Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 932/2023-T
Data da decisão: 2024-07-15  IVA  
Valor do pedido: € 54.995,03
Tema: IVA – Reabilitação urbana; verba 2.23 Lista I do Código do IVA; desnecessidade de prévia aprovação de ORU.
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SUMÁRIO:

  1. A verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA é aplicável quando estejam reunidos os seguintes requisitos legais: (a) existência de uma empreitada, (b) de reabilitação urbana, conforme legalmente definida no regime jurídico específico (da reabilitação urbana), (c) realizada em imóvel ou espaços públicos localizados em Área de Reabilitação Urbana (ARU), legalmente delimitada pela competente entidade municipal.
  2. Para além das condições referidas, nem da letra, nem do espírito da Lei, resulta qualquer outra exigência para a aplicação da taxa reduzida de IVA ao abrigo da mencionada verba 2.23, designadamente a prévia aprovação de uma operação de reabilitação urbana (ORU) para o território em causa.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

A Árbitra do Tribunal Singular, Dra. Raquel Montes Fernandes, designada pelo Conselho Deontológico do CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 14.02.2024, decide o seguinte:

 

 

 

 

  1. RELATÓRIO

A A..., LDA, doravante designada por “Requerente”, com o número de identificação fiscal ... e sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Braga, tendo sido notificada das liquidações adicionais de IVA e de juros compensatórios infra identificadas, no montante total de € 54.995,03 resultantes de inspeções tributárias realizadas aos anos de 2019 e 2020, apresentou, em 05.12.2023, pedido de constituição de Tribunal Arbitral Singular, ao abrigo do disposto no art.º 2, n.º 1, alínea e) e art.º 10, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, conjugado com o art.º 99, alínea a) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por “AT” ou “Requerida”).

 

Os atos tributários objeto do pedido de declaração de ilegalidade são os seguintes:

 

 

 

 

Os atos tributários de 2019 acima identificados foram objeto de reclamação graciosa, a qual foi indeferida pela Requerida. O indeferimento dessa reclamação graciosa constitui, igualmente, objeto deste pedido arbitral.

 

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, de acordo com os art.ºs 5, n.º 2, alíneas a) e b) e 6, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitra singular deste Tribunal Arbitral a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, tendo a mesma sido aceite pelas partes.

 

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art.º 11 do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 14.02.2024, tendo a Requerida apresentado Resposta em 20.03.2024, defendendo por impugnação que o pedido de pronúncia arbitral sub judice devia ser julgado improcedente. O respetivo processo administrativo foi junto no mesmo dia.

 

Em 11.04.2024 foi proferido despacho arbitral a dispensar a realização da reunião prevista no art.º 18 do RJAT, por estarem apenas em causa questões de direito e não ter sido requerida a produção de prova testemunhal. Foi igualmente dispensada a apresentação de alegações, por não se justificar in casu.

 

 

 

 

 

  1. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, contado a partir dos factos previstos no artigo 102.º n.º 1, alínea b) do CPPT.

 

As Partes estão devidamente representadas, têm personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se legítimas.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

 

  1. Factos provados

 

  1. A Requerente dedica-se à compra e venda de imóveis, ao arrendamento destes e à exploração de alojamentos turísticos, promovendo igualmente a reabilitação de prédios antigos por via da realização de obras.
  2. Em 2018 adquiriu um prédio urbano (artigo ...), composto por 4 frações, situado na Rua ..., em ..., Braga, com o intuito de o reabilitar.
  3. Para o efeito, celebrou, em 2019, contrato de empreitada com a entidade B..., Lda. (...), tendo as obras em causa sido executadas durante os anos de 2019 e 2020.
  4. No final das obras, o prédio urbano passou a ser composto por 7 frações, com o novo n.º ..., e com mais um piso face à estrutura original.
  5. As faturas da empreitada de reabilitação do imóvel em causa indicam “IVA autoliquidado”, e a Requerente aplicou a taxa de 6% de IVA aquando da respetiva autoliquidação.
  6. O prédio urbano em causa insere-se na Área de Reabilitação Urbana (ARU) de Braga (nascente), a qual foi aprovada por deliberação do Município de Braga em 2017, e o respetivo Aviso (n.º 2216/2017) foi publicado no DR 44, II série, de 02.03.2017.
  7. A Câmara Municipal de Braga conferiu as necessárias licenças ao projeto de reabilitação realizado pela Requerente.
  8. Em 2019 e 2020 (i.e., durante a vigência da empreitada em causa), a Câmara Municipal de Braga ainda não havia aprovado uma Operação de Reabilitação Urbana (ORU) para a zona de localização do prédio urbano acima identificado.
  9. A Requerente foi alvo de uma inspeção tributária ao ano de 2019, no âmbito da qual a Requerida promoveu correções em sede de IVA, as quais foram materializadas nas seguintes liquidações adicionais de imposto e de juros compensatórios, no total de € 25.364,33 (IVA) e € 3.072,31 (juros):

