Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 153/2014-T
Data da decisão: 2014-10-23  IUC  
Valor do pedido: € 10.575,98
Tema: IUC – incidência subjectiva; presução legal
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DECISÃO ARBITRAL

 

CAAD: Arbitragem Tributária

Processo nº 153/2014 – T

Tema: IUC – incidência subjectiva; presunção legal.

 

I.              RELATÓRIO

“A”, S.A., Sociedade Aberta, com sede na Rua …, n.º …, no Porto (…-…), matriculada na Conservatória do Registo Comercial do Porto sob o número único de matrícula e pessoa colectiva …, com o capital social de € 1.190.000.000,00 (Mil cento e noventa milhões de euros), na qualidade de sucessor legal da “B” – COMÉRCIO E ALUGUER DE BENS, LDA. (com o numero único de matrícula e de pessoa colectiva …, adiante abreviadamente designada “B”), doravante designado por “Requerente”, nos termos do disposto na alínea a) do número 1 do artigo 2.º, na alínea a) do número 3 do artigo 5.º e na alínea a) do número 1 do artigo 10.º, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT) aprovado pelo Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, veio apresentar pedido de pronúncia arbitral visando a declaração de ilegalidade de liquidações de IUC (Imposto Único de Circulação) e de juros compensatórios “(…) sobre as viaturas registadas em nome da entidade “B”, acima melhor identificada, compreendendo os anos fiscais de 2009 a 2012 consubstanciados nos documentos de cobrança melhor detalhados no quadro [inserido no artigo 1.º do pedido de pronuncia arbitral], no montante total de € 10.575,98.”

Para fundamentar o seu pedido alega, em síntese:

a)           O Requerente é uma instituição de crédito, sujeita à supervisão do Banco de Portugal, que encabeça o Grupo “A”, grupo financeiro, multi-especializado, centrado na actividade bancária, dotado de uma oferta completa de serviços e produtos financeiros para clientes empresariais, institucionais e particulares.

b)        O objecto social do Requerente consiste na realização das operações descritas no número 1 do artigo 4.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, de entre as quais se destaca, no que ao caso concerne, as operações de crédito e de locação financeira;

c)        A entidade “B”, detida a 100% pelo “A”, foi objecto de liquidação em 26/08/2009, tendo por este sido sucedida, nos seus direitos e obrigações;

d)       O objecto social da “B” consistia, precisamente, na realização de operações de locação financeira sob a modalidade de aluguer de longa duração (ALD);

e)           No exercício da sua actividade, aquela entidade celebrou contratos de ALD tendo por objecto as viaturas identificadas no quadro I do pedido de pronuncia arbitral;

f)         Conforme é típico dos contratos de Leasing e ALD, o Requerente assume a posição de locador e, nos termos e condições dos respectivos contratos, adquire as viaturas a terceiros fornecedores, entregando-os de imediato para uso e fruição dos locatários, os quais ficam obrigados ao pagamento da respectiva renda;

g)        Assim, ao longo da vigência dos contratos de Leasing e ALD, o Requerente é o proprietário das viaturas adquiridas, figurando como tal no registo automóvel, cobrando rendas aos locatários pela cedência (locação) dos bens;

h)        Tratando-se de contratos de ALD, o locatário obriga-se a adquirir a propriedade dos veículos no termo do contrato;

i)          Em 28/08/2013, o Requerente foi notificado para audição prévia sobre as liquidações oficiosas de IUC dos veículos em apreço, fundando-se estas no facto de o Requerente se encontrar registado como proprietário das viaturas em apreço;

j)          Em sede de Direito de Audição, o Requerente manifestou a sua discordância com as projectadas liquidações de IUC em virtude de, à data da verificação do facto tributário, já não ser o sujeito passivo do imposto;

k)        Com efeito, os veículos em apreço haviam sido alienados em momento anterior ao da data de verificação do facto tributário, pelo que o Requerente não era o seu proprietário, não lhe sendo, consequentemente, exigível o imposto único de circulação respeitante àqueles;

l)          A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), indiferente aos argumentos expendidos pelo Requerente, manteve as liquidações postas em crise;

m)      O Requerente procedeu ao pagamento dos montantes de imposto liquidados, não se conformando, porém, com o entendimento subjacente à actuação da AT.

