Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1038/2023-T
Data da decisão: 2024-07-10  IVA  
Valor do pedido: € 12.417,49
Tema: IVA – regra de inversão do sujeito passivo. Serviços de construção civil.
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SUMÁRIO:

  1. O IVA respeitante aos serviços de construção civil adquiridos por pessoas singulares ou coletivas referidas na alínea a) do nº 1 do artigo 2º do CIVA que disponham de sede, estabelecimento estável ou domicílio em território nacional e que pratiquem operações que confiram direito à dedução do imposto é devido pelo adquirente dos serviços e não pelo prestador;
  2. O princípio da neutralidade do IVA exige que a dedução do IVA pago a montante seja concedida se os requisitos substanciais tiverem sido cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais;
  3. O IVA indevidamente pago pelo adquirente de serviços de construção civil pode ser deduzido sempre que não seja possível obter dos prestadores de serviços a retificação das faturas incorretamente emitidas.

 

DECISÃO ARBITRAL

  1. RELATÓRIO:

 

A..., S.A., titular do número único de matrícula e de identificação de pessoa coletiva   ..., doravante designada por Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2º nº 1 a) e 10º nº 1 a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por RJAT), peticionando a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos de liquidação adicional de IVA e juros compensatórios referentes ao exercício de 2019, com os números 2023..., 2023..., 2023... e 2023..., no montante total de € 12.417,49; a condenação da Requerida a reembolsar a Requerente do montante pago a título de juros compensatórios, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios, bem como a condenação da Requerida a indemnizar a Requerente das despesas suportadas com a garantia bancária.

 

Para fundamentar o seu pedido alegou, em síntese:

 

  1. A Requerente é uma sociedade que tem por objeto social a elaboração de projetos de engenharia, instalação de equipamentos; execução e acompanhamento de obras; prestação de serviços de manutenção industrial; elaboração de estudos de desenvolvimento técnico; formação, gestão ambiental, gestão de resíduos; estudos de impacte ambiental; acompanhamento e preparação à certificação ambiental; representação de equipamentos; auditoria energética; importação e exportação;
  2. No ano de 2019, a Requerente adquiriu, no exercício da sua atividade, serviços de construção civil a diversas entidades, que liquidaram IVA à taxa normal (23%) aquando da emissão das respetivas faturas, que foi pago pela Requerente, tendo esta exercido o direito à dedução;
  3. A Requerente foi objeto de um procedimento inspetivo, de natureza externa e com âmbito geral, com incidência no exercício de 2019 – OI2023...;
  4. No âmbito do qual a AT concluiu que parte do IVA relativo a aquisições de serviços qualificados como de construção civil, no montante de € 9.569,80, foi indevidamente deduzido;
  5. Nessa sequência, a AT emitiu as liquidações de IVA e de juros compensatórios com os números 2023..., 2023..., 2023... e 2023..., no montante total de € 12.417,49;
  6. A Requerente pagou os juros compensatórios, declarando pretender prestar garantia bancária relativamente ao imposto liquidado;
  7. Em causa estão parte das prestações de serviços identificadas no quadro 15 do RIT, respeitantes a serviços de construção civil abrangidos pela regra da inversão, cujo IVA, nos termos do disposto no artigo 2º nº 1 j) do CIVA, deveria ser liquidado pela Requerente e não pela prestadora dos serviços, tendo os prestadores de serviços liquidado indevidamente tal IVA;
  8. Segundo a AT, tendo o IVA relativo a tais prestações de serviços sido indevidamente liquidado pelos respetivos prestadores, não tem a Requerente direito à dedução do IVA pago;
  9. O entendimento defendido pela AT viola o princípio da neutralidade fiscal, da justiça e da imparcialidade;
  10. A AT dispõe dos dados necessários para determinar que o sujeito passivo, enquanto destinatário das transações em causa, é devedor do IVA, não podendo por isso impor, no que diz respeito ao seu direito à dedução, condições adicionais que possam ter por efeito a inviabilização absoluta do exercício desse direito;
  11. A Requerente não tem como obter por parte dos fornecedores que liquidaram IVA indevidamente uma nota de crédito para anulação das faturas, atento o facto de as faturas em causa já terem sido emitidas há mais de 2 anos;
  12.  A Administração Tributária recebeu por parte dos fornecedores da Requerente o IVA por estes liquidado e pago pela Requerente, pelo que a exigência à Requerente do valor correspondente a este IVA já entregue, configura uma duplicação de coleta.

