Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 535/2023-T
Data da decisão: 2024-07-22   Outros 
Valor do pedido: € 1.323,83
Tema: Contribuição sobre o Serviço Rodoviário (CSR). Direito da União Europeia. Legitimidade dos repercutidos.
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Sumário:

I – As entidades utilizadoras da rede rodoviária nacional que suportam o encargo tributário da Contribuição de Serviço Rodoviário por efeito da repercussão, têm legitimidade processual para impugnar judicialmente os atos de liquidação do imposto que incidam sobre combustíveis que tenham adquirido, como meio de reagirem contra a ilegalidade da repercussão;

 

II - A Contribuição de Serviço Rodoviário, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, não prossegue “motivos específicos”, na aceção do artigo l.°, n.° 2, da Diretiva 2008/118/CE, na medida em que as suas receitas têm essencialmente como fim assegurar o financiamento da rede rodoviária nacional, não podendo considerar-se como suficiente, para estabelecer uma relação direta entre a utilização das receitas e um “motivo específico”, os objetivos genéricos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental que se encontram atribuídos à concessionária;

 

III – O ónus da prova da efetiva repercussão da contribuição de serviço rodoviário incumbe às entidades utilizadoras da rede rodoviária nacional.

 

IV – Uma listagem da Requerente – com menção aos fornecedores, quantidade de litros combustível adquiridos, data de aquisição do combustível, n.º da fatura, valor da CSR por litro e valor de CSR –, desacompanhada de qualquer suporte documental externo, não permite provar se, e em que medida, tal imposto foi repercutido.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório

 

1. A..., S.A., titular no Número de Identificação de Pessoa Coletiva   ..., com sede em ...,  ..., vem, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante, abreviadamente designado por RJAT) e nos artigos 1.º, alínea b) e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, apresentar pedido de pronúncia arbitral  com vista à declaração da “ilegalidade dos atos de liquidação de Contribuição de Serviço Rodoviário” (CSR), pedindo a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no reembolso do montante de € 1 323,83, acrescido de juros indemnizatórios.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 20 de julho de 2023.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou o signatário desta decisão como árbitro do Tribunal Arbitral Singular, que comunicou a sua aceitação no prazo legal.

Notificadas dessa designação, as partes não manifestaram vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral foi constituído no dia 26 de setembro de 2023.

No dia 5 de outubro, foi prolatado o despacho determinado pelo artigo 17.º, n.º 1, do RJAT, na redação dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.

No dia 6 de novembro de 2023, a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) apresentou resposta, suscitando exceções obstativas ao conhecimento do pedido.

Em 25 de novembro de 2023, foi proferido despacho para resposta às exceções.

A Requerente apresentou um requerimento de “resposta às exceções”, em 22 de janeiro de 2024.

No dia 25 de março de 2024, foi proferido despacho a determinar a dispensa da reunião referida no artigo 18.º do RJAT, e a apresentação de alegações e designado o dia de prolação do acórdão arbitral.

            O prazo para a prolação da decisão arbitral foi sucessivamente prorrogado, nos termos e com os fundamentos previstos no artigo 21.º do RJAT.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, ex vi o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT.

 

3. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, e estão devidamente representadas, como determinado pelos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, não enfermando o processo de quaisquer nulidades.

           

II. Saneamento

4. Exceções invocadas

4.1. Na sua Resposta, a Requerida começa por suscitar a questão da “Ineptidão da Petição Inicial” por “falta de objeto”, considerando designadamente que não foram identificados os atos tributários que constituem objeto do pedido de pronúncia arbitral, e que “não é possível à AT suprir tal omissão, dada a impossibilidade absoluta em estabelecer qualquer correlação/correspondência entre as faturas apresentadas pela Requerente e os atos de liquidação que estiveram subjacentes à introdução no consumo dos produtos que vieram a ser adquiridos pela Requerida”.

A ineptidão da petição inicial constitui uma nulidade processual, de conhecimento oficioso, que determina a absolvição do réu da instância (artigos 186.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. b), 577.º, alínea b), 576.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e 98.º, n.º 1, alínea a) do CPPT)

Nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, norma subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT,  a petição será inepta quando: [a)] faltar ou for ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; [b)] o pedido estiver em contradição com a causa de pedir; ou, finalmente, quando [c)] se cumulem pedidos ou causas de pedir substancialmente incompatíveis. Mais se refere, no n.º 3, do referido artigo 186.º do CPC, que quando arguida “a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”.

Como consta do pedido de pronúncia arbitral, a Requerente pretende controverter “os atos de liquidação da Contribuição de Serviço Rodoviário, refletidos nas faturas emitidas pelas sociedades elencadas no documento n.º 2, referentes a gasóleo e gasolina, adquirido pela Requerente, no período compreendido entre 08.01.2018 e 06.12.2022, no montante total de € 1.323,83”. Trata-se de um pedido que se encontra formulado em termos claros e percetíveis, sendo perfeitamente inteligível a pretensão da Requerente e, bem assim, a causa de pedir que aqui assenta num “facto ou complexo de factos aptos para pôr em movimento uma norma de lei, um facto ou complexo de factos idóneos para produzir efeitos jurídicos”, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume V, pp. 56 e ss.. Do mesmo passo, não se verifica qualquer contradição entre o pedido e a causa de pedir, nem se cumulam pedidos ou causas de pedir incompatíveis, o que, ademais, nem vem posto em causa pela Requerida.

Relativamente à alegação de que não se encontram concretamente identificados os atos de liquidação em crise, cumpre relevar que a Requerente não é sujeito passivo do imposto, não tendo conhecimento das liquidações que a AT promoveu junto das entidades a quem foi liquidada a Contribuição de Serviço Rodoviário. A este propósito, não pode obnubilar-se que o ónus de identificação e comprovação dos atos de liquidação tem de ter forçosamente em conta o facto de a Requerente não poder ser considerada sujeito passivo da relação jurídico-tributária, mas de apenas lhe ser atribuída legitimidade para promover a impugnação dos atos tributários que a atinjam por via da repercussão, de modo que, a opção do legislador em conferir legitimidade impugnatória a quem suporte o encargo do imposto por repercussão, implica necessariamente que a identificação dos atos de liquidação se faça por interposição dos atos que titulam a repercussão do imposto, sob pena de impossibilidade de reação.

Acompanha-se, assim, o entendimento vertido, entre outros, no Acórdão tirado no Processo n.º 1049/2023, onde se considerou inexistir ineptidão da petição inicial quando os atos de liquidação sejam “identificados e documentados pelo único meio possível qual seja a emissão de faturas pelo fornecedor do combustível” e no Acórdão prolatado no Processo n.º 982/2023, também subscrito pelo ora relator, onde se deixou consignado que a “exigência de identificação das liquidações, numa situação deste tipo, em que o repercutido não tem possibilidade de as identificar e a identificação não é imprescindível para apurar a legalidade da cobrança de CSR ínsita nas faturas, seria incompaginável com o princípio constitucional da proporcionalidade e o direito à tutela judicial efetiva, garantido pelos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP, pois inviabilizaria a possibilidade prática de a Requerente impugnar contenciosamente actos que lhe aplicam tributação e lesam a sua esfera jurídica”.

