Sumário:
I – Os créditos obtidos como contrapartida de serviços de prestação de serviços de comunicações eletrónicas, dos serviços de transporte e difusão de sinal de telecomunicações de difusão, bem como na atividade de televisão, que tipicamente são periodicamente renováveis, usualmente com ciclo mensal, prescrevem no prazo de cinco anos, nos termos da norma do artigo 310.º, alínea g) do Código Civil e, se a entidade prestadora e credora não logrou, até à data da prescrição, qualificar esses créditos como créditos de cobrança duvidosa ou como créditos considerados incobráveis, nos termos previstos no artigo 78.º-A e disciplina procedimental ou formal respetiva, prevista nas normas desse artigo e dos artigos 78.º-B e 78.º-D do Código do Imposto Sobre o Valor Acrescentado, faz extinguir a possibilidade de regularizar a seu favor o Imposto Sobre o Valor Acrescentado correspondente, que tenha lançado a favor do Estado na declaração periódica respetiva, pois a prescrição tem como fundamento o abandono do direito, que só à prestadora do serviço é imputável, e que é impossível fazer repercutir sobre o Estado, atendendo ao caráter indisponível dos créditos tributários, como preveem as normas do artigo n.º 30.º, n.º 2 e n.º 3 da LGT.
II – O prazo para reclamação administrativa da não aceitação pelo Estado da regularização do Imposto Sobre o Valor Acrescentado referida no ponto anterior é de 120 dias, nos termos da regra do artigo 70.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, e o seu termo inicial ocorre no dia que ocorrer mais cedo: (i) a data da notificação do ato, nos termos da norma do artigo 102.º, n.º 1, alínea a) ou alínea b), conjugadas com a norma do referido artigo 70.º, n.º 1 do CPPT; (ii) no dia imediatamente seguinte à prescrição, que é contada a partir da data de vencimento, nos termos das normas do artigo 20.º, n.º 1 deste CPPT e daquelas que regulam o tema, no artigo 279.º do Código Civil.
III - A tempestividade da propositura do processo de impugnação de atos tributários por tribunal arbitral, em que seja peticionada a apreciação da legalidade do indeferimento de procedimento de revisão, proposto antecipadamente, nos termos previstos nas normas do artigo 78.º da LGT, pressupõe a observância da tempestividade na apresentação desse procedimento e a sua intempestividade, gera ipso facto, a intempestividade do processo arbitral e a absolvição da requerida da instância, nos termos previstos nas normas do artigo 89.º, n.º 2 e do n.º 4, alínea k) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, ex-vi artigo 29.º, n.º1 alínea c) do RJAT.
ACÓRDÃO ARBITRAL
Os árbitros Fernanda Maçãs (presidente), Gonçalo Marquês de Menezes Estanque (adjunto) e Nuno Maldonado Sousa (adjunto relator), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral Coletivo constituído em 14-12-2023, decidem no processo acima identificado nos seguintes termos:
1Relatório
A..., S.A., sociedade com sede na ..., n.º ..., ...-... Lisboa, titular do número de pessoa coletiva ..., doravante referida por Requerida ou simplesmente por “A...”, requereu a constituição de tribunal arbitral nos termos do regime jurídico da arbitragem em matéria tributária constante do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“RJAT”).
A Requerente peticiona, a título principal, a anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa proferido pelo Exmo. Senhor Chefe de Divisão de Serviço Central da Unidade de Grandes Contribuintes da AT, bem como a anulação parcial das 25 autoliquidações mensais de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”), relativos aos períodos entre 2019.10 e 2023.01, no montante global de € 1.415.214,60 e, complementarmente a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, até integral reembolso, relativos ao período que mediar entre a data do pagamento da quantia referida e a sua efetiva devolução.
O seu pedido assenta na alegação de ser detentora de créditos evidenciados na sua contabilidade resultante de elevado rácio de incumprimento da obrigação de pagamento dos seus clientes pessoas coletivas nos serviços que lhes presta. Parte desses devedores são sociedades dissolvidas ou em dissolução e que, no sistema de funcionamento próprio do IVA, o imposto relativo a essas prestações de serviços foi incluído a crédito do Estado, nas suas declarações periódicas de IVA que apresentou nos períodos próprios para os efeito, encontrando-se esses créditos vencidos entre 15-03-1999 e 31-12-2012. Considera que esses créditos devem ser enquadrados como créditos incobráveis, ao abrigo do artigo 90.º da Diretiva 2006/112/CE de 28-11-2006 do Conselho e que “poderia ter regularizado o IVA relativo aos créditos detidos sobre sociedades dissolvidas nas autoliquidações relativas aos períodos entre outubro de 2019 e janeiro de 2023”, que são afinal aquelas que impugna parcialmente.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, doravante designada também pelas formas abreviadas “AT” ou “Requerida”, que sustenta que a disciplina constante dos artigos 78.º a 78.º-D do Código do IVA, constitui o legítimo exercício pelo Estado português da faculdade de derrogação da orientação fixada no artigo 90.º, n.º 1 da citada Diretiva e que, ao listar taxativamente as situações que permitem a regularização, fazem-no no uso da prerrogativa que inibe a aplicação direta da norma do artigo 90.º n.º 1 da Diretiva IVA[1].
2Tramitação
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi feito em 04-10-2023 e aceite pelo Presidente do CAAD em 06-10-2023, que na mesma data o notificou à Requerida.
Os árbitros identificados e signatários deste acórdão, manifestaram a aceitação das suas funções no prazo legal. Em 24-11-2023, as partes foram notificadas da designação dos árbitros e não manifestaram intenção de os recusar, nos termos previstos nas normas do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e nas normas dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico. Em conformidade com a disciplina constante do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 14-12-2023. O prazo para a decisão foi prorrogado por dois meses, por despacho fundamentado de 12-06-2024.
A Requerida apresentou resposta (“R-AT”) em 30-01-2024, que concluiu afirmando que o pedido do Requerente deve ser julgado improcedente, por não provado e a AT absolvida dos pedidos.
Foi junto o processo administrativo (“PA”) e, foram juntos pela Requerente documentos e parecer jurídico de Ilustre jurista.
o Tribunal dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, o que fez ao abrigo dos princípios da sua autonomia na condução do processo, por não existir prova testemunhal proposta e em ordem a promover a respetiva celeridade, simplificação e informalidade. Foi ajustada a tramitação processual, no sentido de as Partes apresentarem alegações por escrito, o que fizeram em tempo oportuno.
3Saneamento
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, em subordinação às normas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, e é competente.