 

A Requerente juntou 7 documentos e arrolou uma testemunha.

 

No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, nos termos do disposto no artigo 6º nº 1 do RJAT, foi designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa o signatário, tendo a nomeação sido aceite nos termos legalmente previstos.

 

O tribunal arbitral foi constituído em 5 de março de 2024.

 

Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º do RJAT, a Requerida apresentou resposta, invocando, em síntese, o seguinte:

 

  1. A Requerente é adquirente de serviços de construção civil, sendo por isso o sujeito passivo de IVA por reversão, sendo da sua competência a autoliquidação do imposto nas referidas aquisições, sem prejuízo do direito à sua dedução, nos termos gerais do CIVA;
  2. Não tendo a Requerente autoliquidado o imposto devido, fica prejudicada, por força do 19º nº 8 do CIVA, a dedução do IVA liquidado indevidamente pelos fornecedores dos serviços;
  3. Não se verifica qualquer duplicação de coleta, pois que in casu, o sujeito passivo do imposto – a Requerente - não foi tributado;
  4. Para que se verifique duplicação de coleta, impõe-se que o primeiro pagamento efetuado seja devido, o que não sucede no caso dos autos.

 

A Requerida juntou o processo administrativo, não tendo junto qualquer documento nem arrolado testemunhas.

 

Por despacho de 16/05/2024, foi dispensada a realização da reunião arbitral, determinando-se o prosseguimento dos autos com alegações escritas, sucessivas e facultativas.

 

As partes apresentaram alegações, nas quais, em síntese, reiteraram o já defendido nos respetivos articulados.

 

  1. SANEAMENTO:

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

Não existem nulidades que invalidem o processado.

As partes têm personalidade e capacidade judiciária, não ocorrendo vícios de patrocínio.

Não existem exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito e de que cumpra oficiosamente conhecer.

 

  1. QUESTÕES DE DIREITO A DECIDIR:

Atentas as posições assumidas pelas Partes, vertidas nos argumentos expendidos, cumpre determinar se:

  1. a Requerente, enquanto adquirente de serviços de construção civil, pode deduzir o IVA indevidamente pago aos fornecedores de tais serviços;
  2. a Requerente tem direito ao pagamento de uma indemnização por prestação de garantia indevida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 53º da Lei Geral Tributária.

 

 

  1. MATÉRIA DE FACTO:

 

a.      Factos provados:

Com relevo para a decisão consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente é uma sociedade que tem por objeto social a elaboração de projetos de engenharia, instalação de equipamentos; execução e acompanhamento de obras; prestação de serviços de manutenção industrial; elaboração de estudos de desenvolvimento técnico; formação, gestão ambiental, gestão de resíduos; estudos de impacte ambiental; acompanhamento e preparação à certificação ambiental; representação de equipamentos; auditoria energética; importação e exportação;
  2. No exercício da sua atividade, adquiriu serviços de construção civil a diversas entidades, que liquidaram IVA aquando da emissão das respetivas faturas, que foi pago pela Requerente;
  3. Durante o exercício de 2019, a Requerente deduziu IVA, incluindo o IVA liquidado pelos fornecedores de serviços de construção civil e pago pela Requerente;
  4. A Requerente foi objeto de um procedimento inspetivo, de natureza externa e com âmbito geral, com incidência no exercício de 2019 – OI2023...;
  5. No âmbito do qual a AT concluiu que o montante de € 9.569,80, correspondente ao valor do IVA liquidado em 15 faturas, emitidas por 5 fornecedores, respeitam a serviços de construção civil;
  6. Nessa sequência, a AT emitiu as liquidações de IVA e de juros compensatórios com os números 2023..., 2023..., 2023... e 2023..., no montante total de € 12.417,49, todas pagáveis até 25/09/2023;
  7. A Requerente pagou os juros compensatórios;
  8. O pedido de constituição do tribunal arbitral e de pronúncia arbitral foi apresentado em 22/12/2023.