Questão diferente, mas que apenas interfere com o conhecimento do mérito do pedido, respeita à prova da repercussão e ao facto de as fornecedoras de combustível que emitiram as faturas identificadas pela Requerente serem, ou não, sujeitos passivos do imposto, e, não o sendo, se fica demonstrada a cadeia de repercussão que conduz a quem suporta efetivamente o valor do imposto.

Pelo exposto, improcede a exceção invocada de ineptidão da petição inicial por falta de objeto.

 

4.2. Vem também alegado sob a epígrafe de ineptidão da petição inicial, a questão da tempestividade da revisão oficiosa e do pedido de pronúncia arbitral, considerando a Requerida que a falta de identificação dos atos de liquidação tem como efeito a impossibilidade de se aferir da tempestividade do pedido de revisão oficiosa. A este propósito, defende também a AT que não será aplicável o prazo de quatro anos previsto no artigo 78.º, n.º 1, 2.ª parte, da LGT, por não existir erro imputável aos serviços e que, na data em que foi apresentado o pedido de revisão oficiosa, “há muito que se encontrava ultrapassado o prazo da reclamação graciosa (de 120 dias a contar do termo do prazo do pagamento do ISP/CSR)”.

Em bom rigor, o que está aqui em causa não é a ineptidão da petição inicial, mas a caducidade do direito de ação.

Ora, relativamente à tempestividade do pedido de revisão oficiosa, adota-se aqui a jurisprudência que vem sendo invariavelmente seguida pelo Supremo Tribunal Administrativo no sentido de que, “havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte. Por outro lado, esta imputabilidade aos serviços é independente da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efectuar liquidação afectada por erro» já que «a administração tributária está genericamente obrigada a actuar em conformidade com a lei (arts. 266.°, n.° 1 da CRP e 55.° da LGT), pelo que, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços” (Acórdão de 12-12-2001, processo n.º 026.233, disponível em www.dgsi.pt). Por outro lado, é também entendimento pacífico que “a revisão do acto tributário com fundamento em erro imputável aos serviços deve ser efectuada pela Administração tributária por sua própria iniciativa, mas, como se conclui do n.º 7 do art. 78º da L.G.T., o contribuinte pode pedir que seja cumprido esse dever, dentro dos limites temporais em que Administração tributária o pode exercer” - cf. Acórdão do STA de 9-11-2022, Processo 087/22.5BEAVR.

Como corolário da jurisprudência referida, tem-se por seguro que (i) o pedido de revisão oficiosa pode ter lugar dentro do prazo de quatro anos, com fundamento em erro imputável aos serviços; (ii) havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito europeu é administração tributária que é imputável esse erro quando a liquidação é efetuada por esta; (iii) o impulso para a revisão oficiosa com esse fundamento pode resultar de requerimento do sujeito passivo ou de quem tenha legitimidade para tal.

Por outro lado, contrariamente ao defendido pela Requerida, o regime especial de revisão estabelecido no artigo 15.º do CIEC, não é aplicável à CSR, dado que o tributo é objeto de uma regulamentação própria, constante de um diploma autónomo, e a remissão para o CIEC (a par da LGT e do CPPT) refere-se apenas “à sua liquidação, cobrança e pagamento”, não já ao “reembolso” ou sequer às garantias aplicáveis. É certo que o Capítulo II do CIEC abarca as regras de “liquidação, pagamento e reembolso do imposto”. Porém, não existe nenhuma remissão em bloco para o regime legal previsto nesse capítulo; como também não existe qualquer remissão para o regime de reembolso constante dos artigos 15.º a 20.º dos CIEC, sendo que o próprio CIEC na epígrafe do capítulo e no seu regime jurídico distingue tais matérias.

Perante o exposto, tendo em conta que a Requerente apresentou, em 30 de dezembro de 2022, pedido de revisão oficiosa onde requereu a anulação dos atos de liquidação e repercussão de CSR, respeitantes ao período decorrido entre 8 de janeiro de 2018 e 6 de dezembro de 2022, e que o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado a 20 de julho de 2023, conclui-se que o mesmo foi apresentado dentro dos 90 dias, contados a partir da formação de indeferimento tácito da revisão oficiosa tempestivamente apresentada (artigo 57.º, n.º 1 e 5 da LGT e artigos 10.º, n.º 1, al. a), do RJAT e 102.º, n.ºs 1 e 2, do CPPT).

 

4.3. A AT alegou ainda que a Requerente, não sendo sujeito passivo do imposto, carece de legitimidade “para requerer a anulação das liquidações de CSR e o consequente reembolso dos montantes de CSR que alega ter suportado”.

Vejamos.

O regime da CSR, na versão anterior à Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, foi criado tendo em vista a repercussão nos consumidores das quantias cobradas a esse título pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos.

Com efeito, da exposição de motivos constante da Proposta de Lei n.º 153/X, constam as seguintes indicações: “[c]om a presente proposta de lei procede-se à criação de uma Contribuição de Serviço Rodoviário que visa remunerar a EP – Estradas de Portugal, E.P.E., pela utilização que é feita da rede rodoviária nacional, tal como ela é verificada pelo consumo da gasolina e do gasóleo como combustíveis rodoviários. Por meio da Contribuição de Serviço Rodoviário pretende-se, portanto, repercutir nos respetivos utilizadores os custos inerentes à gestão da rede rodoviária nacional, tendo em conta o percurso que estes realizam consumindo uma unidade de medida de combustível”. No parecer da Comissão de Orçamento e Finanças sobre tal Proposta de Lei, concretizou-se que «“a Contribuição de Serviço Rodoviário constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo de combustíveis”, que será liquidada e cobrada nos termos aplicáveis ao ISP, o que significa que será paga no momento do abastecimento de combustível» [DAR II série A, n.º 106, 2007.07.07, da 2.ª SL da X Leg (pág. 15-18)] e nas conclusões da Comissão de Obras Públicas, Transportes e Comunicações, refere-se que a  Proposta  de  Lei  n.º  153/X  propõe  a  criação  da  contribuição  de  serviço  rodoviário  com  o  objetivo  de  «remunerar a EP – Estradas de Portugal, EPE, pela utilização que é feita da rede rodoviária nacional, tal como ela é verificada pelo consumo da gasolina e do gasóleo como combustíveis rodoviários», fazendo desta forma «repercutir  nos  respetivos  utilizadores  os  custos  inerentes  à  gestão  da  rede  rodoviária  nacional,  tendo  em atenção o percurso que estes realizam consumindo uma unidade de medida de combustível» [DAR II série A, n.º 105, 2007.07.05, da 2.ª SL da X Leg (pág. 50-52)].

Deste modo, quando no artigo 2.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto (na redação da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, vigente no momento a que se reportam os factos tributários) se estabelece que «o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da IP, S. A., tendo em conta o disposto no Plano Rodoviário Nacional, é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável» e, no n.º 3 do mesmo artigo (na redação inicial), que «a contribuição de serviço rodoviário constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis», o legislador fiscal concretizou o seu desiderato de fazer repercutir sobre os adquirentes-consumidores de combustível o montante da respetiva contribuição.

