SUMÁRIO:
I. Não basta a invocação do princípio da prevalência da substância sobre forma de determinados factos, sem fazer uma apreciação efetiva da realidade em conjugação com o fenómeno de fraude à Lei, o que não foi feito pela Requerida no RIT.
II. Os factos dado como provados, por si só, não preenchem a previsão da norma da alínea h) do nº 2 do artigo 5º do CIRS.
III. As liquidações impugnadas são portadoras de vícios de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito o que justifica a sua anulação, nos termos do nº 1 do artigo 163º do CPA, aplicável ex vi artigo 29º nº 1 alínea d) do RJAT.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Fernanda Maçãs (Presidente) e os vogais Dr. Arlindo José Francisco e Dr. Francisco Melo, designados pelo Centro de Arbitragem Administrativa, para formar o Tribunal Arbitral, decidem o seguinte:
I-RELATÓRIO
1-A..., S.A., pessoa coletiva..., com sede social na ..., ..., ..., ..., ...-... ..., tendo sido notificada da demonstração de liquidação de retenção na fonte de IRS com o número 2023..., no valor de € 559.218,06 e respetiva demonstração de liquidação de juros compensatórios com o número 2023..., no valor de € 46.024,41, tudo assim no valor total a pagar de € 605.242,47, cuja data limite de pagamento ocorreu em 06/11/2023; efetuadas pela AT veio, ao abrigo da alínea a) do nº.1 do artigo 10º. do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), apresentar o competente pedido de pronúncia arbitral que tem por objeto as referidas liquidações que pretende ver anuladas, com todas as consequências legais daí advindas incluindo o pagamento de juros indemnizatórios.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral, feito em 2 de fevereiro de 2024, foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD informou as Partes da designação dos Árbitros, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, os quais comunicaram a respetiva aceitação no prazo aplicável. As partes, notificadas dessa designação, em 26 de março de 2024, não manifestaram vontade de a recusar.
Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 8 artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, sem que as Partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 16 de Abril de 2024.
2- A fundamentar o pedido alega, em síntese, a Requerente o seguinte:
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Embora a AT sustente que as liquidações impugnadas são formalmente o corolário do procedimento de inspeção externa de que a Requerente foi alvo quanto ao ano de 2021 a coberto da OI 2022..., o certo é que omite que, materialmente e de facto, o presente procedimento não se iniciou nessa data, mas antes em 05/04/2021 quando, por força das OI2020.../..., o SP foi notificado do início de um procedimento de inspeção externa, embora a AT o classifique de ação interna.
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Foi no âmbito desse concreto procedimento e não deste último que, em reunião ocorrida entre o mandatário e CC do SP, por um lado, e a técnica e chefe de equipa que conduziram o primeiro procedimento inspetivo, por outro, desde logo foi anunciado que a AT tinha a pretensão de proceder às correções em IRS/Retenção na fonte, que logo quantificaram, nos mesmos termos e fundamentos agora expressos no RIT que fundamenta as liquidações aqui impugnadas.
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Foi nessa primeira inspeção que recolheram, analisaram e debateram com o SP e seus representantes todos documentos que são os mesmos que instruem ambos os RIT como seus anexos, designadamente o anexo 1 do presente RIT, que corresponde ao contrato de locação financeira e ata número 6, e que é o mesmo documento que consta como anexo 2 do RIT do procedimento inspetivo que ocorreu a coberto das OIOI2020.../... o anexo 2 do presente RIT, corresponde ao contrato de cessão de posição contratual, e que é o mesmo documento que consta como Anexo 3 do RIT do procedimento inspetivo que ocorreu a coberto das OIOI2020.../..., o anexo 3 do presente RIT, corresponde ao extrato de conta contabilística 251311005 referente ao ano 2018, e que é o mesmo documento que consta como anexo 6, fls. 5, do RIT do procedimento inspetivo que ocorreu a coberto das OIOI2020.../....
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No RIT a AT fundamenta os factos que ali descreve essencialmente transcrevendo parte dos documentos e contratos que lhe foram facultados pelo SP na sequência das solicitações que lhe dirigiu e que este prontamente cumpriu no âmbito do procedimento inspetivo iniciado ao abrigo das OI2020.../..., o que é revelador que os factos (inexistentes) em que a AT fundamenta a tributação já material e temporalmente tinham ocorrido.
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Todos os factos relevantes para o concreto enquadramento jurídico-tributário desenvolvido pela AT reportam-se ao ano de 2018, onde sempre se localizam os factos que preenchem o elemento material, temporal e quantitativo do facto tributário, tal qual o enquadra a AT (não obstante a discordância do SP) pelo que, a mera notificação de uma ordem de serviço, como forma de dar continuidade a um procedimento já iniciado e entretanto concluído com a notificação das respetivas notas de diligência, e cujas conclusões se anunciavam já antes mesmo do respetivo início formal, não pode deixar de conduzir à conclusão de que tratamos do mesmo procedimento, no qual intervieram os mesmos técnicos, omitindo a AT que as liquidações consequentes das correções determinadas em sede de IRC e IVA, o SP deduziu impugnação judicial junto do CAAD, cujo pedido foi declarado procedente.
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No primeiro procedimento inspetivo foram feitas correções meramente aritméticas em sede de IRC e IVA e neste segundo procedimento operaram retenções na fonte no âmbito de IRS, pelo que, em seu entender, considera estar-se em presença de dois procedimentos de inspeção tributária externa, realizados ao mesmo SP, quanto ao mesmo período (2018), com fundamento nos mesmos factos e nos mesmos elementos probatórios, não tendo sido invocados pelo RIT factos novos diferentes dos colhidos no primeiro procedimento inspetivo, não compreendendo o que motivou não ter procedido logo às correções, nem lhe foi justificado.