 

 

  1. A Requerente apresentou reclamação graciosa das liquidações oficiosas acima identificadas, tendo sido notificada, em 14.09.2023, do indeferimento expresso da mesma.
  2. A Requerente foi, ainda, alvo de uma inspeção tributária ao ano de 2020 (sob a Ordem de Serviço n.º 0I2022...), a qual terminou, igualmente, com correções promovidas pela Requerida, materializadas nas seguintes liquidações adicionais de imposto e de juros compensatórios, no total de € 23.664,66 (IVA) e € 2.853,73 (juros):

 

  • Estas liquidações oficiosas datam de 14.10.2023 e têm como data-limite de pagamento 04.12.2023.
  • As correções promovidas pela Requerida, em sede de inspeção, aos anos de 2019 e de 2020, que são objeto destes autos, respeitam aos mesmos factos (serviços de empreitada de reabilitação urbana realizados no prédio urbano acima descrito no decurso desses dois anos), têm por base a mesma questão jurídica (determinar a taxa de IVA aplicável a esses serviços) e os argumentos de interpretação jurídica usados por ambas as partes são os mesmos para ambos os anos.
  • Por não se conformar com as correções efetuadas, em sede de IVA, aos anos de 2019 e 2020, a Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral em 05.12.2023, o qual foi aceite no dia seguinte.

 

 

  1. Factos não provados

Com relevo para a decisão do presente processo, não existem factos que se tenham considerado como não provados.

 

 

  1. Fundamentação da decisão da matéria de facto

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas Partes, cabendo-lhe, ao invés, o dever de (i) selecionar os factos que importam para a decisão e (ii) discriminar a matéria provada da não provada [cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT]. Os factos foram dados como provados ou não provados com base nos documentos juntos aos autos.

 

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

 

  1. Questão decidenda

É solicitado a este Tribunal que determine se a realização de uma empreitada de reabilitação urbana efetuada sobre um imóvel localizado numa ARU (neste caso, Braga nascente) sem que a respetiva ORU tenha sido, à data das obras, aprovada e publicada, pode ser sujeita à taxa reduzida de IVA ao abrigo da verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, na redação da norma à data dos factos (2019 e 2020).

 

 

  1. Breve resumo dos fundamentos das Partes

 

A Requerente, na qualidade de dona da obra, celebrou um contrato de empreitada com a sociedade B..., Lda. (empreiteiro) para a remodelação total de um prédio urbano em Braga, que se encontrava em estado degradado e foi totalmente recuperado para uso habitacional. Por entender que a referida obra preenche os requisitos da verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA (é uma obra de reabilitação urbana qualificada como tal pela Câmara Municipal de Braga, e encontra-se no âmbito da respetiva ARU, tal como delimitada no Aviso n.º 2216/2017, de 02.03.2017), a Requerente autoliquidou IVA à taxa reduzida de 6% sobre as faturas emitidas em 2019 e 2020 pelo empreiteiro que são objeto deste processo arbitral.

 

Diferentemente, é entendimento da Requerida que a aplicação da taxa reduzida ao abrigo da verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA não se basta com a observância desses dois critérios, tendo ainda de se atentar à aprovação da respetiva operação de reabilitação urbana (ORU), que funciona como plano de pormenor da ARU[1]:

“Efetivamente, o primeiro requisito para que determinada operação tenha enquadramento na verba 2.23 da Lista I anexa ao CIVA é a de que esteja em causa uma empreitada, mas exige-se também, desde logo, que a empreitada seja de reabilitação urbana. E quanto a isto, o
Decreto-Lei em referência
[n.º 1 do art.º 7 do Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23.10.2009) esclarece, conforme acima, que estamos perante uma reabilitação urbana apenas se se verificar a aprovação dos dois requisitos/instrumentos: «área de reabilitação urbana» (ARU) e «operação de reabilitação urbana» (ORU).