As partes estão devidamente patrocinadas e a Requerida goza de personalidade e capacidade judiciárias (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo regime e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
No saneamento do processo importa aferir da tempestividade do pedido de revisão, preliminar deste processo de impugnação arbitral, que a Requerida suscita na sua Resposta (“R-AT”), e que, de qualquer modo, constitui exceção dilatória de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 89.º, n.º 4, alínea k) do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (“CPTA”) ex-vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT.
É claro que na marcha típica do processo caberia aqui colocar a possibilidade de despacho pré-saneador, destinado a providenciar o suprimento de exceções dilatórias, como sugere a norma do artigo 87.º, n.º 1, alínea a) do citado CPTA. Contudo, tal despacho só terá lugar quando a exceção for suprível, e a intempestividade, na propositura dos meios impugnatórios pré- judiciais não o é, considerando a natureza própria dos prazos para a prática dos atos das Partes, cujo decurso faz extinguir o exercício desse direito.
Para apreciação da exceção importa ter presente a seguinte matéria de base factual alegada pela Requerente:
-
A A... é uma sociedade anónima, cujo objeto social consiste na conceção, construção, gestão e exploração de redes e infraestruturas de comunicações eletrónicas, na prestação de serviços de comunicações eletrónicas, dos serviços de transporte e difusão de sinal de telecomunicações de difusão, bem como na atividade de televisão e é considerada, por si própria e pela Requerida um sujeito passivo de IVA, enquadrado no regime normal mensal.
-
Tendo em consideração a natureza da atividade e o volume de faturas emitidas mensalmente a uma diversidade de clientes, a A... depara-se com um nível considerável de incumprimento por parte dos seus clientes, do pagamento dos serviços prestados e por esse motivo encontra-se, não raras vezes, em posse de uma carteira de créditos vencidos de montante elevado, relativamente aos quais entrega ao Estado o IVA liquidado.
-
Uma parte desses créditos decorre de faturas emitidas a pessoas coletivas (sociedades) que se encontram já dissolvidas.
-
Parte dos créditos titulados pelas faturas emitidas pela A... a essas sociedades dissolvidas nunca foram pagos pelos seus devedores.
-
Em 10-03-2023 a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa de IVA das autoliquidações que efetuou para os períodos 2019.10, 2019.11, 2019.12, 2020.01, 2020.02, 2020.03, 2020.04, 2020.05, 2020.06, 2020.07, 2020.08, 2020.09, 2020.10, 2020.11, 2020.12, 2021.01, 2021.02, 2021.03, 2021.04, 2021.05, 2021.06, 2021.07, 2021.08, 2021.09, 2021.10, 2021.11, 2021.12, 2022.01, 2022.02, 2022.03, 2022.04, 2022.05, 2022.06, 2022.07, 2022.08, 2022.09, 2022.10, 2022.11, 2022.12 e 2023.01.
Com base nos factos alegados e agora elencados, a A... considerou, a partir de momento não determinado (veja-se 12.º do PPA[2]) que os créditos detidos sobre as sociedades dissolvidas que invoca, “devem ser enquadrados como créditos incobráveis, ao abrigo do disposto no artigo 90.º da Diretiva 2006/112/CE, de 28 de novembro de 2006 (“Diretiva IVA”)” e com base nessa sua conclusão jurídica, constatou, em data que também se ignora quando tenha ocorrido, que “poderia ter regularizado o IVA relativo aos créditos detidos sobre sociedades dissolvidas nas autoliquidações relativas aos períodos entre outubro de 2019 e janeiro de 2023” e por considerar que nessas autoliquidações de IVA que apresentou, não efetuou a regularização do IVA correspondente aos serviços prestados a essas empresas que afirma terem sido dissolvidas e só por isso passaram a ser incobráveis, considerou em 10-03-2023 que essas declarações de IVA “enfermam de ilegalidade por não contemplarem a referida regularização”, e com base nesse raciocínio apresentou nessa data pedido de revisão dos atos tributários de liquidação.
Sem por agora avaliar a regularidade da forma como a Requerente traz aos autos os factos em que pretende alicerçar a sua tese, o Tribunal constata que se encontra relação datilografada, junta como documento n.º 1, sem que ostente identificação do seu emitente ou autor, ou qualquer assinatura, que parece pretender relacionar créditos liquidados sobre empresas dissolvidas, vencidos entre 15-03-1999 (p. 320) e 31-12-2012 (p. 496), provavelmente incluídas nas declarações mensais que foram objeto do pedido de revisão.
Noutro prisma, a Requerente assenta a ilegalidade que justifica a revisão, na falta de cumprimento de dever de enquadramento como créditos incobráveis, daqueles créditos que resultam de prestações de serviços que não lhe foram pagas, por sociedades entretanto dissolvidas, quer dizer, a ilegalidade assenta, na tese da Requerente, na omissão de um dever de inscrever a seu favor, nas declarações periódicas de IVA, esses alegados créditos incobráveis e que esse seu dever gerador de ilegalidade, teria ocorrido nas declarações periódicas.
Quanto à causa subjetiva da ilegalidade, relevante em sede de avaliação da tempestividade da impugnação administrativa, a Requerente entende que a ilegalidade das ditas liquidações radica em erro imputável aos Serviços da AT (veja-se 18.º do PPA), embora, não identifique que erro é esse afinal.
Importa perceber como funciona o sistema de regularização de créditos resultantes da prestação de serviços de comunicações eletrónicas, dos serviços de transporte e difusão de sinal de telecomunicações de difusão, bem como na atividade de televisão, em especial os que resultem em prestações periodicamente renováveis, como são tipicamente as que se acabam de referir, que se venham a verificar incobráveis, para puder então determinar o termo inicial, a partir do qual há de ser contado o prazo de revisão.
A disciplina inscrita sobre o tema no Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (“CIVA”), tem fonte evidente no artigo 90.º, n.º 1 da Diretiva 2006/112/CE do Conselho de 28 de Novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado que, prevê que nas situações de “não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, o valor tributável é reduzido em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados-Membros”, matéria que pode inclusivamente ser derrogada pelos Estados-Membros, nos termos do número 2 do citado artigo.