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A Requerente considera tratar-se do mesmo procedimento, reaberto com o único intuito de proceder a correções no âmbito de retenções na fonte de IRS, mas se considera que a escritura de compra e venda de 13/05/2021, precedida da posição contratual de 29/05/2018, consubstancia uma distribuição de lucros pelos seus acionistas, deveria desde logo ter promovido às respetivas correções, face aos documentos e informações a que então teve acesso e analisou.
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Promover um novo procedimento inspetivo, relativamente ao mesmo SP, aos mesmos factos e ao mesmo período, reproduzindo grande parte do RIT elaborado na primeira inspeção tributária não lhe é permitido face ao disposto o artigo 36º, n.º 2 e 3 do RCPITA que visa, precisamente, assegurar ao contribuinte que a definição jurídica da sua situação, efetuada na sequência da conclusão do procedimento de inspeção externa, não pode ser alterada com base nos mesmos factos apurados pela AT durante tal inspeção, colocando, deste modo, em crise a estabilidade e segurança jurídica nas relações jurídico-fiscais estabelecidas com o contribuinte, situação que é manifestamente abusiva, intrusiva, e viola o princípio da proporcionalidade previsto no artigo 266º, n.º 2 da CRP, artigo 7º do RCPITA e artigo 55º da LGT, termos em que impugna todos os factos mencionados no RIT.
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A AT sustenta que o facto tributário previsto na alínea h), do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, se verificou, na sua vertente material, com a celebração da escritura de opção de compra do imóvel, celebrado entre as pessoas singulares e o Banco, ocorrido em 2021 e que quantifica, enigmaticamente e sem fonte legal expressa ou presumida que o admita, pela soma das despesas com as obras de construção civil de expansão e remodelação da clínica realizadas em 2017 e 2018, somadas ao valor das rendas vencidas e pagas (até 2018) pelo SP, apurando um valor absurdo e sem qualquer fundamentação, de quase 2 milhões de euros que a Requerente não aceita.
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Verifica-se que os atos essenciais, nomeadamente para efeitos de quantificação da matéria tributável, remetem para o ano de 2018, em que ocorreu a cessão de posição contratual, termos em que se alguma correção fosse devida e na perspetiva da Requerente não é, sempre o seria por referência ao referido período de tributação a ter ocorrido, sempre o direito de liquidar teria caducado, se não antes, pelo menos em 31/12/2022, caducidade que invoca.
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Não tendo havido qualquer deliberação de distribuição de lucros e reservas, ou de adiantamento por conta destes, que tenham sido colocados à disposição dos acionistas do SP, sendo as liquidações aqui em causa, resultantes do segundo ato inspetivo, ilegais por padecerem de vícios grosseiros, nomeadamente de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, já apontados, deverão ser anuladas com o consequente reembolso do imposto indevidamente pago, bem como juros indemnizatórios calculados sobre o montante do imposto indevidamente pago, desde a data do pagamento do imposto até à data da emissão da respetiva nota de liquidação.
3- Por sua vez a Requerida alega, em síntese, o seguinte:
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A Requerida pugna pela manutenção na ordem jurídica da liquidação impugnada por entender que a mesma consubstancia uma correta aplicação do direito aos factos.
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A Requerente foi alvo de procedimento inspetivo externo, de âmbito geral e extensão ao período de 2021, conforme alínea a) do n.º 1 e n.º 3 do artigo 14.º do RCPITA, ao abrigo da ordem de serviço OI20220... da DF de Leiria, tendo como motivo o Código PNAIT 102-28 – Controlo declarativo.
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Que conforme se constata do capítulo V do relatório de inspeção, que aqui se dá por reproduzido, a aquisição do prédio urbano ... U ... precedida de cessão de posição contratual de contrato de locação financeira imobiliária sem qualquer contraprestação estabelecida, enquadra-se na definição prevista no artigo 5.º, n.º 1, e n.º 2 al. h) do CIRS, porquanto existe um conjunto de acionistas que representavam em conjunto a totalidade do capital social do sujeito passivo e que participaram nos atos de gestão do sujeito passivo, cujas deliberações produziram vantagens económicas na esfera patrimonial de cada um individualmente.
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Que é indubitável que os acionistas foram beneficiários diretos do negócio por si deliberado, sem, todavia, implicar a perda da fonte do rendimento, pois a participação no capital foi mantida até 01-09-2021 (escritura de compra e venda por opção de compra antecipada de contrato de locação financeira imobiliária n.º ... foi celebrada em 13-05-2021).
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Que entende estar-se em presença de vantagem económica que tem uma relação direta com a participação no capital e nos atos de gestão do sujeito passivo (A... SA), pois sem a existência acumulada destas duas condições, seria inexistente a operação em análise e que factualmente se pode dizer que a transferência da titularidade do imóvel para os acionistas do sujeito passivo à data (Quadros 3 e 6 do relatório), através da celebração de compra e venda por opção de compra antecipada ao abrigo de contrato de locação financeira imobiliária com o n.º ... em 13-05-2021, pelo valor residual de € 135.487,46 (só possível na sequência do contrato de cessão de posição contratual celebrado em 29-05-2018 sem qualquer contraprestação estabelecida), consubstancia um enriquecimento gratuito na esfera patrimonial dos beneficiários (acionistas), traduzindo-se numa vantagem económica concretizada, pelo principio da substância sobre a forma, numa “distribuição de lucros” subsumível às regras de incidência de IRS na categoria E, uma vez que os mesmos viram o seu património aumentar com a obtenção da propriedade do imóvel (Identificação do prédio: ... U...).