A delimitação da «área de reabilitação urbana é apenas uma das bases do Regime Jurídico da Reabilitação Urbana, sendo complementada com as «operações de reabilitação urbana» que correspondem à concretização do tipo de intervenções a realizar na área de reabilitação urbana.

Com efeito, nos termos do Regime Jurídico da Reabilitação Urbana, apenas estão em causa empreitadas de reabilitação urbana quando as mesmas sejam realizadas no quadro de uma operação de reabilitação urbana já aprovada”.

Não basta, assim, que esteja em causa uma empreitada realizada numa área delimitada como de reabilitação urbana para que se possa já considerar uma empreitada de reabilitação urbana, se ainda não está em condições de se apurar se a mesma está conforme à estratégia ou ao programa estratégico de reabilitação urbana, o que só fica definido com a aprovação da respetiva operação de reabilitação urbana.

Do exposto resulta, em resumo, que a localização de um prédio numa ARU não constitui, por si só, condição bastante para afirmar que as operações sobre ele efetuadas se subsumem no conceito de reabilitação urbana constante do respetivo regime jurídico (ou «tal como definida em diploma específico como refere a verba 2.23 da Lista I anexa ao CIVA) e, consequentemente, possa beneficiar da aplicação da taxa reduzida de IVA. É igualmente necessária a aprovação da correspondente ORU.

E quanto à entidade competente para certificar que determinado projeto se enquadra no âmbito de uma operação de reabilitação urbana, o regime define que é a Câmara Municipal da respetiva área”.  

 

Nesse sentido, uma vez que, à data dos factos, inexistia uma ORU para a zona abrangida pela ARU de Braga nascente, considera a AT que não estavam preenchidos os requisitos para aplicação da taxa reduzida de IVA ao abrigo da supra mencionada verba do Código do IVA. Consequentemente, entende a AT que a taxa de IVA aplicável para efeitos de autoliquidação é 23%, e não 6%, havendo, por isso, imposto em falta na autoliquidação efetuada sobre os serviços de empreitada faturados em 2019 e 2020.

 

 

  1. Apreciação do Tribunal

 

 

  1. Aplicação da taxa reduzida de IVA

 

Dispõe a al. a) do n.º 1 do art.º 18 do Código do IVA que às operações constantes da lista I anexa a este código é aplicável a taxa reduzida de imposto. Por sua vez, a verba 2.23 da referida lista I estipulava o seguinte, à data dos factos: são sujeitas à taxa reduzida de IVA as empreitadas de reabilitação urbana, tal como definida em diploma específico, realizadas em imóveis ou em espaços públicos localizados em áreas de reabilitação urbana (áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística, zonas de intervenção das sociedades de reabilitação urbana e outras) delimitadas nos termos legais, ou no âmbito de operações de requalificação e reabilitação de reconhecido interesse público nacional.

 

De acordo com a referida verba, na redação acima transcrita, os requisitos para subsunção à previsão normativa da taxa reduzida de IVA são os seguintes:

  1. Existência de uma empreitada;
  2. De reabilitação urbana, tal como definida em diploma específico;
  3. Realizada em imóvel (ou espaço público) localizado em ARU (ou no âmbito de operações de requalificação e reabilitação de reconhecido interesse público nacional, que não é o caso).

 

No caso em apreço, é facto não controvertido entre as partes que a Requerente celebrou um contrato de empreitada com um empreiteiro para uma obra a efetuar em Braga nascente, pelo que o requisito acima identificado em a) [existência de empreitada] considera-se cumprido.

 

É, igualmente, facto provado, e comummente aceite por ambas as partes, que o imóvel objeto dessa empreitada está contido na ARU delimitada pela Assembleia Municipal de Braga, a qual foi publicada em 2017 (i.e., em momento anterior à referida obra), pelo que o requisito previsto em c) supra [imóvel localizado em ARU] também se considera integralmente cumprido.