É certo que o legislador, contrariamente ao que sucede no âmbito do IVA, não determinou nenhuma formalidade documental, impondo a segregação do valor da CSR face ao preço. Todavia, para além das razões estruturais subjacentes às mencionadas figuras, é manifesto que o facto de o legislador não determinar o seccionamento documental da componente “preço” e da componente “contribuição” não afasta a existência/obrigatoriedade de tal repercussão, como pode comprovar-se, no âmbito do IVA, pelos casos previstos no artigo 37.º, n.º 2, do Código do IVA, onde se refere que “o imposto pode ser incluído no preço”, “para efeitos da sua exigência aos adquirentes dos bens ou destinatários dos serviços”, não se pondo em causa a existência de uma repercussão legal. A inexistência dessa repartição poderá afetar a prova dos factos – o se e o quantum da repercussão em concreto –, mas não já a conclusão de que o tributo foi criado para que o respetivo encargo fosse suportado pelo repercutido.

Dito isto, importa agora «sublinhar a indiscutível legitimidade processual ativa do Repercutido, a qual hoje encontra consagração legal expressa nos artigos 18.º, n.º 4, alínea a), 2.ª parte e 54.º, n.º 2 a fortiori ambos da Lei Geral Tributária (doravante, LGT), dispondo aquela disposição que: “Não é sujeito passivo quem: a) suporte o encargo do imposto por repercussão legal, sem prejuízo do direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias;”, ao passo que a segunda disposição sublinha que “As garantias dos contribuintes previstas no presente capítulo aplicam-se também à autoliquidação, retenção na fonte ou repercussão legal a terceiros da dívida tributária, na parte não incompatível com a natureza destas figuras.” [§] E neste mesmo sentido aponta, ainda, o artigo 9.º do CPPT, ao consagrar um conceito de legitimidade pelo menos tão amplo como o consagrado no direito comum, determinando que têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido; e, por fim, o artigo 65.º da LGT que, sob a epígrafe “Contribuintes e outros interessados”, confere ampla legitimidade no procedimento aos sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.”»

À luz das referidas disposições legais, torna-se incontornável concluir que o nosso sistema jurídico, como também sucede com o espanhol, e ao contrário do italiano, atribui expressamente legitimidade processual ativa aos repercutidos, mas mesmo que «“assim não sucedesse, já idêntica solução se podia, porventura, retirar das regras gerais de aferição da legitimidade, vertidas quer no artigo 9.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, CPPT), quer no artigo 30.º do Código do Processo Civil (doravante, CPC), aplicável em sede processual tributária ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT: e assim é, uma vez que nos parece indiscutível a conclusão de que aquele que suporta o ónus financeiro do tributo terá sempre algum “interesse legítimo” em contestar o decréscimo patrimonial ilegal (ao menos, potencialmente ilegal, algo que não se logra conhecer) em que incorre enquanto repercutido do mesmo.» - cf. Declaração de voto de Gustavo Lopes Courinha no Acórdão do STA de 14 de outubro de 2020, proc. n.º 0506/17.2BEALM.

Paralelamente, importa reconhecer que a legitimidade (legitimatio ad causam) deve ser configurada como um pressuposto processual e não como condição de procedência do mérito da ação. O que vale por dizer que a determinação da legitimidade não envolve um juízo de procedência ou de improcedência da pretensão formulada, mas “apenas” uma análise da “fisionomia da relação material litigiosa (apenas a fisionomia, não o seu mérito ou a sua real ou efetiva existência), tal como ela é configurada ou desenhada unilateralmente, na petição inicial, pelo autor”, daí que se subscreva, a posição centenária de Barbosa de Magalhães, segundo a qual “é à relação jurídica, que o autor apresenta – e não à que virá a ser constatada pela sentença – que deve atender-se para a determinação da legitimidade das partes; não sendo assim, essa determinação só poderia fazer-se depois do julgamento do mérito do pedido”.

Considerando estas reflexões à luz do quadro desenhado pela concreta causa de pedir definida no requerimento de pronúncia arbitral, apenas pode concluir-se que a Requerente goza de legitimidade para contestar as liquidações de CSR e, consequentemente, a repercussão que afetou a sua esfera jurídico-patrimonial.

A este propósito, refira-se ainda que a existência da repercussão, principaliter quando desta se retirem – como sucede entre nós – consequências impugnatórias, não permite o isolamento do feixe de relações em que aquela se traduz no estrito domínio do direito privado. Confirma-o o recente aresto do TJUE, de 11 de abril de 2024, tirado no Processo C-316/22, onde se considera, face ao sistema italiano, que “essa legislação, ao não permitir a um consumidor final pedir diretamente ao Estado‑Membro o reembolso do encargo económico adicional que suportou devido à repercussão, efetuada por um fornecedor com base numa faculdade que a legislação nacional lhe reconhece, de um imposto que o próprio fornecedor pagou indevidamente ao referido Estado‑Membro, viola o princípio da efetividade”, pelo que, em consequência, “o princípio da efetividade deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que não permite ao consumidor final pedir diretamente ao Estado‑Membro o reembolso do encargo económico adicional que esse consumidor suportou devido à repercussão operada por um fornecedor, em conformidade com uma faculdade que a legislação nacional lhe reconhece, de um imposto que o próprio fornecedor tinha pago indevidamente, permitindo apenas que esse consumidor intente uma ação cível de repetição do indevido contra tal fornecedor, quando o caráter indevido desse pagamento resultar de o referido imposto ser contrário a uma disposição clara, precisa e incondicional de uma diretiva não transposta ou incorretamente transposta, e quando, devido à impossibilidade de invocar, enquanto tal, uma diretiva num litígio entre particulares, este fundamento de ilegalidade não possa ser validamente invocado no âmbito dessa ação”.

Entre nós, diferentemente, permite-se que os repercutidos controvertam a liquidação que mediatamente os afeta através da repercussão. Por esse motivo, mesmo não sendo considerados sujeitos passivos, a verdade é que os repercutidos não gravitam apenas em torno de uma relação jurídica que lhes seja completamente exógena, podendo interferir na conformação daquela através da mobilização de meios graciosos ou contenciosos, tendo interesse em agir enquanto entidades que suportam o valor do imposto.

Resta, por fim, relembrar que o regime de “revisão especial” contido no CIEC não é aplicável à CSR em causa nos autos, pelos motivos supra explanados, pelo que improcede, in totum, a invocada exceção de ilegitimidade.

 

4.4. Na sequência, a Autoridade Tributária veio “suscitar o incidente de intervenção provocada da Y..., S.A.”, invocando o disposto nos artigos 57.º do CPTA e 316.º do CPC.

O incidente da intervenção provocada encontra-se regulado no artigo 316.º do CPC. Conjugando esta disposição com o disposto no artigo 33.º do mesmo diploma, constata-se que a “sanção” da ilegitimidade apenas poderá referir-se aos casos em que se exija um litisconsórcio necessário e, assim, uma necessária legitimidade plural.

