SUMÁRIO:
1. Resulta do princípio da especialização de exercícios, consagrado no artigo 18.º do CIRC, que não podem ser constituídas imparidades num dado período de tributação relativamente a créditos cujo risco de incobrabilidade já existia e era manifestamente conhecido em períodos anteriores.
2. A qualificação do risco de incobrabilidade dos créditos não é arbitrariamente fixada pelos sujeitos passivos.
3.O princípio da justiça, na medida em que vincula toda a atividade da AT, pode e deve operar, como “válvula de segurança do sistema”, numa ótica de ponderação proporcional de direitos e interesses, para corrigir situações excecionais de manifesta injustiça provocadas por situações externas incontroláveis.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Jónatas Machado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para constituir o presente Tribunal Arbitral, profere a seguinte decisão:
1RELATÓRIO
1. A..., contribuinte n.º..., residente na Rua ..., ..., ...-... Porto, notificada da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa apresentada contra o ato de Liquidação de IRS n.º 2022..., referente ao ano de 2019 veio, a 12.02.2024, nos termos dos art.ºs 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, apresentar pedido de pronúncia arbitral, com vista à declaração de ilegalidade e anulação parcial da referida liquidação, com as legais consequências.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 14.02.2024.
3. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou o signatário como árbitro singular, em 03.04.2024.
4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
5. Por força do preceituado na alínea c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 23.04.2024.
6.A AT, tendo para o efeito sido devidamente notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, apresentou a sua resposta, em 28.05.2024, onde, por exceção e impugnação, sustentou a improcedência do pedido, por não provado, e a absolvição da Requerida.
7. Por não ter sido requerida e ter sido considerada necessária, a audiência prevista no artigo 18.º do RJAT foi dispensada pelo presente Tribunal, por Despacho de 31.05.2024, em que se concedeu às partes oportunidade para produzirem alegações finais simultâneas no prazo de 10 dias, tendo a Requerente usado dessa faculdade em 18.06.2024 e a Requerida em 20.05.2024.
1.1Dos factos alegados no processo
8. A sociedade B...- Sociedade de Advogados, SP, RL, dedica-se à prestação de serviços de advocacia e iniciou, em 08.01.1985, as suas “atividades jurídicas”, a que corresponde o CAE 69101, tendo um capital social de 10.000,00€, detido pelos sócios (ambos advogados) A...- a ora Requerente - e C... NIF..., com as percentagens de participação no capital de 99% e 1%, respetivamente.
9. A 30.06.2020, a Requerente procedeu à entrega da declaração de rendimentos prevista no artigo 57.º do CIRS (Modelo 3), referente ao ano de 2019, onde constava um anexo D em que declarou um rendimento de 110.487,29€, que lhe foi imputado pela B...- Sociedade de Advogados, SP, RL.
10. A sociedade B... foi objeto de procedimento inspetivo interno, credenciado pela Ordem de Serviço nº OI2022..., de âmbito parcial IRC e extensão ao ano de 2019, tendo sido efetuadas correções meramente aritméticas à matéria coletável declarada pela sociedade no ano de 2019, no montante de 41.649,08€, devido a gastos não dedutíveis, relativos a imparidade por dívidas a receber, nos termos da alínea a), do n.º 1, do artigo 28º-A, n.º1, do artigo 28.º-B e do n.º 2 do artigo18.º todos do CIRC, imputando à Requerente, mediante correção em sede de IRS, um acréscimo, a integrar na categoria B de rendimentos, no montante de 41.232,59€, traduzindo uma imputação na percentagem da sua participação do capital da sociedade (i.e. 99%), nos termos artigo 20.º, n.ºs 1 e 2, do CIRS.
11. A AT decidiu desconsiderar uma perda por imparidade, no montante de 25.357,35€, relativa a um crédito que a B...- Sociedade de Advogados, SP, RL tinha sobre o cliente G... e outras perdas por imparidade que a sociedade tinha contabilizado no ano de 2019, relativas a outros clientes, tendo sido, no primeiro cliente, efetuadas diligências para o recebimento deste crédito a sociedade, enviadas cartas ao mesmo e à sua mandatária, ambas no ano de 2015, e apresentada uma reclamação de créditos em ação de processo comum, cuja petição inicial deu entrada em 11.06.2015.
12. Relativamente aos clientes relacionados nos quadros nºs 5 e 6 do RIT, para os quais a sociedade reconheceu perdas por imparidade em créditos de clientes no montante de 16.291,73€ (= 9.124,50€ + 7.167,23€), para a maior parte deles, a sociedade apresenta diligências efetuadas para o seu recebimento, à exceção dos clientes D... e E... LTD, considerando a AT, relativamente a estes, que não tendo a sociedade B... apresentado prova do risco de incobrabilidade, o gasto por imparidade associado não tem aceitação fiscal, nos termos da alínea a), do n.º 1, do artigo 28.º-A e do n.º 1 do artigo 28.º-B do CIRC, tendo sido apresentada prova, no que se refere aos clientes relacionados no quadro nº 5, da sua insolvência.