O Requerente juntou cinco (5) documentos, não tendo arrolado testemunhas.

No pedido de pronúncia arbitral, o Requerente optou por não designar árbitros, pelo que, nos termos do disposto no artigo 6º nº 2 a) do RJAT, foi designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, o signatário, tendo a nomeação sido aceite nos termos legalmente previstos.

O tribunal arbitral foi constituído em 24 de Abril de 2014.

Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º do RJAT, a Requerida apresentou resposta, sustentando que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente e que os actos tributários impugnados se devem manter na ordem jurídica, alegando, sucintamente, que:

a)             Os actos tributários postos em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei, porquanto, à luz do disposto no n.º 1 do artigo 3.º e no artigo 6.º, ambos do Código do IUC, era o Requerente o sujeito passivo de imposto, por em seu nome estarem registados os veículos em apreço na data da verificação do facto tributário;

b)             Ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que dos elementos constantes dos autos, juntos pelo Requerente, não resulta que este, à data da verificação dos factos tributários, não era proprietário dos referidos veículos;

c)             Mais sustenta que, mesmo sendo o pedido de pronúncia julgado procedente, deve o Requerente ser condenado nas custas arbitrais decorrentes do presente pedido, por ter sido este a dar azo ao litigio.

A Requerida não juntou qualquer documento, não tendo, igualmente, arrolado qualquer testemunha.

O Tribunal dispensou a reunião prevista no artigo 18º do RJAT, tendo as partes prescindido de apresentação de alegações, orais ou escritas.

II.              QUESTÕES A DECIDIR

Atentas as posições assumidas pelas Partes, vertidas nos argumentos expendidos, cumpre:

a.         Apurar se a circunstância de, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, não ser o proprietário do veículo e figurar, como tal, no registo, permite, sem mais, considerar aquele que consta do registo como sujeito passivo do IUC; i.e., cumpre determinar se a norma de incidência subjectiva contida no n.º 1 do artigo 3º do CIUC estabelece ou não uma presunção;

b.        Determinar qual o valor probatório das facturas juntas pelo Requerente;

c.         Determinar a responsabilidade pelas custas arbitrais devidas no âmbito do presente processo.

III.              MATÉRIA DE FACTO

a.        Factos provados

Com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos, deram-se como provados os seguintes factos:

1.        O Requerente é uma instituição de crédito, sujeita à supervisão do Banco de Portugal, que encabeça o Grupo “A”, grupo financeiro, multi-especializado, centrado na atividade bancária, dotado de uma oferta completa de serviços e produtos financeiros para clientes empresariais, institucionais e particulares;

2.        A entidade “B”, detida a 100% pelo Requerente, que lhe sucedeu em todos os direitos e obrigações, foi objecto de liquidação a 26 de Agosto de 2009;

3.        O objecto social da “B” consistia na realização de operações de locação financeira sob a modalidade de aluguer de longa duração;

4.        No exercício da sua actividade, a “B” celebrou contratos de ALD tendo por objecto as viaturas identificadas no quadro inserido no artigo 1.º do pedido de pronúncia arbitral;

5.        Em 28/08/2013, o Requerente foi notificado para audição prévia sobre as liquidações oficiosas de IUC dos veículos em apreço;

6.        Em sede de Direito de Audição, o Requerente manifestou a sua discordância com as projectadas liquidações de IUC;

7.        A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) manteve as liquidações postas em crise;

8.        O Requerente procedeu ao pagamento dos montantes de imposto liquidados.

9.        Nenhum dos veículos em causa nos presentes autos pertence às categorias F ou G a que alude o artigo 4º do CIUC;

10.    Na data da ocorrência do facto gerador do imposto, havia sido emitida pelo Requerente, relativamente a cada um dos veículos, uma factura de venda a terceiro.

b.        Factos não provados

Com interesse para os autos, nenhum outro facto se provou.

c.         Fundamentação da matéria de facto

A convicção acerca dos factos tidos como provados formou-se tendo por base a prova documental junta pela Requerente, indicada relativamente a cada um dos pontos, e cuja adesão à realidade não foi questionada.

