SUMÁRIO
1. Não é legalmente admissível excluir a dedução ao lucro tributável de IRC e a dedução de IVA, invocando a irregularidade dos descritivos das facturas, quando a AT não coloca em causa a sua veracidade.
2. A exclusão da dedução de IVA com fundamento em simulação de negócio pressupõe a apresentação pela AT de indícios concretos dessa simulação, não bastando o facto de as duas partes no negócio terem gerentes e sócios comuns.
3. É correcta a caracterização pela AT como lucros ou adiantamentos por conta de lucros das importâncias pagas a um sócio em contrapartida de uma promessa de cessão de quotas próprias, sem que estejam preenchidos os requisitos legais para a sua aquisição pela sociedade.
DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
1. No dia 11-10-2023, o sujeito passivo A..., LDA., com sede na Rua ..., nº..., ...-... ..., e o NIPC ..., apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), tendo em vista a anulação das notas de liquidação feitas com base em correcções efectuadas pelos Serviços de Inspecção Tributária, decorrentes dos procedimentos de inspecção credenciados pelas Ordens de Serviço nº OI2022... e OI2022... e que deram origem às notas de cobrança nºs 2023... de 2020, 2023... de 2021, 2023... de 2021, 2023... de 2020, 2023... de 2020, 2023... de 2020, 2023... de 2020, 2023... de 2020, 2023... de 2020, 2023... de 2020, 2023... de 2020, 2023... de 2020, 2023... de 2020, 2023... de 2020, 2023... de 2020, 2023... de 2020, 2023... de 2020, 2023... de 2020, 202... de 2020, 202... de 2020, 2023... de 2020, 2023... de 2020, 2023... de 2020, 2023... de 2021, 2023... de 2021, 2023... de 2021, 2023... de 2021, 2023... de 2021, 2023... de 2021, 2023... de 2021 2023... de 2021, 2023... de 2021, 2023...de 2021 2023... de 2021, 2023... de 2021, 2023... de 2021, 2023... de 2021, 2023... de 2021, 2023... de 2021, 2023... de 2021, 2023... de 2021, 2023... de 2021 e 2023... de 2021.
2. Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou como árbitros o Prof. Doutor Vítor Calvete (Presidente), o Dr. Paulo Ferreira Alves e o Prof. Doutor Luís Menezes Leitão (Relator), disso notificando as partes.
3. O tribunal encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.
4. Os fundamentos que sustentam o pedido de pronúncia arbitral do Requerente são em súmula, os seguintes:
4.1. A Requerente foi objecto de duas acções inspectivas de âmbito geral, por parte da AT, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 14º do RGPITA, uma reportada ao ano de 2020, credenciada pela Ordem de Serviço nº OI2022... e outra reportada ao ano de 2021, credenciada pela Ordem de Serviço nº OI2022..., de cujos relatórios resultaram as Notas de Liquidação e demais documentos que se contestam.
4.2. A correcção da matéria tributável proposta pelo Senhor Inspector e aceite pela AT e que levou à emissão do Documento de Liquidação nº 2023..., parte de errados pressupostos de facto e de direito.
4.3. Com efeito, para o apuramento da mesma, foram, desde logo, desconsiderados os gastos constantes do quadro V.1 – IRC – Gastos Indevidamente documentados do Relatório de Inspecção OI2022... relativos aos lançamentos suportados por recibos verdes electrónicos emitidos pelos prestadores de serviços aí identificados, a esmagadora maioria dos quais relativos a comissões de angariação imobiliária.
4.4. E os mesmos não foram aceites uma vez que dos referidos recibos não constava a indicação concreta no descritivo do serviço, ou seja, “os documentos encontrados tinham descrições [...] que claramente não cumprem o disposto na lei para que se consiga entender quais os serviços efetivamente prestados, nomeadamente, ao não fazer qualquer menção à denominação usual dos bens adquiridos ou à sua quantidade ou a qualquer elemento quantitativo.”
4.5. Ora, como é reconhecido no referido Relatório, foram apresentadas provas dos serviços efectuados, designadamente através dos prints do sistema (Anexos 2 e 3 do Relatório) que determinam e indicam os concretos negócios em causa, relativamente aos angariadores imobiliários, bem como os serviços prestados de consultoria em gestão e marketing integrado.
4.6. No negócio da mediação imobiliária, o que é simples de apurar até junto de outras imobiliárias, o mediador apenas fica para si com uma parte do negócio, isto é, o seu rendimento real nunca é maior que 50%, sendo que casos há em que o seu rendimento real é de, apenas, 5%, uma vez que os angariadores recebem, no mínimo, 50% do rendimento, podendo chegar a obter 95% do rendimento do negócio, como é o caso dos TopLiners.
4.7. Tendo sido demonstrado durante o processo inspectivo a correlação dos recibos verdes electrónicos (RVE) com a despesa, terá que a mesma ser aceite, não podendo colher o argumento “formal” apresentado de falta de indicação na factura.
4.8. Note-se que de 50 RVE não aceites, no valor de 93.367,54€, o relatório de inspecção apenas concretiza “anomalias” diferentes do “deficiente descritivo” em 11 deles, no valor global de 12.726,02€, não se coibindo, ainda assim, de manter a totalidade daquela quantia de 93.367,54€ a acrescer ao lucro tributável do exercício de 2020, o que, repete-se, não pode aceitar-se.
4.9. Analisando aqueles 11 RVE verificamos ser incompreensível a não aceitação da avença do prestador de serviços de marketing da ora exponente, de valor certo todos os meses (400,00€) e cuja proposta com a relação dos serviços contratados foi enviada à AT.
4.10. Como é facto público e notório, o conceito de “avença” não encerra uma relação de trabalhos específicos, mas antes a disponibilidade para a sua realização, o que significa que num mês o avençado pode não prestar qualquer serviço e noutro mês prestar serviços quase em exclusividade, sendo sempre válida e devida a mesma prestação acordada.
4.11. Relativamente à consideração como “adiantamento” relativo aos RVE emitidos por J... e K..., partiu o Relatório que serviu de base às Liquidações que não se aceitam, de um pressuposto profundamente errado – o de que o serviço ainda não tinha sido prestado, o que é falso.
4.12. Ou seja, ao contrário do referido no Relatório, os serviços foram já prestados, mas estão a ser pagos antes do momento em que a remuneração é devida, nos termos do contrato de prestação de serviços, não existindo qualquer contradição, de nenhuma natureza e muito menos ”entre os documentos e o alegado”.
4.13. O que significa que todos os RVE desconsiderados pelo Relatório Inspectivo se referem a serviços efectivamente prestados à ora Requerente e por esta pagos aos respectivos prestadores, que contribuíram para obter rendimentos para a ora Requerente, cujas evidências/provas constam do processo.
4.14. Note-se que a falta de tal formalidade (deficiente descrição dos serviços) apenas foi relevante para efeitos de IVA em 4 deles (num total de 9.826,20€, correspondente a 2.260,03€ de IVA) – em todos os restantes 46 RVE tal questão não se colocou, tendo o IVA pago sido aceite pela AT, sem mais questões.
4.15. Ora, o Código do IRC remete, no que respeita à formalidade, para os mesmos requisitos previstos no código do IVA – vide Art. 23, nºs 4 e 6 do CIRC e Art. 36º, nº 5 do CIVA., pelo que não pode ser admitida a dualidade de critérios, que não é admissível e não deve ser tolerada.
4.16. Finalmente e ao contrário do constante do Relatório, não se vislumbra em nenhum dos recibos agora postos em causa qualquer incumprimento do disposto no artigo 23º nº 4 do CIRC.
4.17. Bem se vê, pois, que não podia, nem devia, ter sido a quantia de 93.397,64€ acrescida ao lucro tributável, o que se não aceita, devendo aquele valor ser corrigido em conformidade.
4.18. Por outro lado, também em relação aos pontos V2. IRC – Gastos não aceites – Fr 2018/1 -B..., Ldª e V3. IRC – B..., Ldª – facturas emitidas em 2020 não foram aceites como custos da ora exponente os gastos com o cumprimento do contrato celebrado entre a ora Requerente e a sociedade B..., Lda., o que não pode aceitar-se.
4.19. Mais uma vez o argumento da não aceitação do gasto é o facto de não ser aceite a descrição contida, quer no contrato, quer nas explicações prestadas pela ora exponente durante o processo inspectivo.
4.20. Ora, esta consultoria teve a ver com o redesenho comercial e financeiro do modelo da nova marca que a ora exponente passou a representar – a C...– em comparação com a marca que representava antes – a D..., uma vez que o modelo comercial era muito distinto e obrigou a definir o novo plano de cálculo de comissões e de processos pré e pós venda, que veio a ser vertido na nova (à data) plataforma de registo e trabalho comercial, que incluía, à data, cerca de 60 angariadores imobiliários, tendo o processo sido longo e complexo e obrigou a formação interna dos colaboradores e equipas para as novas funcionalidades e competências.
4.21. O valor inicialmente definido sofreu alterações, decorrentes de atrasos e ajustamentos, em função da plataforma informática e dos modelos internos, pelo que apenas foi considerado no ano de 2020 cerca de um terço do valor do contrato, correspondente aos serviços efectivamente prestados.
4.22. Os gastos aqui em causa foram, efectivamente, necessários e imprescindíveis para a obtenção do lucro (art. 23º nº1, CIRC), tanto mais que tiveram a ver com a consultoria de processos para a passagem para a nova marca, pelo que não poderiam ter sido desconsiderados, nos termos do art. 23º nº1, CIRC.
4.23. No caso concreto, a ora exponente demonstrou documentalmente: (1) a existência de um contrato de prestação de serviços, que contém a discriminação dos serviços a prestar; (2) a emissão das facturas referentes à prestação de tais serviços; (3) os pagamentos efectivamente efectuados por tais serviços prestados.
4.24. Salvo o devido respeito, o facto de ambas as empresas terem sócios em comum não pode fazer presumir que não houve qualquer serviço prestado entre elas, tanto mais que se trata de pessoas colectivas distintas entre si, distintas das pessoas dos seus sócios, com sócios diferentes e com objectos sociais distintos.
4.25. Pelo que não podia ter sido acrescido ao lucro do exercício de 2020 o valor de €30.000,00€ nem a quantia de €154.500,00 propostos no Relatório, o que deve ser corrigido.
4.26. O mesmo se diga relativamente ao ponto V.10. IVA – Não dedutível –B..., quanto à desconsideração da dedução do IVA referente às facturas emitidas pela B..., Ldª, que deve ser corrigido, passando a ser considerada a dedução de tais facturas, no valor global de €35.535.
4.27. Entende o Relatório que deu origem às liquidações postas em causa não considerar a dedução do IVA nas facturas aqui em causa, por lhe “parecer claramente que o contrato firmado e a faturação realizada são simulados”.