13. No entendimento da AT, todas as diligências para o recebimento dos créditos apresentadas (quadros n.ºs 5 e 6), assim como os processos de insolvência existentes para os clientes relacionados no quadro n.º 6 foram efetuadas em data anterior a 2019, isto é, entre 2011 e 2017, decorridos em alguns casos 8 anos, períodos em que deveriam ter sido constituídas as respetivas imparidades, e não no período de tributação de 2019, como aconteceu, constatando-se, assim, que a sociedade teve conhecimento do risco de incobrabilidade e consequente imparidade dos créditos em data anterior ao período de tributação de 2019, não sendo aquelas imparidades imprevisíveis ou desconhecidas nos períodos nos quais foram efetuadas as diligências para a sua cobrança nem nos períodos nos quais foram instaurados os processos de insolvência.
14. Com base nas correções efetuadas à matéria coletável da B... - Sociedade de Advogados, SP, RL, foi a Requerente, por via da aplicação do regime da transparência fiscal, notificada da Liquidação de IRS de 2019, n.º 2022... e respetivos juros compensatórios, tendo sido apurado um montante a pagar de 23.958,40€, a pagar até 17.01.2023, de que foi apresentada Reclamação Graciosa e recebida notificação do seu indeferimento expresso, por via ao Ofício n.º 2023..., em 06.11.2023.
1.2Argumentos das partes
15. A Requerente sustenta a ilegalidade da liquidação acima mencionada com os argumentos de facto e de direito que a seguir se sintetizam:
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A sociedade B...- Sociedade de Advogados, SP, RL é uma sociedade constituída para o exercício de uma atividade profissional especificamente prevista na lista de atividades a que se refere o artigo 151.º do CIRS – in casu, Advocacia - na qual todos os sócios, pessoas singulares, são profissionais dessa atividade;
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Na aceção do ponto 1), da alínea a), do n.º 4, do artigo 6.º do CIRC, a sociedade B...- Sociedade de Advogados, SP, RL é uma sociedade de profissionais, enquadrada no denominado regime da transparência fiscal, pelo que a sua matéria coletável, determinada nos termos do CIRC, é imputada aos seus sócios, integrando o respetivo rendimento tributável em sede de IRS;
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A não aceitação das perdas por imparidade contabilizadas, pela sociedade B...- Sociedade de Advogados, SP, RL, é manifestamente ilegal, sendo frontalmente violadora do princípio da justiça consagrado nos artigos 266.º, n.º 2, da Constituição, e 55.º da LGT;
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Mesmo que o devedor tenha pendente processo de insolvência e de recuperação de empresas ou processo de execução, ou se os créditos tiverem sido reclamados judicialmente ou em tribunal arbitral, é sempre ao contribuinte — em primeira e última instância — que cabe formular uma apreciação acerca do risco de incobrabilidade;
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De nenhum excerto da lei se pode extrair — expressa ou tacitamente — que uma perda por imparidade deve ser obrigatoriamente constituída caso se verifique qualquer uma dessas realidades previstas nas alíneas a) e b), do n.º 1, do artigo 28.º-B do CIRC;
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A existência de um processo de insolvência pode comportar um risco de incobrabilidade de alguns créditos de terceiros sobre a entidade insolvente, entendendo o legislador tipificá-la como um dos motivos com base nos quais os sujeitos passivos de IRC podem constituir perdas por imparidade dos respetivos créditos, embora isso não determine automática e necessariamente que um crédito sobre o insolvente seja insuscetível de ser satisfeito, existindo toda uma realidade complementar que pode levar o credor a fazer um juízo de sentido contrário, argumento que, se vale para os créditos cujos devedores se encontram em situação de insolvência, muito mais valerá para aqueles que apenas se encontram em mora;
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Competia à Requerente – e só a ela – aferir o momento em que passa a existir um risco de incobrabilidade e, bem assim, qual o grau/probabilidade de incobrabilidade;
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Numa situação deste tipo, não se verifica, sequer, qualquer interesse público na atuação da AT, pois não está em causa a obtenção de um imposto devido, pelo que, devendo toda a atividade administrativa ser norteada pela prossecução deste interesse, a AT deveria abster-se de atuar;
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O princípio da especialização dos exercícios deve ser conformado e interpretado de acordo com o referido princípio da justiça, por forma a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios;
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O princípio da especialização dos exercícios, corolário da anualidade dos tributos, visa tributar a riqueza gerada em cada exercício e daí que os respetivos proveitos e custos sejam contabilizados à medida que sejam obtidos e suportados, e não à medida que o respetivo recebimento ou pagamento ocorram;
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O não cumprimento do princípio da especialização dos exercícios não resultou de omissões voluntárias e intencionais da sociedade transparente, resultantes de estratégias deliberadas com vista a manipular resultados ou operar a sua transferência entre exercícios, sendo mesmo que a consideração do gasto fiscal em anos anteriores, em apurou lucro tributável suficiente, teria permitido absorver as referidas perdas por imparidade, ficando claro que a atuação da sociedade transparente não se deveu a qualquer estratégia de transferência de resultados;
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O princípio da especialização dos exercícios, enquanto norma contabilística e fiscal, não pode ser interpretado e aplicado em prejuízo dos princípios da verdade material, capacidade contributiva e da justiça.