IV.              CUMULAÇÃO DE PEDIDOS

Vem a Requerente, invocando o princípio da economia processual, requerer a apreciação conjunta dos actos tributários em causa.

Verificada a identidade da natureza dos factos tributários, dos fundamentos de facto e de direito invocados e do tribunal competente para a decisão, nada obsta a que, nos termos do artigo 3.º do RJAT e do artigo 104.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário, se proceda à pretendida cumulação de pedidos.

V.              SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas.

O processo não enferma de vícios que afectem a sua validade, não existindo excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito e de que cumpra oficiosamente conhecer.

VI.              DO DIREITO

Fixada que está a matéria de facto, cumpre agora, por referência àquela, apurar o Direito aplicável.

Compulsados os argumentos expendidos pelas Partes, facilmente se compreende que a questão de fundo consiste em saber se a norma contida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC contém ou não uma presunção legal.

Aquela questão sido abundantemente suscitada, originando profusa jurisprudência – também arbitral – que oportunamente aqui se trará; adianta-se, desde já, não se vislumbrarem motivos substanciais para inverter o que até aqui tem vindo a ser dito sobre a presente temática. Vejamos.

Como se sabe, sob a epígrafe incidência subjectiva, o artigo 3.º do CIUC dispõe que:

1. – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2. – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação

Ora, dissipar as dúvidas sobre o sentido e o alcance a atribuir a determinada norma jurídica implica levar a cabo uma tarefa interpretativa que permita retirar do enunciado linguístico um concreto sentido ou conteúdo de pensamento([1]). Contudo, tal tarefa apenas se pode cumprir – assim se logrando apreender a vis ac potestas legis – através da utilização de um concreto método, que se estriba na interpretação literal, por um lado, e na interpretação lógica ou racional, por outro.

Recorde-se, antes de avançarmos, que de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 11.º da Lei Geral Tributária, as normas tributárias se interpretam de acordo com os princípios de hermenêutica jurídica comummente aceites, maxime os fixados, entre nós, no artigo 9.º do Código Civil. Prossigamos.

A interpretação literal apresenta-se, então, como o primeiro estádio da actividade interpretativa. Como refere FERRARA, “o texto da lei forma o substrato de que deve partir e em que deve repousar o intérprete([2]).

Na verdade, uma vez que a lei se encontra expressa em palavras, deve, então, delas ser extraída a significância verbal que contêm, segundo a sua natural conexão e as regras gramaticais. Porém, sendo as palavras empregues pelo Legislador equívocas ou indeterminadas, será forçoso recorrer à interpretação lógica, que atende ao espírito da disposição a interpretar.

A interpretação lógica, tal como vem sendo pacificamente figurada pela doutrina([3]), estriba-se no elemento racional, no elemento sistemático e no elemento histórico; ponderando-os e deles deduzindo o valor da norma jurídica em apreço.

Por elemento racional há-de entender-se a raison d´être da norma jurídica, i.e., a finalidade para a qual o legislador a instituiu. A descoberta da ratio legis apresenta-se, assim, como um factor de indubitável importância para a determinação do sentido da norma.

Sucede, porém, que uma determinada norma não existe isoladamente, antes convive com as demais normas e princípios jurídicos de forma sistemática e complexa. Assim, natural se torna que o sentido de uma concreta norma resulte claro da confrontação desta com as demais. Como refere BAPTISTA MACHADO, “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.([4]).