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Que esta operação em 2021, bem como as despesas com obras de construção civil de expansão e remodelação da clínica assumidas pelo sujeito passivo (conta 4324-Edifícios e outras construções- da contabilidade), configuram uma distribuição de lucros, sujeito a tributação enquanto rendimento de capitais (categoria E), conforme previsto no artigo 5.º, n.º 1, e n.º 2 alínea h), e no artigo 7.º, n.º 1 e n.º 3 alínea a) subalínea 2) do CIRS, recaindo sobre o sujeito passivo (A... SA), a obrigação de efetuar a respetiva retenção na fonte mediante a aplicação da taxa liberatória de 28% nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 71.º, conjugado com a alínea a) do n.º 2 do artigo 101.º todos do referido código, pelo que deveria ter procedido à entrega da guia de retenção na fonte referente a rendimentos de capitais até 20-06-2021, o que não aconteceu.
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Que face a estes factos e seus fundamentados, conclui que a transferência da titularidade do imóvel da clínica (Identificação do prédio: ... U ...) para a esfera pessoal dos acionistas do sujeito passivo, pelo valor residual de € 135.487,46, induziu o enriquecimento dos beneficiários pelo aumento do seu património individual através de uma distribuição de lucros, pelo que, o valor do imposto a entregar pelo sujeito passivo (A... SA) referente à retenção na fonte de IRS a título definitivo, por via da aplicação da taxa liberatória de 28% sobre a distribuição de lucros no montante de € 1.997.207,34, o que significa imposto em falta referente a retenção na fonte de IRS a título definitivo no montante de € 559.218,06 (cfr, quadro 7 do relatório).
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Que quanto aos argumentos invocados pela Requerente, referentes ao procedimento inspetivo, não lhe assiste razão, porquanto, o procedimento inspetivo realizado ao abrigo da ordem de serviço OI2022... da DF de Leiria foi externo, de âmbito geral e extensão ao período de 2021 (alínea a) do n.º 1 e n.º 3 do artigo 14.º do RCPITA), tendo como motivo o Código PNAIT 102-28 - Controlo declarativo, com o seu início em 2023-01-24 e conclusão em 2023-07-12.
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Por outro lado os procedimentos relativos às ordens de serviço OI2020.../... dizem respeito a procedimentos de inspeção internos, de âmbito parcial (IRC e IVA) e extensão aos períodos de 2017 e 2018 respetivamente (alínea b) do n.º 1 e n.º 3 do artigo 14.º do RCPITA), encerradas em 2022-03-22.
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Deste modo não houve segundo procedimento de inspeção relativamente ao mesmo sujeito passivo e período de tributação, contrariamente ao alegado pela Requerente, uma vez que, o presente procedimento de inspeção (OI2022...) é distinto dos procedimentos de inspeção credenciados pelas ordens de serviço OI2020.../..., quer quanto ao âmbito quer quanto à extensão, pelo que não foi violado o disposto no nº 3 do artigo 63º da LGT.
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Por outro lado nada impede que a AT utilize documentação que tenha sido obtida no âmbito de um outro procedimento tributário, seja ele externo ou interno, ou seja, nada impede que a AT analise a documentação que já estava na sua posse, proveniente de procedimento inspetivo ao mesmo sujeito passivo inspecionado e relativa a exercícios anteriores e que possam ser aproveitados tendo em vista o apuramento da verdade material (artigo 58º da LGT) subjacente aos factos declarados pelo sujeito passivo, que no caso sub judice, os contratos de locação financeira/cedência de posição contratual celebrados pelo sujeito passivo, uma vez que tal é permitido pelo disposto no nº 2 do artigo 44º do RCPITA, não assistindo razão à Requerente, não se mostrando violado o princípio da proporcionalidade previsto no artigo 266º nº 2 da CRP, artigo 7º do RCPITA e artigo 55º da LGT.
4- Não havendo lugar à produção de prova nem tendo sido apresentadas exceções, o Tribunal dispensou a realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT e concedeu às Partes o prazo de 15 dias para a produção de alegações escritas, tudo conforme Despacho de 25 de Maio último.
5-Em 20/6/2019 quer a Requerente quer a Requerida apresentaram as respetivas alegações que, no essencial, procuram reforçar a argumentação que defendem.
II – SANEAMENTO
6-O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer do pedido, em conformidade com o preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, do RJAT (com a redação introduzida pelo artigo 228.º da lei nº 66-B/2012, de 31 de dezembro), tendo o pedido sido tempestivamente apresentado nos termos dos artigos 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se devidamente representadas de harmonia com os artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
O processo não enferma de nulidades, nem existem exceções ou questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
Cumpre apreciar e decidir.
III- FUNDAMENTAÇÃO
- As questões a dirimir são as seguintes:
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Se as liquidações de IRS nº. 2023..., no valor de € 559.218,06, e de Juros compensatórios nº 2023..., no valor de € 46.024,41, deverão ser anuladas por serem ilegais, por padecerem de vícios grosseiros, nomeadamente de violação da lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, ou se pelo contrário deverão ser mantidas na ordem jurídica por terem sido processadas de acordo com as normas legais aplicáveis;
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Se em caso de anulação e consequente reembolso, o mesmo deverá ou não ser acompanhado do pagamento de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43º da LGT.
III- FUNDAMENTAÇÃO
III-2 – Matéria de facto
2.1- Factos provados
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A Requerente é uma sociedade anónima, cujo objeto social é a «Prestação de serviços médicos – tratamentos de doenças renais», encontrando-se, à data dos factos, fiscalmente enquadrada, em sede de IVA, no regime de isenção e, em sede de IRC, no regime geral de tributação.
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A Requerente é uma entidade convencionada, no âmbito da convenção para a prestação de cuidados de saúde na área da diálise, através da unidade de diálise que detém e explora na cidade de ..., atividade que está sujeita ao licenciamento e fiscalização da Entidade Reguladora da Saúde e da Administração Regional de Saúde do Centro e da verificação e satisfação dos requisitos exigidos em matéria de organização e funcionamento das unidades de saúde para os efeitos da atribuição e manutenção de licença de funcionamento.