16. A AT sustenta a manutenção do ato impugnado com base nos fundamentos sinteticamente elencados:
Exceção dilatória de ilegitimidade processual da Requerente;
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Estando em causa correções à matéria coletável em sede de IRC ao exercício de 2019 efetuadas à sociedade transparente B... – Sociedade de Advogados SP, RL NIPC..., e posteriormente imputada à sócia ora Requerente, quem tem legitimidade para reclamar ou impugnar da matéria coletável que for determinada e que não dê origem a liquidação de IRC (como no caso em apreço) é a sociedade transparente;
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Estando em causa uma sociedade transparente (sociedade de profissionais) a mesma é representada pelos seus sócios que exerçam a gerência ou administração da mesma, e nessa qualidade e em nome próprio participam no procedimento, e como tal, foi a sócia ora Requerente igualmente notificada da correção, de natureza meramente aritmética, ao ano de 2019, à matéria tributável de IRS, resultante da imputação por transferência fiscal da matéria coletável apurada no âmbito da Ordem de Serviço n.º OI2022..., na B...- Sociedade de Advogados SP, RL NIPC..., conforme o disposto no art.º 100º do CIRC;
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Nem a sociedade nem a sócia reclamaram/impugnaram a matéria coletável corrigida em sede IRC, pelo que, a matéria coletável se tornou definitiva, não podendo, agora, a sócia, por falta de legitimidade, reagir contra as alterações que lhe foram efetuadas em sede de sociedade, na liquidação de IRS que lhe é feita em resultado da imputação atrás referida;
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Na liquidação de IRS, uma vez que estão em causa correções efetuadas a uma sociedade de transparência fiscal, os seus sócios só podem atacar erros ou vícios praticados no ato de liquidação que tenham a ver, nomeadamente, com a imputação dos lucros, e não com as alterações efetuadas ao lucro tributável da sociedade;
Questão de fundo
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A sociedade teve conhecimento do risco de incobrabilidade daquele crédito em data anterior, isto é, em 2015, período em que deveria ter constituído a imparidade sobre o mesmo crédito, e não no período de tributação de 2019, após decorridos 4 anos, como aconteceu;
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Aquelas imparidades não eram imprevisíveis ou desconhecidas nos períodos nos quais foram efetuadas as diligências para a sua cobrança nem nos períodos nos quais foram instaurados os processos de insolvência;
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Todas as diligências para o recebimento dos créditos apresentadas, assim como os processos de insolvência existentes para os clientes relacionados foram efetuadas em data anterior a 2019, isto é, entre 2011e 2017, decorridos em alguns casos 8 anos, períodos em que deveriam ter sido constituídas as respetivas imparidades, e não no período de tributação de 2019, como aconteceu;
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À luz do princípio da especialização dos exercícios, previsto no artigo 18.º do CIRC, tais perdas por imparidade deveriam ter sido reconhecidas nos exercícios em que os clientes foram declarados insolventes e, bem assim, nos exercícios em que a sociedade enviou as cartas aos clientes a solicitar o pagamento dos serviços prestados;
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Tratando-se de créditos cujos vencimentos ocorreram nos períodos de tributação entre 2013 a 2015, e comprovando-se a existência de um risco de incobrabilidade logo em 2015, não pode ser aceite como gasto fiscal as perdas por imparidade reconhecidas em 2019, e que deviam ter sido contabilizadas e consideradas nesse período de 2015, à luz do disposto no n.º 1 do artigo 28.º - B do CIRC, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, do mesmo Código.
1.3. Saneamento
17. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas.
18. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT).
19. O processo não padece de nulidades podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.
2FUNDAMENTAÇÃO
2.1Factos dados como provados
20. Com base nos documentos constantes do Processo Administrativo (PA) e trazidos aos autos e são dados como provados os seguintes factos relevantes para a decisão do caso sub judice:
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A Requerente, A..., NIF..., com domicílio fiscal na Rua ..., ..., ...-..., Porto, encontra-se coletada desde 06.06.1989 para a atividade de advocacia a que corresponde o código CIRS 6010, encontrando-se inscrita na ordem dos advogados sob o n.º ...P;
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A Requerente é sócia da Sociedade B...- Sociedade de Advogados, SP, RL, NIPC..., sociedade de profissionais, com sede na Rua ..., n.º..., ..., na freguesia de ..., no Porto, que iniciou a atividade em 08.01.1985 para “atividades jurídicas”, a que corresponde o CAE 69101;
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A sociedade B...- Sociedade de Advogados, SP, RL tem um capital social de 10.000,00€, detido pelos sócios A... (NIF...) e F..., com as percentagens de participação de 99% e 1%, respetivamente;
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A sociedade B...- Sociedade de Advogados, SP, RL a mesma encontra-se sujeita ao regime de transparência fiscal previsto no artigo 6.º do CIRC;
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A sociedade B...- Sociedade de Advogados, SP, RL foi objeto de procedimento inspetivo interno, credenciado pela Ordem de Serviço nº OI2022..., de âmbito parcial IRC e extensão ao ano de 2019, tendo sido efetuadas correções à matéria coletável declarada pela sociedade no montante de 41.649,08€, devido a gastos não dedutíveis, relativos a imparidade em dividas a receber; (Doc. n.º 5).
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A sociedade B...- Sociedade de Advogados, SP, RL tinha sobre o cliente G... e outros clientes um crédito global no montante de 41.649,08€; (Doc. n.º 5.)