 

b.      Factos não provados:

 

Com interesse para os autos, nenhum outro facto se provou.

c.       Fundamentação da matéria de facto:

A convicção acerca dos factos tidos como provados formou-se tendo por base os elementos constantes dos autos, a prova documental junta pelas partes e cuja adesão à realidade não foi questionada, bem como a matéria alegada e não impugnada.

 

 

  1. DIREITO:

 

  1. Da possibilidade de dedução de IVA indevidamente pago:

Em causa nos autos está o IVA pago pela Requerente e posteriormente deduzido, referente a serviços de construção civil prestados pelas seguintes entidades, que os faturaram, liquidando o IVA correspondente:

  1. B..., L.da;
  2. C..., L.da;
  3. D..., L.da;
  4. E..., L.da;
  5. F..., L.da.

 

De acordo com a Requerente, tendo esta pago o IVA liquidado pelos referidos prestadores de serviços e verificando-se os demais pressupostos legais, nenhum impedimento existe a que esta deduza o IVA pago respeitante a estas faturas.

 

Em sentido inverso, defende a Requerida que, não sendo os prestadores dos serviços os sujeitos passivos de IVA respeitante a estas atividades, o IVA liquidado por estas entidades o foi indevidamente, pelo que a Requerente não tem o direito à sua dedução, ainda que o mesmo tenha sido pago.

 

Vejamos:

Dispõe o artigo 199º nº 1 a) da Diretiva IVA (Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28/11/2006):

Os Estados-Membros podem prever que o devedor do imposto é o sujeito passivo destinatário das seguintes operações:

  1. Prestação de serviços de construção, incluindo reparação, limpeza, manutenção, alteração e demolição respeitantes a bens imóveis, bem como a entrega de obras em imóveis considerada como entrega de bens nos termos do n.º 3 do artigo 14.º.”

 

Transpondo a referida Diretiva para o direito interno, o DL 21/2007, de 29 de janeiro estatuiu, “no domínio de algumas prestações de serviços relativas a bens imóveis, nomeadamente nos trabalhos de construção civil realizados por empreiteiros e subempreiteiros”, a regra da inversão do sujeito passivo, passando, pois, “a caber aos adquirentes ou destinatários daqueles serviços, quando se configurem como sujeitos passivos com direito à dedução total ou parcial do imposto, proceder à liquidação do IVA devido, o qual poderá ser também objeto de dedução nos termos gerais.” – cfr. preâmbulo do referido DL.

 

Assim, passou-se a prever no CIVA que são sujeitos passivos de imposto “as pessoas singulares ou coletivas referidas na alínea a) que disponham de sede, estabelecimento estável ou domicílio em território nacional e que pratiquem operações que confiram o direito à dedução total ou parcial do imposto, quando sejam adquirentes de serviços de construção civil, incluindo a remodelação, reparação, manutenção, conservação e demolição de bens imóveis, em regime de empreitada ou subempreitada.” – cfr. artigo 2º nº 1 j) do CIVA.

 

Nenhum dos citados diplomas legais define o conceito de “serviços de construção civil”, pelo que teremos de nos ater à definição constante do Ofício Circulado da Autoridade Tributaria nº 30101, de 24/05/2007, que define como “serviços de construção civil todos os que tenham por objeto a realização de uma obra, englobando todo o conjunto de atos que sejam necessários à sua concretização”, sendo para este efeito “obra” considerado “todo o trabalho de construção, reconstrução, ampliação, alteração, reparação, conservação, reabilitação, limpeza, restauro e demolição de bens imóveis, bem como qualquer outro trabalho que envolva processo construtivo, seja de natureza pública ou privada”.