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Por contrato de compra e venda, datado de 23 de julho de 2003, a Requerente adquiriu, pelo preço de €164.603,31 o prédio urbano composto por parcela de terreno para construção, sito na...– ... lote ... freguesia e concelho de ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., com o fim de o destinar à instalação de uma unidade de prestação de cuidados de saúde na área da diálise.
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No dia 15 de Maio de 2006, a Requerente celebrou com o Banco Comercial Português um contrato de locação financeira imobiliária pelo qual vendeu ao Banco o imóvel referido e de imediato se tornou locatária do mesmo “contrato de financiamento de sale and leaseback”, através do qual o banco disponibilizou o capital de €1.500.000,00, como financiamento para o desenvolvimento da atividade da Requerente, a qual ficou obrigada a restituir em 180 rendas mensais, ao longo de 15 anos, estipulando-se ainda que, no caso do exercício do direito, não obrigatório, meramente potestativo, da opção de compra, o valor residual seria de 10% do valor do financiamento.
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Por contrato de 29 de Maio de 2018, a Requerente cedeu a sua posição no contrato de locação financeira imobiliária referido à totalidade dos seus acionistas, não recebendo qualquer contrapartida.
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À data da celebração do referido contrato encontravam-se em dívida rendas do valor de €490.554,48 e no caso de cumprimento integral do contrato de locação financeira e do exercício do direito de opção de aquisição pelos agora locatários, estes teriam de pagar ao locador o valor residual de €150.000,00, acrescido dos encargos legais ou fiscais que ao caso viessem a ocorrer, sendo nessa altura o valor patrimonial do imóvel de €639.000,00.
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O valor das rendas pagas pela Requerente na altura desta cedência eram de € 1.045.542,04, tendo ainda nos exercícios de 2017 e 2018, suportado obras de remodelação do edifício que ascenderam a € 960.566,63.
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Desde 2006 que a Requerente vem utilizando o imóvel já referido e objeto de locação no âmbito da sua atividade, tendo adquirido os equipamentos necessários à adequação do espaço à mesma que ali exerce e à prestação dos cuidados de saúde na área da diálise.
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A Requerente foi sujeita a uma ação de inspeção interna de âmbito parcial, em sede de IRC e IVA, aos exercícios de 2017 e 2018, que culminou em correções aritméticas no âmbito de IRC e IVA.
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Por escritura de compra e venda de 13 de Maio de 2021, e pelo valor residual de € 135.487,46, os acionistas da Requerente, através da mesma e por opção de compra antecipada ao abrigo de contrato de locação financeira imobiliária com o n.º..., adquiriram a titularidade do imóvel onde vem sendo exercida a atividade da Requerente.
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A Requerente foi alvo de procedimento inspetivo externo, de âmbito geral e extensão ao período de 2021 (alínea a) do n.º 1 e n.º 3 do artigo 14.º do RCPITA), ao abrigo da ordem de serviço OI2022... da DF de Leiria, tendo como motivo o Código PNAIT 102-28 – Controlo declarativo.
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Desta inspeção resultou que a AT considerou que a transferência da titularidade do imóvel para os acionistas da Requerente acima referida, consubstanciava um enriquecimento gratuito na esfera patrimonial dos respetivos acionistas, que, na perspetiva da AT, se traduz numa vantagem económica pelo princípio da substância sobre a forma, numa “distribuição de lucros” subsumível às regras de incidência de IRS na categoria E, uma vez que os mesmos viram o seu património aumentar com a obtenção da propriedade do imóvel.
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Nos termos do respetivo relatório que aqui se dá, nessa parte, por reproduzido, foi apurado o lucro tributável de € 1.997.207,34, que corresponde ao somatório das rendas vencidas e pagas pela Requerente até à data da cessão de posição contratual no montante de € 1.045.542,04, com as despesas das obras de remodelação evidenciadas no balancete de 01-01-2021, no montante de € 951.665,30.
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À matéria tributável assim apurada foi aplicada a taxa de 28% prevista no artigo 71º nº 1 alínea a) do CIRS, apurando-se o imposto a pagar de € 559.218,06 e juros compensatórios de € 46.024,41, tudo no valor global de € 605.242,47, valor pago em 02/11/2023.
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A Requerente deduziu o presente pedido de pronúncia em 02/02/2024.
2-2 -Factos não provados
Não existem factos não provados com relevo para decisão da causa.
2-3- Fundamentação da Decisão sobre a Matéria de Facto
O Tribunal não tem de se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas Partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objeto do litígio no direito aplicável (conforme artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
A convicção do Tribunal Arbitral fundou-se na livre apreciação das posições assumidas pelas Partes e no teor dos documentos juntos aos autos.
Não se consideraram como provadas nem o contrário as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
III-3- MATÉRIA DE DREITO
A questão essencial que se discute nos autos traduz-se em saber, como já se viu, se as liquidações de IRS respeitantes ao ano de 2021 de retenções na fonte nº. 2023..., no valor de € 559.218,06 e de juros compensatórios nº 2023..., no valor de € 46.024,41, deverão ser anuladas por serem ilegais, por padecerem de vícios grosseiros, nomeadamente de violação da lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, ou se pelo contrário deverão ser mantidas na ordem jurídica por terem sido processadas de acordo com as normas legais aplicáveis.
Posição da Requerente
A Requerente começa por invocar a realização de dois procedimentos inspetivos relativamente ao mesmo SP, mesmo período, e com base nos mesmos factos, somente para a AT efetuar correções com base no segundo procedimento que já podia ter efetuado aquando do primeiro, o que, no seu entender, não pode ser permitido e é manifestamente abusivo, intrusivo, e violador do princípio da proporcionalidade previsto no artigo 266º, n.º 2 da CRP, artigo 7º do RCPITA e artigo 55º da LGT, considerando que as liquidações levadas a efeito com base no segundo procedimento inspetivo, são ilegais por vício de violação de lei.