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A Requerente foi notificada do ato de Liquidação de IRS n.º 2022..., referente ao ano de 2019, tendo sido apurado imposto a pagar e respetivos juros compensatórios no montante global de 23.958,40€, a pagar até 17.01.2023; (Docs. n.º 1 e 2)
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A AT desconsiderou uma perda por imparidade, no montante de 25.357,35€, relativa a um crédito que a B...- Sociedade de Advogados, SP, RL tinha sobre o cliente G... e outras perdas por imparidade que a sociedade tinha contabilizado no ano de 2019, relativas a outros clientes; (Docs. n.º 1 a 5)
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A Liquidação ora posta em crise resultou de uma correção à matéria coletável da sociedade, B...- Sociedade de Advogados, SP, RL; (Docs. n.º 4 e 5)
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A Requerente apresentou Reclamação Graciosa e foi notificada do seu indeferimento expresso, por via ao Ofício n.º 2023... de 06.11.2023; (Doc. n.º 3)
2.2Factos não provados
21. Com relevância para a decisão do caso concreto não existem factos que devam ser considerados não provados.
2.3Motivação
22. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
23. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
2.4Questão decidenda
2.4.1. Legitimidade processual ativa
24. Nos termos do artigo 12.º do CIRC, as sociedades a que, nos termos do artigo 6.º do mesmo diploma, seja aplicável o regime de transparência fiscal, não são tributadas em IRC, salvo quanto às tributações autónomas. A sociedade transparente, enquanto sujeito passivo de IRC, para além de estar sujeita às respetivas obrigações declarativas, pode reclamar da matéria coletável que lhe for fixada e que não dê origem a liquidação de IRC, nos termos do artigo 137.º, n.º 5, do CIRC.
25. No entanto, o regime da transparência fiscal previsto no artigo 6.º do CIRC – entre outras – para as sociedades profissionais determina que a matéria coletável é imputável aos sócios, integrando-se no seu rendimento tributável, para efeitos de IRS. Sendo os sócios da sociedade transparente notificados de uma liquidação adicional de IRS, consubstanciando um ato administrativo tributário autónomo, dotado de eficácia externa e efeito ablativo, aos mesmos assiste o direito de procederem à respetiva impugnação.
26. Assim decorre do princípio da tutela jurisdicional efetiva – que assegura uma proteção jurisdicional sem lacunas –, que milita contra a negação da legitimidade processual ativa à Recorrente, sob pena, em abstrato, de ficarem os sócios individualmente considerados dependentes da vontade, dos argumentos e da conduta da sociedade transparente e privados do necessário meio processual para a defesa dos seus direitos e interesses.
27. O princípio da tutela jurisdicional efetiva compreende o direito de obter, em prazo razoável, e mediante um processo equitativo, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, cada pretensão regularmente deduzida em juízo, sendo que a todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais competentes, compreendendo esta a anulação de todos os atos administrativo-tributários lesivos. Ora o processo judicial tributário tem por função a tutela plena, efetiva e em tempo útil dos direitos e interesses legalmente protegidos em matéria tributária. No caso, estão em causa direitos e interesses legalmente protegidos da Requerente, devendo reconhecer-se que tem legitimidade processual ativa para impugnar os atos em causa (cfr. arts. 4.º, n.ºs 1 e 2, CPTA; 9.º, 96.º, n.º 1, 99.º CPPT)
2.4.2. Perdas por imparidade, especialização de exercícios e princípio da justiça
28. Pode assim entrar-se no thema decidendum do presente processo de pronúncia arbitral respeitante a gastos contabilizados pela Requerente como perda por imparidade de créditos a receber, nomeadamente quanto ao momento da sua constituição, que no caso concreto, envolve a consideração de três temas fundamentais, a saber, a) regime da transparência fiscal, b) conceito de crédito de cobrança duvidosa; c) momento do reconhecimento das perdas por imparidade de créditos a receber, a saber, 2015 ou 2011 a 2017 ou 2019, consoante os casos.
2.4.2.1. Regime de transparência fiscal
29. No tocante à primeira questão, já antes se disse que do regime da transparência fiscal previsto no artigo 6.º do CIRC, resulta que a matéria coletável da sociedade sujeita a tal regime, embora determinada segundo as regras do CIRC, é imputada ao rendimento dos sócios para efeitos de IRC ou IRS, consoante os casos. Neste regime, os lucros da sociedade transparente são apurados em sede do IRC, na própria sociedade, de acordo com o artigo 6º do CIRC, e imputados aos sócios como rendimento líquido da categoria B, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 20.º do CIRS. Trata-se de um ponto incontroverso, o que nos permite passar de imediato para o ponto seguinte.
2.4.2.2. Crédito de cobrança duvidosa
30. Relativamente à segunda questão, atinente ao conceito de crédito de cobrança duvidosa, o que está em causa é saber se a B..., procedeu ao correto registo contabilístico e fiscal dos créditos de cobrança duvidosa, isto é, se aquele sujeito passivo aferiu corretamente o risco de incobrabilidade dos créditos que originaram a correção postulada pelo Relatório de Inspeção n.º ...2023... e se o fez no período de tributação devido.
31. A este propósito, importa recuperar a argumentação e a conclusão do RIT, em que, relativamente ao cliente G..., Lda, NIPC..., se aferiu da constituição de uma imparidade (em 100%) no valor de 25.357,35€. Neste caso, verificou-se que a sociedade havia emitido faturas a este cliente, entre 2013 e 2015, relativas a serviços prestados, no montante total 25.357,35€, tendo reconhecido, em 2019, uma perda por imparidade em créditos de clientes no montante total do mesmo.