Dispõe o artigo 33.º do CPC que o litisconsórcio é necessário quando seja imposto por lei ou imposto pelas partes de um negócio jurídico (n.º 1) ou quando a intervenção de todos os interessados seja necessária, pela própria natureza da relação jurídica, para que a decisão a proferir produza o seu efeito útil normal, ou seja, quando sem a intervenção de todos os interessados não seja possível a composição definitiva dos interesses em causa (n.º 2). Em sede geral, pode dizer-se que as diferentes tipologias de litisconsórcio necessário decorrentes desse preceito (legal, convencional ou natural) se reconduzem a situações em que a tutela jurisdicional apenas possa tornar-se efetiva perante vários sujeitos conjuntamente considerados. Não é seguramente o caso dos autos, não se verificando em concreto qualquer dos critérios legais que justificam o litisconsórcio necessário, não se tornando necessária a intervenção de qualquer parte que não se encontre já em juízo, como igualmente se entendeu, em casos simétricos, nos Processos n.ºs 298/2023-T, 977/2023-T e1049/2023-T, entre outros, a cuja fundamentação se adere.

 

4.5. Por fim, a Requerida suscita, por fim, a incompetência material do Tribunal Arbitral com base em dois fundamentos: por falta de vinculação da AT, ao abrigo do disposto no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março e por falta de competência do Tribunal Arbitral para fiscalizar a legalidade de normas em abstrato.

Vejamos.

A Autoridade Tributária alegou a exceção da incompetência relativa do Tribunal Arbitral em razão da matéria, estribando-se no entendimento de que “a espécie tributária da CSR é qualificada como contribuição financeira e não como imposto, encontrando-se, assim, excluída da arbitragem tributária, por força do disposto nos artigos 2.º e 3.º do RJAT (…) e do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, pelas quais a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais se reporta apenas à apreciação de pretensões relativas a impostos, não abrangendo os tributos que devam ser qualificados como contribuição”.

A questão em causa não tem merecido tratamento uniforme no âmbito do CAAD.

Acompanha-se aqui a posição que considera que a CSR não se traduz numa verdadeira contribuição financeira, sendo outrossim um imposto, não sendo determinante para tal qualificação o nomen iuris de batismo do legislador, nos termos do decidido, entre outros, nos Processos n.ºs 294/2023-T e 410/2023-T, cuja fundamentação se transcreve:

“(...)

Com efeito, a competência contenciosa dos Tribunais Arbitrais em matéria de arbitragem tributária, tal como resulta do artigo 2º do RJAT, compreende a apreciação de pretensões que visem a “declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta” e a “declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais”.

O artigo 4º, nº 1, do RJAT faz ainda depender a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos Tribunais Arbitrais de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que deverá estabelecer, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.

E o diploma que, em execução desse preceito, define o âmbito e os termos da vinculação da Autoridade Tributária à jurisdição dos Tribunais Arbitrais que funcionam no CAAD é a Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março, que no seu n.º 2, sob a epígrafe “Objeto de vinculação”, e com a alteração resultante da Portaria nº 287/2019, de 3 de setembro, dispõe o seguinte:

Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com excepção das seguintes: 

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário; 

b) Pretensões relativas a atos de determinação da matéria coletável e atos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão; 

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indiretos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; 

d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efetuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira;

e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo”.

A referência a serviços e organismos que se vinculavam à jurisdição arbitral era feita para a Direcção-Geral dos Impostos e a Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo, que foram, entretanto, extintas, tendo-lhes sucedido a Autoridade Tributária e Aduaneira (aqui designada por Requerida).

A Portaria n.º 112-A/2011, também chamada Portaria de vinculação, fixa um segundo nível de delimitação das pretensões que poderão ser sujeitas à jurisdição arbitral mas, tratando-se de um mero regulamento de execução, a Portaria não poderia ir além do estabelecido na lei quanto ao âmbito de competência material dos Tribunais Arbitrais, podendo estabelecer restrições quanto ao âmbito da vinculação à arbitragem tributária, mormente por referência ao tipo de litígios e ao valor do processo.

A este propósito, o acórdão proferido no Processo n.º 48/2012-T, de 06-07-2012, depois seguido por diversos outros arestos, consignou o seguinte:

A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no artigo 2.º, n.º 1, do [RJAT].

Numa segunda linha, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é também limitada pelos termos em que Administração Tributária se vinculou àquela jurisdição, concretizados na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pois o artigo 4.º do RJAT estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.

Em face desta segunda limitação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos desta vinculação, pois, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele artigo 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este tribunal arbitral”.

Assim, a Portaria de vinculação, aparentemente, estabelece duas limitações: (i) refere-se a pretensões “relativas a impostos”, de entre aquelas que se enquadram na competência genérica dos Tribunais Arbitrais e (ii) a impostos cuja administração esteja cometida à Autoridade Tributária.

Nestes termos, terá assim de se concluir que a vinculação se reporta a qualquer das pretensões mencionadas no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT que respeitem a impostos (com a exclusão de outros tributos) e a impostos que sejam geridos pela Autoridade Tributária.

A constitucionalização das contribuições financeiras resultou da alteração introduzida no artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Lei Fundamental, pela revisão constitucional de 1997, que autonomizou as contribuições financeiras a favor das entidades públicas como uma terceira categoria de tributos.

Por outro lado, a LGT passou a incluir, entre os diversos tipos de tributos, os impostos e outras espécies criadas por lei, designadamente as taxas e as contribuições financeiras a favor das entidades públicas, definindo, em geral, os pressupostos desses diversos tipos de tributos no subsequente artigo 4.º.

Neste âmbito, a doutrina tem caracterizado as contribuições financeiras como um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas colectivas, na medida em que visam retribuir os serviços prestados por uma entidade púbica a um certo conjunto ou categoria de pessoas.

A este respeito, como referem Gomes Canotilho/Vital Moreira, “a diferença essencial entre os impostos e estas contribuições bilaterais é que aqueles visam financiar as despesas públicas em geral, não podendo, em princípio, ser consignados a certos serviços públicos ou a certas despesas, enquanto que as segundas, tal como as taxas em sentido estrito, visam financiar certos serviços públicos e certas despesas públicas (responsáveis pelas prestações públicas de que as contribuições são contrapartida), aos quais ficam consignadas, não podendo, portanto, ser desviadas para outros serviços ou despesas”.

Neste sentido, as contribuições são tributos (com uma estrutura paracomutativa), dirigidos à compensação de prestações presumivelmente provocadas ou aproveitadas pelos contribuintes, distinguindo-se das taxas que são tributos rigorosamente comutativos e que se dirigem à compensação de prestações efetivas.

Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem também reconhecido a existência dessas diferentes categorias jurídico-tributárias (designadamente para efeito de extrair consequências quanto à competência legislativa), admitindo que as taxas e outras contribuições de carácter bilateral só estão sujeitas a reserva parlamentar quanto ao seu regime geral, mas não quanto à sua criação individual e quanto ao regime concreto, podendo portanto ser criadas por diploma legislativo governamental e reguladas por via regulamentar desde que observada a lei-quadro.

Ou seja, não há dúvida que as contribuições financeiras se distinguem dos impostos.

Analisando a contribuição em apreço (Contribuição de Serviço Rodoviário - CSR), criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, a mesma visa financiar a rede rodoviária nacional [a cargo da EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (artigo 1.º), que, entretanto, passou a denominar-se Infraestruturas de Portugal, S.A. (IP)], sendo que o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo desta entidade é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável (artigo 2.º).

A referida contribuição corresponde à contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis, e constitui uma fonte de financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da IP no que respeita à respetiva conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento, ainda que a exigência da contribuição não prejudique a eventual aplicação de portagens em vias específicas ou o recurso da entidade concessionária a outras formas de financiamento (artigo 3.º).

