Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 149/2014-T
Data da decisão: 2014-10-20  IUC  
Valor do pedido: € 198,47
Tema: IUC – Incidência subjetctiva; Locação financeira; Presunções legais
Versão em PDF

REQUERENTE: A

REQUERIDA: Autoridade Tributária e Aduaneira

 

Decisão Arbitral[1]

 

I RELATÓRIO

 

A)    As Partes e a Constituição do tribunal Arbitral

 

1. A, sgps, s.a., pessoa colectiva nº …, com sede no …, na qualidade de sociedade liquidatária da sociedade B (pessoa colectiva extinta nº ...), doravante designada por “Requerente”, apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral singular, ao abrigo do disposto no artigo 10º, e na alínea a), do nº 1, do artigo 2º, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) e dos artigos 1º e 2º da Portaria nº 112 – A/2011, de 22 de Março, para apreciar a demanda que a opõe à Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante designada por “Requerida” ou “AT”, tendo em vista a anulação, com fundamento em ilegalidade, de quatro actos de liquidação oficiosa de Imposto Único de Circulação (IUC), referentes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012, no valor global de €198,47, referentes à viatura automóvel ...-...-..., conforme  liquidações juntas em anexo ao pedido arbitral que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral, apresentado em 18.02.2014, foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 20.02.2014. A Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no nº 1, do artigo 6º do RJAT, foi designada, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, a ora signatária como árbitro do Tribunal Arbitral singular. A nomeação foi aceite e as partes, notificadas da aceitação, em 7.04.2014, não recusaram a designação, nos termos previstos nas alíneas a) e b), do nº1, do artigo 11º, do RJAT, conjugado com o disposto nos artigos 6º e 7º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c), do nº 1, do artigo 11º, do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redacção introduzida pelo artigo 228º, da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 23 de Abril de 2014.

No dia 24 de Abril de 2014, foi a Requerida “AT” notificada para apresentar resposta no prazo legal, nos termos do disposto nos nºs 1 e 2, artigo 17º, do RJAT. A 27 de Maio de 2014 a AT juntou aos autos a sua Resposta.

Em 13 de Junho foram as partes notificadas para se pronunciarem sobre eventual dispensa de realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT. Apenas a Autoridade Tributária se pronunciou em sentido favorável à dispensa de realização da reunião. A Requerente não se pronunciou. Por despacho de 7 de Julho de 2014 o tribunal proferiu despacho arbitral, dispensando a realização da reunião e fixou o prazo de dez dias, sucessivos, para cada uma das partes apresentarem, querendo, alegações escritas. A Requerente não apresentou alegações e a AT, por requerimento de 18 de setembro de 2014, veio informar que prescindia da apresentação de alegações. Foi fixada data prolação da decisão arbitral até ao dia 10 de Outubro de 2014. Em 23 de Setembro de 2014 a Autoridade Tributária Requereu a junção aos autos duas decisões arbitrais nºs 150-2014T e 220-2014 T, alegadamente sobre matéria idêntica à dos presentes autos, pelo que foi fixado prazo para exercício de eventual resposta da Requerente, a qual se pronunciou por requerimento junto aos autos em 10.10.2014, pelo que foi alterado o prazo para proferir a decisão arbitral até ao dia 20 de Outubro de 2014.

 

B)     Dos Pressupostos Processuais

 

 

3. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos do artigo 2º, nº1, alínea a) do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro.

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (Cfr. Artigos 4º e 10º, nº 2, do DL nº 10/2011 e artigo 1º, da Portaria nº 112/2011, de 22 de Março). A legitimidade da Requerente A SA, para apresentar o presente pedido de pronúncia arbitral na qualidade de liquidatária da sociedade B resulta demonstrada pelo teor da acta e da Certidão Permanente do Registo Comercial, juntas aos autos como documento nº4 anexo à PI.

Quanto à cumulação de pedidos, pretendendo-se a apreciação conjunta da legalidade das quatro liquidações de IUC, relativas aos anos de 2009 a 2012, todas referentes á mesma viatura automóvel, e que apesar de constituírem actos autónomos, constata-se que se verificam os pressupostos exigidos pelo disposto no nº 1, do artigo 3º, do RJAT e artigo 104º do CPPT, pelo que é de admitir a cumulação de todos os actos tributários de liquidação de IUC e respectivos juros compensatórios.

O processo não enferma de nulidades que o invalidem e não foram suscitadas excepções que obstem ao julgamento do mérito da causa, pelo que o Tribunal está em condições de proferir a decisão arbitral.

 

 

C) DO PEDIDO FORMULADO PELA REQUERENTE

 

4. A Requerente formula o presente pedido de pronúncia arbitral pugnando pela ilegalidade e consequente anulação, dos actos de liquidação de Imposto Único de Circulação e respectivos Juros Compensatórios, referentes aos anos de 2009 a 2012, no montante global de €198,47, com referência ao veículo identificado com a matrícula ...-...-..., conforme notas de demonstração de liquidação de imposto e dos respectivos juros compensatórios, conforme nota de demonstração junta aos autos como documento nº 1 anexo ao pedido.

 Fundamenta o seu pedido na ilegalidade das liquidações de imposto e respectivos juros, alegando em síntese o seguinte:

a)      A Requerente não é devedora de qualquer imposto, porquanto a sociedade B SA foi dissolvida em 2006, e cessou a sua actividade em 10.01.2007, pelo que já não existia ao tempo dos factos tributários, estando em causa o IUC relativo aos anos 2009 a 2012;

b)      Acresce que a sociedade B, SA nunca foi proprietária desta viatura nem de qualquer viatura, não lhe sendo exigível o pagamento do IUC com referência aos anos de 2009 a 2012;

c)      A viatura automóvel em causa, com a matrícula …-…-…, de marca …, consta das bases registrais como sendo propriedade da Sociedade B com sede na …;

d)      Segundo a Requerente apurou existe nesta mesma morada uma Agência de … C.

e)      A B, SA teve sempre a sua sede no … e não no endereço constante no registo de propriedade da viatura em causa, o qual manifestamente não reflecte a verdadeira propriedade do bem.