32. A qualificação dos créditos como sendo de cobrança duvidosa não está na livre disponibilidade dos sujeitos passivos, porquanto, é o próprio legislador que estabiliza as situações passíveis de se considerarem integrantes naquele conceito. Nos termos do artigo 28.º-A, n.º1, do CIRC, respeitante a perdas por imparidade em dívidas a receber, podem ser deduzidas para efeitos fiscais as perdas por imparidade relacionadas com créditos resultantes da atividade normal, incluindo os juros, pelo atraso no cumprimento de obrigação, que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade, quando contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores.
33. Relativamente ao que sejam créditos de cobrança duvidosa, o artigo 28.º-B, n.º1, do CIRC, esclarece que se trata daqueles créditos em que o risco de incobrabilidade esteja devidamente justificado, o que sucede quando a) o devedor tenha pendente processo de execução, processo de insolvência, processo especial de revitalização ou procedimento de recuperação de empresas por via extrajudicial ao abrigo do Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 178/2012, de 3 de agosto; b) os créditos tenham sido reclamados judicialmente ou em tribunal arbitral, ou c) os créditos estejam em mora há mais de seis meses desde a data do respetivo vencimento e existam provas objetivas de imparidade e de terem sido efetuadas diligências para o seu recebimento, caso em que estabelecem montantes anuais acumulados por perdas de imparidade de crédito de acordo com percentagens dos créditos em mora (25% a 100%) variáveis de acordo com os meses em mora (6-24).
34. Como prova das diligências efetuadas para o recebimento deste crédito, nos termos da alínea c), do artigo 28.º-B, n.º1, do CIRC , a sociedade apresentou cartas enviadas ao cliente e à sua mandatária, ambas no ano de 2015, tendo ainda apresentado prova de uma reclamação de créditos, relevante para a alínea b) do mesmo artigo – correndo trâmites como processo n.º .../08....TBMTS-A – em ação de processo comum, em que é autor B..., Sociedade de Advogados e réu o cliente G..., cuja petição inicial deu entrada em 11.06.2015. Este aspeto adquire relevância no desfecho do caso concreto, na medida em que indicia que já nesse ano a sociedade estava consciente das dificuldades de cobrança dos montantes em dívida.
35. Subjacente ao conceito legal de crédito de cobrança duvidosa encontra-se a realidade contabilística e os deveres inerentes que impendem sobre as sociedades. Nos termos do n.º 1 do artigo 123.º do CIRC, «as sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, as cooperativas, as empresas públicas e as demais entidades que exerçam, a título principal, uma atividade comercial, indústria ou agrícola, com sede ou direção efetiva em território português, bem como as entidades que, embora não tendo sede ou direção efetiva em território português, bem como as entidades que, embora não tendo sede nem direção efetiva em naquele território, aí possuam estabelecimento estável, são obrigadas a dispor de contabilidade organizada nos termos da lei que, além dos requisitos indicados no n.º 3 do artigo 17.º, permite o controlo do lucro tributável».
36. A organização da contabilidade passa pelo cumprimento do Sistema de Normalização Contabilística (SNC) aprovado pelo DL N.º 158/2009, de 13 de julho, sendo que o enquadramento contabilístico do conceito de perdas por imparidade em dívidas de clientes consta da Norma Contabilística de Relato financeiro (NCRF) 27 – Instrumentos Financeiros. No respetivo §23 estabelece-se que à data de cada período de relato financeiro, uma entidade deve avaliar a imparidade de todos os ativos financeiros que não sejam mensurados ao justo valor através de resultados. Se existir uma evidência objetiva de imparidade, a entidade deve reconhecer uma perda por imparidade na demonstração de resultados.
37. Para efeitos da NCRF 27, o conceito de evidência objetiva de que um ativo financeiro ou um grupo de ativos está em imparidade inclui dados observáveis que chamem a atenção ao detentor do ativo para os seguintes eventos de perda: a) Significativa dificuldade financeira do emitente ou devedor; b) quebra contratual, tal como não pagamento ou incumprimento no pagamento do juro ou amortização da dívida; c) O credor, por razões económicas ou legais relacionados com a dificuldade financeira do devedor, oferece ao devedor concessões que o credor de outro modo não consideraria; d) Torne-se provável que o devedor irá entrar em falência ou qualquer outra reorganização financeira; e) O desaparecimento de um mercado ativo para o ativo financeiro devido a dificuldades financeiras do devedor; ou f) Informação observável indicando que existe uma diminuição na mensuração da estimativa dos fluxos de caixa futuros de um grupo de ativos financeiros desde o seu reconhecimento inicial, embora a diminuição não possa ser ainda identificada para um dado ativo financeiro individual do grupo, tal como sejam condições económicas nacionais, locais ou sectoriais adversas.
38. Assim, embora o conceito de créditos de cobrança duvidosa tenha um sentido mais restrito em sede jurídico-fiscal, é, pois, evidente que a qualificação do risco de incobrabilidade não é arbitrariamente e indiscriminadamente fixada pelos sujeitos passivos, antes obedece a princípios legais e contabilísticos que visam estruturar e clarificar, de forma precisa e inteligível, o funcionamento de toda a atividade económica.