 

No caso dos autos, as partes estão de acordo quanto ao facto de os serviços correspondentes às faturas em crise respeitarem a serviços de construção civil, conforme definidos pela própria Requerida no indicado Ofício Circulado nº 30101.

 

Assim, assente que está que o IVA que a Requerida considera indevidamente deduzido respeita a serviços de construção civil adquiridos pela Requerente, dúvidas não restam que será aplicável a regra da inversão do sujeito passivo.

 

Pelo que, in casu, o sujeito passivo do IVA respeitante aos serviços de construção civil adquiridos pela Requerente é a própria Requerente e não a entidade que prestou os serviços.

 

O IVA liquidado pelos prestadores dos serviços de construção civil foi-o, assim, indevidamente, já que estas entidades não são, em relação a estes serviços, sujeitos passivos de IVA.

 

Nada há, pois, a opor ao entendimento da AT quanto ao IVA não ser devido pela prestadora de serviços, mas sim pela Requerente.

 

Mas será que tal determina a impossibilidade de a Requerente deduzir o IVA que pagou a montante, ainda que indevidamente?

 

Desde já adiantamos que entendemos que não.

 

A este propósito, dispõe o artigo 19º nº 8 do CIVA que “nos casos em que a obrigação de liquidação e pagamento do imposto compete ao adquirente dos bens e serviços, apenas confere direito a dedução o imposto que for liquidado por força dessa obrigação”.

 

Socorrendo-se da letra da lei, defende a Requerida, em síntese, que, não tendo in casu o IVA sido liquidado pela Requerente, não pode esta deduzi-lo.

 

Com o devido respeito, tal parece representar um entendimento demasiado simplista da lei, cingindo-se cegamente à sua letra, quando, como é sabido, não é essa, nem pode ser, a interpretação defendida pelo legislador, não podendo, como tal, ser essa a opção do julgador.

 

É certo que, pela simples análise da letra da lei, estaria a Requerente impedida de deduzir o IVA que pagou, por não ter sido liquidado por si.

 

No entanto, conforme tem vindo a ser entendido pela mais diversa jurisprudência, designadamente comunitária, o princípio da neutralidade do IVA exige que a dedução do IVA pago a montante seja concedida se os requisitos substanciais tiverem sido cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais – neste sentido, entre outros, acórdãos do TJUE de 08/05/2008, Ecotrade, C-95/07 e C-96/07.

 

Concluindo-se naqueles arestos, entre outros, que “uma vez que a Administração Fiscal dispõe dos dados necessários para determinar que o sujeito passivo, enquanto destinatário das transacções em causa, é devedor do IVA, não pode impor, no que diz respeito ao seu direito a dedução, condições adicionais que possam ter por efeito a inviabilização absoluta do exercício desse direito”.

 

Defende ainda a Requerida que a Requerente deveria ter devolvido as faturas em causa aos prestadores de serviços para que fossem emitidas corretamente.

 

No entanto, a verdade é que a Requerente não o fez, nem tem já possibilidade de o fazer ou de obter destes a retificação das faturas incorretamente emitidas, atento o decurso do prazo legal para o efeito fixado.

 

Não podendo, no entanto, tal omissão, quando nenhuma outra razão o imponha, determinar a imposição à Requerente do pagamento em duplicado do IVA, como pretendido pela Requerida.

 

Sobre esta questão pronunciou-se por diversas vezes o TJUE, concluindo que “os artigos 167.º, 168.º e 178.º da Directiva 2006/112 devem ser interpretados no sentido de que se opõem à aplicação retroactiva de uma legislação nacional que, no âmbito de um regime de autoliquidação, subordina a dedução do IVA relativo a prestações de serviços de construção à rectificação das facturas relativas às referidas operações e à apresentação de uma declaração complementar rectificativa, apesar de a autoridade fiscal em causa dispor de todos os dados necessários para demonstrar que o sujeito passivo é devedor do IVA, enquanto destinatário das operações em causa, e para verificar o montante do imposto dedutível” – cfr., entre outros, acórdão de 30/10/2010, C-392/09.