Já o elemento histórico, por seu turno, há-de reportar-se e incluir os materiais conexos com a história da norma, tais como “a história evolutiva do instituto, da figura ou do regime jurídico em causa (…); as chamadas fontes da lei, ou seja os textos legais ou doutrinais que inspiraram o legislador na elaboração da lei (…); os trabalhos preparatórios.”.

Apliquemos o que se vem dizendo ao caso vertente.

Compulsados os argumentos de Requerente e Requerida, e no que tange ao elemento literal, facilmente se compreende que o foco de dissenso reside na expressão “(…) considerando-se como tais (…)”, contida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC.

Pergunta-se – como de resto se fez na Decisão Arbitral proferida no âmbito do Processo n.º 73/2013-T([5]): “O facto do legislador ter optado pelo vocábulo “considerando-se” destrói a possibilidade de estarmos perante uma presunção?”. Não. É a resposta que se impõe. E nem se venha dizer que tal conclusão vai infirmada pela circunstância de o legislador não ter utilizado o vocábulo “presumem-se”, que empregou no vetusto Regulamento do Imposto Sobre Veículos.

Também aqui não podemos deixar de acompanhar o que naquela decisão ficou dito: “examinando o ordenamento jurídico português, encontramos imensas normas que consagram presunções utilizando o verbo considerar, muitas das quais empregues no gerúndio (“considerando” ou mesmo “considerando-se”). São disso exemplos as normas a seguir enumeradas: No Código Civil, entre outras, os artigos 314.º, 369.º n.º 2, 374.º n.º 1, 376.º n.º 2, 1629.º (…). Também no ordenamento jurídico tributário se pode encontrar o verbo “considerar”, nomeadamente o termo “considera-se” com um sentido presuntivo. E ali se acrescenta o ensinamento de LEITE DE CAMPOS, SILVA RODRIGUES e LOPES DE SOUSA que, pela clareza de exposição, igualmente se transcreve. Assim, escrevem os Autores que “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, revelada pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real”.

A este propósito, JORGE LOPES DE SOUSA([6]) refere que no n.º 1 do artigo 40.º do Código do IRS se utiliza a expressão “presume-se, ao passo que no n.º 2 do artigo 46.º do mesmo diploma se faz uso do vocábulo “considera-se”, não havendo qualquer diferença entre uma e outra expressão, ambas significando, afinal, o mesmo: uma presunção legal.

E que dizer do n.º 4 do artigo 89.º-A? Acaso dúvidas subsistem de que se trata de uma presunção? E tal conclusão sai fragilizada pelo facto de ali se empregar o verbo considerar? Não nos parece.

Assim, e ao que aqui nos interessa, revela-se admissível assimilar o verbo considerar ao verbo presumir. Com efeito, podemos estar perante uma presunção mesmo quando o legislador haja optado por outros verbos, nomeadamente pelo considerar. Na verdade, e ao invés do propugnado pela Requerida, é esta a conclusão que menos belisca a coerência sistemática postulada pelo ordenamento jurídico como um todo.

Mas mais: também o elemento racional autoriza semelhante conclusão.

Convoquemos a exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 118/X, de 07/03/2007, que originou a Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho. Resulta clara a ratio legis.

Pretendeu-se empreender uma “reforma global e coerente dos impostos ligados à aquisição e propriedade dos veículos automóveis” em função da “necessidade imperiosa de trazer clareza e coerência a esta área do sistema fiscal e da necessidade, mais imperiosa ainda, de subordiná-la aos princípios e preocupações de ordem ambiental e energética que hoje em dia marcam a discussão da tributação automóvel”.

Assim, “os dois novos impostos que agora se criam, o imposto sobre veículos e o imposto único de circulação, constituem muito mais do que o prolongamento técnico das figuras criadas nos anos 70 e 80 que os antecederam, voltadas predominantemente para a angariação da receita, indiferentes ao custo social resultante da circulação automóvel. Constituem algo diferente, figuras já do século em que vivemos, com as quais se pretende, com certeza, angariar receita pública, mas angariá-la na medida do custo que cada indivíduo provoca à comunidade.