2.4.2.3. Momento de reconhecimento das perdas por imparidade
39. Relativamente à terceira questão, respeitante ao momento do reconhecimento das perdas por imparidade de créditos a receber, começaremos por analisar a questão a partir do princípio da especialização de exercícios, para verificar, em seguida, se o mesmo admite alguma flexibilização com base no princípio da justiça. Assim, importa ter presente, num primeiro momento, o disposto no artigo 18.º do CIRC:
Artigo 18.º
Periodização do lucro tributável
1 — Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.
2 — As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.
40. Este preceito é particularmente relevante quanto se trata de interpretar e aplicar as normas e os procedimentos respeitantes à constituição das imparidades/incobrabilidades verificadas um determinado período de tributação, dele decorrendo que as demonstrações financeiras devam ser elaboradas com base no regime do acréscimo, ou periodização económica, que determina que os efeitos das transações e de outros acontecimentos são reconhecidos no momento em que ocorrem e não quando caixa ou equivalentes de caixa sejam recebidos ou pagos. Assim deve ser organizada a contabilidade e assim deve proceder quem tem contabilidade organizada, como resulta do mencionado artigo 123.º, n.º1, do CIRC.
41. O n.º 2, do artigo 18.º, do CIRC, reveste-se de grande importância contabilística na medida em que restringe a imputação a um dado período de tributação de componentes positivas ou negativas respeitantes a períodos anteriores aos casos em que as mesmas eram imprevisíveis, ou manifestamente desconhecidas, na data do encerramento das contas do período em que deviam ter sido imputadas, não podendo ser constituídas imparidades num período de tributação relativamente a créditos cujo risco de incobrabilidade já existia e era manifestamente conhecido em períodos anteriores.
42. A esta luz, existindo nos exercícios anteriores ao de 2019 indicadores objetivos claros do risco de incobrabilidade dos créditos, e não tendo a Requerente aduzido quaisquer razões que tenham levado a sociedade B...- Sociedade de Advogados, SP, RL a localizar temporalmente, no concreto exercício de 2019, o juízo do risco de incobrabilidade subjacente ao reconhecimento da correspondente perda, mostra-se destituída de fundamento essa concreta localização temporal e, assim sendo, a perda por imparidade do lucro tributável considerada com referência ao exercício de 2019. Por outras palavras, além de a Requerente não demonstrar que o risco de incobrabilidade era imprevisível ou manifestamente desconhecido em períodos tributários anteriores a 2019, a mesma oferece aos autos indícios claros e seguros de que o momento de cognoscibilidade do risco de incobrabilidade foi anterior a 2019 em pelo menos quatro anos.
43. Do artigo 18.º do CIRC depreende-se que o reconhecimento das perdas por imparidade destas dívidas a receber de clientes deve ser avaliada em cada data de relato, ou seja, no final do período contabilístico. No entanto, este reconhecimento de perdas por imparidade apenas deve ser efetuado se existir uma evidência objetiva de um evento de perda, conforme referido no elenco de dados observáveis constante do § 24 da NCRF 27. Quando existam dúvidas na cobrabilidade de uma dívida a receber de clientes deve ser reconhecida uma perda por imparidade[1]. Desta forma, comprovando-se a existência de um risco de incobrabilidade em anos anteriores, aquelas perdas por imparidade, constituídas no período de tributação de 2019, não são aceites fiscalmente, à luz do disposto no n.º 1, do artigo 28.º - B, do CIRC, conjugado com o n.º 2 do artigo 18.º do mesmo Código.
44. De acordo com o princípio da especialização de exercícios, o montante de 41.649,08€ (= 25.357,35€ + 16.291,73€) reconhecido pelo sujeito passivo no ano de 2019 como imparidade em dívidas a receber, não é aceite fiscalmente nos termos da alínea a), do n.º 1, do artigo 28.º-A, n.º 1, do artigo 28.º - B e do n.º 2, do artigo 18.º todos do CIRC, pelo que se procedeu ao seu acréscimo ao lucro tributável declarado pelo sujeito passivo. Estas correções em sede de IRC têm efeito fiscal na esfera pessoal dos sócios H... e I..., na medida em que a sociedade é tributada por transparência fiscal, pelo que a imputação em sede de IRS, foi, respetivamente, de 41.232,59€, [41.649,08€ * 99% (% de imputação)], e 416,49€ [41.649,08€ * 1% (% de imputação)].»
45. Se sociedade em causa já em períodos de tributação anteriores tinha efetuado diligências de tentativa de cobrança das referidas dívidas de clientes, e não existindo qualquer pagamento do cliente ou sido estabelecido qualquer acordo para o pagamento, a mesma sociedade deveria, nesse momento, ter reconhecido a respetiva perda por imparidade, sendo vedada a posterior aceitação dessas perdas como gasto fiscal, por não ter sido cumprido o referido regime do acréscimo e o inerente princípio da especialização de exercícios.[2] Tal solução interpretativa decorre imediatamente das próprias regras da contabilidade, nas quais o legislador formula um juízo seletivo do risco de incobrabilidade.
46. Efetivamente, tratando-se de créditos cujos vencimentos ocorreram nos períodos de tributação entre 2013 a 2015, e comprovando-se a existência de um risco de incobrabilidade logo em 2015, não poderiam ser aceites, como gasto fiscal, as perdas por imparidade reconhecidas em 2019, devendo estas ter sido contabilizadas e consideradas nesse período de 2015, à luz do disposto no n.º 1 do artigo 28.º - B do CIRC, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2 do mesmo Código, ou seja, estas perdas por imparidade, no valor de 25.357,35€ não seriam aceites fiscalmente no período de tributação de 2019, nos termos dos referidos normativos.
