SUMÁRIO
- Por força da al. a) do art. 111º do CSC, transmitem-se para a sociedade incorporante os direitos e obrigações titulados pelas sociedades incorporadas. Tal transmissão inclui os créditos de natureza fiscal.
- Não existe norma legal que sujeite a comunicação prévia à AT a intenção da sociedade incorporante de continuar a reportar, em períodos posteriores à fusão, créditos de IVA de que eram titulares sociedades incorporadas.
- A figura do indeferimento tácito foi eliminada da nossa ordem jurídica. O incumprimento, no prazo legal, do dever de decidir é tratado como um mero facto que confere ao interessado a faculdade de utilizar os meios de tutela administrativa e jurisdicional adequados.
- O ato impugnado deve ser anulado sempre que não se demonstre em juízo que os respetivos pressupostos se encontram preenchidos e é sobre a administração que recai o ónus de demonstrar o preenchimento desses pressupostos.
DECISÃO ARBITRAL
A..., S.A., NIPC..., com sede na ..., n.º ..., ..., ...-... Porto, veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
A) O pedido
A Requerente peticiona que:
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Se anule o ato de liquidação de IVA (e de juros) n.º 2022..., no valor total de € 207.761,88 por ilegal, com as consequências legais;
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Se condene a Requerida na restituição do imposto indevidamente pago, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios à taxa legal.
B) O litígio
A Requerente incorporou por fusão várias sociedades, das quais duas eram titulares de créditos de IVA que vinham reportando para períodos seguintes.
A Requerente considerou que, em razão da fusão, havia passado a ser titular de tais créditos de IVA, os quais fez constar das suas declarações mensais apresentadas após o registo da fusão.
No entender da Requerente, em outubro de 2022 permanecia ainda um saldo credor de IVA no montante de € 377.067,11
A AT desconsiderou, na sua totalidade, os créditos de IVA que se transmitiram para a Requerente, por conta da realização da operação de cisão-fusão e que estavam em reporte na esfera sociedades incorporadas.
Na sua resposta[1], por impugnação, a AT alega, como justificativo de tal decisão, no essencial[2], o seguinte:
- Sem comunicação prévia e intervenção da AT, a Requerente não poderia incluir na DP, referente ao período 2022-09[3], um excesso a reportar de 479.390,34 €, quando da DP anterior (do período 2022-08) apenas resultou um excesso a reportar de 34.705,99 €
- De modo similar, relativamente ao período 2022-10, a Requerente inscreveu no campo 61 da respetiva DP, o valor global de 377.067,11 € (que apurou na DP do período 2022-09), ao passo que os serviços da AT não consideram qualquer montante de crédito de IVA, dado que haviam apurado IVA a pagar (no valor de 67.617,24 €).
- Mas, mesmo que se entendesse nos presentes autos, que a Requerente poderia ter inscrito na sua DP de IVA aquele imposto, ainda que não tivesse efectuado a competente comunicação prévia à Requerida, o que não se concede, sempre teria de provar nos presentes autos, a existência daquele crédito de imposto na esfera das sociedades que exerceram o direito à dedução.
- A Requerente impediu os serviços de inspeção da Requerida, de exercer o devido controlo sobre o imposto deduzido.
A Requerida invocou ainda uma exceção (caducidade do direito à ação) e suscitou uma questão prévia.
c) Tramitação processual
O pedido foi aceite em 19/01/2024.
Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.
O tribunal arbitral ficou constituído em 26/03/2024.
A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.
Em13/05/2024 a Requerente respondeu às exceções e à questão prévia invocadas pela Requerida.
Por despacho de 28/06/2024 foi decidido, com acordo das partes, prescindir da audição das testemunhas, aproveitando-se os seus depoimentos em outro processo, similar, tendo sido junta aos presentes autos a respetiva gravação
Por despacho de 03/07/2024, foram prescindidas, sem oposição, a reunião a que se refere o art. 18º do RJAT e a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs.
d) Saneamento
O processo não enferma de nulidades ou irregularidades. Não existem questões que possam obstar ao conhecimento do mérito, para além da exceção e da questão prévia que a seguir se analisarão.
d.1) Da Caducidade do Direito de Ação
A cronologia relativa à emissão da liquidação em causa, reclamação graciosa e presente impugnação arbitral está adiante dada como provada.