4.28. E isto aparentemente devido ao facto de ambas as empresas terem os mesmos sócios, o que não corresponde à verdade.
4.29. Deve, pois, ser aceite a dedução do IVA contido nas facturas identificadas, no valor de 35.535,00€.
4.30. Já quanto ao Relatório OI2022... de 2021, a correcção da matéria tributável proposta pelo Senhor Inspector e aceite pela AT e que levou à emissão do Documento de Liquidação nº 2023..., parte de errados pressupostos de facto e de direito.
4.31. Com efeito, para o apuramento da mesma, foram, desde logo, desconsiderados os gastos constantes do quadro V.3 – IRC – Gastos Indevidamente documentados do Relatório de Inspecção OI2022... relativos aos lançamentos suportados por recibos verdes electrónicos emitidos pelos prestadores de serviços aí identificados, a esmagadora maioria dos quais relativos a comissões de angariação imobiliária.
4.32. E não pôde a AT aceitar a dedução destes encargos por “imposição legal”, isto é “por se encontrarem indevidamente documentados”, ou seja por falta de “cumprimento das regras de emissão de documentos” e não, como fica claro da análise da Audição Prévia, constante do Relatório, por os serviços não terem sido prestados e pagos, como se provou – e a AT reconhece - que foram.
4.33. No que se refere aos documentos 7.7 e 7.28 a 7.31, os serviços foram prestados, as casas foram vendidas, os negócios concretos foram (e são) identificados e identificáveis e os pagamentos foram feitos, devendo ser admitidos como gastos do exercício.
4.34. Também quanto aos documentos identificados nos pontos 7.1, 7.11 a 7.19 e 7.19., o conceito de “avença” não encerra uma relação de trabalhos específicos, mas antes a disponibilidade para a sua realização, o que significa que num mês o avençado pode não prestar qualquer serviço e noutro mês prestar serviços quase em exclusividade, sendo sempre válida e devida a mesma prestação acordada.
4.35. Com efeito, a avença contratada com a prestadora de serviços em questão - Docs. 7.11 a 7.18 - iniciou-se em 15/03/2021, tendo, consequentemente, o primeiro recibo sido emitido em Maio de 2021, relativo a metade do mês de Março e todo o mês de Abril de 2021 (Doc. 1) e, a partir daí, sempre emitido no início do mês seguinte àquele a que respeitavam e respeitam os serviços prestados, como se demonstrou.
4.36. Não conhece a ora exponente – e nem a sua mandatária, ora signatária – nenhum advogado que emita recibos cujo descritivo não seja “advocacia”, não só pela sensibilidade das matérias que muitas vezes estão em causa, como pelo sigilo que se lhes impõe: ponto é que tenham sido, como foram, prestados e pagos os serviços que determinaram a emissão dos RVE, sendo, aliás, tal descritivo o que é “usual” colocarem – o mesmo é dizer que cumprem tais recibos todos os requisitos indicados por lei.
4.37. E o mesmo se diga relativamente aos serviços de marketing, onde, mesmo que o contrato de prestação de serviços não seja escrito, como não precisa de ser, a denominação “usual” dos serviços prestados não se alterou, sendo indicado nos mesmos aquilo que o profissional liberal “usualmente” indica – o mesmo é dizer que cumprem tais recibos todos os requisitos indicados por lei.
4.38. Relativamente ao documento de suporte ao ponto 7.26, tal despesa prendeu-se com a necessidade de fazer obras de adaptação e melhoramento nas instalações da ora exponente na sequência de um novo contrato de arrendamento, que também foi exibido à AT, obras estas absolutamente essenciais à adaptação da loja, pelo que pode e deve ser considerado tal gasto.
4.39. Também em relação aos pontos V.4 IRC – Gastos não aceites – FR 2018/1 – B..., Ldª e V.5 IRC –B..., Ldª – Facturas emitidas em 2021 mais uma vez o argumento da não aceitação do gasto é o facto de não ser aceite a descrição contida, quer nos contratos, quer nas explicações prestadas pela ora exponente durante o processo inspectivo, o que não pode aceitar-se.
4.40. Refere-se várias vezes ao longo do Relatório que as faturas em causa referem “prestação de serviços relativamente ao contrato formalizado” sem, no entanto “esclarecer qual é”, quando é do perfeito conhecimento da AT que existe apenas um contrato celebrado entre aquelas empresas, pelo que não colhe tal argumentação.
4.41. Não pode, pois aceitar-se que seja acrescido ao lucro tributável do exercício de 2021 a quantia de €3.736,58, o que deve ser alterado.
4.42. Quanto ao ponto V. 8 IVA – Não dedutível – Construção Civil, as despesas aqui identificadas não foram consideradas por se entender que respeitavam a “serviços”.
4.43. No entanto, muitos dos documentos aqui indicados não respeitam a “serviços”, mas sim a aquisição de equipamentos e material, o que pode e deve ser contabilizado e considerado, podendo o seu IVA ser deduzido, nos termos da lei.
4.44. Quanto ao ponto V.9 IVA – Não dedutível – Operações fora do campo do imposto, não pode a ora exponente aceitar a desconsideração deste valor, pois que nunca a ora Requerente teve alguma vez algum recibo emitido por um advogado (qualquer advogado e já contratou com muitos diferentes) que não tivesse aposto “apenas” advocacia.
4.45. Note-se que o sigilo profissional a que estão tais profissionais liberais obrigados também não lhes permite apor coisa distinta nos recibos que emitem, uma vez que, para além da relação cliente e advogado, mais ninguém – incluindo a AT - tem que ficar a saber dos assuntos tratados entre as partes.
4.46. No caso concreto em análise, instada a esclarecer os serviços prestados pelo advogado em causa, veio a ora exponente esclarecer o que consta do Relatório, designadamente, que se tratou de honorários referentes aos “serviços prestados nas cessões de posições sociais da “A..., Ldª, escritura, bem como registos de acompanhamento”.
4.47. Não tem, pois, qualquer razão de ser ou fundamento – e muito menos sério ou atendível – a desconsideração da dedução do IVA do recibo em análise, pois os serviços foram prestados à ora exponente, foram por esta identificados e foram por esta pagos.
4.48. Quanto ao ponto V.10 IVA – Não dedutível – B..., a Requerente tudo tem documentado – contrato, facturas, recibos, documentos de pagamento – nada mais lhe sendo possível provar documentalmente, sendo certo que os serviços foram prestadas e pagos e todos os impostos devidos foram cobrados e pagos pelo Estado, em nada o mesmo tendo ficado prejudicado, pelo que que deve ser aceite a dedução do IVA constante dos documentos de Liquidação aqui em causa.
4.49. Quanto ao ponto V.11 IVA – Dedução indevida – Forma legal, a Requerente não pode aceitar a desconsideração deste valor, designadamente, no que respeita à avença de advocacia a que respeitam os documentos 7.11 a 7.18. do Relatório.
4.50. Como se disse já, a avença contratada com a prestadora de serviços em questão iniciou-se em 15/03/2021 e mantém-se até à presente data, e nunca a Requerente teve alguma vez algum recibo emitido por um advogado (qualquer advogado e já contratou com muitos diferentes) que não tivesse aposto “apenas” advocacia.
4.51. Não tem, pois, qualquer razão de ser ou fundamento – e muito menos sério ou atendível – a desconsideração da dedução do IVA dos recibos em análise, pois o contrato de prestação de serviços jurídicos em regime de avença relativamente à prestadora de serviços em questão (NIF ...) existe desde 15/03/2021, mantém-se em vigor até à presente data, tais serviços foram prestados à ora exponente e foram (e continuam a ser) por esta pagos.
4.52. Relativamente ao ponto V. 14 IRS – Cessão de quotas próprias, no negócio em causa intervêm todos os sócios, ou seja, a totalidade do capital social, pelo que a decisão de celebrar tal contrato é tomada por unanimidade, nos termos do artigo 54º do Código das Sociedades Comerciais, o que não se confunde com o acto de obrigar a sociedade, o que apenas o gerente pode fazer e fez.
4.53. Por outro lado, as condições do negócio apenas têm que estar cumpridas na data da sua concretização, ou seja, na data da celebração do contrato prometido (contrato definitivo) e não na data da assinatura do contrato-promessa.
4.54. Sendo certo que, ainda assim, a ora Requerente sempre possuiu reservas livres de valor correspondente, em cada momento, a mais do dobro do valor da soma dos pagamentos que ia efectuando.
4.55. Assim e face à ausência de justificação legal para as correcções efectuadas e consubstanciadas nas notas de liquidação que se impugnam e juntas aos presentes autos, devem ser anulados os actos de liquidação de imposto aí indicados.
4.56. Sem prejuízo da ilegalidade que os actos de liquidação ora impugnados padecem – incluindo os juros compensatórios que, face a tal ilegalidade, não são devidos – a Requerente pagou o montante de juros compensatórios que lhe foram liquidados, bem como se encontra a pagar o plano prestacional relativo ao IVA que lhe foi apresentado (e apresentou garantia bancária para o restante), por forma a evitar execuções que causariam danos graves no seu normal funcionamento, não devendo, nem podendo, tais pagamentos poder ser considerados, por qualquer meio ou forma, como assumpção de responsabilidade e ou reconhecimento da existência de qualquer dívida da Requerente à AT.
5. A Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, na qual se defendeu, em súmula, nos seguintes termos:
5.1.O presente pedido de pronúncia arbitral tem por objecto: -Liquidação adicional do IRC n.º 2023..., de 2023-07-17 (parcialmente controvertida); -Liquidação adicional do IRC n. º 2023..., de 2023-07-19 (parcialmente controvertida); -Liquidações adicionais de Imposto sobre o Valor Acrescentado e de Juros Compensatórios respeitantes aos anos de: 2020, no valor de €35.818,70 (trinta e cinco mil, oitocentos e dezoito euros e setenta cêntimos) e de 2021, no montante de €17.318,86 (dezassete mil, trezentos e dezoito euros e oitenta e seis cêntimos) e não se conformando com a legalidade das mesmas, nos montantes a seguir discriminados: - LA n.º 2023 ... – período 2020/01 - €1.610,00 – JC – €228,03; - LA n.º 2022 ... – período 2020/02 - €3.450,00 – JC – €339,13; - LA n.º 2022 ...– período 2020/03 - €2.300,00 – JC – €239,01; - LA n.º 2022 ... – período 2020/06 - €5.847,87 – JC – €650,47; - LA n.º 2022 ... – período 2020/07 - €8.228,13 – JC – €887,28; - LA n.º 2022 ... – período 2020/08 - €736,00 – JC – €77,75; - LA n.º 2022 ... – período 2020/09 - €3.875,50 – JC – €392,00; - LA n.º 2022 ...– período 2020/10 - €3.070,50 – JC – €315,48; - LA n.º 2022 ... – período 2020/11 - €2.525,16 – JC – €238,54; - LA n.º 2022 ...– período 2020/12 - €740,72 – JC – €67,13; - LA n.º 2022 ... – período 2021/01 - €437,78 – JC – €38,52; - LA n.º 2022 ... – período 2021/02 - €402,50 – JC – €34,00; - LA n.º 2022 ...– período 2021/03 - €2.365,91 – JC – €192,38; - LA n.º 2022 ... – período 2021/04 - €287,50; - LA n.º 2022 ...– período 2021/05 - €345,00 – JC – €25,70; - LA n.º 2022 ... – período 2021/06 - €3.987,94 – JC – €278,82; - LA n.º 2022 ... – período 2021/07 - €2.325,56 – JC – €157,24; - LA n.º 2022...– período 2021 2021/09 - €3.534,64 – JC – €214,20;- LA n.º 2022 ...– período 2021/10 - €1.543,43 – JC – €88,46; - LA n.º 2022 ... – período 2021/11 - €622,86 – JC – €33,92 e - LA n.º 2022 ... – período 2021/12 - €402,50; -Ato de liquidação de retenção na fonte de IRS 2021 nº 2023 ... de 14-07-2023 no valor de 28.340,35€.