Em consonância, o CIVA dispõe que os sujeitos passivos podem deduzir o imposto respeitante a créditos considerados de cobrança duvidosa, evidenciados como tal na contabilidade, bem como o respeitante a créditos considerados incobráveis. E logo nesta norma nasce a primeiríssima regra quanto à dedução do IVA incorporado nos créditos incobráveis ou duvidosos de que sejam titulares os sujeitos passivos: a lei, designadamente o CIVA, não impõe que tais créditos sejam regularizados por dedução. De modo diferente, concede aos sujeitos passivos a prerrogativa de regularizarem ou não regularizarem esses créditos a seu favor, sendo que quando o pretendam fazer devem cumprir com determinadas regras formais, por vezes cumulativas, que permitam caracterizar a verdadeira situação desses créditos, designadamente antiguidade, existência de diligências para o seu recebimento, existência de cobrança judicial, situação de insolvência ou processo de recuperação legalmente definido, entre outras formalidades. Em conclusão, a dedução de créditos incobráveis ou de cobrança duvidosa pelo sujeito passivo, não é uma operação do sistema do imposto que deva ser por ele executada obrigatoriamente; é mais exatamente uma prerrogativa que este poderá usar, quando o quiser, devendo então observar as regras formais ou procedimentais legalmente previstas. Ora, tratando-se de conduta que é sua prerrogativa e está na sua disponibilidade exercer ou não exercer, a sua omissão não poderá decorrer de erro imputável aos serviços, excetuadas as situações em que a Administração profira alguma instrução nesse sentido. Fica assim afastada a possibilidade de lançar mão do prazo alargado de quatro anos para requerer a revisão de ato tributário, previsto na Lei Geral Tributária (“LGT”), designadamente no seu artigo 78.º, n.º 1.
Importa agora apurar qual o prazo geral em que é admitido à Requerente, numa perspetiva meramente temporal – de tempestividade - usar da prerrogativa de deduzir créditos de cobrança duvidosa ou mesmo incobráveis, regularizando-os numa declaração periódica, excetuadas as situações em que o próprio o requer à AT, nos termos da norma do artigo 78.º-B, n.º 1 do CIVA, porque não é esse o caso dos autos.
Há que distinguir, sempre tendo presente que estão em causa créditos sobre empresas dissolvidas e nunca créditos sobre pessoas singulares, (i) os créditos de cobrança duvidosa, evidenciados como tal na contabilidade, bem como o respeitante a créditos considerados incobráveis, a partir da inscrição no registo informático de execuções da extinção da execução por não terem sido encontrados bens penhoráveis (artigo 78.º-B, n.º 4, alínea a do CIVA) e no prazo de dois anos a contar do 1.º dia do ano civil seguinte; (ii) os créditos que sejam considerados em processo de insolvência, quando a mesma for decretada de caráter limitado ou quando for determinado o encerramento do processo por insuficiência de bens, em processo de insolvência ou em processo especial de revitalização, quando seja proferida sentença de homologação do plano de insolvência ou do plano de recuperação que preveja o não pagamento definitivo do crédito ou quando for celebrado e depositado na Conservatória do Registo Comercial acordo sujeito ao Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas.
Noutra perspetiva o artigo 310.º, alínea g) do Código Civil, declara prescritas no prazo de 5 anos as prestações periodicamente renováveis, como são aquelas que a Requerente presta usualmente aos seus clientes, mês após mês; quer dizer, tratando-se como se tratam de relações de direito privado entre a Requerente e os seus clientes, decorridos que sejam cinco anos sobre o seu vencimento, o Estado, enquanto credor do IVA correspondente aos serviços que a Requerente efetivamente prestou e faturou, incluindo o imposto incorporado no preço da contraprestação devida, tem interesse e pode legitimamente invocar a inexigibilidade do crédito pela Requerente ao seu devedor (artigo 305.º, n.º 1 do Código Civil), deixando de ser lícito ao sujeito passivo do imposto regularizar esse imposto a seu favor, a menos que tenha feito acionar o regime já visto da classificação dos créditos como incobráveis.
Note-se ainda que em matéria de prescrição dos créditos da Requerente sobre os seus clientes, há que considerar que eles englobam o IVA, que é um imposto e como tal goza da indisponibilidade própria dos créditos tributários, como preveem as normas do artigo n.º 30.º, n.º 2 e n.º 3 da LGT. Aliás, em consonância, a norma do artigo 305.º, n.º 3 do Código Civil, ao reconhecer que a prescrição, mesmo quando decretada por sentença transitada em julgado, não é mais tarde oponível pelo credor titular inicial dos créditos prescritos, deixa implícito que a prescrição do preço das prestações de serviços e o IVA que englobem, mesmo quando sejam declaradas judicialmente prescritas, não afetam o crédito do Estado, pois duas situações se podem colocar: (i) ou o sujeito passivo de IVA que prestou o serviço não diligenciou devidamente a cobrança do preço e permitiu a sua prescrição, por culpa que lhe é imputável; (ii) ou não pretendeu simplesmente cobrar. Nenhuma das atitudes é compaginável com a prerrogativa, ou direito, se assim se quiser entender, a regularizar , o imposto por “não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação”, que contém na sua génese a atitude involuntária do sujeito passivo, que não consegue satisfazer o seu crédito e o imposto conexo.
Nas situações trazidas a estes autos, sabemos que a Requerente pretende que os créditos sejam declarados incobráveis com fundamento na dissolução de seus clientes. Por consulta do documento n.º 1 junto pela Requerente é seguro afirmar que todos os créditos que detinha venceram-se entre 15-03-1999 e 31-12-2012 e prescreveram, nos termos já aludidos, entre 16-03-2004 e 01-01-2018 e não era por isso possível à Requerente pedir a revisão dos atos, decorridos que foram 120 dias da data da respetiva prescrição, nos termos do artigo 70.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, ex-vi artigo 78.º, n.º 1, 1.ª parte da LGT. O seu direito de reclamação graciosa extinguiu-se, na mais recente das situações em 30-04-2019.
Compulsando a factualidade assente, constata-se que a mais recente declaração periódica que terá sido portadora de regularizações dos alegados créditos é muito posterior, exatamente de outubro de 2019.
É assim intempestivo o pedido de revisão nos termos das regras conjugadas do artigo 78.º, n.º 1 da LGT e do artigo 70.º, n.º 1 do CPPT e a sua tempestividade é pressuposto essencial do pedido de pronúncia arbitral, pelo que há que absolver a Requerida da instância, nos termos previstos nas normas do artigo 89.º, n.º 2 e do n.º 4, alínea k) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, ex-vi artigo 29.º, n.º1 alínea c) do RJAT.
o0o
No seu Pedido Arbitral (196.º e sgs., do PPA) a Requerente vem suscitar a questão da inconstitucionalidade da norma “que se extrai da conjugação dos artigos 4.º, 16.º, 18.º, 78.º e 78.º-A do Código do IVA, ao ser interpretada, no sentido que dela retira a AT, de vedar à Requerente o direito à regularização do IVA, a seu favor, alusivo a créditos que nunca foram pagos efetivamente pelos seus clientes (sociedades dissolvidas)”, é inconstitucional por violação do princípio do primado do Direito da União face ao Direito Nacional, nos moldes prescritos no artigo 8.º n.º 4 da CRP [Constituição da República Portuguesa], dos princípios da legalidade e da tipicidade tributária prescritos no artigo 103.º da CRP e do princípio da tributação do consumo constante do artigo 104.º n.º 4 da CRP.”