A exceção de caducidade invocada pela AT pode resumir-se assim:
- A Requerente não peticionou, neste processo, a anulação de “decisão” que versou sobre a reclamação graciosa;
- Consequentemente, o prazo para interposição da presente ação arbitral contar-se-ia da data de pagamento voluntário e não o dia seguinte àquele em que a reclamação graciosa perfez quatro meses de pendência sem decisão.
É bom de ver a inconsistência deste argumentário. Aliás, é difícil compreender que a AT, que deveria ser a primeira garante da legalidade, nomeadamente na sua dimensão de verdade material, utilize este tipo de argumentos para se tentar furtar à reapreciação do mérito das situações sujeitas à sua apreciação.
Há que começar por salientar que a existência da reclamação graciosa e o silêncio administrativo foram claramente alegados pela Requerente na sua petição dirigida a este tribunal arbitral. Apenas está em causa o teor literal do pedido formulado.
Este Tribunal arbitral poderia ultrapassar facilmente a questão sugerindo à Requerente a correção do requerimento inicial.
Não o faz porquanto o considera desnecessário, pois:
- Primeiro, a existência de uma reclamação graciosa, conjugada com o silêncio administrativo, mais não é que um pressuposto da tempestividade da impugnação judicial. Ora, os pressupostos processuais não integram o pedido, são condições para ser possível a apreciação do mérito deste.
- Segundo, a ideia de um indeferimento tácito como configurando uma “decisão ficcionada” (cuja anulação teria que ser pedida) é uma ideia ultrapassada.
Com Mário Aroso de Almeida[4] a figura do indeferimento tácito foi, contudo, eliminada da nossa ordem jurídica com a entrada em vigor, em 1 de janeiro de 2004, do CPTA, que, introduzindo um novo regime de processo nos tribunais administrativos, introduziu, com carácter invitatório, a possibilidade, para este tipo de situações, da dedução, por parte do interessado, de um pedido de condenação da administração à prática dato administrativo ilegalmente omitido (cfr. artigos 66ª e segs. do CPTA). com efeito, a partir do momento em que, nas situações de pura inércia ou omissão por parte da administração, se deixou de fazer depender o acesso à jurisdição administrativa da existência de um ato administrativo passível de impugnação, deixou de ser necessário ficcionar aí a existência de um ato de indeferimento tácito.
(…) o incumprimento, no prazo legal, do dever de decidir (…) é tratado como a omissão pura e simples que efetivamente é, ou seja, como um mero facto (…) que confere ao interessado a faculdade de utilizar os meios de titela administrativa e jurisdicional adequados.
Assim, não havendo decisão parece-nos manifestamente incongruente que deva ser pedida a sua anulação.
- acresce: aceita-se ser jurisprudência pacífica, relativamente aos casos em que a interposição do processo judicial/arbitral foi precedida de recurso gracioso. a referência a um objeto mediato e a um objeto imediato do processo, na esteira do pensamento de Jorge de Sousa, citado pela Requerida.
Porém, temos as maiores dúvidas em aceitar que o processo de impugnação tenha, nestes casos, dois objetos autónomos. Na realidade, o tribunal apenas pode conhecer do chamado objeto mediato, da legalidade da liquidação, a ser apreciada segundo o constante da sua fundamentação. O tribunal não conhece da decisão da reclamação graciosa, da sua fundamentação, na medida em que é vedada a aceitação a posteriori dos atos administrativos.
Havendo decisão expressa do recurso gracioso, a sua anulação deriva necessariamente da anulação total ou parcial da liquidação impugnada. Só nessa medida o tribunal conhece do “objeto imediato” do processo. Aliás, a nosso ver, nem o tem que fazer expressamente, pois a anulação de um ato administrativo implica, sem mais, a anulação dos atos que dele são consequência direta.
- Por último, com a Requerente, diremos que a importância do princípio pro actione: uma certa cultura formalista instalada, tem levado o legislador a tomar medidas enérgicas na sua defesa, sendo disso expressão o art.º 7º do CPTA, que dispõe que, “para efetivação do direito de acesso à justiça, as normas processuais devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas.” Não há dúvida de que esta norma (aplicável ao processo arbitral tributário em virtude do art. 29º, nº 1, al. c) do RJAT), enraizando-se no enunciado abstrato do princípio pro actione consagrado na lei constitucional, vai além deste, dirigindo ao julgador, seu destinatário, um comando de ação concreto: em caso de dúvida, deve ser privilegiada a interpretação das normas processuais mais favorável ao acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva[5].