5.2. As liquidações impugnadas nestes autos foram emitidas na sequência de procedimentos de inspeção efetuados ao abrigo da Ordens de Serviço externas n.º OI2022... e OI 2022... de âmbito geral.
5.3. Relativamente às correções fiscais IRC – gastos indevidamente documentados, efetuadas em 2020 e 2021, respetivamente nos montantes de €93.367,54 e de €52.769,87, as mesmas foram parcialmente anuladas, na medida em que se reconhece congruência e base legal nos argumentos apresentados pela Requerente em sede arbitral.
5.4. Relativamente ao período de tributação de 2020, a AT procedeu à anulação parcial da correção de €93.367,54 - gastos indevidamente registados - Anulação da correção no montante de €61.955,41 referente a Recibos Verdes Eletrónicos devidamente documentados para os quais os Serviços Inspectivos, aceitaram a dedução do IVA.
5.5. Relativamente ao período de tributação de 2021, a AT procedeu à anulação parcial da correção de €52.769,87 - gastos indevidamente documentados; à anulação da correção (€4.591,41) referente a Recibos Verdes Eletrónicos, devidamente documentados para os quais os Serviços Inspectivos, aceitaram a dedução do IVA.
5.6. No mais a Requerida pugna pela manutenção na ordem jurídica das liquidações impugnadas por entender que as mesmas, consubstanciam uma correcta aplicação do direito aos factos.
5.7. Verifica-se a cumulação ilegal de pedidos, uma vez que o facto de os pedidos resultarem da mesma acção inspectiva não implica que estejamos perante a possibilidade legal de cumulação de pedidos prevista no artigo 3.º n.º 1 do RJAT uma vez que os pedidos formulados nos presentes autos respeitam a diferentes actos tributários, mais concretamente a liquidações de IRC, de IVA e de IRS, e não dependem da aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito.
5.8. No caso destes autos no mesmo pedido de pronúncia arbitral são deduzidos pedidos de anulação de três tributos diferentes, IRC, IVA e IRS, sendo que cada uma das pretensões de anulação são diferentes.
5.9. Ora, nos termos dos artigos 186º, nº 2, alínea c), 187º, 576º, nº 2 e 577.º, alínea b), todos do CPC (aplicável ex vi artigo 29.º, alínea e) do nº 1 do RJAT), a cumulação ilegal de pedidos constitui excepção dilatória determinante da absolvição da instância.
5.10. No âmbito do IRC, relativamente ao período de tributação de 2020, verificou-se:
– Anulação parcial da correção de €93.367,54 - gastos indevidamente registados - Anulação da correção no montante de €61.955,41 referente a Recibos Verdes Eletrónicos devidamente documentados para os quais os Serviços Inspectivos, aceitaram a dedução do IVA;
– Manutenção da correçcão de € 31.414,13 referente a gastos registados e que se encontram indevidamente documentados nos termos e fundamentos expressos no RIT;
– Manutenção das correções fiscais de €30.000,00 (FR 2018/1 –B... Lda) e de €154.500,00 (B... Lda – facturas emitidas em 2020).
5.11. Também no âmbito do IRC, relativamente ao período de tributação de 2021, verificou-se:
– Anulação parcial da correcção de €52.769,87 - gastos indevidamente documentados -Anulação da correção (€4.591,41) referente a Recibos Verdes Eletrónicos, devidamente documentados para os quais os Serviços Inspectivos, aceitaram a dedução do IVA;
– Manutenção da correção de €48.178,46, referente a gastos registados e que se encontram indevidamente documentados nos termos e fundamentos expressos no RIT;
– Manutenção das correções fiscais de €30.000,00 (FR 2018/1 –B... Lda) e de €3.736,58 (B... Lda – faturas emitidas em 2021).
5.12. Relativamente aos juros indemnizatórios, as liquidações adicionais de IRC ora parcialmente controvertidas, não se encontram regularizadas, concluindo-se por isso pela inexistência do direito a juros indemnizatórios.
5.13. Relativamente ao IVA, as correções que sustentam as liquidações adicionais cuja legalidade se encontra colocada em causa assentam, em síntese, nos seguintes fundamentos:
i. Correcção do direito à dedução com base em simulação, nos termos do n.º 3 do art.º 19.º do CIVA;
ii. Correcção do direito à dedução fundamentado em incumprimento da regra da autoliquidação, nos termos do n.º 8 do art.º 19.º do CIVA;
iii. Correcção do direito à dedução assente no facto de as operações adquiridas não serem sujeitas a IVA, nos termos da interpretação "a contrario" do n.º 1 do art.º 20.º do CIVA e
iv. Correção do direito à dedução com fundamento em incumprimento de formalismos legais.
5.14. Analisada a contabilidade, foram encontradas várias faturas (melhor identificadas nos pontos V.3. e V.10. do RIT suportado pela ordem de serviço n.º OI2022...) emitidas em 2020 pela B..., Lda., com IVA incluído no montante total de €35.535,00, constando da descrição das mencionadas faturas o seguinte: “Prestação de serviços relativamente ao contrato formalizado”, constando também de outras facturas “Deslocações/Km’s”.
5.15. No entanto, em nenhuma das facturas se acrescentam quaisquer outros detalhes que permitam à AT concluir sobre os serviços prestados, nomeadamente, entre outros possíveis, as horas trabalhadas, as pessoas afetas ao serviço prestado, os locais onde foram prestados, custo horário/diário unitário, etc.
5.16. De onde se conclui que as facturas não dão cumprimento ao disposto na alínea b) do n.º 5 do art.º 36.º do Código do IVA (CIVA), e que, nos termos da alínea a) do n.º 2 do art.º 19.º do mesmo diploma: “Só confere direito a dedução o imposto mencionado nos seguintes documentos, em nome e na posse do sujeito passivo: a) Em faturas e documentos equivalentes passados em forma legal", sendo a forma legal a prevista no n.º 5 do art.º 36.º do CIVA.
5.17. A justificação apresentada para a celebração do contrato foi a mudança operada pela Requerente relativa à marca que representa – da D... para a C...–, as mudanças operativas realizadas na plataforma utilizada e o modelo comercial a seguir, tendo também identificado que quem prestou os serviços pela B..., Lda., foi o Sr. E..., através de conhecimentos que adquiriu nas formações prestadas pela C... e que aquele implementou na Requerente, mas não foi junto qualquer documento a quantificar e valorizar os serviços efetivamente realizados para que se consiga vislumbrar a materialidade dos serviços em ordem a legitimar a dedução do imposto.
5.18. A tais considerações acresce que a B..., Lda. foi constituída em 6-11-2018, e ambas as sociedades (Requerente e B..., Lda. – alegadas cliente e fornecedora, respetivamente) têm como gerentes e sócios (em 50% das quotas) o Sr. E... e F... (doravante, Sr. F...), sem que lhe seja conhecido(a) qualquer outro(a) funcionário(a) ou colaborador(a).
5.19. Deve ainda salientar-se que, em março de 2021, o Sr. E... deixou de participar como sócio e gerente da B..., Lda., e o Sr. F... deixou de participar no capital e na gerência da Requerente, data associada também ao “terminus” dos serviços prestados de implementação da nova marca.
5.20. Deste modo, o invocado contrato foi assinado apenas pelo Sr. E..., representando ambas as partes (Requerente e fornecedor), ficando-se a saber da resposta da Requerente à notificação dos Serviços Inspectivos que era também o Sr. E... que tinha o know how no serviço a prestar/prestado, parecendo-nos claramente que o contrato firmado e a faturação realizada são simulados, não podendo consequentemente ser aceite a dedução do IVA, nos termos da alínea a) do n.º 2 e do n.º 3 do art.º 19.º do CIVA.
5.21. Nestes termos, foi resulta evidenciada a legalidade da correção efectuada à dedução de IVA, no montante de € 35.535,00 (valor global incluído nas faturas), nos termos da alínea a) do n.º 2 e do n.º 3 do art.º 19.º e das alíneas b) e f) do n.º 5 do art.º 36.º, todos do CIVA.
5.22. No que respeita ao ano de 2021, foram identificados gastos registados na contabilidade relativos a encargos suportados em obras de construção civil nas instalações da Requerente, para os quais se constatou que foi deduzido IVA no montante global de € 7.988,59.
5.23. Ora, para os serviços referenciados, impende sobre a Requerente a obrigação de autoliquidação do imposto, na qualidade de adquirente, nos termos da alínea j) do n.º 1 do art.º 2.º do CIVA e refere o n.º 8 da mesma disposição, que “nos casos em que a obrigação de liquidação e pagamento do imposto compete ao adquirente dos bens e serviços, apenas confere direito a dedução o imposto que for liquidado por força dessa obrigação”.
5.24. Deste modo, não se tendo dado cumprimento à mencionada regra de autoliquidação, foi efectuada a correção do IVA deduzido no valor global de € 7.988,59, nos termos do mencionado preceito.
5.25. Quanto a operações não sujeitas a IVA, foi identificado o documento n.º 2021... que serve de suporte à dedução registada na conta 24323132311, no valor de € 2.024,00, sendo que da descrição constante do referido documento consta apenas “Advocacia”, infringindo o disposto no n.º 5 do art.º 36.º do CIVA, comprometendo o direito à dedução, nos termos da alínea a) do n.º 2 e do n.º 6 do art.º 19.º do CIVA.
5.26. Não obstante, é jurisprudência assente, tanto nacional como comunitária, que a mera ilegalidade formal não invalida a dedução do IVA, desde que sejam fornecidos à AT outros elementos, que permitam a verificação material da existência efetiva de um serviço para o qual o sujeito passivo pode exercer o direito à dedução.