De forma congruente àquela motivação, o legislador veio a consagrar, no artigo 1.º do CIUC, o princípio da equivalência, ficando claro “que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária. É este princípio que dita a oneração dos veículos em função da respectiva propriedade e até ao momento do abate”.

Pode, aliás, dizer-se que as preocupações ambientais e energéticas são tão impressivas em sede de IUC, que o princípio da equivalência molda não apenas a base tributável, mas também, e sobretudo, a própria incidência subjectiva, prevista no artigo 3.º.

Uma vez mais se convoca a Decisão Arbitral proferida no âmbito do Processo n.º 73/2013-T: “Tendo em conta quer o lugar sistemático que o princípio da equivalência ocupa (artigo 1.º do CIUC) – elemento sistemático – quer o elemento histórico corporizado pela Proposta de Lei n.º 118/X (fonte de lei), quer o racional (ou teleológico) acabado de analisar, todos apontam no sentido da conclusão preliminar a que chegámos aquando da análise do elemento gramatical, só fazendo sentido conceber no contexto do artigo 3.º do CIUC a expressão “considerando-se como tais” como reveladora da presença de uma presunção ilidível (…). Na verdade, a ratio legis do imposto antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, o proprietário económico, no dizer de DIOGO LEITE DE CAMPOS, os efectivos proprietários ou os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade”.

Assente que fica a natureza jurídica da norma contida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, cumpre agora clarificar a questão relativa à transmissão do direito de propriedade sobre os veículos em apreço.

Há-que dizer, a título prévio, que a venda ao locatário é uma situação que sucede amiúde na economia do contrato de locação financeira, sendo um imperativo caso se trate de contrato de ALD, como aliás sucede nos presentes autos.

Ora, sendo a compra e venda celebrada, o locatário será instituído, ex contratu, na posição de proprietário, consequentemente passando a ser-lhe aplicável o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC; i.e., o novo proprietário mantém, para efeitos de IUC, a posição de sujeito passivo do imposto, mas já não por via da norma que lhe atribuía tal qualidade enquanto locatário (n.º 2 do artigo 3.º do CIUC).

E tal solução impõe-se desde o momento da perfeição do contrato de compra e venda não apenas porque o Código do IUC o determina – ao afirmar que são sujeitos passivos do imposto os proprietários –, mas também pelo facto de entre nós vigorar o princípio da consensualidade, que importa que a transmissão da propriedade ocorra por mero efeito do contrato; como resulta em primeira linha do n.º 1 do artigo 408.º do Código Civil. Veja-se ainda, reforçando o «que acima se diz, a alínea a) do artigo 879.º daquele diploma.

Refira-se, ainda, que o entendimento exposto no parágrafo que antecede é unanimemente propugnado por Doutrina([7]) e Jurisprudência([8]), não carecendo, assim, de desenvolvimentos adicionais.

E o que se vem de dizer releva para sustentar a nossa posição no que tange ao valor jurídico do registo automóvel. Recorde-se, porém, que de acordo com a regra geral acima vista a transferência do direito se produz ex contratu, sem necessidade de qualquer acto material ou de publicidade([9]).

Como pacificamente aceite por Doutrina e Jurisprudência, perante o silêncio do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, quanto à questão do valor jurídico do registo automóvel, torna-se necessário lançar mão da disciplina do registo predial; operação ademais autorizada pelo artigo 29.º daquele Decreto-Lei.

Ora, atendendo ao Código do Registo Predial – aprovado pelo Decreto-Lei n.º 125/13, de 30 de Agosto –, maxime ao seu artigo 7.º, e conjugando esta norma com o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 54/75, rapidamente se infere a função primacial do registo (automóvel): dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor.