 

5.      A fundamentação de direito do pedido de pronúncia arbitral, assenta, sumariamente, no seguinte:

a.       A AT para levar a cabo a tributação em causa presume a titularidade do bem na esfera jurídica da impugnante como critério de incidência de IUC;

b.      Sucede que no direito tributário não são admissíveis presunções inilídíveis ao nível da incidência dos impostos;

c.       Invoca ainda a jurisprudência vertida na decisão arbitral nº 26/2013 T, que junta aos autos como documento nº 7.

 

Termina peticionando a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos actos de liquidação e juros compensatórios referentes ao ano de 2012 e não reembolsados, indevidamente pagos pela Requerente, bem assim como o pagamento de juros indemnizatórios.

 

D) – A RESPOSTA DA REQUERIDA

 

6. A Requerida alega na sua resposta, em síntese, que não assiste razão à Requerente porquanto:

a) O entendimento da requerente plasmado no presente pedido arbitral incorre numa enviesada leitura da letra da lei, numa interpretação que não atende ao elemento sistemático, que viola a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal que ignora a ratio legis do regime consagrado no CIUC.

 b) No n.º 1 do artigo 3.º do CIUC o legislador determina que São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados” e que são sujeitos passivos do IUC “os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados”; pelo que o legislador determinou expressa e intencionalmente que se consideram  como proprietários aqueles que se encontrem inscritos no registo automóvel como tal, não se tratando de nenhuma presunção mas sim de uma norma de incidência;

c) O legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter feito, aliás à semelhança do que sucede em outros normativos legais, exemplificando algumas situações previstas na lei; entende a Requerente que nos casos em que o legislador fiscal utiliza a expressão “considera-se”, não está a estabelecer uma presunção; enuncia, a título meramente exemplificativo, diversas normas constantes de diferentes códigos fiscais que utilizam a expressão “considera-se”; entender que o legislador consagrou aqui uma presunção, assenta numa interpretação contra a lei, porquanto “a opção clara do legislador foi a de considerar que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários aqueles que como tal constem do registo automóvel;” invoca, em defesa deste entendimento, a decisão proferida no âmbito do Processo nº 210/13.0BEPNF, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel;

d) Conclui que é esta a interpretação que atende ao elemento sistemático e preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal, além do que, outra interpretação seria ignorar o elemento teleológico de interpretação da lei, a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC;

e) Acresce que a não actualização do registo, nos termos do disposto no artigo 42º, do Regulamento do Registo de Automóveis, será imputável na esfera jurídica do sujeito passivo do IEC e não na do Estado, enquanto sujeito activo deste imposto.

f) Ainda em reforço deste entendimento, invoca a AT os debates parlamentares em torno da aprovação do DL nº 20/2008, de 31 de Janeiro, dos quais transcreve excertos, para concluir que o legislador quis intencionalmente consagrar uma solução da qual resulte que o IUC é devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietários dos veículos;

g) A acrescentar a tudo isto, alega a Requerida que a interpretação veiculada pela Requerente se mostra contrária à Constituição, na medida em que viola o princípio da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade;

h) Por último, atendendo às regras do ónus da prova, alega ainda a falta de prova da transmissão da propriedade do veículo, dado que as facturas não são, na óptica da AT, por si só, documentos aptos a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda.

 

Conclui que os actos de liquidação de IUC não padecem de ilegalidade nem estão reunidos os pressupostos legais para a condenação em juros indemnizatórios. E, também no que toca à responsabilidade pelas custas arbitrais a Requerida entende que não estando no seu controlo a transmissão da propriedade de veículos automóveis, o IUC é liquidado de acordo com a informação registral, oportunamente transmitida pelo Instituto dos Registos e Notariado; ou seja o IUC não é liquidado de acordo com a informação gerada pela própria Requerida. Assim, não foi a Requerida que deu azo à dedução do pedido de pronúncia arbitral, mas sim a própria Requerente que, aliás, só agora subministrou prova documental relativa à transmissão da propriedade, o que não ocorreu em sede de prévio procedimento administrativo, pelo que deverá ser a Requerente condenada ao pagamento das custas arbitrais decorrentes do presente pedido, nos termos do artigo 527º/1 do Novo Código de Processo Civil, ex vi artigo 29º/1 – e) do RJAT, em linha, aliás, com questão similar decidida no âmbito do processo nº 72/2013-T, que correu termos neste centro de arbitragem.

Conclui, pela improcedência do pedido arbitral, pugnando pela legalidade dos actos tributários impugnados e pela absolvição da Requerida no pedido.

 

II. QUESTÕES A DECIDIR

 

7.Atendendo às posições das Partes assumidas nos argumentos apresentados, ao Tribunal cumpre decidir as seguintes questões:

 

1ª - Da incidência subjectiva do IUC, dos efeitos do registo automóvel e da existência ou não de uma presunção ilidível nesta matéria;

2ª - Da prova da propriedade do veículo e do afastamento da presunção;

3ª - Do direito ao pagamento de juros indemnizatórios e a responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais.

 

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

A)    Factos Provados

 

8.Como matéria de facto relevante para a decisão a proferir, o Tribunal dá por assente os seguintes factos:

1º) A Requerente sucedeu no activo e passivo da B, sociedade dissolvida em 28.11.2006, conforme Certidão notarial da acta nº 28 da assembleia geral e certidão permanente do Registo Comercial juntas aos autos como documento nº 4.