Sem prescindir, salienta que as liquidações em causa estão fundadas no aludido segundo relatório que deveria conter, nos termos do nº.1 e 2 do artigo 77º da LGT, as razões de facto e direito que as suportam, a sua qualificação e quantificação, sendo este o corolário do nº 3 do artigo 268º da CRP, que constitui o comando constitucional de fundamentação dos atos administrativo. Embora a AT diga que o facto tributário previsto na alínea h), do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, se verificou, na sua vertente material, com a celebração da escritura de opção de compra do imóvel, celebrado entre as pessoas singulares e o Banco, ocorrido em 2021, sem fazer referência a qualquer fonte legal expressa ou presumida que o admita, faz a soma de despesas com as obras de construção civil de expansão e remodelação da clínica realizadas em 2017 e 2018, somadas ao valor das rendas vencidas e pagas, até 2018, pela Requerente ao Banco, obtendo assim a matéria coletável no montante de € 1 997 207,34.
Considera que os factos dados como provados no processo 487-2022-T do CAAD terão de entender-se como assentes, sob pena de uma inadmissível contradição entre o conjunto lógico dos factos julgados provados que conduziram à decisão proferida naquele processo impugnatório e aqueles que vierem a considerar-se no âmbito do mesmo procedimento inspetivo formal e materialmente já referido sob pena de violação do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, com consagração constitucional, donde resulta que o valor do imóvel, seja para efeitos fiscais, seja o valor de mercado, não era superior ao encargo das rendas vincendas à data de cessão da posição contratual e do valor residual, no caso de opção pela compra e cumprimento integral das obrigações assumidas.
Não existe nenhuma deliberação de distribuição de lucros e reservas, ou de adiantamento por conta destes, que não foram colocados à disposição dos acionistas da Requerente.
Por outro lado a AT enquadra as correções que promove como distribuição de dividendos, tal como prevista na alínea h), do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, quando dos factos por ela descritos no relatório não resulta o preenchimento dos elementos do tipo objetivo de imposto, designadamente na sua vertente material, temporal e quantitativa tudo como melhor consta na sua petição que nessa parte se dá aqui por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais, concluindo que a AT não faz prova dos pressupostos em que funda a sua pretensão tributária, nem poderia fazer por não haver lucros nem reservas, não há deliberação, não foi colocado à disposição dos anteriores acionistas do SP qualquer valor, rendimento ou sequer perceção deste, e o SP não interveio sequer em qualquer negócio ou facto com relevância tributária ou outra no ano de 2021, devendo o ato impugnado ser anulado, por erro nos pressupostos de facto e de direito.
Ainda sem prescindir a Requerente considera que a existir lugar a alguma correção, e do seu ponto de vista não há, os factos essenciais, nomeadamente para efeitos de quantificação da matéria tributável, remetem para o ano de 2018, data em que ocorreu a cessão de posição contratual, o direito de liquidar teria caducado, se não antes, pelo menos em 31/12/2022, direito que expressamente invoca.
Conclui que o vício próprio do procedimento de inspeção, afeta os atos tributários de liquidação aqui em crise, por outro lado não existem factos que preencham o elemento objetivo, material e quantitativo, da norma tributária que a AT convoca para promover as correções contidas no RIT em excesso de quantificação, mas mesmo que assim não fosse o direito da AT efetuar tais correções caducou, pelo que as liquidações impugnadas padecem de vícios grosseiros, nomeadamente de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito e como tal devem ser anuladas e com a consequente procedência do pedido de pronúncia arbitral, deve a Requerente ser reembolsada do imposto indevidamente pago, acompanhado do pagamento dos juros indemnizatórios calculados sobre o respetivo montante desde a data do pagamento até à data da emissão da respetiva nota de reembolso.
Posição da Requerida
Alega a Requerida que do procedimento inspetivo externo, de âmbito geral e extensão ao período de 2021, conforme alínea a) do n.º 1 e n.º 3 do artigo 14.º do RCPITA, ao abrigo da ordem de serviço OI2022...da DF de Leiria, tendo como motivo o Código PNAIT 102-28 – controlo declarativo resulta do capítulo V do respetivo relatório de inspeção, que a aquisição do prédio urbano ... U ... precedido de cessão de posição contratual de contrato de locação financeira imobiliária sem qualquer contraprestação estabelecida, enquadra-se na definição prevista no artigo 5.º, n.º 1, e n.º 2 al. h) do CIRS, porquanto existe um conjunto de acionistas, que representavam em conjunto a totalidade do capital social do sujeito passivo e que participaram nos atos de gestão do sujeito passivo, cujas deliberações produziram vantagens económicas na esfera patrimonial de cada um individualmente, consubstanciando um enriquecimento gratuito na esfera patrimonial dos acionistas, traduzindo-se numa vantagem económica concretizada, pelo principio da substância sobre a forma, numa “distribuição de lucros” subsumível às regras de incidência de IRS na categoria E, uma vez que os mesmos viram o seu património aumentar com a obtenção da propriedade do imóvel identificado. Esta operação, bem como as despesas com obras de construção civil de expansão e remodelação da clinica assumidas pelo sujeito passivo (conta 4324-Edifícios e outras construções- da contabilidade), configuram uma distribuição de lucros, sujeito a tributação enquanto rendimento de capitais, conforme previsto no artigo 5.º, n.º 1, e n.º 2 alínea h), e no artigo 7.º, n.º 1 e n.º 3 alínea a) subalínea 2) do CIRS, recaindo sobre a Requerente a obrigação de efetuar a respetiva retenção na fonte mediante a aplicação da taxa liberatória de 28% nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 71.º, conjugado com a alínea a) do n.º 2 do artigo 101.º todos do referido código, pelo que deveria ter procedido à entrega da guia de retenção na fonte referente a rendimentos de capitais até 20-06-2021, o que não aconteceu.