5.27. Nessa esteira, foi pedido à Requerente que esclarecesse a que título foi incorrido tal encargo. Em resposta referiu que são: ”Honorários de serviços prestados nas cessões de posições sociais da “A..., Lda.”, escritura, bem como registos e acompanhamento”, no entanto, não apresentou qualquer outro documento que justifique os elementos alegados e os serviços prestados pelo prestador do serviço emitente do documento de suporte, não ficando desse modo assegurada a especificação da extensão e natureza dos serviços prestados, obrigatórios, nos termos do n.º 5 do art.º 36.º do CIVA e legitimadores da dedução do imposto nos termos da alínea a) do n.º 2 e do n.º 6 do art.º 19.º do mesmo diploma.
5.28. Repare-se, ainda, que a informação prestada à AT não identifica sequer a que “cessões de posições sociais” se refere, pois sabe a AT que a única que ocorreu foi realizada entre sócios (a saída do Sr. F... e da Sr.ªG..., o primeiro em 2021-03-15 e a segunda em 2021-03- 31), embora também seja conhecido um contrato promessa de compra e venda de participação realizado em 29-04-2021 com a Requerente, para transmissão de participação no valor de €2.220,00 detida em comum pela Sr. H... e o Sr. E... .
5.29. Caso em que, se o objeto da prestação de serviços foram as cessões realizadas entre sócios – repare-se na referência feita a “escritura, bem como registos e acompanhamento” e que o contrato promessa celebrado ainda não deu lugar a qualquer “escritura, bem como registo”, não pode o IVA ser dedutível por dizer respeito a operações alheias à sociedade, nos termos do n.º 1 do art.º 20.º do CIVA.
5.30. De qualquer das formas, qualquer cessão de posição social detida sobre sociedades (quotas) não configura uma operação sujeita a IVA, pelo que o IVA suportado com encargos para a sua realização, não é dedutível, pois só é aceite, nos termos do n.º 1 do art.º 20.º do CIVA, a dedução de imposto que tenha sido suportado para a realização de operações tributáveis, o que não é o caso.
5.31. Desta forma, resulta evidenciado que não pode ser aceite a dedução do IVA, no período de março de 2021, no valor global de € 2.024,00, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 e do n.º 6 do art.º 19.º e do n.º 1 do art.º 20.º, todos do CIVA.
5.32. Relativamente às faturas emitidas pela B..., Lda. com IVA incluído no montante de € 859,41, cujo IVA suportado foi deduzido, no entanto, também aqui em nenhuma das facturas se acrescentam quaisquer outros detalhes que permitam à AT concluir sobre os serviços prestados, nomeadamente, entre outros possíveis, as horas trabalhadas, as pessoas afetas ao serviço prestado, os locais onde foram prestados, custo horário/diário unitário, etc., de onde se conclui, também aqui que as faturas não dão cumprimento ao disposto na alínea b) do n.º 5 do art.º 36.º do CIVA, e que, nos termos da alínea a) do n.º 2 do art.º 19.º do mesmo diploma
5.33. Assim, resulta também aqui evidenciada a legalidade da correção em sede de IVA no montante global de €859,41, nos termos da alínea a) do n.º 2 e do n.º 3 do art.º 19.º e das alíneas b) e f) do n.º 5 do art.º 36.º, todos do CIVA.
5.34. Quanto à correção de imposto com base no incumprimento de formalismos legais, foi descrito no ponto V.1 do RIT que diversos documentos recebidos pela Requerente não cumprem a forma legal, prevista no n.º 5 do art.º 36.º do CIVA, formalismo essencial para que seja aceite a dedução do IVA nestes contido, conforme dispõe o art.º 19.º, n.º 2, al. a) do CIVA.
5.35. A existência de faturas e os seus requisitos legais, têm que ser observados por forma a permitir um controle exato sobre os bens transmitidos ou os serviços prestados, quando, onde, em que quantidade/extensão e a quem, por serem suscetíveis de gerar o direito à dedução do IVA, permitindo reconstituir que serviço foi prestado ou que bem foi transmitido e qual o seu custo, tendo em vista evitar duplicação de deduções de IVA.
5.36. Analisada a resposta da Requerente, uma parte da dedução do imposto foi aceite por ter sido feito um esclarecimento que permitiu concluir sobre qual o serviço efetivamente prestado e quando, como sucedeu no documento indicado no ponto 7.19 do quadro constante do ponto V.11 do RIT, em que, apesar da descrição genérica “Advocacia”, foi apresentado um email cuja informação tornou possível aferir quais os serviços prestados (embora ainda subsista a imperfeição de saber, pelo menos, a área dos contratos – de trabalho, obrigações, etc…).
5.37. Quanto às deduções de impostos referentes aos pontos 7.4, 7.6, 7.11 a 7.18, 7.25 e 7.32 do quadro constante do ponto V.11 do RIT, a Requerente não apresentou qualquer documento complementar que justifique que serviços foram efetivamente prestados, não ficando desse modo assegurada a especificação da extensão e natureza dos serviços prestados, obrigatórios nos termos do n.º 5 do art.º 36.º do CIVA e legitimadores da dedução do imposto nos termos da alínea do n.º 2 e do n.º 6 do art.º 19.º do CIVA.
5.38. É que o conceito de “advocacia” (abrangido pela maior parte dos documentos acima identificados) abrange um vasto leque de serviços, nomeadamente, prestações que não assumem necessariamente um âmbito empresarial.
5.39. Foi solicitada à Requerente a apresentação de elementos que permitissem concluir, sobre quais os serviços prestados, de forma a permitir concluir que foram reunidos os requisitos materiais do direito à dedução, o que não foi conseguido para todas as situações identificadas nos pontos 7.4, 7.6, 7.11 a 7.18, 7.25 e 7.32 do quadro constante do ponto V.11 do RIT.
5.40. Resta, pois, evidente que as faturas não cumprem o disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 19.º e no n.º 5 do art.º 36.º, todos do CIVA, pelo que não pode ser aceite a reivindicada dedução do IVA nelas contido, no valor global de € 5.383,62.
5.41. Relativamente ao IRS, em sede de retenção na fonte de IRS, apurou-se, no capítulo V.14. – Retenção na Fonte - Adiantamento por conta de lucros, páginas 31 a 35 do Relatório de Inspeção Tributária (RIT) que ano de 2021, foram registados movimentos a crédito na conta SNC com o nº 278111000000001 – “Contrato promessa” em nome do sócio E..., no valor total de 94.500,00€.
5.42. Prossegue ainda o RIT que, estando perante adiantamentos por conta de lucros, estes são considerados rendimentos da categoria E, referentes a capitais, com enquadramento na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do código do IRS, sendo que estes rendimentos estão sujeitos a retenção na fonte a título definitivo, podendo ser englobados para efeitos da sua tributação, por opção do respetivo titular, à taxa liberatória de 28%, taxa em vigor no período de tributação de 2021, de acordo com a alínea a) do n.º 1 do artigo 71.º do mesmo diploma legal.
5.43. Em conformidade com a alínea a) do n.º 2 do artigo 101.º do código do IRS, tratando-se de rendimentos referidos no artigo 71.º, a retenção na fonte nele prevista cabe às entidades devedoras dos rendimentos referidos no n.º 1 do mesmo artigo.
5.44. Assim, a empresa A..., LDA. tinha a obrigação legal de proceder à entrega nos cofres do Estado das quantias retidas nos termos do artigo 101.º do código do IRS, até ao dia 20 do mês.
5.45. A Requerente, não concordando com a posição da Administração Tributária apresentou o pedido de pronúncia arbitral que aqui se discute.
6. Em 18/6/2024 teve lugar a inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente, tendo as partes sido notificadas para apresentarem alegações escritas simultâneas no prazo de 20 dias.
7. Ambas as partes apresentaram alegações, onde reiteraram as posições assumidas nos articulados.
8. A instância mantém-se regular, nada havendo que obste ao conhecimento do mérito da causa.
II – Factos provados
9. Com base no depoimento das testemunhas arroladas pela Requerente e da prova documental constante do processo administrativo junto aos autos pela Requerida, consideram-se provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:
9.1. A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica à actividade de mediação imobiliária.
9.2. No âmbito das Ordens de Serviço n.ºs OI2022... e OI2022..., foi determinada a realização pelos serviços de inspecção tributária do procedimento externo de inspecção à Requerente, de âmbito geral e por referência aos exercícios de 2020 e 2021.
9.3. Em 22 de Maio de 2023, e após parcial regularização voluntária pela Requerente, foram determinadas as seguintes correcções ao exercício de 2020:
a) IRC – MATÉRIA COLETÁVEL: correção total de € 287.186,49, passando do valor declarado de € 27.169,89, para o montante corrigido de € 314.356,38.
b) IRC – IMPOSTO: correcção das tributações autónomas em € -4.592,56 (a favor do S.P.), passando do valor declarado de € 8.640,75, para o montante corrigido de € 4.048,19.
c) IRC – IMPOSTO: Em resultado das correções supra, a Derrama Municipal tem um acréscimo de € 4.307,80, para o total de € 4.715,35.
d) IVA: correções no total de € 35.079,87.
e) IRS – Retenções na fonte: juros compensatórios no total de € 1.632,00. Imposto do Selo: correções no total de € 493,59.
9.4. Também em 22 de Maio de 2023, e após parcial regularização voluntária pela Requerente, foram determinadas as seguintes correcções ao exercício de 2021:
a) IRC – RESULTADO PARA EFEITOS FISCAIS E MATÉRIA COLETÁVEL: correção total de € 95.069,50, passando do valor declarado de 37.558,84 €, para o montante corrigido de 132.628,34 €.
b) IRC – IMPOSTO: correção das tributações autónomas em 1.895,72 €, passando do valor declarado de 14.428,24 €, para o montante corrigido de 16.323,96 €.
c) IRC – IMPOSTO: em resultado das correções supra, a Derrama Municipal tem um acréscimo de 1.426,04 €, para o total de 1.989,42 €.
d) IVA: correções no total de 16.255,62 €.
e) Imposto do Selo: correções no total de 315,70 €.
f) IRS – Retenções na fonte no total de 26.460,00 €.
g) IRS – Juros compensatórios sobre retenções na fonte: 2.408,29 €..
9.5. Os fundamentos das correcções constam dos Relatórios de Inspecção n.ºs OI2022... e OI2022..., que se encontram juntos aos outros, para onde se remete.