 

As partes discordam, no entanto, do conceito de reabilitação urbana para efeitos de aplicação desta verba. Vejamos, então, esta questão em maior pormenor.

 

Dada a similitude da situação fáctica e dos respetivos argumentos de direito, transcrevemos infra as conclusões proferidas na decisão arbitral n.º 947/2023-T, na qual a signatária assumiu a função de relatora, que entendemos igualmente pertinentes in casu:

“Em jeito de introdução, cumpre esclarecer que, perante uma redação estável da mencionada verba 2.23 desde 2009 até 2023, a AT foi adotando vários requisitos adicionais de interpretação desta norma que não decorrem do seu elemento literal, em particular, a posse de declaração de localização em ARU emitida pelo município competente, o licenciamento ou comunicação prévia da obra[2], ou, mais recentemente, a prévia aprovação de uma ORU para determinado território. No caso em apreço, é este último requisito que está em análise, mas mesmo neste âmbito o entendimento da AT tem evoluído, porquanto começou por aceitar a aplicação da taxa reduzida de IVA quando o respetivo município atestasse que o projeto em causa consubstanciava uma operação de reabilitação urbana[3], mas nos presentes autos, em que tal certificação existe (como resulta dos factos provados), argumenta ainda a necessidade de uma prévia aprovação da respetiva ORU.

 

A verba 2.23 da Lista I remete, como vimos, para o conceito de «reabilitação urbana, tal como definida em diploma específico», pelo que este conceito tem de ser preenchido por recurso ao diploma específico em causa, a saber, o Regime Jurídico da Reabilitação Urbana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de outubro (RJRU).

 

O RJRU contém um conjunto extenso de normas reguladoras e funcionais, que pretendem garantir intervenções urbanísticas alinhadas com os objetivos e os critérios de reabilitação definidos por cada município para o seu território. Para o efeito, as entidades municipais recorrem a instrumentos legais como a delimitação da zona de reabilitação urbana (ARU), a definição de operações de reabilitação urbana (ORU) e a emissão de licenças de construção que conformam projetos de obra, os quais, no essencial, servem propósitos de natureza urbanística.

 

No que respeita ao plano fiscal, o legislador optou por fazer remissões específicas, e não gerais, da verba 2.23 da lista I para o regime da reabilitação urbana[4]. Quer na redação desta verba após a aprovação do RJRU (que é posterior à aprovação do Código do IVA), quer na redação existente na vigência do seu antecessor (in casu, o Decreto-Lei n.º 104/2004, de 7 de maio), não se retira, do texto da referida verba, uma remissão genérica para o regime da reabilitação urbana – o que teria sido uma opção legislativa válida – mas, sim, o recurso a (apenas) dois aspetos (conceitos) específicos do RJRU:

  1. Quando se refere ao conceito de «reabilitação urbana, tal como definida em diploma específico», a verba 2.23 remete para a definição legal de reabilitação urbana constante da alínea j) do art.º 2 do RJRU , a qual define reabilitação urbana como «a forma de intervenção integrada sobre o tecido urbano existente, em que o património urbanístico e imobiliário é mantido, no todo ou em parte substancial, e modernizado através da realização de obras de remodelação ou beneficiação dos sistemas de infra-estruturas urbanas, dos equipamentos e dos espaços urbanos ou verdes de utilização colectiva e de obras de construção, reconstrução, ampliação, alteração, conservação ou demolição dos edifícios»;
  2. Quando se refere a «imóveis ou em espaços públicos localizados em áreas de reabilitação urbana», remete-se para a delimitação geográfica da ARU que é efetuada por cada município, no âmbito das atribuições que lhe são conferidas pelo RJRU.

 

O legislador urbanístico previu, ainda, para cada ARU, a existência de uma ORU enquanto diploma densificador da intervenção urbana a ser realizada nesse território delimitado. A aprovação dessa ORU, de acordo com o disposto no art.º 15 do RJRU, pode ocorrer em simultâneo com a da ARU, ou até ao prazo limite de 3 anos após a aprovação da respetiva ARU (sob pena de caducidade desta).