Quanto aos argumentos invocados pela Requerente quanto ao procedimento inspetivo, vem dizer que o procedimento inspetivo, realizado ao abrigo da ordem de serviço OI2022... da DF de Leiria, foi externo, de âmbito geral e extensão ao período de 2021 (alínea a) do n.º 1 e n.º 3 do artigo 14.º do RCPITA), tendo como motivo o Código PNAIT 102-28 - controlo declarativo, com o seu início em 2023-01-24 e conclusão em 2023-07-12, enquanto os procedimentos relativos às ordens de serviço OI2020.../..., dizem respeito a procedimentos de inspeção internos, de âmbito parcial (IRC e IVA) e extensão aos períodos de 2017 e 2018 respetivamente (alínea b) do n.º 1 e n.º 3 do artigo 14.º do RCPITA), encerradas em 2022-03-22, pelo que não houve segundo procedimento de inspeção relativamente ao mesmo sujeito passivo e período de tributação, contrariamente ao alegado pela Requerente, não havendo violação do disposto no nº 3 do artigo 63º da LGT. Cabendo à AT, no uso dos poderes de inspeção que lhe estão conferidos cujo exercício está subordinado à descoberta da verdade material, conforme artigo 58º da LGT, pode no exercício da sua atividade inspetiva realizar todas as diligências necessárias ao apuramento da situação tributária dos contribuintes, desde o acesso e o exame de quaisquer elementos que possam revelar tal situação, conforme artigos 28º, nº2 e 29º, nº 1, al. a) e nº 2 do RCPITA, nomeadamente, a análise de documentos obtidos em procedimento de inspeção realizados a exercícios anteriores, deste modo não assiste razão à Requerente, não se mostrando violado o princípio da proporcionalidade previsto no artigo 266º nº 2 da CRP, artigo 7º do RCPITA e artigo 55º da LGT.
Considera que os factos estão devidamente fundamentados no RIT e que o Acórdão proferido no âmbito do processo do CAAD nº 487/2022-T não produz quaisquer efeitos relativamente às correções efetuadas no procedimento de inspeção OI2022..., ora postas em causa.
Quanto ao alegado erro sobre os pressupostos de facto e direito e da alegada inexistência de facto tributário/Falta de demonstração da pretensão tributária da AT, remete para o RIT no qual estão fundamentados e demonstrado nos capítulos III a V do relatório que permitem fazer o enquadramento dos valores contabilísticos como rendimentos da categoria E, nos termos previstos no artigo 5.º, nºs.1 e 2, alínea h) do CIRS.
Relativamente à alegada caducidade, entende que a mesma não existe, dado que o facto tributário em análise, subjacente às correções propostas, ocorreu em 13-05-2021 aquando da transferência da titularidade do imóvel, já referido, para os acionistas da Requerente pelo que não está em causa a caducidade do direito de liquidação do imposto em falta.
Ainda quanto à alegada falta de fundamentação da quantificação a mesma não se verifica dado que ao longo dos pontos já referidos do RIT, consta o motivo das correções em sede de retenção na fonte em IRS, sendo identificados quer os fundamentos de facto quer os fundamentos de direito, fixando-se o respetivo montante das correções, ou seja, verifica-se as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo exigidas pelo nº 2 do artigo 77ºd a LGT, sendo por isso, perfeitamente possível, a partir das informações disponibilizadas pela AT, compreender o iter funcional cognoscitivo e valorativo da elaboração do ato, não se verificando a alegada ausência de fundamentação legal para a quantificação das correções efetuadas.
Concluindo que não estão reunidos os requisitos para que possam ser atribuídos juros indemnizatórios, uma vez que a liquidação, como ficou demonstrado, não sofre de qualquer ilegalidade.
Quid júris
§1.º Quanto à alegada violação do princípio da proporcionalidade previsto no artigo 266º, n.º 2 da CRP e artigo 7º do Regulamento Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA) e artigo 36º, n.º 2 e 3 do mesmo Regulamento e artigo 55º da LGT:
A Requerente entende que o procedimento inspetivo violou as normas legais em epígrafe, dado ter havido duas inspeções e os elementos que suportaram as liquidações em crise terão sido recolhidos na 1ª inspeção e não na segunda como a AT pretende.
Compulsada a matéria de facto dada como provada, a conclusão que se retira é que de facto ocorreram duas ações de inspetivas independentes, uma ação de inspeção interna de âmbito parcial, em sede de IRC e IVA, aos exercícios de 2017 e 2018, que culminou em correções aritméticas no âmbito dos referidos impostos, e outra de caráter externo de âmbito geral e extensão ao período de 2021 que culminou com o apuramento de IRS categoria E no montante € 559.218,06, que se discute no presente processo. Na verdade, o primeiro procedimento de inspeção culminou na elaboração de correções aritméticas no âmbito do IVA e IRC dos referidos exercícios que a Requerente impugnou com decisão no âmbito do processo nº 487/2022-T do CAAD, sem relevância no presente processo.
A 2ª inspeção de caráter externo de âmbito geral e extensão ao período de 2021 que culminou com o apuramento de IRS categoria E em discussão no presente processo.
Verifica-se a existência de dois procedimentos inspetivos distintos quer quanto ao âmbito quer quanto à extensão, pelo que se entende não ter sido violado o princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 266º nº 2 da CRP e artigo 7º do RCPITA, nem os princípios referidos no artigo 55º da LGT e tratando-se, como já se viu, de procedimentos distintos também não houve violação dos nº2 e 3 do RCPITA.