2º) Foram emitidas em nome da B, SA e notificadas para a morada sita no Lugar do … para proceder ao pagamento das liquidações de imposto único de circulação e respectivos juros compensatórios, relativamente à viatura de marca ..., com a matrícula ...-...-..., com referência aos anos de 2009 a 2012, conforme liquidações juntas aos autos como documento nº 1, que aqui se dão por integralmente reproduzidas;

3º) Todas as liquidações de IUC foram pagas em 19.11.2013, pela Requerente, o que totalizou o valor de € 220,08; (cfr. Docs. nºs 1 e 2 juntos à PI);

4º) Posteriormente, em 25.11.2013 a AT restituiu o valor de €21,61, relativo às liquidações de juros compensatórios referentes ao IUC dos anos 2009, 2010 e 2011; (Cfr. Doc. nº 3 junto à PI)

5º) O valor total pago pela Requerente corresponde ao valor das liquidações acrescido dos juros compensatórios do ano de 2012 (não reembolsado), o que totaliza o valor de € 198,47;

6º) À data dos factos tributários, a viatura automóvel referenciada nas liquidações de IUC aqui impugnadas encontrava-se inscrita no registo automóvel na titularidade da sociedade designada por “B, com sede na …”; (Cfr. Doc. 6 junto à PI)

6º) À data dos actos tributários de liquidação a AT dispunha dos elementos de informação sobre a dissolução e cessação de actividade da sociedade “B, com sede no …”, bem assim como da informação constante da base registral e, posteriormente, dos que lhe foram comunicados já no âmbito do presente pedido de pronúncia arbitral.

 

B)     FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS

 

9. A decisão sobre a matéria de facto nos termos supra descritos tem por base a prova documental que as Partes juntaram ao processo, com particular relevância para a prova documental junta pela Requerente e que integra os presentes autos.

 

C)    FACTOS NÃO PROVADOS

 

10.Não existem outros factos dados como não provados, uma vez que todos os factos relevantes para a apreciação do pedido foram dados como provados.

 

IV – FUDAMENTAÇÃO DE DIREITO

 

11. Fixada a matéria de facto, importa conhecer das questões de direito supra indicadas, correspondendo, em síntese, à questão da ilegalidade suscitada pela Requerente no presente pedido arbitral e a questão dos meios de prova suscitada pela AT. Vejamos pois a primeira questão a decidir.

 

1ª - Da incidência subjectiva do IUC, dos efeitos do registo automóvel e da existência ou não de uma presunção ilidível

 

12. A primeira questão a decidir passa por saber se a Requerente deve ser qualificada como sujeito passivo do Imposto Único de Circulação, liquidado em relação aos anos de 2009 a 2012, quanto ao veículo identificado no pedido de pronúncia arbitral.

Alega a pela Requerente que, à data dos factos tributários, não era proprietária do veículo automóvel mencionado nas liquidações de IUC impugnadas, e que por essa razão não lhe pode ser exigido o pagamento do Imposto. Alega ainda que nunca foi, aliás, proprietária desta viatura ou de qualquer outra e que a cobrança do IUC em causa nos autos assenta num manifesto e crasso erro da AT decorrente do registo de propriedade automóvel. Na verdade o que consta do registo automóvel é que a propriedade desta viatura, com a matrícula ...-...-... se encontra registada, desde 1988, na titularidade da sociedade “B SA, com sede na …, …”. Ora, constata-se que a AT a partir deste equívoco veio a tributar a impugnante, erradamente, pelo IUC referente aos anos 2009 a 2012. De resto, nunca deveria ter sido imputado à ora impugnante tal imposto tanto mais que esta já não existe como pessoa colectiva desde a data da sua dissolução, ou seja desde novembro de 2006, data anterior à dos factos tributários constantes dos autos.

Assim, há que apreciar em primeiro lugar os termos da configuração da incidência subjetiva do IUC à luz do disposto no art. 3.º, do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC), nomeadamente, a questão de saber se a incidência subjetiva assenta estritamente na inscrição da titularidade do veículo no Registo Automóvel, ou se, o registo opera apenas como uma presunção de incidência tributária, ilidível, em conformidade com o disposto no art. 73.º, da Lei Geral Tributária. Sobre esta matéria é já abundante e bastante definida a jurisprudência arbitral vertida em diversas decisões mencionadas pelas partes e em algumas outras proferidas posteriormente à apresentação do presente pedido de pronúncia arbitral, que serão referidas oportunamente.

           

13.O quadro jurídico fundamental aplicável nesta matéria é o previsto nos artigos 1º a 6º, do CIUC, aprovado pela Lei nº 22-A/2007, de 29 de Junho.

 O artigo 1º do CIUC define a incidência objectiva do imposto, distinguindo os veículos por categorias especificadas, norma que se afigura clara e sem dificuldades de aplicação. Porém, o mesmo já não sucede com a norma de incidência subjectiva contida no nº1, do artigo 3º do CIUC, a qual está na origem do presente litígio e constitui, assim, questão a decidir no caso em apreciação.

A análise de ambos os preceitos (artigos 1º e 3º) permitem concluir que no funcionamento do IUC o registo automóvel tem um papel fundamental. O que importa, pois, é determinar qual o sentido e alcance da norma de incidência subjectiva constante do artigo 3º, nº 1, do CIUC e da eventual existência ou não de uma presunção ilidível, conexionada com a questão dos efeitos jurídicos do registo automóvel, suscitada pela Requerente. Dispõe o artigo 3º do CIUC que:

“ARTIGO 3º

 

INCIDÊNCIA SUBJECTIVA

 

1 – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

 

2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

 

Estabelece o nº1, do artigo 11º, da LGT que “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais da interpretação e aplicação das leis”.

A interpretação e aplicação da norma jurídica, pressupõe a realização de uma actividade interpretativa, a qual deve ser objectiva, equilibrada, e conforme com a letra e o espírito da lei. E embora a letra da lei seja “o fio condutor” do intérprete, ela há-de ser interpretada tendo em conta os objectivos subjacentes, “a ratio” ou a motivação do legislador ao estabelecer a norma em análise.[2]

A estes elementos acresce um outro segundo o qual a interpretação da norma jurídica há-de respeitar a “unidade do sistema jurídico”, a sua coerência e lógica intrínseca. O artigo 9º, do Código Civil (CC), fornece as regras e os elementos fundamentais para a interpretação da norma jurídica, ao qual também obedece a interpretação da lei fiscal deve obedecer ao disposto naquele normativo, o qual começa por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dela o “pensamento legislativo”.[3]

 

A estes princípios gerais acrescem, ainda, os princípios constantes da LGT, nomeadamente no artigo 73º, que estabelece que as presunções contidas em normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.