Nas circunstâncias factuais provadas, seria de todo em todo contraditório com tal princípio que o tribunal deixasse de conhecer do mérito da causa a pretexto de uma irregularidade formal na formulação do pedido (admitindo, por disciplina de raciocínio, a sua existência), facilmente suprível.
Improcede, pois, a exceção da caducidade do direito à ação.
d.2) Questão prévia
A Requerida afirma o seguinte: (…) a Requerente apresentou impugnação referente ao período de imposto que antecedeu o em apreço nos presentes autos, ou seja, o período de setembro de 2022. Naquele PPA, é apreciada a questão do direito ao crédito de imposto por parte da Requerente, resultante da fusão levada a cabo. Assim, o que quer que venha a ser decidido naqueles autos (do Processo 554/2023-T), influenciará determinantemente o que possa ser a pretensão da Requerente nos presentes autos. Isto porque, se naqueles autos, vier a ser dada razão à Requerente e, for a Requerida condenada a repor a situação que existiria, esvazia-se o objecto dos presentes autos. 47. E, se por outro lado, vier a ser julgada a inexistência daquele crédito, tal Decisão formará caso julgado formal e, obstará a que seja reapreciada a mesma questão nos presentes autos.
Pelo que entende deverem ser os presentes autos suspensos até ao que venha a ser a decisão a tomar no Processo 554/2023-T.
A Requerente respondeu afirmando a inexistência desta questão prévia.
Apreciando:
Assumimos, como é jurisprudência corrente, que “uma causa é prejudicial em relação a outra quando a razão da primeira pode destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda. Sempre que numa ação se ataca um ato ou facto jurídico que é pressuposto necessário de outra ação, aquela é prejudicial em relação a esta”.
É bom de ver que nos dois processos ora em causa são impugnados dois atos administrativos totalmente autónomos entre si, duas diferentes liquidações adicionais de IVA, relativas a dois diferentes períodos de tempo. Existem dois diferentes pedidos, portanto.
A decisão que venha a ser tomada no outro processo nunca produziria efeitos de caso julgado formal relativamente a este processo, diferentemente do que parece entender a Requerida. por serem diferentes os seus objetos e, consequentemente, os pedidos neles formulados.
Nem sequer se colocará uma questão de “autoridade de caso julgado” anterior.
A Requerente entende que a procedência ou não do pedido que vem formulado no 554/2023-T impactará, quanto muito, o valor do imposto que nesta sede será discutido, que pode sempre ser acertado; nunca poderá impactar a causas determinantes da ilicitude da liquidação objeto mediato dos autos.
Seria assim se a questão a resolver neste processo fosse o montante de IVA, reportável pela Requerente, que existia em outubro de 2022. Ora, o que está em causa é um pedido de anulação total de liquidação impugnada, independentemente dos valores do crédito de imposto em causa.
O valor de IVA reportável, que é o “traço de união” entre os dois processos, resulta assim irrelevante para a boa decisão desta causa.
Pelo que se julga improcedente o pedido de suspensão deste processo.
II.1 – Factos Provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
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A liquidação de IVA, e de juros ora impugnada, é relativa ao mês de outubro de 2022.
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Tal liquidação foi, tempestivamente, objeto de reclamação graciosa, apresentada a 20/06/2023
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Tal reclamação não foi decidida no prazo legal de quatro meses, ou seja, até 26/10/2023.
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No seu pedido de pronúncia arbitral a Requerente, embora tendo alegado os factos acima dados como provados, não peticionou expressamente a “anulação da decisão de indeferimento tácito da reclamação”
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A atividade da Requerente consiste, sobretudo, na construção de edifícios residenciais e não residenciais, em atividades de engenharia, de arquitetura, bem como outras atividades de consultoria para negócios e a gestão.
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Através da realização de uma operação de cisão-fusão, a Requerente incorporou as seguintes sociedades: B..., Unipessoal, Lda., com NIPC...); C..., S.A., com NIPC...; D..., S.A., com NIPC ... (“D...” também designada por sociedade fundida); E..., S.A., com NIPC...; F..., S.A., com NIPC...; G..., S.A., com NIPC...; H..., S.A., com NIPC...; I..., S.A., com NIPC...; J..., S.A., com NIPC...; K..., S.A., com NIPC...; L..., S.A., com NIPC ... ; M..., S.A., com NIPC... .
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Tais operações foram registadas em 11 de agosto de 2022.
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A cessação da atividade das sociedades incorporadas foi declarada, para efeitos fiscais.