47. A mencionada indisponibilidade do conceito de créditos de cobrança duvidosa associada às exigências formais de organização contabilística, fazem impender sobre os sujeitos passivos o dever de procederem ao registo contabilístico e fiscal dos créditos de cobrança duvidosa, mediante a prévia aferição da existência objetiva do risco de incobrabilidade daqueles créditos em determinado período, tomando em consideração os critérios normativos avançados pelo legislador, o que não significa que o juízo subjacente à avaliação do risco de incobrabilidade seja definitivo e impeditivo de um escrutínio a posteriori, mormente, pela AT em sede inspetiva.
2.4.2.4. Princípio da especialização de exercícios e princípio da justiça
48. Dito isto, importa ter presente que o que distingue, ao menos tendencialmente, os princípios das regras é que os primeiros podem admitir ponderação e uma leitura flexível, ao passo que estas são de aplicação definitiva, de acordo com uma lógica binária do tipo “all-or-nothing”. A dogmática dos princípios jurídicos tem salientado que os mesmos devem ser entendidos como exigências de otimização que podem ceder no confronto – e diante da necessidade de harmonização – com outros princípios vigentes no sistema jurídico. Assim se compreende que o princípio da especialização de exercícios, apesar de estar vertido em regra no artigo 18.º do CIRC, não seja totalmente imune à necessidade de ponderação e concordância prática com o princípio da justiça e as suas implicações práticas.
49. Interpretando o artigo 18.º, n.º 1, do CIRC, em conjugação com artigo 23.º, n.º 1, do mesmo Código, conclui-se que as perdas por imparidade se consideram componente negativa do lucro tributável do exercício em que devem ser reconhecidas, sendo, em princípio, apenas nesse exercício que lhe pode ser atribuída relevância fiscal.
50. No entanto, o princípio da especialização de exercícios não pode ser interpretado e aplicado à margem de uma interpretação sistemática do direito constitucional e legal relevante, que tenha em conta a relevância do princípio da justiça invocado pela Requerente, cuja observância é imposta à globalidade da atividade da AT, pelos artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT. O mesmo implica que o dever de a AT aplicar o princípio da legalidade não se traduz numa mera subordinação formal às normas que especificamente regulam determinadas situações, antes impõe o dever de esta ter em conta as consequências da sua atividade e abster-se da aplicação estrita de normas quando dela decorra um resultado manifestamente injusto[3].
51. Da jurisprudência do STA resulta que o princípio da justiça pode ser convocado para atenuar a rigidez do princípio da especialização dos exercícios, numa lógica de ponderação proporcional de direitos e interesses dos contribuintes e do Estado. A nossa suprema instância administrativa e tributária tem vindo a sustentar que o princípio da especialização de exercícios «deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), por forma a permitir a imputação a um exercício de custos (agora gastos) referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios»[4].
52. Ponto é, para esta suprema orientação jurisprudencial, que o sujeito passivo tenha sido prejudicado ou não tenha tido qualquer vantagem pelo atraso da relevância fiscal dos gastos por perdas por imparidade, realidade que, a verificar-se, constitui um elemento de relevo decisivo para presumir que os erros foram involuntários e não intencionais. Igualmente relevante, na jurisprudência do STA é a questão de saber se a AT ainda poderia efetuar correções simétricas para determinação dos respetivos lucros tributáveis, imputando a cada um desses anos as perdas respetivas que não são aceites em relação ao ano de que se trate (in casu, 2019), de forma a evitar situações de manifesta injustiça.
53. No caso em apreço, não se demonstra ter havido qualquer vantagem da sociedade e dos respetivos sócios individualmente considerados decorrente do atraso da relevância fiscal das referidas perdas por imparidade, não havendo evidência de uma qualquer estratégia deliberada e intencional de manipular resultados ou operar a sua transferência entre exercícios e de contornar por essa via a letra e a razão de ser do princípio da especialização de exercícios. Pelo contrário, nos anos anteriores havia lucro tributável suficiente para absorver essas perdas por imparidade, nada impedindo a sua consideração nessa altura.
54. Todavia, as exigências de legais normalização contabilística, a que se subordina o princípio da especialização de exercícios, desempenham uma importante função regulatória de toda a atividade empresarial – essencial para financiadores, fornecedores, investidores, consumidores, AT – fornecendo ao sistema económico globalmente considerado os necessários e desejáveis níveis de transparência, mensurabilidade, comparabilidade, segurança, prestação de contas, previsibilidade e calculabilidade, valores inscritos no princípio do Estado de direito e considerados indispensáveis a numa economia social de mercado – conceito com acolhimento expresso no artigo 3.º, n.º 3, do TUE – bem organizada, não podendo essas exigências contabilísticas, pelo interesse público que têm subjacente, ser colocadas na disponibilidade dos contribuintes e preteridas de ânimo leve, mediante a simples invocação do princípio da justiça.