 

No que se refere à questão em análise, há que salientar o contributo das decisões arbitrais já proferidas nos processos nºs 14/2013-T, de 15 de Outubro, 26/2013-T de 19 de Julho, 27/2013-T, de 10 de Setembro, 217/2013-T de 28 de Fevereiro e, mais recentemente, nas decisões proferidas nos processos 286/2013-T, de 2 de Maio de 2014 e 293/2013-T, de 9 de Junho de 2014, 46/2014-T e 89/2014-T de 5 de Setembro, entre outros, revelando uma apurada reflexão sobre a questão fundamental em apreciação, estabelecendo um entendimento uniforme sobre esta mesma questão, aliás, sufragado pelo Acórdão arbitral 63/2014- T e pelas decisões 150/2014-T e 220/2014-T, juntas aos autos pela requerida AT. Em todas, o entendimento quanto a esta questão é unânime: estamos perante uma presunção ilidível.

 Pelo que, quanto à questão de saber, face ao teor literal do disposto no nº1, do artigo 3º, do CIUC, qual o alcance da expressão “considerando-se como tais”, dado que na actual versão o legislador não usou o termo “presumem-se” (o qual constava do extinto Regulamento do Imposto Sobre Veículos), entende este Tribunal que só pode ser o seguinte: o legislador presume (considera) que os proprietários são as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados. Significa isto que, tal presunção, implícita, é naturalmente ilidível nos termos previstos no artigo 73º da LGT.

A presunção estabelecida no artigo 3º, nº1, do actual CIUC, já estava consagrada nas versões anteriores dos códigos abolidos com a entrada em vigor do CIUC. Já o artigo 3.º do Regulamento do Imposto Sobre Veículos (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 143/78) estabelecia que: “o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontrem matriculados ou registados”. Do mesmo modo, o art. 2.º, do Regulamento dos Impostos de Circulação e de Camionagem (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 116/94) estabelecia que: “são sujeitos passivos do imposto de circulação e do imposto de camionagem os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas singulares ou colectivas em nome das quais os mesmos se encontram registados”.

 

Na verdade, na versão actual do Código apenas mudou o verbo, optando agora o legislador pela expressão “considerando-se”. Certo é que, entre as versões legislativas anteriores e a actual entrou em vigor a LGT, que consagrou expressamente o princípio contido no artigo 73º, do qual resulta que em matéria de incidência tributária qualquer presunção admite sempre prova em contrário. Logo, torna-se indiferente a adopção de uma presunção expressa ou implícita, porquanto, uma como a outra são igualmente ilidíveis.

Assim, entende-se que o facto de o legislador, na actual versão do CIUC, ter optado por uma presunção implícita (usando a expressão “considerando-se”) em vez de uma presunção expressa (com recurso à expressão “presumindo-se”), como acontecia anteriormente, não traduz uma alteração substancial no que respeita à incidência subjectiva do imposto. Não é, pois, a titularidade constante do registo automóvel condição, por si só determinante de incidência tributária em sede de IUC, mas sim mera presunção de que a propriedade pertence ao titular inscrito no registo, presunção naturalmente ilidível.

 

14. Acresce que, contrariamente ao que vem alegado pela Requerida, podemos facilmente apontar diversos exemplos, extraídos do ordenamento jurídico tributário, em que o legislador optou pela utilização do verbo “considerar”, com um sentido presuntivo.    Além do que, como já se disse supra, tratando-se de norma de incidência tributária, nunca seria admissível a consagração de uma presunção inilidível. Como afirmam, Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, na anotação ao nº 3, do artigo 73º, da LGT, “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão presume-se ou semelhante (…). No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real”. E, são muitos os exemplos de normas em que é utilizado o verbo “considerar” para estabelecer presunções ilidíveis, como sucede com o disposto nº 2 do artigo 21º do CIRC, no artigo 89-A da LGT ou no artigo 40º, nº1 do CIRS entre outros.

Alega, porém, a Requerida na resposta apresentada, que este mesmo vocábulo “considerando-se” também é normalmente utilizado, pelo ordenamento jurídico fiscal, para definir situações distintas de presunções. Ora, tal afigura-se normal, nomeadamente, no caso de outras normas fiscais em que o legislador utilizou a fórmula “considera-se” ou “consideram-se”, mas atribuindo-lhe outro sentido, já que se trata de expressões que, dependendo do contexto, podem assumir uma pluralidade de sentidos, sem que daí possa extrair-se a conclusão que pretende a Requerida.

Tendo em conta que o sistema jurídico deve formar um todo coerente, os exemplos acima referidos, bem como a doutrina e jurisprudência indicadas, permitem concluir que não é só quando é usado o verbo “presumir” que estamos perante uma presunção, mas também o uso de outros termos ou expressões, como o termo “considera-se” podem servir de base a presunções. E, como se referiu supra, sendo o elemento literal o primeiro instrumento de interpretação da norma jurídica, em busca do pensamento legislativo, importa confrontá-lo com os demais elementos de interpretação, nomeadamente o elemento racional ou teleológico, o elemento histórico e o sistemático.

E, também, nesta linha de reflexão o Tribunal não pode acompanhar a argumentação aduzida pela Autoridade Tributária. No que toca ao elemento histórico, há que referir, que desde a origem do imposto de circulação, com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 599/72 de 30 de Dezembro, foi, explicitamente, consagrada uma presunção, relativamente aos sujeitos passivos do imposto como sendo aqueles em nome de quem os veículos se encontravam matriculados ou registados. Essa versão da lei usava a expressão literal “presumindo-se como tais”.

Porém, atendendo aos fins do imposto em presença, há que reconhecer que o uso da expressão “considera-se”, na atual versão, contempla uma expressão com um efeito semelhante àquela, consubstanciando, igualmente, uma presunção. Isso mesmo sucede na formulação contida no nº 1, do art.º 3º, do CIUC, em que se consagrou uma presunção, revelada por via do uso da expressão “considerando-se”, de significado semelhante e de valor equivalente à expressão “presumindo-se”, em uso desde a criação do imposto em questão. O uso da expressão “considerando-se” justifica-se apenas por se afigurar mais em sintonia com o reforço conferido à propriedade do veículo, que passou a constituir o facto gerador do imposto, nos termos constantes do artigo 6º do CIUC.