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Em resultado da conclusão da cisão-fusão, as operações da sociedade cindida e das sociedades incorporadas na Fusão tiveram-se por consideradas, do ponto de vista contabilístico e fiscal, como efetuadas por conta da sociedade Incorporante, a Requerente, a partir do dia 1 de janeiro de 2022, com exceção da sociedade Incorporada E..., cujas operações foram consideradas, do ponto de vista contabilístico e fiscal, como efetuadas por conta da Sociedade Incorporante, a Requerente, a partir do dia 2 de março de 2022, data do início da respetiva atividade.
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As sociedades incorporadas (com a exclusão da B..., que foi a sociedade cindida) extinguiram-se por incorporação na Requerente
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A Requerente considerou ter passado a ser a titular de todos os créditos de IVA que as sociedades incorporadas vinham a reportar, pelo que os incluiu nas suas declarações de imposto.
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Assim, a Requerente refletiu, no Campo 61 da sua declaração periódica (DP) do IVA referente ao período de outubro de 2022 (10/2022), o montante de crédito de IVA a reportar, no valor de € 377.067,11
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A AT desconsiderou, na sua totalidade, os créditos de IVA que se transmitiram para a Requerente, por conta da realização da operação de cisão-fusão e que estavam em reporte na esfera sociedades incorporadas e cindida, corrigindo o campo 61 da DP de IVA de 10/2022 da Requerente para zero, o que deu origem à liquidação adicional ora impugnada
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As sociedades incorporadas que apuraram crédito de imposto no último período de atividade (C... e I...) encontravam inscritas como sujeitos passivos de IVA, para o exercício das atividades de “Arrendamento de bens imobiliários”, CAE 68200, e de “Compra e venda de bens imobiliários”, CAE 68100. 82.
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A sociedade cindida B..., UNIPESSOAL LDA, NIPC: ..., encontrava-se inscrita como sujeito passivo de IVA, do tipo “misto com afet. real de todos bens”, para o exercício da atividade principal de “Outras actividades de consultoria para os negócios e a Gestão”, CAE 70220, e das atividades secundárias de “Arrendamento de bens imobiliários”, CAE 68200, “Compra e venda de bens imobiliários”, CAE 68100, “Agricultura e produção animal combinadas”, CAE 01500 e “Outras actividades de serviços de apoio prestados às empresas, n.e.”, CAE 82990.
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Em 2022-08-31, foi apresentada pela B... a competente declaração de alterações, onde declarou a cessação das atividades secundárias de “Arrendamento de bens imobiliários”, CAE 68200, e “Compra e venda de bens imobiliários”, CAE 68100-se , em 2022-08-11, mantendo as demais atividades, que conferem o direito à dedução.
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No âmbito da reclamação graciosa n.º...2022..., relativa ao imposto correspondente ao período de setembro de 2022, foi prestada informação onde se conclui ser necessária a colaboração dos Serviços de Inspeção Tributária para o controlo das deduções efetuadas, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 26.º do Código do IVA e no regime da renúncia à isenção do IVA nas operações relativas a bens imóveis, a que se refere o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 21/07, de 29 de janeiro, e artigo 12.º, n.º 6 do Código do IVA.
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A Requerente procedeu ao pagamento dos montantes liquidados em 17/02/2023.
Os factos dados como provados resultam da documentação junta aos autos e não suscitaram qualquer divergência entre as partes, com uma exceção: a AT entende que nos termos do previsto nos artigos 19.º e ss. do CIVA, a Requerente para provar a existência do crédito de imposto, teria de provar o direito à dedução do mesmo e, para tal, teria de 1fazer prova da existência de facturas onde tivesse sido liquidado imposto às sociedades objecto de fusão, emitidas na forma legal e, o respectivo nexo com operações que conferem o direito á dedução, ou com a actividade geral das sociedades e, em qualquer dos casos, também, a inequívoca afectação daqueles bens imoveis à realização exclusiva de operações que conferem o direito à dedução, quer na esfera das sociedades fundidas, quer na esfera da Requerente, o que manifestamente não sucede.
Salvo o devido respeito a AT labora num equívoco, talvez por não ter bem presente a diferença (a inversão das posições processuais relativamente às posições substantivas) que existe nos processos de impugnação relativamente às ações condenatórias, p. ex., em processo civil.