Como é sabido, a apreciação da constitucionalidade das normas é da competência exclusiva do Tribunal Constitucional, nos termos da norma do artigo 280.º, n.º 1 da CRP. A este tribunal é-lhe tão só imposto que ajuízem da aplicação de norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Como neste processo não houve que conhecer do mérito da ação, não se colocou a situação de aplicar ou recusar a aplicação da interpretação conjugada das citadas normas, pelo que nada há a apreciar nesta sede.
o0o
No seu Pedido Arbitral (199.º e sgs., do PPA) a Requerente peticiona o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia decidir, a título prejudicial, sobre a interpretação dos atos adotados pelas Instituições da União Europeia.
Como a questão do eventual dissenso entre a interpretação que este Tribunal viesse a fazer e aquela que é defendida pela Requerente não se suscita, por não ter havido conhecimento sobre o mérito da ação, encontra-se naturalmente prejudicada a apreciação da pertinência de tal pedido.
4Decisão
Pelas razões expostas este Tribunal Arbitral coletivo delibera:
-
Julgar procedente a exceção dilatória da intempestividade do pedido arbitral e em consequência absolver a Requerida da instância.
-
Não se pronunciar relativamente à não aplicação por alegada inconstitucionalidade, da norma que a Requerente considera “que se extrai da conjugação dos artigos 4.º, 16.º, 18.º, 78.º e 78.º-A do Código do IVA, ao ser interpretada, no sentido que dela retira a AT, de vedar à Requerente o direito à regularização do IVA, a seu favor, alusivo a créditos que nunca foram pagos efetivamente pelos seus clientes (sociedades dissolvidas)”.
-
Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo, em valor apurado no capítulo próprio deste acórdão.
5Valor do processo
Nos termos do artigo 3.º, n.º 3 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e cumprindo com a previsão do artigo 306.º, n.º 2 do CPC e do artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicáveis ex-vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c) e alínea e) do RJAT, fixa-se ao processo o valor de 1.415.214,60 € (um milhão, quatrocentos e quinze mil, duzentos e catorze euros e sessenta cêntimos).
6Custas
O valor da taxa de arbitragem é fixado em 18 972,00 €, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e fica a cargo da Requerente.
Notifique-se.
Lisboa, 22 de julho de 2024
Os árbitros,
Fernanda Maçãs (Presidente)
Gonçalo Marquês de Menezes Estanque (árbitro adjunto; com declaração de voto vencido em anexo)
Nuno Maldonado Sousa (árbitro adjunto e relator)
Declaração de voto de vencido do árbitro adjunto Gonçalo Estanque
Discordo da decisão de julgar procedente a exceção dilatória da intempestividade do pedido arbitral e, em consequência, absolver a Requerida da instância.
-
Da tempestividade
Abstendo-me, por ora, de uma análise do mérito da causa, importa referir que a Requerente pretendia, através da via administrativa, a anulação das autoliquidações de IVA para os períodos compreendidos entre 2019.10 e 2023.01 porquanto, nas declarações de IVA daqueles períodos, não regularizou, nos termos do artigo 78.º do CIVA, IVA relativo a créditos que qualificou como incobráveis (vide, pedido de revisão apresentado pela Requerente - Doc. 2 junto ao PPA). Para o efeito apresentou pedido de revisão oficiosa o qual:
(i) relativamente aos períodos compreendidos entre 2019.10 e 2020.12, foi indeferido com fundamento em intempestividade e
(ii) relativamente aos restantes períodos, houve indeferimento com fundamento, no essencial, no facto do legislador, nos artigos 78.º e ss. do CIVA, não contemplar a regularização do IVA dos créditos considerados incobráveis sobre sociedades dissolvidas.
(vide, decisão de indeferimento - Doc. 4 junto ao PPA).
Em primeiro lugar, atendendo a que a regularização do IVA relativo a créditos incobráveis, nos termos dos artigo 78.º e ss. do CIVA, consubstancia um direito à dedução do IVA, conforme se extrai, literalmente, do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA, a forma procedimental adequada para a formalização deste direito à dedução seria, na minha opinião, através da submissão de declaração periódica (de substituição) de IVA, a submeter no prazo de 4 anos a contar do nascimento do direito à dedução (cfr. n.º 2 do artigo 98.º do CIVA). Entendimento este que é corroborado pelo Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) em Acórdão proferido no âmbito do Proc. n.º 0762/16.3BELRA (de 08/02/2023), onde se refere que a regularização do IVA (i.e. a dedução do IVA respeitante a créditos qualificados como incobráveis) “terá de ocorrer antes de transcorrido o prazo de 4 anos, previsto no art. 98.º, n.º 2 [do Código do IVA]”.
É certo que não foi este o procedimento adoptado pela Requerente mas a verdade é que haveria sempre lugar a convolação no procedimento próprio, nos termos do artigo 52.º do CPPT. Aliás, a AT acabou por apreciar, ainda que parcialmente[3], o mérito do pedido formulado pela Requerente. De resto, o erro na forma procedimental utilizado pela Requerente não implicou qualquer ampliação do prazo, dado que o prazo previsto no n.º 2 do artigo 98.º do CIVA é de 4 anos.
Face ao exposto, na minha opinião, a presente decisão arbitral não poderia invocar a intempestividade do pedido de revisão para julgar o PPA intempestivo.
-
Do IVA em geral
O IVA é, num “mundo perfeito”, um imposto sobre o consumo simples de administrar: em termos simples, um serviço é prestado ou um bem é vendido, um preço é cobrado e, sobre esse preço é calculado o IVA aplicável (Art. 1.º, n.º 2 da Directiva 2006/112/CE do Conselho - “Directiva IVA”). Nos termos do artigo 63.º da Directiva IVA, o IVA torna-se exigível com a entrega dos bens ou com a prestação do serviço e, “simetricamente”, neste momento nasce, também, para o adquirente dos bens ou serviços, o direito a deduzir o imposto (Art. 167.º da Directiva IVA).
É certo que esta explicação é, forçosamente, simplista mas permite demonstrar o cerne da questão: (i) a Requerente, enquanto prestadora de serviços de telecomunicação, prestou serviços, emitiu faturas e entregou o IVA ao Estado e (ii) os adquirentes, porém, não efetuaram o pagamento do respetivo preço mas - assumimos - efetuaram a dedução do respetivo e (iii) num momento posterior os adquirentes entraram em dissolução.