 

Note-se que o referido art.º 15 do RJRU não teria razão de existir se o legislador não pretendesse que a aprovação da ARU produzisse efeitos antes da aprovação da ORU. Nesse sentido, face à adoção do mencionado art.º 15, é de concluir que a delimitação de uma área de reabilitação urbana subsiste, mesmo sem a aprovação da respetiva ORU[5], e é válida e eficaz perante terceiros, até à sua (eventual) caducidade. Tal conclusão é, igualmente, suportada pelo art.º 14 do RJRU, que determina que a delimitação de uma área de reabilitação urbana (i.e., a delimitação geográfica da ARU), obriga à definição, pelo município, dos benefícios fiscais associados aos impostos municipais sobre o património (IMT e IMI) e confere aos proprietários e titulares de outros direitos, ónus e encargos sobre os edifícios compreendidos nessa área o direito de acesso aos apoios e incentivos fiscais e financeiros à reabilitação urbana.

 

Ou seja, da conjugação dos art.ºs 14 e 15 do RJRU, conclui-se que a mera delimitação da ARU – com, ou sem, a aprovação simultânea da respetiva ORU – confere determinados direitos de acesso a apoios e incentivos fiscais e financeiros à reabilitação urbana, como o sejam os benefícios fiscais respeitantes ao IMT, ao IMI e – entende este Tribunal – à taxa reduzida de IVA da verba 2.23 da Lista I.

 

Retomando a análise da verba 2.23 da lista I, verifica-se que em momento algum esta elenca, como requisito ou critério de aplicação da taxa reduzida de IVA, a existência de uma ORU aprovada para o território ou, sequer, refere o conceito de operação de reabilitação urbana. O que o legislador fiscal pretendeu foi conceder um benefício fiscal, sob a forma de taxa reduzida de IVA, às intervenções urbanísticas que, cumulativamente, se insiram em determinadas zonas geográficas (ARU) e que revistam determinados critérios de intervenção urbanística sobre o tecido imobiliário (critérios esses que são definidos e aferidos pelas entidades municipais, e não pela AT), que lhes permitam obter a qualificação legal de reabilitação urbana ao abrigo do RJRU.

 

No mesmo sentido se concluiu em processos arbitrais anteriores, tais como os processos
n.º 137/2022-T e n.º 603/2022-T, em que a Requerida viu recusado o argumento de que a aplicação da verba 2.23 dependia de um terceiro requisito, que consistia na prévia apreciação e aprovação de um pedido de licenciamento camarário, ou no processo n.º 354/2023-T, cujo sumário refere o seguinte:

“1.      A verba 2.23 da Lista I Anexa ao CIVA, tem aplicação quando verificadas as seguintes condições:

(a) Estamos perante uma empreitada de reabilitação urbana, conforme legalmente definida;

(b) A empreitada de reabilitação urbana realiza-se em imóvel ou em espaços públicos localizados em Área de Reabilitação Urbana (ARU), legalmente delimitada.

(…)

3.      Para além das duas condições referidas, nem da letra, nem do espírito da Lei, resulta qualquer outra exigência para a aplicação da taxa reduzida de IVA de 6%, designadamente a exigência de que uma Câmara Municipal tenha de atestar que a empreitada consubstancia uma “Operação de reabilitação urbana”.”

 

Conforme refere Clotilde Celorico Palma no seu voto de vencida no processo 517/2013-T, para apurar se é possível conceder o benefício fiscal da taxa reduzida de IVA bastando a existência de uma ARU sem ORU, “importa desde logo salientar, que, distintamente do que se verifica em sede de concessão dos benefícios a que se refere o n.º 4 do artigo 71.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), que podem ser mobilizados quando estejam em causa encargos suportados pelo proprietário, com a reabilitação de imóveis, localizados em áreas de reabilitação urbana e recuperados nos termos das respectivas estratégias de reabilitação e no n.º 5 do mesmo artigo, a verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA não utiliza, não contém, nem emprega, em nenhum momento, o conceito de “operação de reabilitação urbana” e muito menos refere ou remete para qualquer certificação pela Câmara Municipal a “consubstanciar” tal operação”.