55. A relevância sistémica da contabilidade permite compreender, por exemplo, que na Estrutura Conceptual do SNC, § 22, se diga que, a fim de satisfazerem o seu objetivo, as demonstrações financeiras são preparadas segundo o regime contabilístico do acréscimo, nos termos do qual os efeitos das transações e de outros acontecimentos são reconhecidos quando ocorram e registados contabilisticamente e relatados nas demonstrações financeiras dos períodos com os quais se relacionem. Na mesma linha, ela explica o relevo que o § 37 confere ao princípio da prudência e a razão pela qual os § 77 e § 78 referem que as perdas representam diminuições em benefícios económicos e como tal não são na sua natureza diferentes de outros gastos, e que, quando reconhecidas na demonstração de resultados, são geralmente mostradas separadamente pois o seu conhecimento é útil para a tomada de decisões económicas.
56. A função regulatória sistémica das exigências contabilísticas, inscritas nas NCRF e no CIRC, tem como objetivo repercutir-se positivamente na atividade económica e beneficiar, mesmo que indiretamente, o Estado, as empresas e as famílias. Essas exigências já refletem uma complexa ponderação multidimensional de direitos e interesses, com implicações sistémicas, que não pode ficar na dependência de apreciações subjetivas e casuísticas. Naturalmente que o princípio da justiça, na medida em que vincula toda a atividade estadual, com especial relevo para a AT, pode e deve operar, como válvula de segurança do sistema, numa ótica de ponderação de direitos e interesses conflituantes, para corrigir situações excecionais de manifesta injustiça.
57. Todavia, a Requerente limita-se a dizer que a não aceitação das perdas por imparidade contabilizadas, pela sociedade B..., é manifestamente ilegal, sendo frontalmente violadora do princípio da justiça consagrado nos artigos 266.º, n.º 2, da Constituição, e 55.º da LGT, e que caberia a essa sociedade, e só a ela, aferir o momento em que passa a existir um risco de incobrabilidade e, bem assim, qual o grau/probabilidade de incobrabilidade. Isso, como se a fixação do momento de reconhecimento e dedução de perdas por imparidade estivesse na total disponibilidade dos contribuintes. Do mesmo modo, ela nada prova, nem alega, acerca da eventual impossibilidade de a AT operar as “correções simétricas” aquando da inspeção.
58. A Requerente pretende refletida no cálculo do seu IRS, no quadro do regime da transparência fiscal, perdas reconhecidas e imputadas pela sociedade B... ao exercício de 2019, quando as mesmas deveriam ter imputadas a exercícios anteriores em cumprimento do princípio – vertido em norma legal – da especialização dos exercícios (artigo 18.º do CIRC e demais normas aplicáveis), sem que tenha sido feita qualquer prova ou alegadas razões, de natureza factual, que a sociedade pudesse ter tido para não proceder ao reconhecimento das perdas no exercício em que lhe era devido fazer, em aplicação da lei, ou seja, sem justificar a violação do referido princípio, insistindo, ao invés, na ideia errónea, à face da lei e das regras de contabilidade, de que é sempre ao contribuinte — em primeira e última instância — que cabe formular uma apreciação subjetiva acerca do risco de incobrabilidade, sem atender à existência de critérios objetivos.
59. Determinando o princípio da especialização de exercícios, ou do acréscimo, que os proveitos e os custos devem ser imputados ao período a que respeitam, independentemente do seu recebimento ou pagamento, só a imprevisibilidade ou manifesto desconhecimento quanto a um gasto respeitante a um período anterior, e sendo ao sujeito passivo que aproveita a sua dedutibilidade fiscal, tal princípio faz impender sobre este o ónus probatório quanto a tais circunstâncias excecionais. Ónus que não foi cumprido, sem que a Requerente tenha invocado, como comprovada justificação desse incumprimento, situações externas que não podia controlar[5]. Recorde-se que no caso da B... estamos diante de uma sociedade de advogados com dois sócios, sendo que a Requerente detém uma participação no respetivo capital de 99%, facto que a coloca, para todos os efeitos substantivos, processuais e probatórios relevantes, numa confortável posição de controlo total.
3DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
Julgar improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral ser julgado improcedente por não provado, e, consequentemente, absolver a Requerida de todos os pedidos, tudo com as devidas e legais consequências.
4VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em 23.958,40 €, nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, interpretados em conformidade com o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT.
5CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 1 224.00 €, a cargo da Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo
Notifique-se.
Lisboa, 24 de junho de 2024
O Árbitro
Jónatas E. M. Machado
[1] Seguimos aqui o Parecer técnico do departamento de consultoria da Ordem dos Contabilistas Certificados Imparidades, PT27250 - novembro de 2022.
[2] Parecer técnico do departamento de consultoria da Ordem dos Contabilistas Certificados, PT19184 - Imparidades em dívidas de clientes, de 01.05.2017.
[3] Cfr., Acórdão do CAAD prolatado no Processo n.º 724/2023-T, de 23.02.2024.
[4] Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, nos Processos n.º 0807/07, de 02.04.2008; n.º 01648/02, de 05.02.2003; n.º 0291/08, de 25.06.2008; n.º 0809/12, de 21.11.2012; n.º 01278/12.2BELRS 0574/18, de 09.10.2019; n.º 01540/13.7BELRS, de 28.04.2021; n.º 0610/15.1BELRA, de 27.10.2021; n.º 0304/15.8BELLE, de 07.22.2022; n.º 01292/20.4BEBRG, de 08.02.2023 e n.º 0655/16.4BEBRG, de 08.11.2023.
[5] Cfr., no sentido do texto, Acórdão do STA Processo n.º 0655/16, de 08.11.2023.