Esta contribuição incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e dele não isentos (artigo 4.º, n.º 1) e é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo (artigo 5.º, n.º 1).

O produto da CSR constitui receita própria da actualmente denominada IP (artigo 6.º).

A actividade de conceção, projecto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional, que é objecto de financiamento através da CSR foi atribuída, em regime de concessão, à EP - Estradas de Portugal, E. P. (agora denominada IP) e, pelo Decreto-Lei n.º 380/2007, de 13 de novembro, que aprovou as bases da concessão e nas quais se prevê que, entre outros rendimentos, essa contribuição constitui receita própria dessa entidade (Base 3, alínea b)).

Por outro lado, naquelas bases da concessão é estabelecido, como uma das obrigações da concessionária, a prossecução dos “objetivos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental” (Base 2, n.º 4, alínea b)).

Assim, à luz do regime jurídico sucintamente descrito, dificilmente se poderia concluir que a CSR constitui uma contribuição financeira.

Como se refere no Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 304/2022-T, de 05-01-2023, a CSR não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva.

A contribuição é estabelecida a favor da EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (artigo 3.º, n.º 2), agora denomina IP, sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (artigo 6.º).

No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade desenvolvida por aquela entidade, a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (artigo 3.º, n.º 2).

Por outro lado, nada permite afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da atividade administrativa que se encontra atribuída à IP é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários.

Quando é certo que o artigo 2.º da Lei n.º 55/2007 declara expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E.P. E. (...) é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.”

Nestes termos, o financiamento da rede rodoviária nacional é assegurado pelos respectivos utilizadores, que são os beneficiários da actividade pública desenvolvida pela EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (agora IP), verificando-se, no entanto, que a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”.

Não existindo, deste modo, qualquer nexo específico entre o benefício emanado da actividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos sujeitos passivos.

Adicionalmente, refira-se ainda que o regime jurídico da CSR não é equiparável ao previsto para a Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE).

Com efeito, a CESE, criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2014, é considerada como uma contribuição extraordinária que tem “por objetivo financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sector energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do sector energético”, incidindo sobre as pessoas singulares ou coletivas que integram o sector energético nacional.

A receita obtida é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE), criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril, com o objectivo de estabelecer mecanismos que contribuam para a sustentabilidade sistémica do sector energético, designadamente através da contribuição para a redução da dívida e ou pressão tarifárias e do financiamento de políticas do sector energético de cariz social e ambiental, de medidas relacionadas com a eficiência energética, de medidas de apoio às empresas e da minimização dos encargos financeiros para o Sistema Elétrico Nacional (artigo 11.º).

Assim sendo, a CESE tem por base uma contraprestação de natureza grupal, na medida em que constitui um preço público a pagar pelo conjunto de pessoas singulares ou colectivas que integram o sector energético nacional à entidade à qual são consignadas as receitas.

Não se reconduz à taxa stricto sensu, visto que não incide sobre uma prestação concreta e individualizada que a Administração dirija aos respectivos sujeitos passivos, nem preenche o requisito de unilateralidade que caracteriza o imposto, uma vez que não tem como finalidade exclusiva a angariação de receita, nem se destina à satisfação das necessidades financeiras do Estado, antes se pretendendo que o sector energético contribua para a cobertura do risco sistémico que é inerente à sua actividade.

Nestes termos, a CESE trata-se de um tributo de carácter comutativo, embora baseado numa relação de bilateralidade genérica ou difusa que, interessando a um grupo homogéneo de destinatários e visando prevenir riscos a este grupo associados, se efectiva na compensação de eventual intervenção pública na resolução de dificuldades desse sector, assumindo assim a natureza jurídica de contribuição financeira.

E, tendo em consideração o acima exposto, essa caracterização não é extensiva à CSR, pelo que não é aplicável, ao caso em análise, a jurisprudência arbitral que veio declarar a incompetência do Tribunal Arbitral ratione materiae para a apreciação de litígios que tinham como objeto a CESE (como é o caso do Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 714/2020-T, de 12-07-2021).

A este acervo de argumentos acresce ainda um outro.

Segundo a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a qualificação de uma tributação, um imposto, uma taxa ou um direito, à luz do Direito da União Europeia, compete ao Tribunal de Justiça, em função das caraterísticas objetivas de imposição, independentemente da qualificação que lhe é dada pelo direito nacional (cf. Istituto di Ricovero e Cura a Carattere Scientifico (IRCCS) — Fondazione Santa Lucia, processo C-189/15, acórdão de 18 de janeiro de 2017, §29; e Test Claimants in the FII Group Litigation, processo C-446/04, acórdão de 12 de dezembro de 2016, §107, entre outros).

É certo que, no processo arbitral que motivou o pedido de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça (Processo n.º 564/2020-T), o Tribunal qualificou a CSR como um imposto, formulando as questões prejudiciais com base nesse pressuposto. Parece-nos, todavia, que na decisão em que culminou esse pedido de reenvio – o Despacho do Tribunal de Justiça de 07 de fevereiro de 2022 Vapo Atlantic, processo C-460/21, – o Tribunal de Justiça, para além de não colocar em causa essa qualificação, assume, para efeitos do artigo 1 da Diretiva 2008/118, um conceito funcional ou autónomo de imposto indireto. Tal conceito abrange quaisquer “imposições” indiretas que, pelas suas caraterísticas estruturais e teleológicas, não tenham um “motivo específico” na aceção da diretiva e possam, por conseguinte, privar o imposto especial de consumo harmonizado (no caso português, o ISP) de “todo o efeito útil” (par. 26 do Despacho Vapo Atlantic, já mencionado).

Dito de outro modo, para o Tribunal de Justiça, o tributo instituído pela lei portuguesa – e que este designou por “contribuição” – constitui um imposto porquanto, em virtude do desenho escolhido pelo legislador português, representa uma imposição indireta sem motivo específico e como tal suscetível de frustrar os desideratos de harmonização positiva subjacentes à Diretiva 2008/118. Foi o legislador português que, não obstante classificar o tributo como “contribuição”, definiu a respetiva incidência subjetiva em termos análogos à do ISP (artigo 5 da Lei n.º 55/2017, de 31 de agosto), colocando-se assim, independentemente da qualificação para que eventualmente apontasse a (inconstante) jurisprudência constitucional nacional, no âmbito de aplicação do artigo 1, n.º 2 da Diretiva 2008/118. 

Portanto, mesmo que, à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional português, a CSR houvesse de ser qualificada como uma contribuição financeira (inconstitucional, desde já se avança), nem por isso ela – tal como está desenhada – deixaria de ser um imposto indireto na aceção da Diretiva. Isto sob pena de os Estados-membros poderem, em função da maior ou menor criatividade constitucional em termos de tributos públicos, frustrar os propósitos de harmonização e de neutralidade no plano dos impostos indiretos sobre o consumo.

Destarte, atentos os princípios da interpretação conforme e do primado do Direito da União Europeia (consagrado no artigo 8, n.º 4 da CRP, tal como interpretado pelo Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 422/2020), há que considerar que os dispositivos legais que regulam a CSR devem ser interpretados no sentido de que consagram um imposto indireto sobre o consumo de produtos petrolíferos.