Pode então afirmar-se que o registo não tem natureza constitutiva, antes meramente declarativa, permitindo apenas presumir a existência do direito e a sua titularidade. Note-se: presumir e não ficcionar, podendo assim ser ilidida mediante prova em contrário.

E isto é assim justamente porque, nos termos do disposto no artigo 408.º do Código Civil, e salvas as excepções previstas na lei, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada ocorre por mero efeito do contrato, não ficando a sua validade dependente de qualquer acto subsequente, e.g., inscrição no registo.

Desta feita, não prevendo a lei qualquer excepção para o contrato de compra e venda de veículo automóvel, a eficácia real produz normalmente os seus efeitos, passando o adquirente a ser o seu proprietário, independentemente do registo.

Ora, se independentemente do registo o adquirente passa a ser o proprietário, o titular inscrito deixa concomitantemente de o ser; pese embora no registo  figure como tal.

In casu, e não obstante a falta de inscrição no registo, as transmissões efectuadas são oponíveis à Requerida, não podendo esta prevalecer-se do disposto no n.º 1 do artigo 5º do Código do Registo Predial.

Desde logo pelo facto de a Requerida não ser, para efeitos do disposto naquela norma, havida como terceiro para efeitos de registo.

A noção de terceiros para efeitos de registo é-nos dada pelo n.º 4 do mesmo artigo 5.º: terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si. Tal não é, manifestamente, o caso dos autos.

O mesmo raciocínio se terá, naturalmente, de aplicar às hipóteses de locação financeira, em relação às quais também o registo não tem qualquer eficácia constitutiva, mais não passando de uma presunção de que o direito existe. Presunção ilidível, do mesmo passo, mediante prova em contrário.

Ora, pese embora à data das liquidações de imposto o Requerente ainda figurar no registo como proprietário dos veículos, a verdade é que alega não ser, à data do facto gerador do imposto, a sua proprietário, por já os haver alienado.

Assim, e uma vez que a presunção resultante do registo é, como vimos, ilidível, vejamos se os documentos juntos pelo Requerente são aptos a cumprir tal desiderato.

Com vista a provar que os veículos referidos nos presentes autos foram por si alienados em data anterior à da ocorrência do facto gerador do imposto, o Requerente juntou as respectivas facturas de venda.

Note-se que a Requerida alegou que “o Requerente não efectuou a prova dos factos que alega quanto à transmissão da propriedade sobre aqueles veículos.

Verifica-se, antes de mais, que a Requerente juntou, para cada uma das matrículas em causa, factura de venda.

Isto posto, e conforme resulta dos factos provados, nenhum dos veículos em causa nos presentes autos pertence às categorias F ou G a que alude o artigo 4º do CIUC, pelo que o facto gerador do imposto ocorre na data da respectiva matrícula ou em cada um dos seus aniversários.

Decorre ainda dos factos provados que, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, havia sido emitida pelo Requerente, relativamente a cada um destes veículos, uma factura de venda a terceiro.

Ora, à míngua de quaisquer elementos ou fundamentos que nos permitam concluir o contrário, teremos, naturalmente, de aceitar a veracidade dos documentos juntos.

Assente a veracidade das facturas juntas pelo Requerente, teremos de considerar, sem necessidade de quaisquer outras considerações, serem estas documentos aptos a provar a alienação dos veículos em causa.

Com efeito, não prevendo a lei qualquer forma específica para a celebração de um contrato de compra e venda de um bem móvel, terá, necessariamente, de se aceitar como prova do dito contrato a factura emitida nos termos legais.

Por onde se verifica que, à data do facto gerador do imposto (data da matrícula ou de cada um dos seus aniversários) o Requerente havia alienado todos os veículos, pese embora as referidas alienações não tenham sido espelhadas no competente registo.