Pelo que, à luz do elemento literal da interpretação, nada obsta ao entendimento de que, o disposto no nº1, do art. 3.º, do CIUC, consagra uma presunção ilidível.

Assim, quanto à incidência subjetiva do imposto, é de concluir que não se verificam alterações relativamente à situação anteriormente em vigor no âmbito do Imposto Municipal sobre Veículos, Imposto de circulação e Imposto de Camionagem, como aliás é amplamente reconhecido pela doutrina, continuando a valer uma presunção ilidível nesta matéria.[4]

 

15. Este entendimento é, ainda, o único que se afigura adequado e conforme ao princípio da verdade material e da justiça, subjacentes às relações fiscais, com o objetivo de tributar o real e efectivo proprietário e não aquele que, por circunstâncias de diversa natureza, não passa, por vezes, de um aparente e falso proprietário, por constar do registo automóvel. E, neste sentido, também as decisões arbitrais 150 e 220/2014 T confirmam o mesmo entendimento já plasmado em decisões arbitrais anteriores, entre as quais, a que é invocada nos autos pela Requerente. Ainda neste sentido refere o Acórdão arbitral nº 63-2014-T de 15 de Setembro que: “(…) se o legislador tivesse, como pretende a Requerida, estabelecido na lei uma qualificação não presuntiva sobre quem é proprietário dos veículos (uma ficção legal), estaria com isso a estabelecer, através de uma diferente formulação, uma regra em tudo idêntica à regra hipotética referida. Estaria a fazer assentar a incidência subjectiva do imposto numa ficção legal, em total desconexão com uma qualquer substância económica como base da incidência subjectiva. (…) E, se assim é, forçoso será também concluir que o artigo 3º, n.º 1, só pode estabelecer uma presunção de propriedade do veículo, mesmo com todas as consequências negativas que essa conclusão acarretará, decerto, em termos de eficiência da administração do imposto.”

Por ser assim, tem de se permitir ao titular inscrito no registo automóvel a possibilidade de apresentar elementos probatórios bastantes para a demonstração de que o efetivo proprietário é, afinal, pessoa diferente da que consta do registo, e que inicialmente, e em princípio, se supunha ser o verdadeiro proprietário. Caso contrário, aceitar-se-ia a supremacia da verdade formal do registo sobre a verdade material, e seria admitir a violação grosseira dos princípios fundamentais fiscais enunciados e, ainda, do princípio contido no artigo 73º, da LGT segundo o qual não existem presunções inilidíveis em matéria de incidência fiscal. O legislador não sentiu a necessidade de manter na nova norma de incidência uma presunção expressa e ilidível, uma vez que após a entrada em vigor da Lei Geral Tributária (1999) “as presunções consagradas nas normas de incidência admitem sempre prova em contrário”. Logo, face ao teor do artigo 73º, da LGT, seria tecnicamente incorrecto usar a expressão “presumindo-se como tais, até prova em contrário”, constante da anterior versão em vigor.

De resto, é possível extrair, ainda, um outro argumento do disposto no artigo 7º do Código de Registo Predial (o qual constitui a base jurídica fundamental em matéria de registo de propriedade) o qual dispõe que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”. À luz do princípio da uniformidade e coerência intrínseca do sistema jurídico, nenhum fundamento se afigura aceitável para que o princípio vigente no registo de propriedade em geral, sofresse uma inflexão ou mesmo “atropelo” injustificado em matéria de registo automóvel.

 

16. Por fim, se alguma dúvida persistisse, sempre se diria que, quanto aos elementos de interpretação de pendor racional ou teleológico, a exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 118/X de 07/03/2007, subjacente à Lei nº 22-A/2007, de 29/06, é bastante expressiva ao esclarecer que a reforma da tributação automóvel é concretizada por via da deslocação de parte da carga fiscal do momento da aquisição dos veículos para a fase de circulação e visa “formar um todo coerente” que, embora destinado à angariação de receita pública, pretende que a mesma seja angariada na medida dos custos ambientais que cada indivíduo provoca à comunidade”, acrescentando-se, a propósito do imposto em causa e dos diferentes tipos e categorias de veículos, que como elemento estruturante e unificador (…) consagra-se o princípio da equivalência, deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária”, referindo, ainda, ser (…) este princípio que dita a oneração dos veículos em função da respectiva propriedade e até ao momento do abate (…)”.

Assim, a lógica e racionalidade do novo sistema de tributação automóvel pressupõe e almeja um sujeito passivo coincidente com o proprietário do veículo, no pressuposto de ser esse, e não outro, o real e efetivo sujeito causador dos danos ambientais, tal como decorre do princípio da equivalência inscrito no art.º 1º, do CIUC. Este princípio da equivalência, que informa o actual imposto único de circulação, tem subjacente o princípio do poluidor - pagador, e concretiza a ideia, nele inscrita, de que quem polui deve, por isso, pagar. Trata-se, afinal, de alcançar as externalidades ambientais negativas que advêm da utilização dos veículos automóveis, sejam assumidos pelos seus proprietários e/ou pelos utilizadores, como custos que só eles deverão suportar. [5]

Outro entendimento implicaria aceitar a possibilidade de tributar pessoas colectivas ou físicas sem responsabilidade na produção de quaisquer danos ambientais, enquanto os reais causadores desses mesmos danos não estariam sujeitos ao imposto, frustrando em absoluto os propósitos reguladores da própria lei, ou seja, a sua verdadeira ratio legis.

 

17. Em síntese, à luz da norma de incidência o sujeito passivo do IUC é o proprietário, ainda que não figure no registo automóvel, desde que seja feita prova bastante para ilidir a presunção legal proveniente do registo, o devedor do IUC.

Quanto aos efeitos do registo, resulta claro do disposto nos artigos 1.º e 7º do Código de Registo Predial (CRP), que o registo tem uma dupla finalidade: dar publicidade à situação jurídica dos bens e constituir presunção de que o direito existe e pertence ao titular nele inscrito. Estas presunções são, porém, ilidíveis mediante prova em contrário, como resulta expressamente do disposto artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil (CC) e, em matéria tributária, reforçado pelo artigo 73º da LGT.