(...)”.

 

Deste modo, reiterando-se aqui tal fundamentação, considera-se improceder a alegada exceção da incompetência relativa do Tribunal Arbitral em razão da matéria suscitada pela Requerida.

Alega ainda a Requerida que caso “(…) se entenda ser o tribunal competente para apreciar a legalidade desta contribuição financeira, mais se dirá que sempre existiria a incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria, por outra via” uma vez que “(…) resulta do teor do pedido de pronúncia arbitral, e sua fundamentação, que o que as Requerentes suscitam junto desta instância arbitral é a legalidade do regime da CSR, no seu todo”.

Ora, a Requerida parte aqui de um princípio errado, qual seja o de que está em causa uma fiscalização da legalidade de normas em abstrato, desprovida de um “enquadramento processual impugnatório de ato concreto de liquidação” (Processo n.º 294/2023-T). Com efeito, in casu, é manifesto que a Requerente controverte os atos de liquidação de CSR e os consequentes atos de repercussão da referida CSR consubstanciados nas faturas referentes à gasolina e ao gasóleo rodoviário adquiridos, invocando a desconformidade do regime da CSR com o previsto na Diretiva 2008/118, do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008.

Contudo, nada obsta a que o tribunal arbitral se pronuncie sobre o fundamento de ilegalidade do ato de liquidação baseado em desconformidade da CSR com o direito europeu, como se deixou consignado na decisão do Processo n.º 983/2023-T, para a qual aqui se remete.

Improcede, pois, a exceção invocada.

 

III. Fundamentação

 

5. Matéria de facto

5.1. Factos Provados

Com interesse para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

5.1.1. A Requerente é uma sociedade comercial que tem como atividade principal a produção de azeite.

5.1.2. Durante o período compreendido entre 8 de janeiro de 2018 e 6 de dezembro de 2022, a Requerente adquiriu combustível – gasóleo e gasolina – às seguintes entidades fornecedoras de combustível: B..., Lda., C..., Lda., D..., Unipessoal, Lda., E..., S.A., F..., G..., Lda., H..., CRL, I..., Lda., J..., S.A., K..., Lda., L..., Lda., M..., Lda., N..., Lda., O..., Lda., P..., S.A., Q..., S.A., R..., Lda., S..., Lda., T..., Unipessoal, Lda., U..., Lda., V..., Lda., W..., Lda., X..., Lda e Y..., S.A..

5.1.3. A Requerente apresentou, em 30 de dezembro de 2022, pedido de revisão oficiosa, onde requereu a anulação dos actos de liquidação e repercussão de CSR, respeitantes ao período decorrido entre 8 de janeiro de 2018 e 6 de dezembro de 2022.

5.1.4. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado no dia 20 de julho de 2023.

 

5.2. Factos não provados:

5.2.1. Não se provou quais as liquidações de CSR emitidas pela AT quanto ao combustível adquirido pela Requerente entre 8 de janeiro de 2018 e 6 de dezembro de 2022.

5.2.2. Não se provou que a Requerente tivesse adquirido 11 926,367 litros de gasóleo.

5.2.3. Não se provou que a Requerente tenha suportado, a título de CSR, a quantia de €1.323,83.

5.2.4. Não se provou que os seguintes fornecedores sejam sujeitos passivos de CSR: B..., Lda., C..., Lda., D..., Unipessoal, Lda., E..., S.A., F..., G..., Lda., H..., CRL, I..., Lda., J..., S.A., K..., Lda., L..., Lda., M..., Lda., N..., Lda., O..., Lda., P..., S.A., Q..., S.A., R..., Lda., S..., Lda., T..., Unipessoal, Lda., U..., Lda., V..., Lda., W..., Lda., e X..., Lda..

 

5.3. Considerando o disposto nos artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.os 2 a 4, ambos do Código de Processo Civil (por remissão do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT), incumbe ao Tribunal o dever de selecionar a matéria de facto pertinente para a decisão.

No caso sub iudicio, a decisão sobre os factos provados e não provados radicou no acervo documental presente nos autos, valorado de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e as regras de experiência comum.

No artigo 13.º do requerimento de arbitragem, a Requerente refere-se à aquisição de combustíveis, invocando a aquisição de gasóleo e gasolina, concretizando, no artigo 14.º do mesmo requerimento, que “tais factos podem comprovar-se através da análise das faturas discriminadas no documento n.º 2”.

Porém, o referido documento não é mais do que uma mera listagem, de onde não consta sequer o preço de venda, a taxa de IVA aplicável, o valor do IVA suportado, o valor total da fatura, não permitindo comprovar, sem qualquer documento externo de suporte, a quantidade de litros de combustível adquiridos, o preço e quais as componentes incluídas no valor total da fatura, designadamente se o mesmo incluía, ou não, a repercussão do valor da CSR. Com efeito, estamos apenas perante um mapa elaborado pela própria Requerente desprovido de valor probatório material para suportar, em concreto, um juízo sobre as quantidades de combustível adquiridas e sobre a efetiva repercussão do imposto nas aquisições que foram realizadas, sendo que esse mapa não está sequer em sintonia com as alegações da Requerente, porquanto esta refere-se à aquisição de gasolina e de gasóleo, mas a totalidade das aquisições referidas no documento n.º 2 são apenas de aquisição de gasóleo, o que cria a dúvida sobre a exatidão dos elementos feitos constar de um mero documento interno, desacompanhado das faturas de aquisição de combustível.

Não se olvida que, de acordo com o critério do il quod plerumque accidit, os montantes suportados pelos fornecedores de combustíveis serão, em alguma medida, objeto de repercussão; no entanto, esse critério apenas poderá ser operacionalizado quando exista um suporte documental mínimo que sirva de substrato a uma valoração probatória de acordo com as regras de experiência comum, o que não sucede com a prova, sem mais, da mera aquisição de combustível. Nestes termos, conclui-se que a Requerente não fez prova dos montantes que foram efetivamente repercutidos e por si suportados a título de CSR.

Do mesmo passo, relativamente às aquisições realizadas junto da generalidade dos fornecedores indicados, também não há elementos que permitam concluir que a Requerente adquiriu o combustível a sujeitos passivos de ISP/CSR que lhe tenham repercutido o valor da CSR, pelo que a mera declaração de que os mesmos repercutiram a CSR é inócua sem os elementos a montante, não permitindo refazer minimamente a cadeia da alegada repercussão. A inexistência de qualquer DIC ou de liquidação de ISP/CSR relativamente aos sujeitos referidos em 5.2.4., apenas permite concluir que os mesmos não são sujeitos passivos de CSR.

Consequentemente, conclui-se que a documentação apresentada não permite sustentar que o valor pago pelo combustível adquirido pela Requerente, tenha incluída a CSR paga pelo sujeito passivo de ISP/CSR e em que medida.

6. Matéria de Direito

6.1. A questão decidenda prende-se com a ilegalidade da liquidação da CSR, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, com fundamento na sua desconformidade com o direito da União Europeia, designadamente com o disposto no artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008.