9.6. Na sequência dessas correcçãos, o Requerente foi notificado das seguintes liquidações de imposto:
-Liquidação adicional do IRC n.º 2023 ..., de 2023-07-17, que gerou um valor adicional de IRC relativa ao exercício de 2020 de € 55.955,36, e liquidações de juros moratórios de € 141,28 e de juros compensatórios de € 4.212,74;
-Liquidação adicional do IRC n. º 2023 ..., de 2023-07-19, que gerou um valor adicional de IRC relativa ao exercício de 2021 de € 23.286,35, e liquidação de juros compensatórios de € 914,27;
-Liquidações adicionais de Imposto sobre o Valor Acrescentado e de Juros Compensatórios respeitantes aos anos de: 2020, no valor de €35.818,70 e de 2021, no montante de €17.318,86, não se conformando o Requerente com a legalidade das mesmas, nos montantes a seguir discriminados:
- LA n.º 2023 ... – período 2020/01 - €1.610,00 – JC – €228,03;
- LA n.º 2022 ... – período 2020/02 - €3.450,00 – JC – €339,13;
- LA n.º 2022 ... – período 2020/03 - €2.300,00 – JC – €239,01;
- LA n.º 2022 ... – período 2020/06 - €5.847,87 – JC – €650,47;
- LA n.º 2022 ...– período 2020/07 - €8.228,13 – JC – €887,28;
- LA n.º 2022 ...– período 2020/08 - €736,00 – JC – €77,75;
- LA n.º 2022 ... – período 2020/09 - €3.875,50 – JC – €392,00;
- LA n.º 2022 ...– período 2020/10 - €3.070,50 – JC – €315,48;
- LA n.º 2022 ...– período 2020/11 - €2.525,16 – JC – €238,54;
- LA n.º 2022 ...– período 2020/12 - €740,72 – JC – €67,13;
- LA n.º 2022 ...– período 2021/01 - €437,78 – JC – €38,52;
- LA n.º 2022 ...– período 2021/02 - €402,50 – JC – €34,00;
- LA n.º 2022 ...– período 2021/03 - €2.365,91 – JC – €192,38;
- LA n.º 2022 ... – período 2021/04 - €287,50;
- LA n.º 2022 ... – período 2021/05 - €345,00 – JC – €25,70;
- LA n.º 2022 ... – período 2021/06 - €3.987,94 – JC – €278,82;
- LA n.º 2022 ... – período 2021/07 - €2.325,56 – JC – €157,24;
- LA n.º 2022 ... – período 2021 2021/09 - €3.534,64 – JC – €214,20;
- LA n.º 2022 ... – período 2021/10 - €1.543,43 – JC – €88,46;
- LA n.º 2022 ... – período 2021/11 - €622,86 – JC – €33,92 e
- LA n.º 2022 ... – período 2021/12 - €402,50;
- Acto de liquidação de retenção na fonte de IRS 2021 nº 2023... de 14-07-2023 no valor de € 28.340,35.
9.7. Inconformado com estas liquidações, a Requerente apresentou, em 11.10.2023, junto da Instância Arbitral, o presente pedido de constituição de tribunal arbitral, peticionando a anulação das liquidações de IRC, IVA e IRS e de juros compensatórios acima referidas e a restituição do imposto pago no montante total de € 168.747,81.
9.8. No negócio de mediação imobiliária, o mediador apenas fica com uma parte do negócio, nunca superior a 50%, tendo que atribuir a parte restante aos angariadores.
9.9. A Requerente tinha e tem publicidade a correr nas redes sociais, websites que necessitam de construção e actualização e toda uma panóplia de serviços relacionados com a internet.
9.10. Os serviços dos angariadores são prestados antes da realização da escritura de compra e venda do imóvel.
9.11. Todos os recibos verdes desconsiderados pelo Relatório se referem a serviços efectivamente prestados à Requerente e que contribuíram para obter os seus rendimentos.
9.12. O contrato de consultoria celebrado entre a Requerente e a sociedade B..., Lda., abrangeu o redesenho comercial e financeiro do modelo da nova marca que a ora exponente passou a representar – a C...– em comparação com a marca que representava antes – a D..., uma vez que o modelo comercial era muito distinto e obrigou a definir o novo plano de cálculo de comissões e de processos pré e pós-venda, que veio a ser vertido na nova (à data) plataforma de registo e trabalho comercial.
9.13. O processo de desvinculação à marca anterior e entrada na nova marca aconteceu em Abril de 2019, iniciando-se o processo de construção do redesenho do processo em 2018 e estendendo-se até 2021.
9.14. O valor inicialmente definido sofreu alterações, decorrentes de atrasos e ajustamentos, em função da plataforma informática e dos modelos internos, pelo que apenas foi considerado no ano de 2020 cerca de um terço do valor do contrato, correspondente aos serviços efectivamente prestados.
9.15. No negócio da mediação Imobiliária, muitas vezes constituem-se “equipas” de consultores, organizados entre si sem a intervenção do mediador, por forma a aumentar os efeitos da sua actuação e potenciarem a obtenção dos seus objectivos (vender casas), dividindo também os rendimentos de tal actuação.
9.16. A avença contratada com uma advogada referida nos docs. 7.11 a 7.18 iniciou-se em 15/03/2021, tendo, consequentemente, o primeiro recibo sido emitido em Maio de 2021, relativo a metade do mês de Março e todo o mês de Abril de 2021 e, a partir daí, sempre emitido no início do mês seguinte àquele a que respeitavam e respeitam os serviços prestados.
9.17. A avença contratada com a referida advogada mantém-se até à presente data.
9.18. A Requerente recorria pontualmente aos serviços da referida advogada, e de outros advogados, dependendo dos assuntos e matérias que tinha a tratar em cada momento, daí a existência dos Docs. 7.1, 7.19 e 7.33.
9.19. Relativamente ao documento de suporte ao ponto 7.26, tal despesa prendeu-se com a necessidade de fazer obras de adaptação e melhoramento nas instalações da ora exponente na sequência de um novo contrato de arrendamento, que também foi exibido à AT.
III - Factos não provados
10. Não se provou que a realização de uma escritura de cessão de quotas entre os sócios implique qualquer intervenção ou acompanhamento por parte da sociedade.
Também não se provou que tivessem sido adoptados os procedimentos necessários para a aquisição de quotas próprias pela sociedade.
IV - Fundamentação da decisão de facto.
11. A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral e a convicção sobre a mesma foi formada com base na prova documental apresentada no âmbito deste processo arbitral, i.e., nos documentos juntos pelo Requerente, bem como pela junção do processo administrativo pela Requerida, e ainda pelo depoimento das testemunhas G... e I... .
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada pelas partes, devendo, por isso, seleccionar a matéria factual com relevância directa para a decisão.
O Tribunal Arbitral apreciou livremente as provas produzidas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo, conforme o disposto no n.º 5 do artigo 607.º do CPC.
V - Do Direito
12. São as seguintes as questões a examinar no presente processo.
- Da excepção da cumulação ilegal de pedidos.
- Da ilegalidade das liquidações de IRC.
- Da ilegalidade das liquidações de IVA.
- Da ilegalidade do acto de liquidação da retenção na fonte.
Examinar-se-ão assim essas questões:
— DA EXCEPÇÃO DA CUMULAÇÃO ILEGAL DE PEDIDOS.
13. Refere o artigo 3º, nº 1, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária: “A cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos e a coligação de autores são admissíveis quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito”.
Entende a Requerente que são as mesmas as circunstâncias de facto e os mesmos princípios de direito subjacentes ao pedido arbitral, ainda que estejam em causa liquidações de IRC e de IVA, bem como uma retenção na fonte de IRS. É, portanto, entendimento da Requerente que a cumulação de pedidos, nos presentes autos, se enquadra no disposto no artigo 3º, nº 1, do RJAT.
Por outro lado, invoca a Requerida que o facto de os pedidos resultarem da mesma acção inspectiva não implica que estejamos perante a possibilidade legal de cumulação de pedidos prevista no artigo 3.º n.º 1 do RJAT uma vez que os pedidos formulados nos presentes autos respeitam a diferentes actos tributários, mais concretamente a liquidações de IRC, de IVA, e de IRS e não dependem da aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito.
Cumpre decidir.
No seu pedido a Requerente invoca que o Relatório de Inspecção Tributária que originou as liquidações aqui sindicadas se baseia na ausência de requisitos formais das facturas, o que justificou a não aceitação de deduções no IRC, procedendo consequentemente à correcção do lucro tributável declarado com base nas regras de tributação relativas ao regime geral.
Também pelo mesmo motivo de não considerar que as facturas cumpriam os requisitos formais, a Requerida não aceitou a dedução de IVA nas operações efectuadas pela Requerente, e procedeu a liquidação do IVA sobre as operações realizadas.
Em consequência, ao solicitar a anulação das correcções realizadas, o pedido da Requerente baseia-se, essencialmente, nos mesmos factos e na mesma questão de direito, a saber se as facturas constantes da sua contabilidade e que servem de base às deduções em IVA e em IRC preenchem os requisitos legais.
Refere hoje, a este respeito, o artigo 104º do CPPT (na redacção da Lei n.º 2/2020, de 31 de Março):
“1 - Na impugnação judicial é admitida a cumulação de pedidos, ainda que relativos a diferentes actos, e a coligação de autores, desde que, cumulativamente:
a) Aos pedidos corresponda a mesma forma processual; e
b) A sua apreciação tenha por base as mesmas circunstâncias de facto ou o mesmo relatório de inspeção tributária, ou sejam suscetíveis de ser decididos com base na aplicação das mesmas normas a situações de facto do mesmo tipo.
2 - Não obsta à cumulação ou à coligação referida no número anterior a circunstância de os pedidos se reportarem a diferentes tributos, desde que todos se reconduzam à mesma natureza, à luz da classificação prevista do n.º 2 do artigo 3.º da Lei Geral Tributária.
3 - Quando forem cumulados pedidos para cuja apreciação sejam territorialmente competentes diversos tribunais, o autor pode escolher qualquer deles para a propositura da ação, mas se a cumulação disser respeito a pedidos entre os quais haja uma relação de dependência ou de subsidiariedade, a ação deve ser proposta no tribunal competente para apreciar o pedido principal.
4 - Ao processo impugnatório é igualmente aplicável o disposto no artigo 57.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos”.