Vejamos, pois, quais as soluções do legislador para estas situações patológicas.
-
Do regime de regularização do IVA aplicável
Em primeiro lugar, importa salientar que, conforme referido - e bem - na Decisão Arbitral, estamos perante créditos qualificados pela Requerente como incobráveis e vencidos até 31/12/2012. Note-se, ainda, que a Requerente qualifica os créditos como incobráveis pelo facto dos seus clientes - pessoas colectivas residentes em Portugal e, como tal, sujeitos passivos de IVA - encontrarem-se dissolvidas.
Assim, de acordo com a disposição transitória do n.º 6 do artigo 198.º da Lei 66-B/2012 de 31 de Dezembro, bem como das orientações genéricas da própria AT, em particular, o Ofício Circulado n.º 30161/2014, de 08/07/2014, “o disposto nos n.os 7 a 12, 16 e 17 do artigo 78.º do Código do IVA aplica-se, apenas, aos créditos vencidos antes de 1 de janeiro de 2013; o disposto nos artigos 78.º-A a 78.º-D do Código do IVA aplica-se a créditos vencidos após a entrada em vigor da presente lei, ou seja, aos créditos vencidos a partir de 1 de janeiro de 2013”.
Ou seja, in casu, seria aplicável o regime dos créditos incobráveis previsto nos n.os 7 a 12, 16 e 17 do artigo 78.º do Código do IVA.
Vejamos,
-
Da regularização do IVA aplicável a créditos vencidos antes de 1 de janeiro de 2013
De acordo com este regime, nomeadamente os n.os 7 e 8 do referido artigo 78.º do Código vo IVA, são considerados incobráveis os créditos:
-
em processo de execução, após o registo a que se refere a alínea b) do n.º 2 do artigo 717.º do Código do Processo Civil;
-
em processo de insolvência, quando a mesma for decretada de caráter limitado, após o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos prevista no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas ou, quando exista, a homologação do plano objeto da deliberação prevista no artigo 156.º do mesmo Código;
-
em processo especial de revitalização, após homologação do plano de recuperação pelo juiz, previsto no artigo 17.º-F do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
-
nos termos previstos no Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE), após celebração do acordo previsto no artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 178/2012, de 3 de agosto.
Ora, é, pois, claro que a situação em que os adquirentes se encontram dissolvidos ou em que, conforme se decidiu na presente decisão arbitral, a prescrição dos créditos, não foram consideradas pelo legislador. Aliás, a AT escuda-se - erradamente, na minha opinião - no caráter taxativo do artigo 78.º do CIVA para negar à Requerente a possibilidade de regularização do IVA respeitante a créditos incobráveis[4].
Adicionalmente, o CIVA, nos termos do seu n.º 8 do artigo 78.º, permite, ainda, a regularização do IVA nas seguintes situações:
-
O valor do crédito não seja superior a (euro) 750, IVA incluído, a mora do pagamento se prolongue para além de seis meses e o devedor seja particular ou sujeito passivo que realize exclusivamente operações isentas que não confiram direito a dedução;
-
Os créditos sejam superiores a (euro) 750 e inferiores a (euro) 8000, IVA incluído, quando o devedor, sendo um particular ou um sujeito passivo que realize exclusivamente operações isentas que não conferem o direito à dedução, conste no registo informático de execuções como executado contra quem foi movido processo de execução anterior entretanto suspenso ou extinto por não terem sido encontrados bens penhoráveis;
-
Os créditos sejam superiores a (euro) 750 e inferiores a (euro) 8000, IVA incluído, tenha havido aposição de fórmula executória em processo de injunção ou reconhecimento em acção de condenação e o devedor seja particular ou sujeito passivo que realize exclusivamente operações isentas que não confiram direito a dedução;
-
Os créditos sejam inferiores a (euro) 6000, IVA incluído, deles sendo devedor sujeito passivo com direito à dedução e tenham sido reconhecidos em acção de condenação ou reclamados em processo de execução e o devedor tenha sido citado editalmente.
-
Os créditos sejam superiores a (euro) 750 e inferiores a (euro) 8000, IVA incluído, quando o devedor, sendo um particular ou um sujeito passivo que realize exclusivamente operações isentas que não conferem direito a dedução, conste da lista de acesso público de execuções extintas com pagamento parcial ou por não terem sido encontrados bens penhoráveis no momento da dedução.
Note-se que, in casu, estão em causa adquirentes pessoas coletivas (e, como tal, certamente, sujeitos passivos de IVA). Apesar de não referido pela Requerente temos, naturalmente, de assumir que os mesmos tinham direito à dedução do IVA. Adicionalmente, os valores de IVA “incobráveis” mais reduzidos são de 0,01€ (e.g. pág. 50, 66, 67, 72, 94, 260, 338, 340, 362, 374, 411, 432, 448, 457, 487, 498, 499 e 514 do Doc. 1 junto ao PPA) enquanto o valor de IVA mais elevado ascende a €1.594,18 (pág. 24 do Doc. 1 junto ao PPA).
Perante as normas supras referidas e atendendo à natureza dos adquirentes, valores em causa e não demonstração de processos judiciais contra os adquirentes somos forçados a concluir que, à luz do Código do IVA, não podia a Requerente deduzir o IVA sobre os créditos em crise.
Sucede, porém, que, conforme iremos explicar abaixo, in casu, deveria ser aplicável o artigo 90.º da Diretiva IVA.
-
Do artigo 90.º da Diretiva IVA e da violação do Direito da União Europeia
O artigo 90.º da Diretiva IVA estabelece o seguinte:
“1. Em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efectuada a operação, o valor tributável é reduzido em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados-Membros.
2. Em caso de não pagamento total ou parcial, os Estados-Membros podem derrogar o disposto no n.º 1”
A título preliminar refira-se que o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) já confirmou que o n.º 1 do artigo 90.º da Diretiva IVA tem efeito directo, i.e. conforme referido no Acórdão Almos (Proc. C‑337/13):
“34 (...) [o art. 90.º, n.º 1 da Diretiva IVA]” reúne, por conseguinte, as condições para produzir efeito direto (v., por analogia, acórdão Association de médiation sociale, EU:C:2014:2, n.° 33).
35 Consequentemente, uma vez que os sujeitos passivos podem invocar o artigo 90.°, n.° 1, da diretiva IVA contra o Estado perante os tribunais nacionais para obter a redução do seu valor tributável do IVA, é irrelevante a questão colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio no sentido de saber se o Estado‑Membro em causa estaria obrigado a reparar o prejuízo sofrido pelos interessados pelo facto de, não tendo transposto corretamente a referida diretiva, os ter privado do direito a redução”.