 

Também Paula Oliveira e Dulce Lopes [6] defendem que da aprovação da ARU resultam já efeitos fiscais, não dependentes, em termos de eficácia, da aprovação da respetiva ORU: “Com a Lei n.° 32/2012, de 14 de agosto, veio permitir-se (mas não impor-se) que a decisão complexa (traduzida num conjunto de decisões parcelares ou preliminares anteriormente referidas) seja faseada, procedendo-se, primeiro, à identificação dos concretos limites físicos da área a sujeitar à operação de reabilitação urbana (arts. 7.º, n.º 3, e 13.º), apenas depois se aprovando essa operação (art. 16.º), aprovação que integrará, para além da definição do tipo de operação a realizar (simples ou sistemática), também a estratégia ou programa estratégico a prosseguir.

Pretendeu-se, com esta alteração, promover, o mais antecipadamente possível, em área de reabilitação urbana, a reabilitação de edifícios e frações pelos seus proprietários (mesmo antes da aprovação da correspetiva operação de reabilitação urbana), já que a delimitação daquela área tem como efeitos a definição, pelo município, dos benefícios fiscais associados aos impostos municipais sobre o património, designadamente o imposto municipal sobre imóveis (IMI) e o imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT), nos termos da legislação aplicável, bem como a concessão aos proprietários e titulares de outros direitos, ónus e encargos sobre os edifícios ou frações nela compreendidos do direito de acesso aos apoios e incentivos fiscais e financeiros à reabilitação urbana, nos termos estabelecidos na legislação aplicável, sem prejuízo de outros benefícios e incentivos relativos ao património cultural.

(…)

“Entendemos, como resultado da melhor ponderação dos vários interesses em confronto, que se pode interpretar o referido benefício constante do Código do IVA como extensível a intervenções que, estando integradas em áreas de reabilitação urbana, não prejudicam (ou potenciam) os objetivos estratégicos antecipados aquando da delimitação destas áreas. Achamos até adequado que assim seja, na medida em que, se assim se entender, não são apenas os municípios que têm de abdicar de receitas fiscais (já que aqueles de que estes beneficiam, IMI e IMT, têm necessariamente de ser definidos aquando da delimitação da ARU), fazendo também impender esse "encargo " sobre o Estado”.

 

Concluem, portanto, estas Autoras, à semelhança da posição assumida por Clotilde Celorico Palma no voto de vencida acima referido, que o benefício da taxa reduzida de IVA da verba 2.23 da Lista I pode ser concedido sem existência de uma ORU previamente aprovada, posição que este Tribunal acompanha. No mesmo sentido, Daniel S. de Bobos-Radu[7] esclarece que “assim como nada justifica que a Administração Tributária ou os Tribunais afiram se um «produto farmacêutico» ou um «estabelecimento hoteleiro», para efeitos da subsunção, respetivamente, às verbas 2.5 e 2.17 da Lista I anexa do Código do IVA, cumpre com todos os pressupostos regulatórios que lhe sejam especificamente aplicáveis por força de outros regimes, também nada justifica que a Administração Tributária ou os Tribunais tomem em linha de conta, v.g., a verificação do licenciamento ou comunicação prévia, ou a aprovação da operação de reabilitação urbana, para efeitos da aplicação da verba 2.23 da referida Lista I”.

 

De facto, a exigência da AT de uma prévia aprovação da ORU para aplicação da taxa reduzida de IVA ao abrigo da verba 2.23 da lista I não encontra o mínimo suporte legal, pelo que o seu acolhimento por via de instruções administrativas violaria o princípio da legalidade tributária, máxime da tipicidade tributária, previsto no n.º 2 do art.º 103 da Constituição da República Portuguesa[8].

 

Acresce que tem sido entendimento constante da Requerida que a entidade competente para certificar que determinado projeto se enquadra no âmbito de uma intervenção de reabilitação urbana, nos termos do RJRU, é o município onde se insere o respetivo imóvel, não competindo à AT tal juízo (conforme, aliás, refere a Requerida, no ponto 35 da pág. 22 do Relatório de Inspeção, citando uma sua informação vinculativa[9])”.

 

No caso em apreço, para comprovação dos factos por si alegados, a Requerente disponibilizou à equipa inspetiva da AT uma certidão da Divisão de Gestão Urbanística e Espaço Público da Câmara Municipal de Braga, de 06.08.2019 (pág. 44 do RIT de 2020), que atesta que o imóvel objeto de discussão, sito na Rua ..., se insere na área de reabilitação urbana de Braga Nascente.