Assim, atento o facto de, conforme já exposto, a presunção resultante do registo ser ilidível mediante prova em contrário, prova essa que se considera suficiente com a apresentação das facturas de venda dos veículos, verifica-se, relativamente aos veículos em apreço, que o Requerente não era seu proprietário, não sendo, por isso, sujeito passivo do IUC liquidado.

Por fim, no que tange às custas arbitrais, não poderá proceder a argumentação da Requerida, segundo a qual deve o Requerente nelas ser condenado em virtude de ter dado origem aos presentes autos. E tal argumentação não poderá proceder pois a AT poderia (e deveria), quando confrontada com a argumentação do Requerente, nomeadamente em sede de audição prévia, ter anulado as liquidações previamente emitidas, assim obstando a materialização dos presentes autos.

Em suma:

·           A norma ínsita no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC contém uma presunção;

·           Estando aquela presunção contida numa norma de incidência tributária, admitirá sempre prova em contrário, como resulta do artigo 73.º da LGT;

·           Quando, na data da verificação do facto gerador do imposto, o veículo automóvel primitivamente objecto de contrato de ALD tiver já sido alienado, embora o direito de propriedade continue registado em nome do primitivo proprietário, o sujeito passivo do IUC é o novo proprietário, contanto que aquele ilida a presunção decorrente do registo;

·           A transmissão da propriedade ocorre por mero efeito do contrato, não carecendo de qualquer acto subsequente;

·           O registo automóvel não tem natureza constitutiva, antes visando dar publicidade à situação dos veículos através de presunções, ilidíveis, da existência do direito e da respectiva titularidade;

·           Não pode a AT estribar-se na ausência de actualização do registo para, questionando a perfeição dos contratos de compra e venda, atribuir ao primitivo proprietário a qualidade de sujeito passivo de IUC e, assim, exigir deste o cumprimento da obrigação de imposto.

De tudo quanto se expendeu resulta clara a inexistência de fundamento legal para os actos de liquidação de IUC, impondo-se a sua anulação, bem como dos respectivos juros compensatórios, com as demais consequências legais.

VII.              DISPOSITIVO

Em face do exposto, decide-se:

a.         Julgar procedente, por provado, o pedido de anulação dos actos de liquidação de IUC e de juros compensatórios a que se refere o pedido da Requerente;

b.        Anular os actos de liquidação de IUC e de juros compensatórios referidos em a., com todas as legais consequências.

c.         Condenar a Requerida nas custas do processo.

***

Fixa-se o valor do processo em € 10.575,98, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

***

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos do n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT, e do n.º 4 do artigo 4.º, do citado Regulamento, a pagar pela Requerida por ser a parte vencida.

***

Registe e notifique.

Lisboa, 23 de Outubro de 2014.

O Árbitro,

Alberto Amorim Pereira

***

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.

 

 

 

 



([1])      Cf. BAPTISTA MACHADO, JOÃO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1982, p. 175.

([2])      FERRARA, FRANCESCO, Interpretação e Aplicação das Leis, 1921, Roma; Tradução de MANUEL DE ANDRADE, Arménio Amado, Editor, Sucessor – Coimbra, 2.ª Edição, 1963, p. 138 e ss.

([3])      Vide, por todos, BAPTISTA MACHADO, JOÃO, op. cit., p. 181.

([4])      BAPTISTA MACHADO, JOÃO, op. cit., p. 183.

([5])      Cf. Decisão Arbitral de 5 de Dezembro de 2013, proferida no âmbito do Processo n.º 73/2013, p. 21.

([6])     Cf. LOPES DE SOUSA, JORGE, Código do Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, Vol. I, 6ª Edição, Áreas Editora, Lisboa, 2011, p. 589.

([7])      Vide, por todos, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volumes I e II, Coimbra Editora, 4ª Edição Revista e Actualizada, Anotações aos artigos 408.º e 79.º.

([8])      Vide, inter alios, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Março de 1998.

([9])      Cf. EWALD HÖRSTER, HEINRICH, A Parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 2ª Reimpressão da Edição de 1992, p. 467.