Feita esta nota importa, também, referir que o TJUE, em diversos Acórdãos, já clarificou o alcance desta norma: perante uma situação de “não pagamento” definitivo - como sucede in casu[5] - o artigo 90.º, n.º 1 da Directiva IVA permite a redução do valor tributável. Veja-se, entre outros, o Acórdão Elvospol do TJUE (Proc. C-398/20):
“24 A este respeito, o artigo 90.º, n.º 1, da Diretiva IVA prevê que, em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, o valor tributável é reduzido em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados‑Membros.
25 Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, esta disposição obriga os Estados‑Membros a reduzirem o valor tributável do IVA e, portanto, o montante do IVA devido pelo sujeito passivo sempre que, posteriormente à celebração de uma transação, o sujeito passivo não receba uma parte ou a totalidade da contrapartida. Esta disposição constitui a expressão de um princípio fundamental da Diretiva IVA, nos termos do qual o valor tributável é constituído pela contraprestação efetivamente recebida e que tem por corolário que a Administração Fiscal não pode cobrar a título de IVA um montante superior ao montante que o sujeito passivo recebeu [Acórdão de 15 de outubro de 2020, E. (IVA — Redução do valor tributável), C‑335/19, EU:C:2020:829, n.o 21 e jurisprudência referida].
26 O artigo 90.º, n.º 2, da Diretiva IVA, por seu lado, prevê que, em caso de não pagamento total ou parcial da contrapartida, os Estados‑Membros podem derrogar a obrigação de reduzir o valor tributável do IVA previsto no artigo 90.º, n.º 1, desta diretiva.
27 O Tribunal de Justiça esclareceu que esta faculdade de derrogação, estritamente limitada aos casos de não pagamento total ou parcial, se baseia na ideia de que o não pagamento da contrapartida pode, em determinadas circunstâncias e em virtude da situação jurídica existente no Estado‑Membro em causa, ser difícil de verificar ou ser meramente transitório (Acórdão de 11 de junho de 2020, SCT, C‑146/19, EU:C:2020:464, n.o 23 e jurisprudência referida).
28 Daqui resulta que o exercício dessa faculdade de derrogação deve ser justificado a fim de que as medidas adotadas pelos Estados‑Membros para lhe dar execução não perturbem o objetivo de harmonização fiscal prosseguido pela Diretiva 2006/112, e que esta não pode permitir a estes últimos excluir pura e simplesmente a redução do valor tributável do IVA em caso de não pagamento [Acórdão de 15 de outubro de 2020, E. (IVA — Redução do valor tributável), C‑335/19, EU:C:2020:829, n.º 29 e jurisprudência referida].
29 A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que a referida faculdade de derrogação visa apenas permitir aos Estados‑Membros combater a incerteza ligada à cobrança dos montantes devidos (Acórdão de 11 de junho de 2020, SCT, C‑146/19, EU:C:2020:464, n.º 24 e jurisprudência referida).
30 Esta incerteza quanto à cobrança dos montantes devidos pode ser tida em conta, em conformidade com o princípio da neutralidade fiscal, privando o sujeito passivo do seu direito de reduzir o valor tributável enquanto o crédito não for definitivamente incobrável. Mas pode igualmente ter‑se em conta se se conceder a redução quando o sujeito passivo demonstrar a probabilidade razoável de que a dívida não será paga, sem prejuízo da possibilidade de o valor tributável ser reavaliado para cima, no caso de o pagamento vir a ser feito entretanto (v., neste sentido, Acórdão de 3 de julho de 2019, UniCredit Leasing, C‑242/18, EU:C:2019:558, n.o 62 e jurisprudência referida).
31 Em contrapartida, admitir a possibilidade de os Estados‑Membros excluírem qualquer redução do valor tributável do IVA seria contrário ao princípio da neutralidade do IVA, do qual resulta, designadamente, que, na sua qualidade de cobrador de impostos por conta do Estado, o empresário deve ficar totalmente exonerado do peso do imposto devido ou pago no âmbito das suas atividades económicas sujeitas ao IVA (v., neste sentido, Acórdão de 11 de junho de 2020, SCT, C‑146/19, EU:C:2020:464, n.o 25 e jurisprudência referida).
32 A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que uma situação caracterizada pela redução definitiva das obrigações do devedor para com os seus credores não pode ser qualificada de «não pagamento», na aceção do artigo 90.º, n.º 2, da Diretiva IVA. Assim, nesse caso, os Estados‑Membros devem permitir a redução do valor tributável do IVA se o sujeito passivo provar que o crédito que detém sobre o seu devedor é definitivamente incobrável (v., neste sentido, Acórdão de 11 de junho de 2020, SCT, C‑146/19, EU:C:2020:464, n.os 26 e 27 e jurisprudência referida)”.
Ou seja, extrai-se desta jurisprudência do TJUE que:
(i) os Estados-Membros encontram-se obrigados, em virtude do n.º 1 do artigo 90.º da Diretiva IVA, a permitir a redução do valor tributável (i.e. a dedução do IVA) quando o “não pagamento” seja definitivo[6]. Assim, conforme resulta claro no Acórdão SCT (Proc. C-146/19): “27. (...) os Estados‑Membros devem permitir a redução do valor tributável do IVA se o sujeito passivo provar que o crédito que detém sobre o seu devedor é definitivamente incobrável (Despacho de 24 de outubro de 2019, Porr Építési Kft., C‑292/19, não publicado, EU:C:2019:901, n.º 29)”
(ii) atendendo a que, em determinadas circunstâncias o “não pagamento”, por um lado, não é ainda definitivo ou, por outro lado, pode ser “difícil de verificar ou ser meramente transitório”, os Estados-Membros podem usar a faculdade de derrogação prevista no n.º 2 do artigo 90.º da Diretiva IVA[7].
Note-se, porém, que, “(...) uma situação caracterizada pela redução definitiva das obrigações do devedor para com os seus credores não devia ser qualificada de «não pagamento», no sentido do artigo 90.º, n.º 2, da Diretiva IVA (Despacho de 24 de outubro de 2019, Porr Építési Kft., C‑292/19, não publicado, EU:C:2019:901, n.º 25 e jurisprudência referida)” [8].
Assim, havendo um “não pagamento” definitivo, para efeitos da aplicação do n.º 1 do artigo 90.º da Diretiva IVA, as formalidades exigidas pelos Estados-Membros para a regularização do IVA estão limitadas “(...) às que são necessárias para provar que, depois de efetuada uma transação, não receberão, definitivamente, uma parte ou a totalidade da contrapartida” [9].