O RCPITA, tal como consta do seu preâmbulo, visa em primeira linha “…a organização do sistema inspetivo, e consequentemente a garantia da proporcionalidade aos fins a atingir, da segurança dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários e a própria participação destes na formação das decisões…”
A eventual violação de normas do RCPITA terá como a consequência de obstar a que ocorram determinados efeitos próprios daquele procedimento, como a suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação de tributos, ou a obrigação de abertura das instalações dos visados à inspeção tributária e não se reflete nas liquidações resultantes da recolha de informações pela AT (veja-se nesse sentido o Acórdão do STA, proferido no processo 0955/07, em 27-02-2008) cujo sumário transcrevemos: “Os procedimentos inspetivos e de liquidação são distintos entre si, ainda que este tenha carácter meramente preparatório ou acessório, o que não significa que as ilegalidades nele cometidas se projetem, fatalmente, na liquidação, invalidando-a”.
Concluindo-se que os procedimentos inspetivos foram distintos, a AT atuou dentro dos limites que lhe são conferidos pelo artigo 14º do RCPITA, realizou as diligências que entendeu necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material no cumprimento do dever que lhe é imposto pelo artigo 58º da LGT sem se verificar a violação, no âmbito inspetivo das normas aduzidas pela Requerente e, mesmo a verificarem-se, o seu efeito não se repercutiria na liquidação aqui em crise, improcedendo, deste modo, os vícios que por esta via lhe são imputados.
§2.º Falta de fundamentação na qualificação e quantificação do apuramento levado a efeito pela AT.
Na perspetiva da Requerente, como já se viu, não existe prova dos pressupostos em que a AT se funda para a tributação em causa, dado não ter havido lucros, reservas, não houve qualquer deliberação para a distribuição de lucros, e não foi colocado à disposição dos anteriores acionistas do SP qualquer valor, rendimento ou sequer perceção deste, e o SP não interveio sequer em qualquer negócio ou facto com relevância tributária ou outra no ano de 2021, devendo o ato impugnado ser anulado, por erro nos pressupostos de facto e de direito.
Por sua vez a Requerida, sustenta o seu ponto de vista considerando que a transferência da titularidade do imóvel para os acionistas do sujeito passivo, através da celebração da escritura compra e venda de 13 de Maio de 2021, só foi possível na sequência do contrato de cessão de posição contratual celebrado em 29 de Maio de 2018, sem qualquer contraprestação estabelecida, o que, em seu entender, consubstancia um enriquecimento gratuito na esfera patrimonial dos acionistas, traduzindo-se numa vantagem económica concretizada pelo principio da substância sobre a forma, numa “distribuição de lucros” subsumível às regras de incidência de IRS na categoria E, uma vez que os mesmos viram o seu património aumentar com a obtenção da propriedade do imóvel, considerando verificáveis as disposições legais aplicáveis quer quanto à qualificação quer quanto à quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo exigidas pelo nº 2 do artigo 77ºda LGT, remetendo para o RIT a sua comprovação.
Verifica-se que o RIT enquadra os factos na previsão da norma do artigo 5º nº 1 e 2, alínea h) e ainda no artigo 7º nº 1 e n.º 3 alínea a), subalínea 2) ambos do CIRS e que se transcrevem:
“Artigo 5º - Rendimentos da categoria E
1 - Consideram-se rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respetiva modificação, transmissão ou cessação, com exceção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias
2 - Os frutos e vantagens económicas referidas no número anterior compreendem, designadamente:
h) Os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respetivos associados ou titulares, incluindo adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20°.
Artigo 7.º - Momento a partir do qual ficam sujeitos a tributação os rendimentos da categoria E
1 - Os rendimentos referidos no artigo 5.º ficam sujeitos a tributação desde o momento
em que se vencem, se presume o vencimento, são colocados à disposição do seu titular, são liquidados ou desde a data do apuramento do respetivo quantitativo, conforme os casos.
…
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, atende-se:
a) Quanto ao n.º 2 do artigo 5.º:
…
2) A colocação à disposição, para os rendimentos referidos nas alíneas h), i), j), l) e r), assim como dos certificados de consignação;”
Da enumeração, de natureza exemplificativa, dos frutos e vantagens económicas a que alude o nº 1 do artigo 5º do CIRS, e prevista no nº 2 do mesmo normativo, não se vislumbra que dos factos dado como provados algum se enquadre na alínea h) do nº 2 do artigo 5º do CIRS. Na verdade, no relatório de inspeção tributária a AT não faz qualquer demonstração de lucros e reservas colocados à disposição dos associados ou titulares e adiantamentos por conta de lucros, limitando-se a retirar uma conclusão sem dar relevo à cedência da posição contatual, às rendas então em divida, no valor de €490.554,48, e ainda ao facto de, no caso de cumprimento integral do contrato de locação financeira e do exercício do direito de opção de aquisição pelos agora locatários, estes terem de pagar ao locador o valor residual de € 150.000,00, acrescido dos encargos legais ou fiscais que ao caso viessem a ocorrer, sendo nessa altura o valor patrimonial do imóvel de € 639.000,00. Também não faz qualquer comprovação ou referência às presunções relativas a rendimentos da categoria E, previstas no artigo 6º do CIRS que se transcreve:
“Artigo 6.º - Presunções relativas a rendimentos da categoria E
1 - Presume-se que as letras e livranças resultam de contratos de mútuo quando não provenham de transações comerciais, entendendo-se que assim sucede quando o credor originário não for comerciante.
2 - Presume-se que os mútuos e as aberturas de crédito referidos na alínea a) do n.º 2 do artigo anterior são remunerados, entendendo-se que o juro começa a vencer-se nos mútuos a partir da data do contrato e nas aberturas de crédito desde a data da sua utilização.
3 - Até prova em contrário, presumem-se mutuados os capitais entregues em depósito não incluídos na alínea b) do n.º 2 do artigo anterior e cuja restituição seja garantida por qualquer forma.
4 - Os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.
5 - As presunções estabelecidas no presente artigo podem ser ilididas com base em decisão judicial, ato administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Autoridade Tributária e Aduaneira.”