 É pacífico para a doutrina e para a jurisprudência dos nossos tribunais superiores que o registo não é condição de validade dos negócios a ele sujeitos ou subjacentes, dele não depende a transmissão da propriedade e não pertence ao transmitente o ónus de promover o registo, pelo que nenhuma sanção lhe pode ser imposta pelo não cumprimento dessa obrigação por parte do adquirente (este sim obrigado a promover o registo). [6]

Acresce ainda que a Autoridade Tributária não pode ser considerada “terceiro” para efeitos de registo, dado que, resulta do nº 4, do artigo 4º do CRP que “terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”. Ora, a AT não preenche os requisitos legais do conceito, pelo que não pode exigir ao vendedor o pagamento do imposto devido pelo comprador (proprietário) a partir do momento em que a presunção do registo seja afastada. Pelo que, os adquirentes dos veículos tornam-se, assim, proprietários desses mesmos veículos por via da celebração dos correspondentes contratos de compra e venda, por mero efeito do contrato, com registo ou sem ele.[7]

Esta interpretação é a única que garante perfeita sintonia entre este regime e o que resulta do disposto no nº 1, do art.º 408º, do Código Civil, segundo o qual a transferência de direitos reais sobre as coisas é determinada por mero efeito do contrato, sendo um desses efeitos a transmissão da coisa ou a titularidade do direito (cfr. alínea a), do art.º 879º do referido Código Civil).

 

18. Mas alega, ainda, a Requerida que a interpretação defendida pela Requerente nesta matéria, segundo a qual estamos perante uma presunção ilidível, além de traduzir um leitura enviesada da lei e assentar numa interpretação contra legem, se mostra contrária à Constituição.

Ora, por tudo o que se deixa exposto supra, resulta também que o tribunal arbitral não acompanha a Requerida nesta alegação. Importará, ainda assim, acrescentar a todos os argumentos já expostos, um último extraído da própria jurisprudência do Tribunal Constitucional (TC). Assim, refira-se que, contrariamente ao alegado pela Requerida, a consideração de que o disposto no art. 3.º, n.º 1, do CIUC consagra uma presunção ilidível representa a melhor interpretação e a mais conforme à Constituição, conforme resulta do acórdão do TC com o n.º 348/97, de 29.4.1997, posição reiterada no acórdão n.º 311/2003, de 28.4.2003, os quais declaram a inconstitucionalidade do “estabelecimento pelo legislador fiscal de uma presunção “juris et de jure” já que “veda por completo aos contribuintes a possibilidade de contrariarem o facto presumido, sujeitando-os a uma tributação que pode fundar-se numa matéria colectável fixada à revelia do princípio da igualdade tributária”. Nesta conformidade, não se vislumbra a alegação da Requerida possa ter acolhimento.

 

Chegados aqui, resta analisar a última e decisiva questão: saber se face à realidade registral e aos documentos de prova juntos aos autos pela Requerente se deve considerar, ou não, que do registo automóvel resulta uma presunção de propriedade a favor da ora requerente e em caso afirmativo se esta juntou aos autos meios de prova bastantes para ilididir essa presunção.

 

2ª) Da prova da propriedade do veículo e da ilisão da presunção

 

19. Concentrando agora a análise nos meios de prova juntos aos autos cumpre salientar que no caso em apreço a AT lançou mão da presunção contida no registo automóvel para tentar sustentar as liquidações de IUC, relativas à viatura identificada nos autos, com referência aos anos 2009 a 2012, elegendo a sociedade “B, com sede no …”, como sujeito passivo do imposto. Porém, essa realidade não é a que resulta da própria factualidade inscrita no registo, porquanto, resulta do documento nº 6 junto aos autos pela Requerente que a propriedade do automóvel marca ..., matrícula …-…-…, se encontra inscrita no registo automóvel a favor de: B, com sede na …”. Resulta ainda do referido documento que esta inscrição registral, com o nº ..., data de 03.05.1988, e não se verificam outros registos posteriores.

Ora, perante esta factualidade inscrita no registo automóvel, não há dúvida que estamos perante diferentes pessoas colectivas e a ora impugnante nunca poderia ser sujeito passivo de IUC. Assim, há que concluir que da realidade inscrita no registo automóvel não resulta uma presunção de propriedade a favor da ora Requerente dado que a entidade nele constante não confere com a que foi alvo de liquidação de IUC com referência á viatura automóvel identificada nos autos.

Ou, se assim não se entendesse, sempre teríamos de concluir que o registo padece de erro essencial quanto aos elementos identificativos do proprietário do veículo, donde sempre se extrairia a conclusão dele não poder servir de base às liquidações emitidas e a presunção nele contida ficaria, sem mais, afastada por falta de idoneidade do mesmo.

O que resulta da inscrição do registo é, sem dúvida, que os elementos essenciais identificativos do titular (nome e sede) não coincidem com os elementos identificativos da ora Requerente, pelo que a AT cometeu um manifesto erro sobre os pressupostos, ao pretender tributar pessoa colectiva diferente da constante no próprio registo automóvel. Acresce que a AT não junta um único documento aos autos donde seja possível inferir outra conclusão, invocando uma presunção assente num registo do qual resulta, com evidência, não ser a sociedade ora impugnante a mesma que figura na inscrição registral. Cumpre acrescentar que a AT tem particulares obrigações a respeitar no âmbito do procedimento de liquidação e cobrança do imposto, entre os quais, o dever de por todos os meios liquidar o imposto cumprindo com todas as regras de incidência legalmente previstas, usando se necessário os seus poderes de instrução para indagar todos os elementos essenciais à boa liquidação e cobrança, em conformidade com o princípio do inquisitório orientado para a descoberta da verdade material.

Sendo assim, tudo o que este Tribunal pode concluir da documentação junta aos autos é que a presunção decorrente do registo nem sequer onera a ora Requerente, pois que a entidade nele inscrita como proprietária não é a ora Requerente. Pelo que as liquidações impugnadas padecem de manifesto e grosseiro erro sobre os pressupostos de facto e de direito.