A CSR foi criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, com vista a financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (artigo 1.º) – atualmente, Infraestruturas de Portugal, S.A. –, sendo esse financiamento assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável (artigo 2.º). Segundo o disposto no artigo 3.º, a contribuição de serviço rodoviário constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis (n.º 1) e constitui uma fonte de financiamento da rede rodoviária nacional no que respeita à respetiva conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento (n.º 3). A CSR incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e dele não isentos (artigo 4.º, n.º 1) sendo devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, (artigo 5.º, n.º 1).

Considera a Requerente que a CSR não prossegue “motivos específicos”, na aceção do artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118/CE, “na medida em que as suas receitas têm essencialmente como fim assegurar o financiamento da rede rodoviária nacional, não podendo considerar-se suficiente para estabelecer uma relação direta entre a utilização das receitas e um motivo específico, os objetivos genéricos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental”.

Por seu turno, na parte relativa à compatibilidade do regime legal com o direito da união, a Requerida conclui “ser inequívoco que existem na CSR objetivos/finalidades não orçamentais, estando subjacente à sua criação e afetação motivos específicos distintos de uma finalidade orçamental, nomeadamente finalidades de redução de sinistralidade e de sustentabilidade ambiental.

É o que cumpre agora analisar.

 

6.2. O artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118/CE, dispõe que “[o]s Estados-Membros podem cobrar, por motivos específicos, outros impostos indiretos sobre os produtos sujeitos a impostos especiais de consumo, desde que esses impostos sejam conformes com as normas fiscais da Comunidade aplicáveis ao imposto especial de consumo e ao imposto sobre o valor acrescentado no que diz respeito à determinação da base tributável, à liquidação, à exigibilidade e ao controlo do imposto, regras estas que não incluem as disposições relativas às isenções”.

Como é consabido, a questão da compatibilidade da CSR com o Direito de União Europeia foi apreciada no Despacho do TJUE de 07-02-2022, proferido no caso Vapo Atlantic, Processo C-460-21, no âmbito de um reenvio prejudicial. Nesse despacho considerou-se que  «[o] artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo e que revoga a Diretiva 92/12/CEE, deve ser interpretado no sentido de que não prossegue “motivos específicos”, na aceção desta disposição, um imposto cujas receitas ficam genericamente afetadas a uma empresa pública concessionária da rede rodoviária nacional e cuja estrutura não atesta a intenção de desmotivar o consumo dos principais combustíveis rodoviários».

No referido despacho, o TJUE admitiu que o artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva permita aos Estados-Membros possam “cobrar outros impostos indiretos sobre os produtos sujeitos a impostos especiais de consumo desde que estejam preenchidos dois requisitos. Por um lado, estes impostos devem ser cobrados por motivos específicos e, por outro, estas imposições devem ser conformes com as normas fiscais da União aplicáveis ao imposto especial de consumo e ao imposto sobre o valor acrescentado no que diz respeito à determinação da base tributável, bem como à liquidação, à exigibilidade, ao controlo do imposto, regras estas que não incluem as disposições relativas às isenções” [§21].

Quanto à primeira condição, considera o Tribunal que “para se considerar que prossegue um motivo específico, na aceção da referida disposição, um imposto deve visar, por si só, assegurar a finalidade específica invocada, de tal forma que exista uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa (v., neste sentido, Acórdãos de 5 de março de 2015, Statoil Fuel & Retail, C‑553/13, EU:C:2015:149, n.º 41, e de 25 de julho de 2018, Messer France, C‑103/17, EU:C:2018:587, n.º 38)” [§25], só podendo considerar-se que “um imposto que incide sobre produtos sujeitos a impostos especiais de consumo prossegue um motivo específico, na aceção do artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118, se esse imposto for concebido, no que respeita à sua estrutura, nomeadamente, à matéria coletável ou à taxa de tributação, de modo a influenciar o comportamento dos contribuintes num sentido que permita realizar o motivo específico invocado, por exemplo, através da tributação significativa dos produtos considerados para desencorajar o respetivo consumo” [§27].

Vertendo esse entendimento no caso específico da CSR, o TJUE considerou que a afetação predeterminada do produto da CSR ao financiamento, pela concessionária da rede rodoviária nacional, não constituía requisito bastante para que se estivesse perante um “motivo específico” na aceção da diretiva, com base nos argumentos vertidos nos parágrafos 30 a 35 do referido despacho, que se transcrevem:

“(...)

30. Em segundo lugar, para se considerar que prossegue um motivo específico, na aceção desta disposição, a CSR deveria destinar‑se, por si só, a assegurar os objetivos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental que foram atribuídos à concessionária da rede rodoviária nacional. Seria esse o caso, nomeadamente, se o produto deste imposto devesse ser obrigatoriamente utilizado para reduzir os custos sociais e ambientais especificamente associados à utilização dessa rede que é onerada pelo referido imposto. Seria então estabelecida uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa (v., neste sentido, Acórdãos de 27 de fevereiro de 2014, Transportes Jordi Besora, C‑82/12, EU:C:2014:108, n.º 30, e de 25 de julho de 2018, Messer France, C‑103/17, EU:C:2018:587, n.º 38).

31. Em terceiro lugar, (...) é certo que a Autoridade Tributária sustenta que existe uma relação entre a afetação das receitas geradas pela CSR e o motivo específico que levou à instituição deste imposto, uma vez que o decreto‑lei que atribuiu a concessão da rede rodoviária nacional à IP impõe a esta última que trabalhe em prol, por um lado, da redução da sinistralidade nessa rede e, por outro, da sustentabilidade ambiental.

32. No entanto, (...) resulta da decisão de reenvio que o produto do imposto em causa no processo principal não se destina exclusivamente ao financiamento de operações que supostamente concorrem para a realização dos dois objetivos mencionados no número anterior do mesmo despacho. Com efeito, as receitas provenientes da CSR destinam‑se, mais amplamente, a assegurar o financiamento da atividade de conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional.

33. Em quarto lugar, os dois objetivos atribuídos à concessionária da rede rodoviária nacional portuguesa estão enunciados em termos muito gerais e não deixam transparecer, à primeira vista, uma real vontade de desencorajar a utilização quer dessa rede quer dos principais combustíveis rodoviários, como a gasolina, o gasóleo rodoviário ou o gás de petróleo liquefeito (GPL) automóvel. A este respeito, é significativo que o órgão jurisdicional de reenvio destaque, na redação da sua primeira questão prejudicial, que as receitas geradas pelo imposto são genericamente afetadas à concessionária da rede rodoviária nacional e que a estrutura deste imposto não atesta a intenção de desmotivar um qualquer consumo desses combustíveis.

34. Em quinto lugar, o pedido de decisão prejudicial não contém nenhum elemento que permita considerar que a CSR, na medida em que incide sobre os utilizadores da rede rodoviária nacional, foi concebida, no que respeita à sua estrutura, de tal modo que dissuade os sujeitos passivos de utilizarem essa rede ou que os incentiva a adotar um tipo de comportamento cujos efeitos seriam menos nocivos para o ambiente e que seria suscetível de reduzir os acidentes.

35. Por conseguinte, sem prejuízo das verificações que caberá ao órgão jurisdicional de reenvio efetuar atendendo às indicações que figuram nos n.os 29 a 34 do presente despacho, as duas finalidades específicas invocadas pela Autoridade Tributária para demonstrar que a CSR prossegue um motivo específico, na aceção do artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118, não se distinguem de uma finalidade puramente orçamental (v., por analogia, Acórdão de 27 de fevereiro de 2014, Transportes Jordi Besora, C‑82/12, EU:C:2014:108, n.ºs 31 a 35)”.