A AT, no seu relatório inspetivo, invoca o princípio contabilístico da ”substância sobre a forma”, segundo o qual as operações devem ser contabilizadas de acordo com a sua substância e realidade financeira e não apenas de acordo com a sua forma legal, sem no entanto especificar e demonstrar a que factos é que deveria ser aplicado o referido princípio – Seria nas rendas pagas pela Requerente até 2018 ao Banco? Seria nas obras levadas a efeito em 2017 e 2018, ou no ato de aquisição do imóvel em 2021, no qual a Requerente, como já se viu, não teve qualquer intervenção? A AT nada concretiza no relatório da inspeção no que respeita à ineficácia de atos e negócios jurídicos a que alude o artigo 38º da LGT. Ver neste sentido o Acórdão do TCA Sul – Pº 637/09.2BELRS de 23/02/2017, cujo sumário, nessa parte se transcreve: “Segundo o princípio da prevalência da substância sobre a forma, nuclearmente, o que releva, para o direito fiscal, é o apuramento da efectiva realidade, relevante para efeitos de tributação, que não a mera forma do negócio jurídico concretamente utilizado. Tal princípio deve ser examinado em conjugação com o fenómeno da fraude à lei, assim podendo limitar o contribuinte no que respeita ao grau da sua oneração fiscal e consubstanciando a aplicação de tal princípio a consagração da cláusula geral anti-abuso prevista no artº.38, nº.2, da L.G.T”.
Nesta perspetiva, o Tribunal considera que os factos mencionados no RIT e dados como provados, designadamente, a aquisição em 13 de maio de 2021 pelos acionistas do imóvel onde vem sendo exercida a atividade da Requerente, e as obras de expansão e modificação por ela levadas a efeito no mesmo edifício em 2017 e 2018, não encontram acolhimento na previsão da norma da alínea h) do nº 2 do artigo 5º do CIRS, e o mesmo se diga quanto à verificação das presunções estabelecidas no artigo 6º do mesmo Código. Na verdade, não se mostra provada a existência de lucros nem a sua colocação à disposição dos sócios. Por outro lado, atente-se que a transferência da posição de locatário da Requerente para os respetivos acionistas, com todos os direitos e deveres inerentes, ocorreu em Maio de 2018, e a aquisição, por estes, do imóvel ocorreu em 2021, data que é valorizada pela AT, para efeitos da tributação aqui em causa. Ora, tendo sido a Requerente marginal a esta aquisição, e não tendo tido qualquer intervenção, considera o Tribunal que a AT não logrou demonstrar como é que o valor das rendas vencidas pagas até Maio de 2018, somado ao valor suportado pelas obras realizadas em 2017 e 2018, qualifica como rendimento coletável da categoria E.
Do que se deixa exposto é de concluir a evidência de erro na qualificação e quantificação do apuramento da matéria coletável, na medida em que não basta a invocação do princípio da prevalência da substância sobre forma de determinados factos, sem fazer uma apreciação efetiva da realidade em conjugação com o fenómeno de fraude à Lei, o que não foi feito pela AT no RIT, termos em que consideramos as liquidações impugnadas portadoras de vícios de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que justifica a sua anulação, nos termos do nº 1 do artigo 163º do CPA, aplicável ex vi artigo 29º nº 1 alínea d) do RJAT, ficando prejudicado, por inútil, o conhecimento de outros vícios que eventualmente padeçam, conforme artigos 130 e 608º, nº 2 do CPC.
IV – JUROS INDEMNIZATÓRIOS
A Requerente peticiona ainda a restituição da quantia paga acrescida do pagamento de juros indemnizatórios, sendo certo que a jurisprudência arbitral tem reiteradamente afirmado a competência destes Tribunais para proferir pronúncias condenatórias derivadas do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios originados em atos tributários ilegais que aí sejam impugnados, ao abrigo do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) e n.º 5 do RJAT e 43.º e 100.º da LGT.
Desta disciplina deriva o dever, que recai sobre a AT, de reconstituição imediata e plena da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, como resulta do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT e 100.º da LGT, fazendo este último preceito referência expressa ao pagamento de juros indemnizatórios por parte da AT que deve reintegrar totalmente a ordem jurídica violada, restituindo as importâncias de imposto pagas em excesso e, neste âmbito, a privação ilegal dessas importâncias deve ser objeto de ressarcimento por via do cálculo de juros indemnizatórios, por forma a reconstituir a situação atual hipotética que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado.
Termos em que a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, que são devidos, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva, calculados sobre o valor pago indevidamente, contados desde a data em que foi efetuado o pagamento até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
V – DECISÃO
Face ao exposto o Tribunal decide:
-
Declarar o pedido de pronúncia arbitral procedente com todas as consequências legais daí advindas, designadamente a anulação das liquidações nº 2023... e 2023..., no valor global de € 605.242,47;
-
Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, calculados nos termos legais;
-
Condenar a Requerida a restituir à Requerente o montante indevidamente pago;
-
Condenar a Requerida em custas.
VI-VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 605.242,47 de harmonia com as disposições contidas no artigo 299º, nº 1, do CPC, artigo 97º-A do CPPT, e artigo 3º, nº2, do RCPAT.
VII- CUSTAS
Fixa-se o montante das custas em € 9 180,00, de acordo com o disposto na tabela I referida no artigo 4º do RCPAT, que ficam a cargo da Requerida de harmonia com o disposto no nº 4 do artigo 22º do RJAT e do artigo 527º nº 2 do CPC, aplicável ex vi alínea e) do nº 1 do artigo 29º do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 11 de julho de 2024
O Tribunal Coletivo
Fernanda Maçãs
(Presidente)
Dr. Arlindo José Francisco
(Árbitro vogal – relator)
Dr. Francisco Melo
(Árbitro vogal)