Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 163/2024-T
Data da decisão: 2024-06-24  IVA  
Valor do pedido: € 51.971,78
Tema: IVA – Comercialização de produtos agrícolas – Revogação pela AT de todos os actos de liquidação – Inutilidade superveniente da lide.
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SUMÁRIO:

1. As liquidações adicionais de IVA relativos à venda de produtos agrícolas são ilegais quando impedem a dedução do imposto, por faltar apenas um requisito meramente formal.

2. Revogadas pela AT a totalidade das liquidações impugnadas, confessando a sua obrigação de restituição do indevidamente pago com juros indemnizatórios, deve a requerida ser condenada neste pagamento.

3. Porque a revogação ocorreu depois de constituído o tribunal arbitral e depois de a AT ter sido notificada para responder ao pedido de pronúncia arbitral, as custas são da responsabilidade da requerida.

 

DECISÃO ARBITRAL

          O árbitro José Joaquim Monteiro Sampaio e Nora, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 16/4/2024, profere a presente decisão arbitral, nos termos seguintes:

         

1. Relatório:

A..., Sucursal em Portugal, (doravante abreviadamente designada por “Requerente”), com sede em ..., ..., ..., ...-... ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Odemira com o número único de matrícula e de pessoa colectiva ..., notificada das liquidações adicionais de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) e demonstrações de acerto de contas que se identificam a seguir, com data limite de pagamento de 08.11.2023, veio, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e nºs. 1 e 2 do artigo 10.º, ambos do Decreto‐Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112‐A/2011, de 22 de Março, requerer a Constituição de Tribunal Arbitral, no sentido de ser declarada a ilegalidade desses actos tributários de liquidação adicional de IVA, feitos com base em correcções técnicas, no montante total de € 51.971,78, bem como o reembolso do imposto que entende indevidamente pago, acrescidos de juros compensatórios.

 

1.1 Tramitação e constituição do Tribunal Arbitral:

O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 8/2/2024 e aceite no mesmo dia, nos termos regulamentares aplicáveis, tendo o Requerente optado pela não designação de árbitro.

Por despacho de 26/3/2024 do Presidente do Conselho Deontológico do CAAD foi designado para árbitro o ora subscritor, tendo sido comunicada essa designação no mesmo dia às partes e não tendo havido reclamação da mesma, em 16/4/2024, foi comunicada às partes a constituição do Tribunal Arbitral;

É requerida nos presentes autos a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por AT ou requerida)

A requerida foi notificada para responder ao pedido de pronúncia arbitral do requerente em 16/4/2024.

Em 13/5/2024, a Requerida juntou aos autos requerimento com Despacho de Revogação dos actos impugnados nos presentes autos, pelo que requeria que fosse julgada verificada a inutilidade superveniente da lide, com todas as consequências legais, nomeadamente, por lhe ter dado azo, a sua condenação nas custas do processo.

Em 14-5-2024, foi a requerente notificada deste requerimento da AT e do despacho de revogação anexo ao mesmo, para que, querendo, sobre eles se pronunciasse, mas decorrido o prazo que lhe foi assinado, nada disse.

 

1.2 – Posição do Requerente

A requerente foi notificada dos seguintes documentos emitidos pela requerida:

Documento

N.º de Liquidação

Pagamento

Período

Valor

Demonstração de Liquidação de IVA

2023 ...

N/A

Jan 2023

€ 55.073,40

Demonstração de Liquidação de Juros de IVA

2023 ...

N/A

Jan 2023

€ 251,82

Demonstração de Acerto de Contas

2023 ...  e 2023 ...

08.11.2023

Jan 2023

€ 19.809,69

Demonstração de Acerto de Contas

2023 ...; 2023 ... e 2023 ...

08.11.2023

Jan 2023

€ 251,82

Demonstração de Liquidação de IVA

2023 ...

N/A

Fev 2023

€ 6.683,63

Demonstração de Liquidação de Juros de IVA

2023 ...

N/A

Fev 2023

€ 245,84

Demonstração de Acerto de Contas

2023 ... e 2023 ...

08.11.2023

Fev 2023

€ 22.355,55

Demonstração de Acerto de Contas

2023 ...; 2023 ...; 2023 ... e 2023 ...

