série, de 16-01-2023.

Não obstante, na esteira do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 06-09-2023, processo n.º 67/09.6BELRS, deve entender-se que o regime do artigo 132.º do CPPT é aplicável a todos os casos de substituição tributária, conferindo ao substituído (no caso, repercutido) o direito a impugnar os actos de liquidação subjacentes à repercussão (com efeito, embora o artigo 132º do CPPT se refira expressamente aos casos de substituição com retenção na fonte, tem sido entendido que esse regime deve aplicar-se a todos os casos de substituição).

Assim, o prazo da reclamação graciosa de actos de liquidação é o de dois anos, a contar do termo do ano em que for efectuado o pagamento indevido, como resulta dos n.ºs 2 e 3 do artigo 132.º do CPPT, aplicável por remissão do seu n.º 4.

As Requerentes apresentaram o pedido de revisão oficiosa em 27-04-2023, pelo que este pedido foi claramente apresentado dentro do prazo da reclamação graciosa quanto aos pagamentos efectuados nos anos de 2021 e 2022, cujo prazo terminaria, normalmente, em 
31-12-2023 e 31-12-2024 (haveria ainda que considerar acréscimos resultantes da suspensão decorrente de leis que vigoraram durante o período de pandemia).

Quanto aos pagamentos efectuados no ano de 2019 o prazo de dois anos a contar do termo desse ano terminaria em 31-12-2021, mas com os acréscimos resultantes da suspensão decorrente das leis sobre a pandemia (87 dias em 2020 e 75 dias em 2021), passaram a terminar em 11-06-2022, ou seja, antes da apresentação do pedido de revisão oficiosa (27-04-2023).

Quanto aos pagamentos efectuados no ano de 2020, o prazo de dois anos a contar do seu termo terminaria, normalmente, em 31-12-2022, mas, com os acréscimos decorrentes das suspensões acima referidas, o prazo de dois anos passou a terminar em 11-06-2023 (com o acréscimo de um total de 162 dias), ou seja, depois da data de apresentação do pedido de revisão oficiosa (27-04-2023).

Assim, nos casos em que o pedido de revisão oficiosa foi apresentado para além do prazo da reclamação graciosa (como é o caso para 2019), o direito a juros indemnizatórios só existe decorrido um ano após o pedido de promoção da revisão oficiosa (nos termos do artigo 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT, como decidiu o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo no acórdão uniformizador n.º 4/2023, de 30-09-2020, proferido no processo n.º 040/19.6BALSB, publicado no Diário da República, I Série, de 16-01-2023) pelo que, aplicando esta jurisprudência, tendo decorrido mais de um ano desde a data em que foi apresentado o pedido de revisão oficiosa 
(27-04-2023), as Requerente tem direito a juros indemnizatórios, relativamente às quantias de CSR respeitantes ao ano 2019, contados desde aquela data.

Nos casos em que o pedido de revisão oficiosa foi apresentado dentro do prazo da reclamação graciosa (como é o caso para 2020, 2021 e 2022), referido no nº 3 do artigo 132º do CPPT, é equiparável a esta, porquanto tem sido considerando que o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo uniformizou jurisprudência, especificamente para os casos de retenção na fonte seguida de reclamação graciosa, no acórdão de 29-06-2022, processo n.º 93/21.7BALSB, nos termos do qual se refere que “em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº. 43, nºs. 1 e 3, da L.G.T. Esta jurisprudência, emitida relativamente a situação de substituição tributária com retenção na fonte, é transponível para todos os casos de substituição tributária, por evidente analogia. De resto, a situação de a Autoridade Tributária e Aduaneira manter uma situação de ilegalidade, quando devia repô-la deverá ser enquadrada, por mera interpretação declarativa, no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, pois trata-se de uma situação em que há nexo de causalidade adequada entre um erro imputável aos serviços e a manutenção de um pagamento indevido e a omissão de reposição da legalidade quando se deveria praticar a acção que a reporia deve ser equiparada à acção”.

Assim, na linha daquela jurisprudência, é de concluir que as Requerentes têm direito a juros indemnizatórios, relativamente aos pagamentos em 2020, 2021 e 2022, desde a data em que se formou o indeferimento tácito da reclamação graciosa (27-08-2023) até à data do integral reembolso às Requerentes, calculados à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

Sílvia Oliveira

 



[1] Cf., igualmente, os acórdãos do CAAD de 13-11-2023, processo n.º 410/2023-T; de 03-08-2022, processo n.º 629/2021-T; de 16-01-2023, processo n.º 305/2022-T; de 09-02-2024, processo n.º 490/2023-T; de 01-02-2024, processo n.º 332/2023-T; de 14-05-2024, processo n.º 790/2023-T, entre outros. 

[2] O artigo 2.º do CIEC tem agora a seguinte redação: “Os impostos especiais de consumo obedecem ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam, designadamente nos domínios do ambiente e da saúde pública, sendo repercutidos nos mesmos, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”. Conclusão para que já antes apontava o artigo 93.º-A do CIEC, que se refere abertamente ao “imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos suportado pelas empresas de transporte de mercadorias e de transporte coletivo de passageiros”.

[3] A alínea d) foi introduzida pela Lei n.º 9/2019, de 01 de fevereiro. 

[4] De acordo com o Despacho de Retificação de 2024-08-22