De novo com Mário Aroso de Almeida[6], com efeito, embora na relação processua , seja o impugnante quem surge como autor e a Administração figure como parte demandada, a verdade é que, no plano substantivo, é a Administração quem é o titular da pretensão, que ela assumiu, pela positiva, com o ato que praticou. Pelo que lhe corresponde a posição substantiva de autora, enquanto que ao interessado na anulação corresponde a posição substantiva de demandado, que se vê forçado a contestar em juízo a posição assumida pela Administração, através da impugnação do ato que foi por ela praticado.
(…)
Como estas regras ( as de repartição do ónus da prova) devem, com efeito, atender às posições substantivas que correspondem às partes na relação material que se encontra subjacente ao processo impugnatório, uma das mais importantes consequências que decorrem do reconhecimento de que o objeto do processo impugnatório se concretiza na negação do poder exercido com a emissão do ato impugnado (…) é a de que o ato impugnado deve ser anulado sempre que não se demonstre em juízo que os respetivos pressupostos se encontram preenchidos e de que é sobre a administração que recai o ónus de demonstrar o preenchimento desses pressupostos.
As regras do ónus da prova, relativamente aos factos que integram a relação jurídico- tributária, são claras:
- Por princípio, o conteúdo da obrigação de imposto resulta do declarado pelo sujeito passivo (estamos, aliás, perante um caso de autoliquidação);
- A não aceitação do declarado pelo sujeito passivo implica uma decisão administrativa devidamente fundamentada, quer no plano dos factos, quer do direito aplicável. É o que, com alguma impropriedade, se designa por presunção de verdade das declarações dos contribuintes – artº 75º da LGT.
O mesmo é dizer que, não aceitando o valor do crédito imposto apurado pelo contribuinte, caberia à AT alegar e provar factos que permitissem concluir diferentemente, nomeadamente a eventual existência de faturas de compra que não conferem direito à dedução (o que poderá ser o caso, até por estarmos em presença de sujeitos passivos mistos).
A ideia de que as regras de distribuição do ónus da prova se alteram consoante estejamos na fase de procedimento administrativo conducente a uma liquidação adicional ou em processo judicial de impugnação de tal liquidação adicional não pode, obviamente, ser sufragada.
II.2 Factos não provados
Não foram detetados factos tidos por não provados com relevo para a decisão da causa
A primeira questão será a de saber se, no caso de fusão por incorporação, a sociedade incorporante se torna titular dos créditos fiscais antes titulados pelas sociedades incorporadas.
A resposta, julgamos que pacifica. é positiva.
Tal decorre da al. a) do art. 111 do CSC: extinguem-se as sociedades incorporadas ou, no caso de constituição de nova sociedade, todas as sociedades fundidas, transmitindo-se os seus direitos e obrigações para a sociedade incorporante ou para a nova sociedade;
Não existe disposição fiscal em sentido diferente.
Segunda questão: a invocação (utilização) pela sociedade incorporante de créditos de IVA de que eram titulares sociedades incorporadas está dependente de comunicação à AT /autorização da AT?
Independentemente de qual seja a prática corrente[7] ou o conteúdo de informações administrativas, o certo é que não ´e invocada (nem é do nosso conhecimento) qualquer norma legal que a tal obrigue.
Assim, têm os nossos tribunais entendido que “… para efeitos de IVA, (…) de acordo com os princípios que regem a liquidação deste imposto, tudo aconselha que a sociedade incorporante processe e contabilize os créditos e débitos de imposto como se de uma única sociedade se tratasse, entregando ou ficando com crédito de imposto consoante o que dos saldos resultar.”
(ac. do Tribunal Central Administrativo Sul, de 15 de junho de 2004, no processo 01162/03).
Com Cidália Lança[8], longamente citada pela Requerida na sua resposta (o que parece supor uma concordância de posições): Assim, na ausência de norma legal específica que regule os procedimentos administrativos necessários para a transferência de saldos credores de IVA das sociedades fundidas para a sociedade resultante da fusão, dado o n.º 5 do artigo 3.º do Código do IVA permitir à administração fiscal a adopção de medidas regulamentares adequadas para a aplicação da regra de não sujeição, considera-se conforme à lei a actuação adoptada pela administração fiscal de permitir a utilização dos créditos supra-referidos, desde que a fusão esteja registada e entregue a declaração de cessação de actividade das sociedades fundidas”
Ora, estes factos (registo e cessação de atividade) foram considerados como provados, pelo que estão verificados todos os requisitos exigíveis, segundo a própria AT, para a transferência para a Requerente da titularidade dos créditos de IVA em causa.
Resta analisar o último argumento invocado pela AT na sua resposta[9]:a Requerente impediu os serviços de inspeção da Requerida, de exercer o devido controlo sobre o imposto deduzido.