 

No caso dos autos, a Requerida tem na sua posse – ou pelo menos pode ter – todos os elementos que lhe permitem aferir que a Requerente se encontra obrigada a proceder à autoliquidação e pagamento do IVA referente às prestações de serviços de construção civil, bem como para confirmar que tal IVA foi liquidado, ainda que indevidamente, pelas prestadoras de serviços e pago pela Requerente.

 

Pelo que, ainda que tenha havido, como se verifica, omissão de formalidades – por o IVA ter sido liquidado por quem não é sujeito passivo -, tal omissão não é apta, in casu, a impossibilitar a Requerente de deduzir o IVA pago e permitir à Requerida nova liquidação do mesmo imposto.

 

Dito isto,

Conforme é sabido, como corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267º do TFUE, a jurisprudência do TJUE, quando tem por objeto questões de Direito da União Europeia, tem carácter vinculativo para os tribunais nacionais, o que, aliás, é pacificamente defendido e aceite pela jurisprudência nacional.

 

Tal carácter vinculativo resulta ainda do princípio do primado do direito da união europeia, previsto no artigo 8º nº 4 da Constituição da República Portuguesa.

 

Pelo que, face à posição assumida pelo TJUE, terá necessariamente este tribunal de concluir que o artigo 19º nº 8 do CIVA é incompatível com o direito da União Europeia, “na medida em que for aplicável a situações em que a Administração Tributária está na posse de todos os elementos que permitem concluir que o sujeito passivo suportou IVA para realizar operações tributadas”, o que sucede in casu – neste sentido veja-se, entre outros, acórdão arbitral proferido no processo 745/2020-T, disponível  in www.caad.org.pt, bem como acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, processo 442/18.5BECBR, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.

 

Ademais, tendo a Requerente pago o IVA devido pelas prestações de serviços em causa, ainda que indevidamente liquidado por outrem, não se verifica qualquer prejuízo para o erário público, não existindo, assim, qualquer motivo que justifique desconsiderar a liquidação e pagamento de imposto já efetuado e exigir à Requerente um segundo pagamento.

 

Nem se diga que a citada jurisprudência comunitária não é aplicável pelo facto de ter sido proferida em momento anterior à entrada em vigor da norma contida no artigo 19º nº 8 do CIVA.

Isto porque, se é certo que foi proferida em momento anterior, não é menos certo que o espírito que esteve na sua base se mantém inalterado, o que, aliás, é demonstrado pela existência de jurisprudência no mesmo sentido, proferida após a entrada em vigor da norma contida no artigo 19º nº 8 do CIVA.

 

Qualquer outra interpretação violaria de forma flagrante o princípio da neutralidade fiscal, bem como os artigos 167º, 168º e 178º da Diretiva IVA, representando, ademais, uma duplicação de coleta, não admitida por lei.

 

Donde resulta a ilegalidade das liquidações adicionais de IVA e de juros compensatórios impugnadas, por violação do princípio da proporcionalidade, da capacidade contributiva e da neutralidade fiscal, bem como dos artigos 167º, 168º e 178º da Diretiva IVA, impondo-se, pois, a sua anulação.

 

Em consequência, encontra-se, como está bom de ver, a Requerida obrigada a repor a situação que existiria caso o ato anulado não tivesse sido praticado - cfr. artigo 100º nº 1 da LGT.

 

No caso dos autos, caso o ato anulado não tivesse sido praticado, a Requerente não teria pago os juros compensatórios liquidados, que se vieram a revelar ser indevidos, por ilegais, pelo que, em face da anulação do ato, terá a Requerida de ser condenada a reembolsar os valores correspondentes aos juros compensatórios indevidamente pagos, assim repondo a situação existente se o ato anulado não tivesse sido praticado.

 

Peticiona ainda a Requerente a condenação da Requerida no pagamento dos juros indemnizatórios, à taxa legal.