 

Por sua vez, resulta dos autos que a intervenção efetuada no imóvel em causa abrangeu todo o edifício, tendente à sua recuperação e remodelação total, i.e., de todas as frações, bem como das partes comuns, incluindo a transformação das 4 frações originais em 7 frações após as obras, com a construção de um novo piso. Ou seja, tratou-se de um projeto urbanístico, devidamente aprovado pela Câmara Municipal de Braga com vista à reabilitação de um prédio urbano degradado, que pela sua extensão e âmbito, se subsume na definição de reabilitação urbana da alínea j) do art.º 2 do RJRU.

 

Como tal, resulta in casu plenamente provado o cumprimento dos requisitos legais constantes da verba 2.23 da Lista I do Código do IVA e, consequentemente, a aplicação da taxa reduzida de IVA aos serviços de empreitada faturados à Requerente, em 2019 e 2020, por conta da reabilitação do imóvel sito na Rua ..., em..., Braga Nascente.

 

Face ao exposto, não assiste razão à Requerida, devendo as liquidações de IVA sub judice ser anuladas, por erro nos pressupostos de direito, o que constitui vício de violação de lei.

 

A anulação das liquidações de imposto importa, consequentemente, a anulação das liquidações de juros compensatórios que lhe estão associadas, por enfermarem dos mesmos vícios.

 

 

  1. Pedido de restituição da quantia paga e juros indemnizatórios

 

A Requerente formula, ainda, um pedido de restituição das quantias arrecadadas pela Requerida quanto aos atos tributários de 2019, bem como um pedido de pagamento de juros indemnizatórios sobre essas quantias. Por sua vez, a Requerida não põe em causa o pagamento do imposto, limitando-se a concluir que o pedido de pronúncia arbitral deverá ser julgado improcedente por não provado, e, consequentemente, absolvida a Requerida de todos os pedidos.

 

Conforme resulta da alínea b) do n.º 1 do art.º 24 do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito. Tal preceito encontra-se alinhado com o preceituado no art.º 100 da LGT, que estabelece que a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão.

 

Como resulta do supra exposto, o pedido de pronúncia arbitral procede totalmente contra as liquidações adicionais de IVA e de juros compensatórios contestadas. Neste sentido, a Requerente tem o direito de ser reembolsada das quantias indevidamente pagas à Requerida por conta dos atos tributários ora anulados, procedendo, assim, o respetivo pedido de reembolso.

 

Por sua vez, a ilegalidade das liquidações oficiosas é imputável à AT, por terem sido emitidas por sua iniciativa, na sequência de ações inspetivas por si desencadeadas, que concluíram por uma errada interpretação da lei.

 

Consequentemente, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, nos termos dos art.ºs 43, n.º 1, da LGT e 61 do CPPT, relativamente ao montante a reembolsar, calculados desde a data em que a Requerente efetuou o pagamento até ao integral pagamento do montante a reembolsar, à taxa legal.

 

 

  1. DECISÃO

Pelo exposto, procede, na totalidade, o pedido arbitral, decretando este Tribunal:

  • A anulação dos atos tributários de IVA e de juros compensatórios em crise, referentes a 2019 e a 2020, acima identificados;
  • A anulação do indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente contra as liquidações oficiosas (de IVA e de juros compensatórios) de 2019;
  • O reembolso das quantias indevidamente pagas pela Requerente respeitantes aos atos tributários de 2019 ora anulados;
  • A condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, sobre o montante a restituir à Requerente referido no ponto anterior;
  • A condenação da Requerida no pagamento das custas do processo.

 

 

  1. VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto no art.º 97-A, n.º 1, do CPPT e art.º 3, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 54.995,03.

 

 

  1. CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.142,00 (dois mil, cento e quarenta e dois euros), nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

 

Notifique-se.

Lisboa, 15 de julho de 2024.

 

(Raquel Montes Fernandes)

 

 



[1] Páginas 23 e 24 do Relatório de Inspeção Tributária de 2020.