A admissibilidade da cumulação de pedidos nesta circunstância era também a interpretação maioritária da jurisprudência anterior:
Efectivamente, refere o Acórdão nº 209/2015-T do CAAD:
“Revelado, sinopticamente, o “estado da arte” quanto à interpretação (que subscrevemos) do artigo 104º do CPPT que, essencialmente, faz apelo à classificação dos tributos decorrente do disposto nos artigos 3º e 4º da LGT, enfatizando a sua natureza e não já a sua identidade, conclui-se neste segmento inexistir qualquer “cumulação ilegal de pedidos” como defende a AT não lhe assistindo por esta via qualquer razão, o mesmo se verificando e para o que aqui releva tendo como pano de fundo o disposto no nº 1 do artigo 3º do RJAT. Assim, no âmbito do regime jurídico da arbitragem tributária, e tendo por referência o disposto no nº 1 do artigo 3º do respectivo Regime, a admissibilidade da cumulação de pedidos, afigura-se não estar já dependente da natureza dos tributos (independentemente da interpretação que se subscreva relativamente ao artigo 104º do CPPT), outrossim, fazendo-a depender da “identidade de situações e de questões de direito a apreciar”. A norma sob escrutínio faz depender a possibilidade de cumulação de pedidos da verificação de dois requisitos também eles cumulativos: (i) que a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e, (ii) que a procedência dos pedidos dependa essencialmente da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito. Brevitatis causa, haverá que ter em consideração que as regras de cumulação de pedidos têm subjacente razões de economia processual a aconselhar, como já foi dito, a celeridade da decisão e o são objectivo de evitar decisões contraditórias. Deste modo estando em causa a apreciação dos mesmos factos, justificar-se-á, por via de regra a cumulação de pedidos, no pressuposto que as questões de direito (potencialmente distintas perante tributos diferentes) não sejam elas próprias objecto de controvérsia. “É esse o alcance do artigo 3º nº 1, ao não exigir uma absoluta identidade de questões de facto e de direito mas apenas uma identidade quanto ao que é essencial”. Essencialidade essa de resto já sinalizada pelo Exmo. Senhor Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, na seguinte nota: “os factos serão essencialmente os mesmos quanto forem comuns às pretensões do autos ou autores, de forma a que se possa concluir que, se se provarem os alegados relativamente a um ato, existirá o suporte fáctico total ou parcialmente necessário para a procedência das pretensões de todos os pedidos”. Subsumindo: Descendo ao caso concreto, a verdade é que o pedido de anulação formulado pela Requerente, quer quanto às liquidações adicionais de IRC, quer quanto ao IVA tiveram origem na mesma acção inspectiva levada a cabo pela AT, de cujo relatório inspectivo se pode, aliás retirar que: “ da análise global do sujeito passivo, da sua operacionalidade e de todas as actividades desenvolvidas pelo mesmo, dos registos contabilísticos e correspondentes documento de suporte às operações praticadas” terão sido detectadas irregularidades com reflexo em sede de IVA e IRC, que estarão na origem das liquidações adicionais que a Requerente põe em causa no presente pedido de pronúncia arbitral. Pelo que, sem necessidade de mais quaisquer considerações, e face ao que vem de dizer-se, se concluiu pela legalidade da cumulação de pedidos formulados pela Requerente, improcedendo consequentemente a excepção da ilegalidade da mesma suscitada pela AT no âmbito da sua resposta.”
Foi este igualmente o entendimento seguido pelo CAAD no Acórdão nº 720/2014-T:
“O artigo 3.º, n.º 1, do RJAT admite a cumulação de pedidos relativos a actos diferentes, quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito. Como se vê, não se faz no RJAT a exigência de que os tributos tenham a mesma natureza que é feita pelo artigo 104.º do CPPT, que a Autoridade Tributária e Aduaneira invoca. Por outro lado, as regras sobre cumulação de pedidos têm subjacentes razões de economia processual, pelo que devem ser interpretadas teleologicamente não com a perspectiva de colocação de obstáculos à apreciação das pretensões dos contribuintes, mas sim, com o alcance de viabilizarem a cumulação sempre que as razões de economia se verifiquem. Sendo assim, quando está em causa a apreciação dos mesmos factos, justificar-se-á, em regra, a cumulação, desde que as questões de direito colocadas, que em regra serão distintas a nível de tributos diferentes, não sejam o principal objecto de controvérsia. É esse o alcance do artigo 3.º, n.º 1, ao não exigir uma absoluta identidade de questões de facto e de direito mas apenas uma identidade quanto ao que é essencial”.
Esta foi igualmente a posição seguida pelo relator deste processo nas decisões arbitrais que proferiu nos processo 297/2019-T e 613/2022-T cujo entendimento não se vê justificação para alterar.
Como tal, verifica-se não existir fundamento para considerar ilegal a cumulação de pedidos, pelo que improcede a excepção invocada.
— DA ILEGALIDADE DAS LIQUIDAÇÕES DE IRC.
14. Sustentou a Requerida não preencherem as facturas com os mediadores, consultores e advogados os requisitos formais exigidos pelo art. 23º, nº4, do Código do IRC e que o contrato celebrado com a B..., Lda., não constitui uma despesa necessária para obter os rendimentos sujeitos a IRC, razão pelo que as mesmas não podem ser deduzidas ao lucro tributável, nos termos do art. 23º, nº1, CIRC.
A este propósito, sustenta-se no acórdão de 20 de Abril de 2023, emitido no processo 504/2022-T deste CAAD o seguinte:
"O art. 23.º, n.º 1, do CIRC, dispõe: “para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”.
Este artigo intima, simplesmente, a existência de uma relação de causalidade económica entre as componentes negativas e positivas do rendimento: que os gastos incorridos pelo sujeito passivo tenham uma alocação económica com a atividade do contribuinte. Dito de outro ângulo: só não assumirão a natureza de gastos fiscais – os gastos inscritos na contabilidade, mas cujo interesse ou propósito não seja uma alocação empresarial da entidade que os contrai, mas apenas o de satisfazer um interesse de terceiro: seja uma sociedade do grupo, ou um sócio ou administrador…
Donde, são fiscalmente dedutíveis todos os gastos que tenham uma motivação empresarial – ainda que possam ser considerados excessivos, pouco razoáveis, muito arriscados (alocados a negócio de elevado risco), ou improdutivos (os proveitos ficaram aquém do desejável). Aliás, a AT não pode sindicar a bondade empresarial dessas opções económicas do sujeito (recusando a dedução desses gastos, pretensamente ancorada no art. 23.º do CIRC). O art. 23.º do CIRC permite tão só recusar a natureza de gasto fiscal aos não reconduzíveis a interesse societário, mas apenas aos interesses pessoais de sócios ou de terceiros (Gustavo Lopes Courinha, Manual do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, 2019, p. 114 e 115)".
E a propósito da documentação desses gastos, refere o mesmo acórdão o seguinte:
"Como indicado nos factos provados, estamos em presença de situações em que, não obstante a existência de fatura, a AT recusa a dedução fiscal do gasto, por entender que a documentação é insuficiente: que os dizeres das faturas não preenchem os requisitos mínimos para permitir a dedução dessas despesas, na interpretação que efetua do art. 23.º, n.º 4, do CIRC.
O art. 23.º, n.º 3 e 6 do CIRC dispõem que a aceitação fiscal dos gastos exige uma correta documentação, que, nas situações dos casos dos autos, corresponde a faturas.
O art. 24.º, n.º 4, do CIRC debruça-se sobre o standard (requisitos formais) da fatura – e dispõe: “4 - No caso de gastos incorridos ou suportados pelo sujeito passivo com a aquisição de bens ou serviços, o documento comprovativo a que se refere o número anterior deve conter, pelo menos, os seguintes elementos: a) Nome ou denominação social do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário; b) Números de identificação fiscal do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário, sempre que se tratem de entidades com residência ou estabelecimento estável no território nacional; c) Quantidade e denominação usual dos bens adquiridos ou dos serviços prestados; d) Valor da contraprestação, designadamente o preço; e) Data em que os bens foram adquiridos ou em que os serviços foram realizados.
A AT entende que faturas de emitidas por alguns fornecedores (G..., I... IT, Lda., H..., J..., e N..., Lda e L... Gmbh e M... Ltd) teriam dizeres insuficientes, por serem demasiado genéricas (“serviços prestados”), por conterem indicações que não permitem aferir do que se trata efetivamente (“serviços contratados por P...”) ou porque não indicam o prestador efetivo e o projeto a que se reporta.
Resumindo: cada pagamento está suportado por fatura que se relaciona com um serviço prestado. A AT aceita que o serviço foi prestado e aceita igualmente que o foi pelo preço indicado nas faturas. A correção fiscal sustenta-se, apenas, na deficiente descrição dos serviços prestados nos dizeres das faturas – e com base nisso, a AT recusa a dedução fiscal, nos termos do art. 23.º, n.º 4, do CIRC.
Precisemos o tema: não se trata de falta de documentação (não emissão de faturas), mas que as mesmas são muito enxutas e imprecisas no seu descritivo: “serviços prestados”, sem identificar o tipo de serviços e sem documentos de apoio que os relacionem diretamente com um projeto ou centro de proveitos da Requerente.
O tribunal advoga uma solução harmonizada e uniforme para esta questão, em sede de IRC e IVA: (i) porque a falta (rectius, insuficiência) da fatura pode originar a não dedução fiscal das despesas em IRC e a não dedução do IVA (art. 19.º n.º 2., al. a) e art. 36.º, n.º 5, do CIVA); (ii) por um princípio de unidade e coerências interpretativa do direito fiscal; (iii) e as preocupações subjacentes à documentação das operações económicas serem homólogas para os dois impostos: em impostos de massas, ter-se a informação, controlo e motivação da diminuição dos impostos (IRC e IVA) decorrente de fornecimentos de terceiros.
Em sede de IVA, esta exata questão (requisitos mínimos do descritivo das faturas) foi tratada e decidida pelo Ac. TJUE C-516/14, de 15/9, que contém duas relevantes conclusões, totalmente aplicáveis ao caso dos autos:
“[…] [as] faturas que só contenham a menção «serviços jurídicos prestados desde determinada data até ao presente» […], não respeitam, em princípio, as exigências previstas no n.° 6 deste artigo [artigo 226.° da Diretiva 2006/112/CE] e que faturas que só contenham a menção «serviços jurídicos prestados até ao presente» não respeitam, em princípio, as exigências previstas no referido n.° 6 nem as exigências previstas no n.° 7 do mesmo artigo, o que cabe, todavia, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.
O artigo 178.°, alínea a), da Diretiva 2006/112/CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades tributárias nacionais possam recusar o direito a dedução do imposto sobre o valor acrescentado pelo simples facto de o sujeito passivo possuir uma fatura que não cumpre os requisitos exigidos pelo artigo 226.°, n.os 6 e 7, desta diretiva, quando essas autoridades dispõem de todas as informações necessárias para verificar se os requisitos substantivos relativos ao exercício desse direito se encontram satisfeitos.
Ou seja:
a) as faturas em causa nos presentes autos não cumprem as exigências legais da legislação do IVA, em face dos seus sucintos e lacónicos descritivos – nem do IRC, como se sustenta naquela leitura uniformizada;
b) mas a consequência não é a imediata não aceitação da dedução do IVA nelas contido – nem a não aceitação da dedução em sede de IRC, como sustentado numa leitura uniformizada;
c) tem de se aceitar a dedução do IVA – consequência do direito à dedução, base da neutralidade do imposto – se, perante as provas dos autos, se consegue verificar o cumprimento dos requisitos substantivos desse exercício.
O Tribunal deve também aceitar a dedução no IRC – consequência do direito à tributação do rendimento real – se, perante as provas dos autos, consegue verificar o cumprimento dos requisitos substantivos desse exercício de dedução dos gastos ao rendimento, como manifestação e concretização do rendimento real".