Mas, ainda que outro fosse o entendimento deste tribunal e se considerasse a presunção do registo como onerando a ora Requerente, forçosamente teríamos de concluir que, com toda a documentação junta aos autos, esta ilidiu sem margem para dúvida a presunção contida no artigo 3º, nº1 do CIUC, nos termos gerais previstos no artigo 342º do CC. Considerando a matéria de facto provada nos autos e os documentos juntos pela Requerente, forçosamente se conclui que:

 a) esta não coincide com a pessoa colectiva identificada no registo automóvel;

b) já nem existia enquanto pessoa colectiva à data dos factos tributários (anos de 2009 a 2012) por força da deliberação que determinou a sua dissolução em novembro de 2006;

c) cumpriu todos os procedimentos informativos e obrigações acessórias junto do serviço de finanças competente, quanto ao processo de liquidação da sociedade;

d) não existem nos autos quaisquer elementos documentais que indiciem que a impugnante tenha sido em algum momento proprietária deste veículo automóvel (que o tenha adquirido ou alienado) mas tão só que, por coincidência de designação, a AT se equivocou no processamento das liquidações de imposto com referência aos anos de 2009 a 2012.

 

20. Nestes termos entende este Tribunal que a Requerente fez prova nos presentes autos que não era à data dos factos tributários (nem anteriormente) proprietária da viatura automóvel em causa nos presentes autos.

A Requerida alega a falta de prova bastante apresentada pela Requerente, mas a sua falta de convicção é bem evidente no que alega nos artigos 60º a 64º da resposta, dos quais se extraia sua total incapacidade para explicar o sucedido. Limita-se a dizer que “a diferença de moradas constante do registo não é relevante”. Mas se assim é, então o que devemos considerar relevante de um registo que apenas contém o nome da sociedade e a sede? Será este sistema registral fidedigno para a correcta identificação dos titulares da propriedade da viatura em causa? A argumentação da AT, neste caso particular, revela bem a fragilidade e falta de rigor da informação contida no registo automóvel e a fragilidade da presunção que dele resulta.

 Agora reforça a sua tese nas decisões arbitrais nºs 150 e 220/2014 T. Todavia, a questão eventualmente relevante a extrair destas decisões prende-se com o valor probatório das facturas, questão que nem sequer está em discussão nestes autos, dado que não estamos a discutir se ocorreu ou não alguma transmissão de propriedade mas tão só o facto da ora impugnante nunca ter sido proprietária da viatura em causa nas liquidações impugnadas.

Assim, a junção aos autos das decisões em causa revela-se inadequada já que o entendimento aí vertido respeita ao valor probatório das facturas, questão que não tem aplicação ao caso concreto dos autos. A este propósito esclareça-se que a junção aos autos das referidas decisões foi admitida, apesar do momento em que a mesma ocorreu, no absoluto cumprimento do princípio do contraditório e atendendo ao facto da Requerente também ter junto aos autos uma outra decisão arbitral em favor da sua posição processual. Justificado o interesse da questão suscitada pela AT e garantida a igualdade das partes e o princípio do contraditório, foi dada oportunidade à Requerente para se pronunciar, o que fez por requerimento junto aos autos em 9 de Outubro de 2014.

O que releva para os presentes autos é que os meios de prova juntos pela Requerente (Certidão do Registo automóvel – Doc nº 6; acta de dissolução e certidão permanente do registo comercial – Doc. nº 4 e Declaração de cessação de actividade – Doc. nº 5), são idóneos e suficientes para a ilisão da presunção contida no registo automóvel e demonstram com um elevado grau de probabilidade que a impugnante não era nem nunca foi proprietária do veículo automóvel com referência ao qual foram emitidas as liquidações de IUC impugnadas.

Um entendimento redutor ou limitativo quanto aos meios de prova idóneos tornaria a prova necessária à ilisão da presunção desproporcional e excessivamente onerosa para o impugnante que tem de provar que era proprietário à data do facto tributário. Estamos, pois, perante a necessidade de fazer a prova de um facto negativo, a tal “prova diabólica”, que não sendo de todo inadmissível, pois que se pode recorrer à prova de factos positivos que a demonstrem, não pode ser dificultada ao ponto de ser inacessível. A acrescida dificuldade da prova de factos negativos deve ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, “uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse, aplicando a máxima latina “iis quae difficilitoris sunt probationis leviores probationes admittuntur”.  [8]

Nestes termos se conclui que os meios de prova apresentados são suficientes para ilidir a presunção assente no registo automóvel e que a Requerente nunca foi proprietária do referido veículo automóvel, nem à data dos factos tributários nem em qualquer outra. A decisão da AT que a conduziu à emissão e cobrança das liquidações de imposto agora impugnadas partiu de um pressuposto errado, segundo o qual, nos termos do disposto no nº1, do artigo 3º, do CIUC, o imposto era devido pelo titular inscrito no registo automóvel, independentemente da posterior demonstração de que a propriedade não lhe pertence.

Assim, conclui-se que a Requerente não podia ser considerada como sujeito passivo do imposto. Em consequência de todo o supra exposto, resulta que todas liquidações impugnadas são ilegais, padecem do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, pelo que, devem ser objecto de anulação, procedendo-se, consequentemente, ao reembolso à Requerente do montante indevidamente pago.

 

3ª) do direito a pagamento de juros indemnizatórios e pelas custas do processo

 

21.Dispõe a alínea b), do nº 1, do art.º 24º, do RJAT, que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta - nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários - restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito.

Tal dispositivo está em sintonia com o disposto no art.º 100º, da LGT, aplicável ao caso por força do disposto na alínea a), do nº 1, do art.º 29º, do RJAT, no qual se estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”

 Dispõe, por sua vez, o artigo 43º, nº1, da Lei Geral Tributária que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”

 

22. Da análise dos elementos probatórios constantes dos presentes autos é possível inferir que a AT tinha conhecimento de elementos factuais, no essencial, suficientes para proceder à correcta liquidação do imposto, desde logo atendendo à própria informação constante no registo automóvel. Mas, mesmo que assim não fosse, sempre se dirá que teve a possibilidade de revogação dos actos tributários ilegalmente praticados, e que o poderia ter efectuado no prazo para resposta ao presente pedido de pronúncia arbitral.