Salvo o devido respeito, este argumento não pode ser acolhido.
Sem prejuízo da anterior conclusão de que, nestes casos, não existe obrigação de uma comunicação específica à AT (e muito menos exigência legal de autorização), o certo é que, para ser minimamente fundamentada, a liquidação impugnada exigiria uma prévia indagação da situação pela AT, uma vez que foi ela quem tomou a decisão de desconsiderar o valor declarado pelo sujeito passivo, ainda que de “forma automática”
O controlo que incumbia à AT deveria ter tido lugar antes da prática do ato administrativo, ao que consta praticado de “forma automática”.
Por último: embora não cumpra ao tribunal pronunciar-se sobre a questão, poder-se-á entender que estará ainda em aberto a possibilidade de a AT proceder a nova liquidação nomeadamente em resultado das diligências referidas em q)) dos factos provados, desde que invoque fundamentos diferentes dos que foram apreciados (e recusados) por este tribunal.
IV Juros indemnizatórios
Estamos perante uma liquidação da iniciativa da administração fiscal considerada ilegal por este tribunal arbitral.
Tal ilegalidade constitui um erro dos serviços, o que confere à Requerente o direito a receber juros indemnizatórios, nos termos do nº 1 do art. 43º da LGT, contados desde a dada, acima dada por provada, em que aconteceu o pagamento indevido.
Pelo exposto, consideram-se totalmente procedentes os pedidos formulados pela Requerente, pelo que
-
Se anula a liquidação impugnada;
-
Deverá a Requerida, em execução de sentença, para além devolver os montantes indevidamente recebidos, pagar à Requerente juros indemnizatórios, a serem calculados nos termos legais aplicáveis.
Valor: € 207.761,88 (o das liquidações impugnadas)
Custas, no valor de € 4.284, a cargo da Requerida por ter sido total o seu decaimento.
10 de julho de 2024
Os árbitros
Rui Duarte Morais (relator)
Vasco António Branco Guimarães
Rita Guerra Alves
[1] Da liquidação impugnada consta, sob a epígrafe Fundamentação: liquidação efetuada nos termos do art. 87º do Código do IVA, resultado da correção automática da declaração periódica enviada para o período indicado, do que resultou falta de entrega de imposto ao Estado.
A Requerente não põe em causa a suficiência de tal fundamentação, pelo que o tribunal não pode conhecer desta questão.
[2] Números 91 a 99 da resposta. Parte significativa do argumentário da Requerida, números 57 a 74 da sua resposta, refere-se ao então vigente nº 4 do art. 3º do CIVA segundo o qual “[n]ão são consideradas transmissões as cessões a título oneroso ou gratuito do estabelecimento comercial, da totalidade de um património ou de uma parte dele, que seja susceptível de constituir um ramo de actividade independente, quando, em qualquer dos casos, o adquirente seja, ou venha a ser, pelo facto da aquisição, um sujeito passivo do imposto de entre os referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º”.
O que não se compreende, pois não está em causa neste processo uma qualquer questão de IVA relativa à transmissão de patrimónios (em sentido estrito) das sociedades incorporadas para a sociedade incorporante. Está em causa, sim, o direito da Requerente em continuar a proceder ao reporte de créditos de IVA de que eram titulares as sociedades por ela incorporadas.
[5] Carlos Carvalho, Princípios do Processo Administrativo, Direito e Processo Administrativo, Centro de Estudos Judiciários, 2016, citado pela Requrente.
[6] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2023, pág. 85 e s.
[7] A AT, na sua resposta cita Paulo Mendonça, «O IVA nas Operações de Reorganização Empresariais: Alguns Aspectos Problemáticos», Cadernos IVA, 2014, Coord. Sérgio Vasques, p. 390; “a prática é que o crédito apurado por B [incorporada na sociedade A] na sua última declaração não seja imediatamente considerado na conta corrente de IVA da sociedade que lhe sucede (no nosso exemplo, a sociedade A), excepto quando haja lugar a comunicação da operação de reestruturação à AT nesse sentido e, em alguns casos, seja mesmo apresentado requerimento prévio solicitando (…) autorização para utilização do crédito em causa.
[8] CIDÁLIA LANÇA, «O tratamento em IVA da fusão de sociedades» Fiscalidade, n.º 46, Abril-Junho de 2011, pp. 91-103.
[9] As “objeções” da AT relativas à prova foram antes analisadas, no lugar próprio.