 

A Requerida opõe-se a tal pedido, sustentando não se encontrarem preenchidos os pressupostos de que a lei faz depender o direito a juros indemnizatórios, nem se verifica qualquer situação suscetível de justificar uma reparação pelos danos decorrentes de um pagamento indevido, justamente por inexistir, in casu, qualquer pagamento indevido.

 

Sobre os juros indemnizatórios, dispõe o artigo 43º nº 1 da LGT:

 

“São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”

 

No caso dos autos, as liquidações adicionais de IVA e de juros compensatórios impugnadas resultam de erro imputável aos serviços e determinaram o pagamento, para a Requerente, de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

Pelo que dúvidas não restam de que a Requerente tem direito ao recebimento de juros indemnizatórios, contados à taxa legal, desde a data em que foram efetuados os pagamentos indevidos, calculados sobre o valor dos juros compensatórios constantes das notas de liquidação impugnadas e até integral reembolso.

 

  1. Indemnização por prestação de garantia indevida:

 

Por último, resta abordar a questão de saber se o Requerente tem direito a receber uma indemnização pelos prejuízos decorrentes de prestação de garantia indevida.

A indemnização pelo pagamento de garantia indevida encontra-se prevista no artigo 53º nº 1 da LGT, que prevê que “o devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida”, prescrevendo o nº 2 do mesmo preceito que “o prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo”.

Do exposto resulta claro que o direito a tal indemnização pelos prejuízos implica a montante não só a instauração de um processo de execução fiscal, bem como a inerente prestação de garantia na sequência da instauração desse mesmo processo.

No caso dos autos, é a própria Requerente que admite não ter sido instaurado qualquer processo de execução fiscal com vista à cobrança do imposto liquidado nem ter sido, em consequência, por si prestada qualquer garantia com vista à suspensão do processo de execução, não havendo notícia de ter sido, no decurso do presente processo arbitral, instaurado qualquer processo de execução fiscal ou prestada garantia.

Assim, é evidente não se encontrarem reunidos os pressupostos de que a lei faz depender o direito à indemnização por garantia indevida, tendo necessariamente de soçobrar este pedido.

 

  1. DISPOSITIVO:

 

Em face do exposto, decide-se julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado e em consequência:

  1. Declarar a ilegalidade das liquidações adicionais de IVA e de juros compensatórios referentes ao exercício de 2019, com os números 2023..., 2023..., 2023 ... e 2023..., no montante total de € 12.417,49;
  2. Condenar a Requerida a reembolsar a Requerente do montante pago a título de juros compensatórios;
  3. Condenar a Requerida a pagar à Requerente juros indemnizatórios, contados à taxa legal, desde a data em que foram efetuados os pagamentos indevidos, calculados sobre o valor dos juros compensatórios constantes das notas de liquidação impugnadas e até integral reembolso;
  4. Absolver a Requerida do pedido de indemnização por prestação de garantida indevida.

 

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A Requerente indicou como valor da causa € 12.417,49, correspondente ao valor total das liquidações impugnadas.

A Requerida opôs-se a tal valor, alegando dever ser atribuído à causa o valor de € 9.735,43.

Verifica-se, porém, que pese embora, em face dos estornos e acertos efetuados, o valor exigido à Requerente não ascenda a € 12.417,49, é este o valor resultante das liquidações impugnadas, valor que, nos termos do disposto no artigo 97.º-A do CPPT deve ser atendido para efeitos de fixação do valor da causa.

Assim, fixa-se o valor do processo em € 12.417,49, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

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Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918,00, nos termos da Tabela I da Tabela Anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como do disposto no n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT, e do n.º 1 do artigo 4.º, do citado Regulamento, a pagar na íntegra pela Requerida, por ser a parte vencida, atenta a imaterialidade do pedido no qual a Requerente decaiu.

 

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Registe e notifique.

 

 

Lisboa, 10 de julho de 2024.

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O Árbitro,

 

 

Alberto Amorim Pereira