08.11.2023

Fev 2023

€245,84

Demonstração de Liquidação de IVA

2023 ...

N/A

Mar 2023

€2.528,51

 

As referidas liquidações adicionais de IVA, resultavam de correções meramente aritméticas, por imposição legal, com as quais a requerente não concorda, no montante total de € 51.971,78, com base nos factos e fundamentos que constam da sua petição inicial (PI) que se podem sintetizar deste modo:

- Em 2014-12-28, foi celebrado um contrato de prestação de serviços de comercialização de produtos agrícolas (tomate-cereja ou tomate-cherry), entre a B..., Sucursal Portugal (anteriormente designada por C...), NIF..., e a A..., ora requerente.

- Estas entidades têm objetos de atividade diferentes e dispõem de recursos humanos e físicos próprios;

- Não dispondo a A... de instalações para preparação e embalamento de produtos, nem departamento comercial, vende toda a produção à B..., que faz o embalamento e prepara o transporte para a colocação de toda a produção nos seus clientes no norte da Europa;

- O preço de venda dos produtos, acordado por contrato celebrado entre as partes e exibido pela requerente no âmbito do procedimento inspetivo, corresponde ao preço médio de venda praticado pela B... dos produtos adquiridos à Requerente, deduzido de 0,20€ /Kg a título de margem de comercialização;

- Por sua vez, A B..., pelos serviços prestados de preparação da comercialização dos produtos adquiridos à Requerente, cobra 20% sobre o valor final de venda dos produtos que lhe adquiriu, o qual é calculado mensalmente para efeitos de faturação;

- Em sede inspetiva apresentou os mapas de apuramento mensal dos produtos vendidos, por tipo de produto, quantidades e valor total de venda, que sustentam o cálculo do valor dos serviços adquiridos correspondente a 20% das vendas faturadas;

- Da conjugação desses mapas de apuramento mensais das vendas e do contrato celebrado entre as partes envolvidas, resulta clara a discriminação dos serviços adquiridos, permitindo o seu controle, não podendo a falta de um requisito formal impedir o direito à dedução do IVA;

- O cumprimento dos requisitos formais previstos no n.º 5 do artigo 36.º do CIVA apenas serve para permitir um melhor controlo da operação económica e do imposto. Porém, apurada a veracidade das operações contabilísticas, invocadas pela requerente, não pode ser negado a esta, pela não verificação de requisitos formais, a possibilidade de exercer o direito à dedução do IVA;

- Neste sentido, invoca a requerente a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), designadamente o Acórdão Barlis, Processo C-516/14, de 2016-09-15, que sustenta o entendimento de que a dedução de imposto incorrido na aquisição de bens e serviços constitui um princípio fundamental do sistema comum do IVA, não podendo, em princípio ser limitado, atendendo ao princípio de neutralidade do imposto em todas as atividades económicas sujeitas a imposto, se os requisitos materiais estiverem cumpridos;

- No mesmo sentido invoca também, vários acórdãos dos tribunais portugueses para afirmar, que é entendimento unânime destes e do TJUE, que ainda que as faturas não cumpram os requisitos formais legalmente previstos, desde que seja possível confirmar materialmente qual o serviço prestado, não pode tal incumprimento obstar ao respetivo direito à dedução pelos sujeitos passivos;

- No decurso da ação inspetiva, a requerente forneceu as explicações necessárias e apresentou elementos que permitem confirmar e controlar a operação económica subjacente a cada fatura de aquisição de serviços em causa, nomeadamente, o contrato celebrado entre a requerente e a sucursal em Portugal da B..., mapas de apuramento das vendas mensais, discriminadas por tipo de produto, quantidades e valor das bases tributáveis de IVA das prestações de serviços adquiridas.

- Conclui a requerente pedindo que deve o presente pedido arbitral ser julgado procedente, por provado, declarando-se a ilegalidade e consequente anulação das liquidações de IVA e juros compensatórios ora impugnadas, requerendo mais que sejam restituídas as quantias indevidamente pagas, bem como o pagamento dos juros indemnizatórios legalmente devidos por esses pagamentos indevidos.