[2] A título de exemplo, vejam-se a Informação Vinculativa n.º 12432, de 08.11.2017 e a Informação Vinculativa n.º 13727, de 18.06.2018. À data dos factos ora em discussão, as informações vinculativas prestadas pela AT assentavam nas seguintes conclusões, que não mencionavam qualquer exigência ao nível da aprovação prévia de uma ORU (a título de exemplo, transcrevemos o ponto 8 da Informação Vinculativa n.º 13727, de 18.06.2018): “a contratação de empreitada geral relativa à totalidade de uma obra de reabilitação em imóvel localizado em área de reabilitação urbana (ARU), devidamente licenciada pelo respetivo município, por concessão do respetivo alvará, é suscetível de enquadramento na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA e, beneficiar da taxa reduzida de IVA a que se refere a alínea a) do n.º 1 do artigo 18.º do mesmo Código, quando, cumulativamente:

a) O respetivo alvará de licenciamento da reabilitação, concedido pela Câmara Municipal de ..., nos termos do artigo 4.º do RJUE, tenha enquadramento na alínea j) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23/10, nomeadamente, tratar-se de intervenção integrada sobre o tecido urbano existente, em que o património urbanístico e imobiliário é mantido, no todo ou em parte substancial, e modernizado através da realização de obras de remodelação ou beneficiação dos sistemas de infraestruturas urbanas, através de obras de construção, reconstrução, ampliação, alteração, conservação ou demolição dos edifícios; e

b) A adjudicação da referida empreitada tenha por base a universalidade dos bens e serviços cuja disponibilização se afigure essencial à concretização da operação constante do respetivo alvará”.

[3] A título de exemplo, veja-se o ponto 40 da Informação Vinculativa n.º 21440, de 01.07.2021, que conclui que “sempre que a Câmara Municipal da área em que se situa o imóvel objeto de intervenção certifique que, nos termos do citado diploma legal, o projeto:

a. Está integrado numa área de reabilitação urbana; e

b. consubstancia uma operação de reabilitação urbana,

ser-lhe-á, verificados que sejam os restantes condicionalismos (nomeadamente tratar-se de uma empreitada, nos termos do artigo 1207.º do Código Civil), aplicável a taxa reduzida do imposto, a que se refere a alínea a) do n.º 1 do artigo 18.º do CIVA”.

[4] No mesmo sentido, Daniel S. de Bobos-Radu conclui que “a utilização dos conceitos de «empreitada de reabilitação urbana» e «área de reabilitação urbana» na citada verba 2.23 tem unicamente um valor remissivo: encontrando-se os termos já definidos nos regimes de origem, o legislador tributário aproveita as referidas definições, uma vez que, por razões de analogia, as mesmas, qua tale, servem o propósito subjacente à delimitação do âmbito da previsão da taxa reduzida do imposto”, Cadernos IVA 2023, Reabilitação urbana na aceção do IVA: nota metodológica, pp. 165-166.

[5] Note-se que, mesmo na ausência de uma ORU, o município continua a ter instrumentos urbanísticos que asseguram a conformidade de determinado projeto de obra com as políticas por si definidas e pretendidas ao nível da reabilitação do seu património imobiliário (emissão de licenças de construção, fiscalização das empreitadas, etc.), que lhe permitem evitar a existência de empreitadas que, urbanisticamente, não estão alinhadas com essas politicas e que, fiscalmente, por esse mesmo motivo, não serão merecedoras de um benefício fiscal (de redução de taxa), o qual se pretende atribuir a quem recupera, de determinada forma e sob determinados critérios, edificações legalmente qualificadas como degradadas.

[6] Reabilitação urbana em ARUS sem ORUS: que conceito de reabilitação e que benefícios fiscais em matéria de IVA”, Questões Atuais de Direito Local, n.º 13, Janeiro/Março 2017, pp. 30 e 31 e 45.

[7] Cadernos IVA 2023, Reabilitação urbana na aceção do IVA: nota metodológica, pág. 165.

[8] No mesmo sentido, v. o voto de vencida de Catarina Belim no processo arbitral n.º 295/2022-T.

[9] No mesmo sentido, e meramente a título de exemplo, veja-se o ponto 39 da Informação Vinculativa n.º 21440, de 01.07.2021, que refere que “A entidade competente para certificar que determinado projeto se enquadra no âmbito de uma operação de reabilitação urbana, nos termos do Decreto-lei n.º 307/2009, de 23 de outubro (1), é a Câmara Municipal da área onde se situa o imóvel objeto de intervenção”.