 

Em consequência, o TJUE acabou por concluir que a CSR não prosseguia “motivos específicos”, aqui se reiterando a desconformidade do regime da CSR com o direito da União Europeia., , ,

 

6.3. Perante o exposto, há que considerar a questão relativa ao direito ao reembolso da CSR de que se arroga a requerente na qualidade de repercutida.

            Ora, de acordo com a jurisprudência constante do TJUE, os Estados têm o dever de reembolsar os impostos cobrados em violação do direito da União, sendo que, “não havendo regulamentação da União sobre a matéria, cabe ao ordenamento jurídico interno de cada Estado-Membro prever as normas processuais concretas para o exercício do direito de obter o reembolso do referido encargo económico (v., por analogia, Acórdão de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken,C‑35/05, EU:C:2007:167, n.o 37), entendendo‑se que essas normas devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade (v., neste sentido, Acórdãos de 17 de junho de 2004, Recheio — Cash & Carry, C‑30/02, EU:C:2004:373, n.o 17, e de 6 de outubro de 2005, MyTravel,C‑291/03, EU:C:2005:591, n.o 17)”.

            Como se referiu anteriormente, no âmbito do nosso sistema jurídico-tributário reconhece-se legitimidade a quem suporte economicamente o imposto para controverter os atos de liquidação originários, pressupostos da efetiva repercussão subsequente, e de, por essa via, obter o reembolso dos valores indevidamente repercutidos. Trata-se, ademais, de uma opção também presente noutros ordenamentos jurídicos, como o espanhol, onde os “obrigados a suportar a repercussão” são considerados obrigados tributários (artigo 35.º, n.º 2, alínea g), da Ley General Tributaria) e têm legitimidade para controverter “atuações ou omissões dos particulares em matéria tributária”, tais como “as relativas às obrigações de repercutir e suportar a repercussão prevista legalmente” (artigo 227.º, n.º 4, alínea a), da Ley General Tributaria), tendo “direito a solicitar o reembolso de impostos indevidos” junto da administração tributária, nos termos previstos no artigo 14.º do Reglamento general de desarrollo de la Ley 58/2003, de 17 de diciembre, General Tributaria, en materia de revisión en via administrativa. É certo que o legislador pátrio, apesar de prever a legitimidade impugnatória dos repercutidos, absteve-se de regular especificamente a matéria de forma a atender às vicissitudes da repercussão, da sua correlação com os correspetivos atos de liquidação e do reembolso, permitindo que quem suporte o imposto por repercussão legal possa acercar-se dos tribunais para obter o reembolso do indevidamente pago, sem qualquer filtro administrativo, não sendo de aplicar por analogia as referentes à impugnação em caso de substituição tributária, por força da proibição prevista no artigo 11.º, n.º 4, da LGT, ou de criar embaraços metodológicos destinados a contornar uma legitimidade inequivocamente prevista na lei no caso em que existam “obrigações entre particulares resultantes do imposto” (na terminologia do artigo 24.º da Ley General Tributaria espanhola), como sucede no caso da repercussão.

            Com semelhante regime, a nossa lei afasta-se de outros modelos, como seja o italiano, onde a repercussão e as suas vicissitudes podem ser exclusivamente tratadas à luz do direito privado, isolando-se nesse âmbito dogmático a relação de repercussão. Porém, mesmo num ordenamento jurídico com semelhantes contornos, não fica excluída, por interposição do direito da União, a possibilidade de o repercutido poder solicitar o reembolso de impostos indevidos diretamente ao Estado, como se decidiu no Acórdão do TJUE, de 11 de abril de 2024 – Processo C-316/22 –, onde se afirmou que “[o] princípio da efetividade deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que não permite ao consumidor final pedir diretamente ao Estado‑Membro o reembolso do encargo económico adicional que esse consumidor suportou devido à repercussão operada por um fornecedor, em conformidade com uma faculdade que a legislação nacional lhe reconhece, de um imposto que o próprio fornecedor tinha pago indevidamente, permitindo apenas que esse consumidor intente uma ação cível de repetição do indevido contra tal fornecedor, quando o caráter indevido desse pagamento resultar de o referido imposto ser contrário a uma disposição clara, precisa e incondicional de uma diretiva não transposta ou incorretamente transposta, e quando, devido à impossibilidade de invocar, enquanto tal, uma diretiva num litígio entre particulares, este fundamento de ilegalidade não possa ser validamente invocado no âmbito dessa ação”.

              Na medida em que os pedidos de reembolso da CSR têm acolhimento processual no nosso ordenamento jurídico e este não contraria qualquer norma ou regime ao nível do direito da União, resta projetar as considerações anteriormente expendidas no concreto caso decidendo.

Como vem sendo salientado pelo TJUE, “ainda que, na legislação nacional, os impostos indiretos tenham sido concebidos de modo a serem repercutidos no consumidor final e que, habitualmente, no comércio, esses impostos indiretos sejam parcial ou totalmente repercutidos, não se pode afirmar de uma maneira geral que, em todos os casos, o imposto é efetivamente repercutido. A repercussão efetiva, parcial ou total, depende de vários fatores próprios de cada transação comercial e que a diferenciam de outras situações, noutros contextos. Consequentemente, a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos” – v. o já citado Processo C-460/21 [§ 45].

Compete aos órgãos nacionais apreciar, à luz das circunstâncias de cada caso concreto, se o encargo do imposto foi efetivamente transferido no todo ou em parte pelo sujeito passivo do imposto para outras pessoas – cf. Acórdão TJUE, de 14 de janeiro de 1997, Comateb (Processo C-192/95) –, exigindo-se, para esse efeito, a prova de que a CSR foi efetivamente suportada por via de repercussão fiscal por quem se arroga atingido pela repercussão de um imposto indevido.

Ora, como resultou do juízo lavrado em sede de determinação da matéria de facto, considera-se que a Requerente não fez prova da repercussão, sendo esta condição sine qua non da procedência do pedido.

Não se tendo provado que a Requerente suportou e em que medida o imposto controvertido, o pedido de pronuncia arbitral terá, consequentemente, de improceder.

 

7. Reembolso de quantia paga e juros indemnizatórios 

            Com a improcedência do pedido principal, fica necessariamente prejudicado o conhecimento do pedido de reembolso do imposto pago e de pagamento de juros indemnizatórios.

 

IV – Decisão

 

            8. Destarte, este Tribunal decide:

 

  1. Julgar improcedentes as exceções invocadas;
  2. Julgar improcedente o pedido arbitral e manter na ordem jurídica os atos de liquidação impugnados e a decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa;
  3. Julgar prejudicado o conhecimento do pedido acessório de reembolso do imposto pago e de pagamento de juros indemnizatórios;
  4. Condenar a Requerente ao pagamento das custas infra determinadas.

 

9. Valor do processo

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, atribui-se ao processo o valor de € 1 323,83.

 

10. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 306,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

 

 

Lisboa, 22 de julho de 2024,

 

 

 

 

 

        (João Pedro Rodrigues)