Neste âmbito foi demonstrada a existência de serviços prestados, quer pelos angariadores e consultores, quer pelos advogados, sendo possível relacionar os mesmos com os recibos verdes emitidos, razão porque deveriam ter sido aceites as deduções relativas a esses recibos.
Também relativamente à não aceitação dos gastos com o contrato celebrado com a B..., Lda., foi feita prova de que a razão para a celebração desse contrato e a prestação dos respectivos serviços resultava da transição da marca da Requerente e da necessidade de alteração da sua plataforma e dos contactos com os clientes, o que se considera justificação suficiente para aceitar essa dedução, uma vez que se trata de um gasto necessário para a obtenção dos rendimentos sujeitos a IRC.
Em consequência, não se considera que essas deduções violem o disposto no art. 23º, nº1, e nº 4 do Código do IRC, razão porque se anulam as impugnadas correcções em relação ao lucro tributável de IRC dos exercícios de 2020 e 2021.
— DA ILEGALIDADE DAS LIQUIDAÇÕES DE IVA.
15. Em relação às liquidações adicionais de IVA, as mesmas têm por base, em primeiro lugar, o facto de terem sido encontradas na contabilidade várias facturas (melhor identificadas nos pontos V.3. e V.10. do RIT suportado pela ordem de serviço n.º OI2022...) emitidas em 2020 pela B..., Lda., com IVA incluído no montante total de €35.535,00, as quais tinham apenas o descritivo “Prestação de serviços relativamente ao contrato formalizado” e por vezes “deslocações/kms”, tendo em consequência a Requerida considerado que as mesmas não preencheriam os requisitos da alínea b) do n.º 5 do art.º 36.º do Código do IVA (CIVA), pelo que não seriam dedutíveis, nos termos da alínea a) do n.º 2 do art.º 19.º do mesmo diploma.
Para além disso, salienta a Requerida que a B..., Lda. foi constituída em 2018-11-06, e ambas as sociedades (Requerente e B..., Lda. – alegadas cliente e fornecedora, respetivamente têm como gerentes e sócios (em 50% das quotas) o Sr. E... e F..., sem que lhe seja conhecido qualquer outro funcionário ou colaborador. Para além disso, em Março de 2021, o Sr. E... deixou de participar como sócio e gerente da B..., Lda., e o Sr. F... deixou de participar no capital e na gerência da Requerente, data associada também ao “terminus” dos serviços prestados de implementação da nova marca. Finalmente, o invocado contrato foi assinado apenas pelo Sr. E..., representando ambas as partes (requerente e fornecedor), ficando-se a saber da resposta da Requerente à notificação dos Serviços Inspectivos que era também o Sr. E... que tinha o know how no serviço a prestar/prestado, o que levou a Requerida a concluir que o contrato firmado e a faturação realizada são simulados, não podendo consequentemente ser aceite a dedução do IVA, nos termos da alínea a) do n.º 2 e do n.º 3 do art.º 19.º do CIVA.
Não nos parece, porém, que possa ser automaticamente inferida a existência de simulação negocial do facto de existirem sócios e gerentes comuns nas duas partes do negócio, sendo que foi feita prova da justificação para esse contrato, conforme acima se referiu. Por outro lado, a Requerente cumpriu o ónus da prova que lhe competia, ao demonstrar que se tratava de um negócio verdadeiro, justificado pela alteração da marca da Requerente.
Salienta-se, neste âmbito, a posição assumida no Acórdão de 27 de Fevereiro de 2014 pelo Tribunal Central Administrativo Norte no processo 01679/06.5BERBG (sumário):
"2. Quando a liquidação adicional de IVA tem por fundamento o não reconhecimento do direito às deduções declaradas pelo contribuinte, compete à administração tributária fazer prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua actuação.
3. Tendo o juízo da administração tributária assentado no pressuposto de que ocorreu simulação relativa das operações tituladas pelas facturas em causa nos autos, impunha-se que recolhesse indícios sérios e objectivos dessa simulação.
4. Feita essa prova, cabia então ao contribuinte o ónus da prova de que as facturas em causa correspondem a operações realmente efectuadas pela empresa que as emitiu e, assim, comprovar o direito às deduções que efectuou do IVA nelas mencionado.
5. Sendo os indícios avançados pela administração tributária manifestamente insuficientes para suportar a conclusão de que a impugnante actuou em combinação com outros no sentido de enganar e prejudicar terceiros, é de concluir que não demonstrou, como lhe competia, os pressupostos de facto que a legitimaram a corrigir as liquidações de IVA com fundamento em simulação relativa das operações tituladas pelas facturas em causa nos autos".
Considera-se por isso que a correcção efectuada à dedução de IVA em 2020, no montante de €35.535,00 (valor global incluído nas faturas), não se pode considerar justificada nos termos da alínea a) do n.º 2 e do n.º 3 do art.º 19.º e das alíneas b) e f) do n.º 5 do art.º 36.º do CIVA, razão por que se anula a mesma.
Já relativamente à correcção respeitante aos trabalhos de construção civil, foram identificados pela Requerida gastos registados na contabilidade relativos a encargos suportados em obras de construção civil nas instalações da Requerente, para os quais se constatou que foi deduzido IVA no montante global de € 7.988,59.
Ora, para os serviços referenciados, impende sobre a Requerente a obrigação de autoliquidação do imposto, na qualidade de adquirente, nos termos da alínea j) do n.º 1 do art.º 2.º do CIVA e refere o n.º 8 do art. 19º CIVA que “nos casos em que a obrigação de liquidação e pagamento do imposto compete ao adquirente dos bens e serviços, apenas confere direito a dedução o imposto que for liquidado por força dessa obrigação”.
Uma vez que a Requerente não deu cumprimento à mencionada regra de autoliquidação, foi efectuada a correcção do IVA deduzido no valor global de € 7.988,59, nos termos do mencionado preceito. A Requerente sobre isso respondeu que muitos dos documentos aqui indicados não respeitam a “serviços”, mas sim a aquisição de equipamentos e material, o que pode e deve ser contabilizado e considerado, podendo o seu IVA ser deduzido, nos termos da lei.
Analisadas as facturas e recibos verdes que constam do anexo 8 ao Relatório de Inspecção, torna-se claro que todos eles respeitam à prestação de serviços de construção civil e não a contratos de venda de equipamentos e material, pelo que a correcção foi adequadamente feita, tendo por isso que se manter.
Também quanto às operações não sujeitas a IVA, está em causa um recibo verde de 24/3/2021, com IVA de € 2.200, que foi explicado à AT tratar-se de honorários pelo apoio à cessão de quotas celebrada entre os sócios da Requerente.
Ora, como bem salienta a AT, neste caso o IVA também não pode ser deduzido por força do nº1 do art. 20º CIVA, em primeiro lugar porque a operação é alheia à sociedade, respeitando antes aos seus sócios, e em segundo lugar porque qualquer cessão de participações sociais detida sobre sociedades (quotas) não configura uma operação sujeita a IVA, sendo que a lei só admite a dedução de imposto que tenha sido suportado para a realização de operações tributáveis, o que não é o caso.
Nestes termos, tem que se considerar legal a referida correcção de IVA de € 2.200, razão por que a mesma se mantém.
Já em relação à não aceitação das deduções de IVA por razões meramente formais relativas às facturas, salienta-se a posição assumida no acórdão de 30/10/2018 deste CAAD, no processo 96/2018-T:
" A primeira questão que se suscita prende-se com a suficiência do discriminativo constante das faturas emitidas à Requerente, cuja dedução foi rejeitada pela AT, mais concretamente com saber se aquele observa as condições mínimas de detalhe estabelecidas pelo artigo 226.º, n.º 6 da Diretiva IVA, acima transcrito, segundo o qual as faturas devem obrigatoriamente mencionar “a extensão e natureza dos serviços prestados”.
Sobre esta questão, o TJ, num caso relativamente recente, considerou insuficiente um descritivo que continha apenas a indicação de “serviços jurídicos prestados desde determinada data até ao presente”, por ser demasiado genérico para identificar a concreta natureza dos serviços em causa e a sua extensão, sem prejuízo de não entender obrigatória a descrição dos serviços prestados de forma exaustiva. Para o TJ “a finalidade das menções que devem obrigatoriamente constar da fatura consiste em permitir às Administrações Fiscais a realização de controlos do pagamento do imposto devido e, se for caso disso, da existência do direito a dedução do IVA” e é à luz desta finalidade que importa analisar se as faturas respeitam as exigências do artigo 226.º, n.º 6, da Diretiva IVA – cf. Acórdão do TJ, de 15 de setembro de 2016, Barlis, C-516/14, n.ºs 26, 27 e 28. De notar que estas exigências podem ser supridas através de documentos conexos com as faturas, que a estas possam ser equiparados, nos termos do artigo 219.º da referida diretiva, na qualidade de documentos que alteram a fatura inicial e a ela façam referência específica e inequívoca (Acórdão Barlis, n.º 34).
No entanto, o TJ não considera que seja inevitável o afastamento do direito à dedução, como consequência de uma violação do artigo 226.º, n.º 6 da Diretiva IVA.
Para o Tribunal Europeu, “o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução deste imposto pago a montante seja concedida se os requisitos materiais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Por conseguinte, quando a Administração Fiscal dispõe dos dados necessários para saber que os requisitos materiais foram cumpridos, não pode impor condições suplementares ao direito do sujeito passivo de dedução do imposto que possam ter por efeito eliminar esse direito (v., neste sentido, acórdãos de 21 de outubro de 2010, Nidera Handelscompagnie, C-385/09, EU:C:2010:627, n.º 42; de 1 de março de 2012, Kopalnia Odkrywkowa Polski Trawertyn P. Granatowicz, M. Wąsiewicz, C-280/10, EU:C:2012:107, n.º 43; e de 9 de julho de 2015, Salomie e Oltean, C-183/14, EU:C:2015:454, n.ºs 58, 59 e jurisprudência aí referida).” – cf. Acórdão Barlis, n.º 42.
Assim, o TJ conclui que o artigo 178.º, alínea a) da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades tributárias nacionais possam recusar o direito à dedução do IVA pelo simples facto de o sujeito passivo possuir uma fatura que não cumpre os requisitos exigidos pelo artigo 226.º, n.º 6 desta diretiva, quando essas autoridades dispõem de todas as informações necessárias para verificar se os requisitos substantivos relativos ao exercício desse direito se encontram satisfeitos – cf. Acórdão Barlis, n.º 43 e dispositivo.