Significa isto que, (i) contrariamente ao invocado pela AT, na sua decisão de indeferimento, o elenco dos créditos considerados incobráveis constante do CIVA não é taxativo[10] e (ii) quer a dissolução dos adquirentes dos serviços prestados pela Requerente, quer a prescrição das dívidas - conforme referido na Decisão Arbitral - por si só permitiam demonstrar o caráter definitivo dos “não pagamentos” (i.e. a sua qualificação como créditos incobráveis) e, como tal, atendendo ao efeito direto do n.º 1 do artigo 90.º da Diretiva IVA, a regularização do IVA poderia, em teoria, ser possível.
De facto, as pessoas coletivas extinguem-se com o registo do encerramento da liquidação[11] pelo que, manifestamente, existe uma probabilidade quase certa de que os devedores não irão pagar os seus créditos.
-
Do prazo para a regularização do IVA
Conforme entendimento preconizado pelo Supremo Tribunal Administrativo (“STA”), Acórdão proferido no âmbito do Proc. n.º 0762/16.3BELRA (de 08/02/2023), a regularização do IVA (i.e. a dedução do IVA respeitante a créditos qualificados como incobráveis) “terá de ocorrer antes de transcorrido o prazo de 4 anos, previsto no art. 98.º, n.º 2 [do Código do IVA]”.
Nos termos do artigo 98.º, n.º 2 do Código do IVA, o referido direito a deduzir o IVA “pode ser exercido até ao decurso de quatro anos após o nascimento do direito à dedução”.
Assim, importa analisar quando é que, in casu, “nasceu” o direito à dedução da Requerente.
Na minha opinião, apenas se pode considerar que esse direito nasceu com o registo da dissolução e encerramento da liquidação[12], pois deixa de haver quaisquer dúvidas quanto ao “não pagamento” definitivo do crédito.
-
Dos limites para a regularização do IVA
Apesar das datas de registo da dissolução e encerramento da liquidação ocorrerem entre 01/09/2015 e 17/03/2021, os créditos venceram entre 15-03-1999 e 31-12-2012.
Em primeiro lugar, conforme se decidiu no Acórdão FGSZ (Proc. C-507/20), “23. (...) resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a possibilidade de apresentar um pedido de reembolso de IVA sem limite de tempo iria contra o princípio da segurança jurídica (...)”.
Em segundo lugar, e tendo por referência o Acórdão Consortium Remi Group (C-314/22), “57 (...) o artigo 90.º da Diretiva IVA, lido em conjugação com os princípios da neutralidade fiscal, da proporcionalidade e da efetividade, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro que prevê um prazo de caducidade para a apresentação de um pedido de reembolso do IVA resultante de uma redução do valor tributável do IVA em caso de não pagamento total ou parcial, cujo termo tem por consequência penalizar o sujeito passivo insuficientemente diligente, na condição de esse prazo só começar a correr a partir da data em que esse sujeito passivo pôde, sem demonstrar falta de diligência, invocar o seu direito à redução. Na falta de disposições nacionais relativas às modalidades de exercício desse direito, o início desse prazo de caducidade deve ser identificável pelo sujeito passivo com uma probabilidade razoável”.
Ora, recorde-se que, como referido acima, o regime das regularizações por créditos incobráveis, previsto no artigo 78.º, n.º 7 e ss. do CIVA, viola o artigo 90.º, n.º 1 da Diretiva IVA. Por outro lado, a forma como o regime do CIVA foi construído assenta num certo nível de intervenção Estatal na confirmação da incobrabilidade (i.e. judicial, nomeadamente, ação executiva ou condenatória, insolvência, etc[13]). As pessoas coletivas extinguem-se com o registo do encerramento da liquidação[14] e essa extinção é, naturalmente, reconhecida pelo Estado através do registo da dissolução e encerramento da liquidação. Pelo que, identificar e contar o prazo de 4 anos, previsto no n.º 2 do artigo 98.º do CIVA, a partir da data do registo da dissolução e encerramento da liquidação é - para utilizar a expressão do TJUE no Ac. Consortium Remi Group - razoável perante a forma como o regime do CIVA foi delineado pelo legislador.
Ademais, o facto do regime do CIVA violar o artigo 90.º da Diretiva IVA parece-me ilibar o Requerente de quaisquer eventuais alegações de falta de diligência na cobrança, isto porque o legislador Português assimila a diligência na cobrança com a intervenção judicial com vista à cobrança das dívidas. Recorde-se que, in casu, os valores em dívida são, manifestamente, reduzidos (inclusive, recorde-se, vários valores de 0,01€), pelo que, qualquer intervenção judicial torna, na prática, (...) excessivamente díficil o exercício do direito à dedução do IVA[15] ou, usando as palavras da Advogada-Geral Juliane Kokott, “antieconómico”:
“73. A questão de saber se pode ser exigido ao sujeito passivo que inicie um processo judicial de execução depende em especial dos custos associados ao mesmo. A obrigação de cobrança judicial de créditos eventualmente de escasso valor por conta do Estado associada a despesas significativas por princípio não é compatível nem com o princípio da neutralidade nem com o princípio da proporcionalidade. Tal como a Comissão refere corretamente, esta situação diz sobretudo (mas não só) respeito a créditos de valor menos elevado. Neste caso, a possibilidade de cessão destes créditos ao Estado seria o meio mais proporcionado.
74. Pelo contrário, o recurso a um processo de execução simplificado e com custos reduzidos sob forma de um procedimento de injunção de pagamento antes da regularização do valor tributável parece ser, em geral, proporcionado. Isto pelo menos em princípio, se não existirem indícios de que esse processo será infrutífero ou antieconómico. Mas, tendo em conta a sua duração e o facto de o sujeito passivo ter pouca ou nenhuma influência sobre o mesmo, a exigência de conclusão de um processo falimentar é desproporcionada.”
Recorde-se que, in casu, valores de IVA “incobráveis” mais reduzidos são de 0,01€ e o mais elevado ascende a €1.594,18, pelo que o recurso à via judicial, conforme exigido, na prática, pelo artigo 78.º, n .º 7 e 8 do CIVA, é “antieconómico” e desproporcional. De facto, bastaria ao legislador permitir, em tempo útil, a regularização do IVA - e não exclusivamente dependente de um reconhecimento Estatal / Judicial - para garantir a neutralidade do IVA, i.e. o correspondente ajustamento do IVA por parte do devedor/adquirente dos serviços.