O erro pelo qual está obrigada a indemnizar advém, pois, da errónea interpretação e validação dos factos subjacentes ao procedimento de liquidação e cobrança e da incorrecta aplicação do direito vigente, pelo que o tribunal não pode sufragar a alegação da Requerida segundo a qual esta se limitou a aplicar a lei pelo que, na óptica da AT, daí não resultaria qualquer erro imputável aos serviços. Se assim fosse nunca a administração seria responsabilizada pela aplicação ilegal das normas em vigor nem pelos prejuízos causados.

Assim sendo, atento o disposto no artigo 61º do CPPT e considerando que se encontram preenchidos os requisitos do direito a juros indemnizatórios, ou seja, verificada a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, tal como previsto no nº 1 do art.º 43º da LGT, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal, calculados sobre a quantia de €198,47, a contar da data em que foi efectuado o pagamento até ao seu integral reembolso.

 

23. Quanto a custas: a Requerida, na sua resposta vem suscitar a questão da responsabilidade pelo pagamento das custas na eventualidade do Tribunal vir a considerar o pedido arbitral procedente, pretendendo nesse caso que seja aplicado o disposto no artigo 527º, nº1 do novo Código de Processo Civil, ex vi artigo 29º, nº1 alínea e) do RJAT, em linha, com questão similar decidida no âmbito do processo nº 72/2013 – T.

O argumento da Requerida baseia-se no mesmo argumento invocado para tentar afastar a sua responsabilidade quanto ao pagamento dos juros indemnizatórios, o qual improcede pelas mesmas razões indicadas na decisão quanto aos juros indemnizatórios.

Acresce que, em matéria de fixação de custas devidas pelo processo arbitral aplicam-se as regras especialmente previstas no RJAT e no respectivo Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), sendo de recorrer, eventualmente, à aplicação das regras de direito subsidiário, se e quando existir algum caso omisso que o justifique. Resulta do artigo 29º, nº1, alínea e), do RJAT, a possibilidade de aplicação subsidiária do CPC ao processo arbitral tributário, de acordo com a natureza dos casos omissos. Não se vislumbra a existência de um caso omisso a resolver, nos presentes autos, quanto à determinação das custas do processo que justifique a aplicação do princípio contido no artigo 527º, nº1 do CPC.

Pelo que, se considera improcedente o pedido da Requerida AT quanto à responsabilidade pelas custas do processo.

 

Não se afigura existirem outras questões relevantes suscitadas pelas partes.

 

V - DECISÃO

 

Face ao exposto, este Tribunal Arbitral decide:

A) - Julgar procedente o pedido de declaração da ilegalidade das liquidações de IUC impugnadas nos presentes autos, por padecerem do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, anulando-se, consequentemente, os correspondentes actos tributários;

 

B)- Julgar procedente o pedido de condenação da Administração Tributária no reembolso da quantia indevidamente paga, no montante de €198,47, acrescida de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde o dia do pagamento efectuado até ao integral reembolso do mencionado montante, condenando a Autoridade Tributária e Aduaneira a efectuar estes pagamentos.

 

Valor do processo: Em conformidade com o disposto nos artigos 306º, nºs 1 e 2 do CPC, artigo 97º - A, nº 1, alínea a), do CPPT e artigo 3º, nº 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de €198,47.

 

Custas: Nos termos do disposto no nº 4, do art.º 22º, do RJAT e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em €306,00, a cargo da Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

Registe-se e notifique-se. 

 

Lisboa, 20 de Outubro de 2014

 

O Árbitro singular,

 

 

 

(Maria do Rosário Anjos)

 



[1] A presente decisão é redigida de acordo com a ortografia antiga.

[2] Neste sentido, cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Discurso Legitimador, p. 175 e seguintes.

[3] Neste sentido, vd., entre outros, os Acórdãos do STA de 05/09/2012 e 06/02/2013, respectivamente, proferidos nos processos nºs 0314/12 e 01000/12, disponíveis em www.dgsi.pt.

[4] Neste sentido, cfr. Afonso, A. Brigas e Fernandes, M. (2009) Imposto Sobre Veículos e Imposto Único de Circulação, Coimbra Editora, p. 187.

[5] Neste sentido, e a propósito do princípio da equivalência vd. a decisão arbitral nº 286/2013 – T de 2 de Maio de 2014. No mesmo sentido, vd. Decisões Arbitrais nºs 14/2013-T, 26/2013-T de 19 de Julho de 2013, 27/2013 – T, 217-2013-T de 28 de Fevereiro e, mais recentemente, e 293/2013-T de 9 de Junho de 2014, 46/204 –T e  89/2014-T de 5 de Setembro, entre outros.

[6] Neste sentido, vd, entre outros, os seguintes Acórdãos do STJ: Ac. STJ de 31.05.1966, in Proc. nº 060727 (Relator: Conselheiro Lopes Cardoso), decisão especificamente referente ao registo automóvel; Ac. STJ de 5.05.2005 (Relator: Conselheiro Araújo Barros) e Ac. STJ de 14.11.2013, in Proc. nº 74/07.3TCGMR.G1.S1(Relator: Conselheiro Serra Baptista) exímios na afirmação do predomínio do princípio da substancia sobre a forma, valendo a prova, por qualquer meio idóneo, de quem é substantivamente titular do direito de propriedade, a qual faz ilidir a presunção do registo.

[7] Neste sentido, vd. ainda, decisões arbitrais nºs 14-2013-T de 15 de Outubro e 217/2013 de 28 de Fevereiro de 2014.

 

[8] Neste sentido, vd. Manuel de Andrade - «Noções Elementares de Processo Civil», 1979, pág. 203; Assento do STJ nº 4/83 de 11-7-1983, in DR, I série, de 27-08-1983;  Ac. STA de 17/10/2012, in proc. nº 0414/12, entre outros.