Esta posição já tinha sido anteriormente sufragada nos Acórdãos de 30 de setembro de 2010, Uszodaépito kft, C-392/09; de 21 de outubro de 2010, Nidera, C-385/09; de 1 de março de 2012, Kopalnia (ou Polsky Trawertyn), C-280/10; de 27 de setembro de 2012, VSTR, C-587/10; de 8 de maio de 2013, Petroma, C-271/12; de 18 de julho de 2013, Evita-K EOOD, C-78/12; de 6 de fevereiro de 2014, SC Fatorie, C-424/12 e de 11 de dezembro de 2013, Idexx Laboratories, C-590/13. Esta jurisprudência constante do TJ afirma que, sem prejuízo da importante função documental da fatura, na medida em que pode conter dados controláveis, conquanto estejam cumpridos e demonstrados os requisitos substantivos, a não observância das formalidades não pode, em princípio, levar à supressão do direito à dedução do IVA, reforçando que este “garante a neutralidade na aplicação do IVA, pelo que não poderá ser recusado somente porque os sujeitos passivos negligenciaram certos requisitos formais, quando os requisitos substantivos tenham sido cumpridos” – cf. Acórdão Uszodaépito kft, n.º 38).
Na interpretação do TJ, a exigência de dispor de fatura em todos os pontos conforme com as disposições da Diretiva IVA teria uma consequência inaceitável: a de pôr em causa o direito à dedução do sujeito passivo, quando os dados podem ser validamente comprovados através de outros meios que não sejam uma fatura – cf. n.º 48 do Acórdão Kopalnia.
Acresce, neste ponto, e conforme referido na decisão arbitral n.º 3/2014-T, de 6 de dezembro de 2016, convocar o Acórdão de 12 de julho de 2012, EMS Bulgaria, C-284/11, “que coloca a questão dos efeitos associados ao incumprimento de formalidades no domínio sancionatório e não no plano (bem distinto) dos efeitos impeditivos ou extintivos do exercício do direito (substantivo) à dedução”.
O referido entendimento tem sido reforçado em jurisprudência posterior, designadamente no Acórdão de 15 de novembro de 2017, Rochus Geissel, C-374/15, que recorda que o direito à dedução do IVA não pode, em princípio, ser limitado, e que o regime de deduções visa libertar completamente o empresário do peso do IVA devido ou pago no âmbito de todas as suas atividades económicas, pelo que a dedução do IVA pago a montante deve ser concedida se os requisitos substanciais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais (n.ºs 40 a 46 do Acórdão Rochus Geissel).
De igual forma, o Acórdão de 15 de setembro de 2016, Senatex, C-518/14, reitera a anterior posição antiformalista e perfilha o entendimento de que, caso ocorra a retificação de faturas que contenham erros (ou omissões), a mesma produz efeitos (retroativos) à data em que as faturas foram inicialmente elaboradas – Acórdão Senatex, n.ºs 35 a 43 e dispositivo.
Porém, em situações de fraude, por exemplo, quando a violação das “exigências formais tiver por efeito impedir a prova certa de que as exigências materiais foram observadas”, o TJ confirma a admissibilidade, à luz do direito europeu, da recusa do direito à dedução. Neste caso, é necessário que se demonstre que o sujeito passivo “não cumpriu fraudulentamente, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, a maior parte das obrigações formais que lhe incumbiam para poder beneficiar deste direito.” – cf. Acórdão de 28 de julho de 2016, Giuseppe Astone, C-332/15, n.º 42 e ponto 2 do dispositivo.
A doutrina nacional é parametrizada pela jurisprudência europeia. Segundo Sérgio Vasques, “[a] complexidade que reveste o regime das faturas e a margem de liberdade que ainda é deixada aos estados-membros nesta matéria têm levado à multiplicação de litígios junto do TJUE relativos aos requisitos formais para o exercício do direito à dedução do IVA. Nas suas decisões o tribunal, reiterando embora a função da fatura como suporte do direito à dedução, em correspondência com o artigo 178.º da Diretiva, tem permitido que sobre este requisito de forma prevaleça a substância das operações, sempre que isso se mostre necessário para garantir a neutralidade do IVA e não coloque risco demasiado” – cf. O Imposto sobre o Valor Acrescentado, Almedina, 2015, pp. 340-345 (excerto de p. 341).
Miguel Durham Agrellos e Paulo Pichel, também com apoio na jurisprudência comunitária, consideram que os vícios formais apenas são passíveis de impedir o direito à dedução se puserem “razoavelmente em causa a capacidade de cobrança correta do imposto e de fiscalização pelas autoridades tributárias, de tal modo que esta não está em condições de conhecer a realidade material subjacente, em face dos elementos apresentados pelo sujeito passivo” – cf. “Jurisprudência do TJUE sobre Exigências de Forma das Facturas e Direito à Dedução do IVA”, Cadernos IVA 2015, Coord. Sérgio Vasques, Almedina, 2015, pp. 191-211 (o excerto de p. 194).
Também Cidália Lança refere que “de acordo com a jurisprudência daquele Tribunal [TJ], o princípio da neutralidade exige que a dedução do IVA seja concedida se os requisitos substantivos tenham sido cumpridos, mesmo se os sujeitos passivos tiverem negligenciado certos requisitos formais” – cf. Anotação ao artigo 36.º do Código do IVA: Código do IVA e RITI Notas e Comentários, Coord. e Organização Clotilde Celorico Palma e António Carlos dos Santos, Almedina, 2014, p. 340".
Assim, relativamente às faturas emitidas pela B..., Lda. com IVA incluído no montante de €859,41, cujo IVA suportado foi deduzido, constantes do ponto V10, entendemos ser suficiente a explicação dada relativa ao contrato celebrado com a Requerente, pelo que se considera ilegal a referida correcção de IVA, razão por que se procede à anulação da mesma.
Da mesma forma, relativamente aos serviços constantes dos pontos 7.4, 7.6., 7.11 a 7.18, 7.25 e 7.32 do quadro constante do ponto V.11 do RIT, a esmagadora maioria dos mesmos respeita a uma avença de advocacia, conforme foi explicado pela Requerente, sendo que o pagamento da avença é devido, mesmo que não seja realizado qualquer serviço, pelo que a correcção da dedução do IVA nelas contido, no valor global de € 5.383,62, é ilegal, tendo por isso que ser anulada.
— DA ILEGALIDADE DO ACTO DE RETENÇÃO NA FONTE DE IRS.
15. Considera ainda a Requerente ter preenchido todos os requisitos legais para a celebração de um contrato-promessa de cessão de quotas próprias, o que justificaria o pagamento de € 94.500 no ano de 2021 ao sócio-gerente E..., defendendo por isso ser ilegal a retenção na fonte de IRS no valor de € 26.460 e os correspondentes juros compensatórios.
Conforme bem se salientou no ponto V.14. do Relatório de Inspecção, não houve qualquer deliberação dos sócios relativa à aquisição de quotas próprias, conforme exigido pelo art. 246º, nº1, b) CSC, sendo que a mesma só poderia ser provada por uma acta da sociedade ou por um documento escrito de onde conste a deliberação nos termos do art. 63º, nº1, CSC. O contrato-promessa que se encontra no processo administrativo não preenche esse requisito, uma vez que só um dos sócios intervém em representação da sociedade, e mesmo assim na qualidade de gerente. Falta assim a deliberação da sociedade para a aquisição das quotas próprias.
Para além disso, o art. 220º, nº2, CSC só permite a aquisição de quotas próprias pela sociedade "a título gratuito, ou em acção executiva movida contra o sócio, ou se, para esse efeito, ela dispuser de reservas livres em montante não inferior ao dobro do contravalor a prestar”. Ora, no caso presente a contraprestação acordada foi de € 135.000, quando o balanço da sociedade tem inscrito na conta 5521 – “Reservas livres” o valor de € 268.905,48, o que não perfaz esse requisito.
Nos termos do art. 220º, nº 3, CSC "são nulas as aquisições de quotas próprias com infracção do disposto neste artigo”. Essa disposição não pode deixar de ser extensiva ao contrato-promessa, de acordo com o art. 410º, nº1, CC, uma vez que tem por base o princípio da conservação do capital, previsto nos arts. 31º e ss. CSC, não se admitindo que a aplicação de reservas livres na aquisição de quotas próprias não pudesse ser feita com base num contrato definitivo, mas já pudesse ser feita com base num contrato-promessa, caso em que as quotas próprias nem sequer ainda foram adquiridas pela sociedade.
Sendo nulo o referido negócio, não pode o mesmo servir de base para o enquadramento tributário de uma aquisição de quotas próprias pela sociedade, pelo que bem andou a Autoridade Tributária em o desconsiderar para efeitos do art. 38º, nº2, da LGT, tendo efectuado a tributação de acordo com a realidade económica subjacente do art.º 5º, n.º 2, al. h) do CIRS: “Os lucros e reservas colocados à disposição dos associados ou titulares e adiantamentos por conta de lucros”. Nestes termos considera-se correcta esta correcção em sede de IRS, bem como os juros compensatórios.
Tem assim que se considerar devido o IRS, no valor global de € 26.460,00, nos termos dos art.º 5º, n.º 2, al. h); art.º 71º, n.º 1, al. a) e art.º 101º, n.º 2, al. a) do CIRS, para os meses e prazos de entrega indicados no quadro abaixo, à taxa de 28%, sendo devidos juros compensatórios nos termos do art.º 91º do CIRS e 35º da LGT. Por esses motivo, considera-se válida essa correcção.
V – Decisão
Nestes termos, o Tribunal Arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral em relação às liquidações de IRC e juros compensatórios impugnadas.
O Tribunal Arbitral decide igualmente julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral em relação às liquidações de IVA e juros compensatórios impugnadas, salvo no que se refere às liquidações de IVA de € 7.988,59 e respectivos juros compensatórios relativos a trabalhos de construção civil e à liquidação de IVA de € 2.024,00 relativos a serviços jurídicos de apoio a uma cessão de quotas, cujas correcções se mantêm.
O Tribunal decide julgar improcedente o pedido de anulação do acto de retenção na fonte de IRS no valor de € 26.460,00 que assim se mantém
Atendendo ao disposto no art. 97º-A do CPPT, aplicável ex vi do artigo 29º, nº 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3º, nº 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 168.747,81.
Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são fixadas no valor de € 3.672,00, a suportar em 75% pela Requerida e em 25% pelo Requerente, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Notifique-se.
Lisboa, 19 de Julho de 2024.
Os Árbitros
(Victor Calvete)
Vencido quanto à possibilidade de cumulação de pedidos de IRS, IRC e IVA nos presentes autos. A – única – norma aplicável para o decidir é a do n.º 1 do artigo 3.º do RJAT, não sendo a meu ver possível invocar para a viabilizar a norma paralela do artigo 104.º do CPPT (tal como alterada pela Lei n.º 118/2019, que, alterando também o RJAT, não alterou aquele artigo 3.º).
Vencido igualmente quanto à nulidade imputada ao contrato-promessa, que me parece desnecessária para o resultado a que a maioria chegou – e, na verdade, inadmissível face ao disposto no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT – e assente em concepção alheia à sua função de gerador de uma obrigação de prestação de facto jurídico futuro.
(Paulo Ferreira Alves)
(Luís Menezes Leitão)