Note-se, aliás, que a falta de regularização do IVA (eventualmente deduzido) pelos adquirentes, não pode, in casu, ser invocado para negar a regularização do IVA pretendida pela Requerente. Por um lado, sempre se dirá que a impossibilidade deve-se ao regime Kafkiano criado pelo legislador no artigo 78.º do CIVA e, por outro lado, o TJUE, no Ac. A—PACK CZ s. r. o. (C-127/18) foi, claro, ao concluir que:
“26. Do mesmo modo, embora o artigo 273.º da Diretiva 2006/112, igualmente invocado pela República Checa para fundamentar a sua interpretação, permita aos Estados‑Membros prever as obrigações que considerem necessárias para garantir a cobrança exata do IVA e para evitar a fraude, decorre de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que essas medidas só podem, em princípio, derrogar as regras relativas ao valor tributável dentro dos limites estritamente necessários à prossecução desse objetivo específico, devendo afetar o menos possível os objetivos e os princípios da Diretiva IVA e não podendo, por isso, ser utilizadas de forma a pôr em causa a neutralidade do IVA (v., neste sentido, Acórdão de 6 de dezembro de 2018, Tratave, C‑672/17, EU:C:2018:989, n.o 33 e jurisprudência referida), que constitui um princípio fundamental do sistema comum do IVA instituído pela legislação da União na matéria.
27. No caso em apreço, não resulta dos autos remetidos ao Tribunal de Justiça que autorizar um sujeito passivo credor, como a A‑PACK CZ, a reduzir o seu valor tributável em matéria de IVA quando confrontado com uma situação de não pagamento do seu crédito por um devedor insolvente e que entretanto deixou de ser sujeito passivo representaria um risco particular de fraude ou de evasão fiscal. Além disso, o facto de excluir, nesse caso, qualquer possibilidade de redução deste valor tributável, e de fazer recair sobre esse sujeito passivo credor o encargo de um montante de IVA que não teria recebido no âmbito das suas atividades económicas, ultrapassa, em qualquer caso, os limites estritamente necessários para atingir os objetivos previstos no artigo 273.º da Diretiva 2006/112.
28. Tendo em conta o que precede, há que responder às questões submetidas que o artigo 90.º da Diretiva 2006/112 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que prevê que o sujeito passivo não pode proceder à retificação do valor tributável do IVA em caso de não pagamento total ou parcial, pelo seu devedor, de um montante devido a título de uma operação sujeita a este imposto, se o referido devedor já não for sujeito passivo para efeitos do IVA”.
-
Conclusão
Em suma, perante o facto do regime do CIVA, relativo à regularização do IVA sobre créditos incobráveis, violar o artigo 90.º, n.º1 da Diretiva IVA e, atendendo efeito direto desta norma, teria julgado o pedido de anulação das autoliquidações procedente ou, havendo dúvidas, procedido ao reenvio prejudicial para o TJUE.
Gonçalo Marquês de Menezes Estanque (árbitro adjunto)
[1] Por facilidade de leitura deste acórdão reproduz-se aqui o artigo 90.º da Diretiva identificada, acessível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:32006L0112:
Artigo 90.º
1. Em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efectuada a operação, o valor tributável é reduzido em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados-Membros.
2. Em caso de não pagamento total ou parcial, os Estados-Membros podem derrogar o disposto no n.º 1.
[2] Sigla de “Pedido de Pronúncia Arbitral”
[3] Erradamente, é certo, pois, a AT deveria ter-se pronunciado integralmente sobre o mérito do pedido.
[4] Refere a AT na sua decisão de indeferimento que (pág. 11 e 12) “(...) muito embora a dissolução se traduza num indício da incobrabilidade do crédito, não o deixa de ser, sendo certo que quer o CIVA, quer a própria legislação comunitária não assenta em indícios, mas na prova de que o pagamento de uma contraprestação não foi definitivamente realizado. Razão pela qual, o legislador não terá incluído esta como uma das situações que origina a possibilidade de regularização do respetivo IVA. (...) Verifica-se que as alíneas do n.º 7 do artigo 78.º e do n.º 4 do artigo 78.º-A do CIVA, devem ser entendidas no sentido de que, fora das situações nelas elencadas, inexiste suporte legal para a dedução em causa por parte do sujeito passivo credor”.
[5] Quer se entenda que o crédito é incobrável por se encontrar prescrito à luz do Direito Civil, conforme se refere na Decisão, ou pelo facto dos credores se encontrarem dissolvidos.
[6] Ou seja, quando existe uma “probabilidade razoável de que a dívida não será paga” (cfr. par. 64 do Ac. Unicredit Leasing, Proc. C-242/18 do TJUE).
[7] Vide, entre outros, o Acórdão Lombard (Proc. C-404/16): “28. Tal faculdade de derrogação, limitada de forma estrita ao não pagamento total ou parcial, baseia‑se na ideia de que o não pagamento da contrapartida pode, em determinadas circunstâncias e em virtude da situação jurídica existente no Estado‑Membro em causa, ser difícil de verificar ou ser meramente transitório (v., por analogia, acórdão de 3 de julho de 1997, Goldsmiths, C‑330/95, EU:C:1997:339, n.º 18). 29. (...) Se o não pagamento total ou parcial do preço de compra ocorrer sem que tenha havido resolução ou anulação do contrato, o comprador permanece responsável pelo pagamento do preço acordado e o vendedor, apesar de já não ser proprietário do bem, ainda dispõe, em princípio, do seu direito de crédito, que poderá ser exercido nos tribunais. No entanto, uma vez que não se pode excluir que esse crédito se torne efetivamente incobrável, o legislador da União decidiu deixar a cada Estado‑Membro a escolha de determinar se o não pagamento do preço de compra dá direito à redução correspondente do valor tributável nas condições fixadas pelo Estado‑Membro, ou se, nesse caso, não é admitida qualquer redução (acórdão de 15 de maio de 2014, Almos Agrárkülkereskedelmi, C‑337/13, EU:C:2014:328, n.o 25)”.
[8] Par. 26 do Acórdão SCT (Proc. C-146/19) do TJUE.
[9] Par. 39 do Acórdão Almos (Proc. C-337/13).
[10] No mesmo sentido, a Decisão Arbitral proferida no Proc. 54/2023-T do CAAD.
[11] Vide, entre outros, o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, Proc. n.º 702/05.5TBPMS.C1, de 07/09/2020.
[13] É certo que a alínea d) do n.º 7 do artigo 78.º do CIVA, também, refere o SIREVE, no entanto, por um lado, este regime já foi revogado pela Lei n.º 8/2018, de 2 de março e, por outro lado, o mesmo também exigia uma intervenção Estatal na confirmação da incobrabilidade, pois o SIREVE era um procedimento “gerido” pelo IAPMEI, IP.
[14] Vide, entre outros, o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, Proc. n.º 702/05.5TBPMS.C1, de 07/09/2020.
[15] vide, Ac. Consortium Remi Group (Proc. C-314/22), par. 47.