 

1.3 – Posição da Requerida

 

Por sua vez, a requerida, que, como se referiu, acabou por revogar todas as liquidações impugnadas, considera, no seu despacho de revogação, que a documentação complementar apresentada possibilita o cálculo e controle da conformidade entre as vendas mensais da Requerente (faturação emitida à B...) com as bases tributáveis de IVA declaradas, bem como, o cálculo da aquisição de serviços correspondente à 20% do valor das vendas finais destes produtos, faturadas mensalmente por esta entidade.

Por isso, atenta a prova produzida pela Requerente - acesso ao contrato celebrado entre ela e a B... e presentação de mapas mensais das vendas discriminadas por tipo de produto, quantidade e valor (apesar de as faturas para eles não remeterem de forma clara) - , não tendo sido colocada em causa a veracidade das operações económicas e não existindo outra fundamentação para as correções, entende-se que a documentação permite complementar a informação das faturas de modo a identificar as operações económicas em causa, aferir a incidência do imposto e determinar a respetiva taxa aplicável.

Considera ainda que, no tocante aos juros indemnizatórios peticionados pela Requerente na sua PI, cabe acrescentar que a finalidade dos mesmos é a de compensar o contribuinte pelo pagamento indevido de uma prestação tributária ou pelo atraso na restituição oficiosa de tributos por parte da AT, pelo que entende a AT que assiste razão à Requerente, encontrando-se preenchidos os pressupostos de aplicação do direito a juros indemnizatórios pelo que são devidos pela reparação dos danos decorrentes de um pagamento indevido ou atraso na restituição do reembolso de IVA.

Face a esta informação dos serviços, acompanhada da proposta de. no exercício da competência de reapreciação prevista no artigo 13.º do RJAT, no que respeita ao IVA, se proceder à revogação dos actos tributários, objeto do pedido de pronúncia arbitral, veio o sr. Subdiretor-geral da Área de Gestão Tributária IVA-IEC-ISV, em 2024-05-07, a emitir despacho de concordância e determinou a revogação dos actos tributários objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, com os fundamentos que se deixam expostos e constavam da respectiva informação.

 

2. Saneamento:

            O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são as legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

            A única questão a decidir é a de saber se a revogação dos actos tributários impugnado pela requerente acarreta a inutilidade superveniente da lide por falta de objecto para pronúncia arbitral.

 

3. Fundamentação de facto.

São considerados provados os factos que a seguir se indicam.

 

3.1 - Factos provados:

 

            Estão provados os seguintes factos:

a) A..., Sucursal em Portugal, (doravante abreviadamente designada por “Requerente”), com sede em..., ..., ...-... ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Odemira com o número único de matrícula e de pessoa colectiva ..., notificada das liquidações adicionais de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) e demonstrações de acerto de contas que identifica, com data limite de pagamento de 08.11.2023, veio pedir que fosse  declarada a ilegalidade desses actos tributários de liquidação adicional de IVA, feitos com base em correcções técnicas, no montante total de € 51.971,78, bem como o reembolso do imposto que entende indevidamente pago, acrescidos de juros compensatórios.

b) O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 8/2/2024.

c)  A requerida foi notificada para responder ao pedido de pronúncia arbitral do requerente em 16/4/2024.

d) A requerente procedeu, pelo menos, ao depósito da quantia de 42.662,90, em 8/11/2023, conforme resulta do doc. 7 junto com o PPA.

e) Quant0 ao mês de Março de 2023, havendo um crédito a favor da Requerente, foi emitida a Demonstração de Liquidação de IVA com o n.° 2023..., na qual foi reembolsado à Requerente apenas o valor de € 2.528,51, como resulta dos documentos juntos sob o nº. 1 com o PPA.

f) Em 13/5/2024, a Requerida juntou aos autos requerimento com Despacho de Revogação dos actos impugnados nos presentes autos, pelo que requeria que fosse julgada verificada a inutilidade superveniente da lide, com todas as consequências legais, nomeadamente, por lhe ter dado azo, a sua condenação nas custas do processo.

g) Com efeito, veio o sr. Subdiretor-geral da Área de Gestão Tributária IVA-IEC-ISV, em 2024-05-07, a emitir despacho de concordância com a informação dos serviços e determinou a revogação dos actos tributários objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, com os fundamentos que se deixam expostos e constavam da respectiva informação.

h) Em 14-5-2024, foi a requerente notificada deste requerimento da AT e do despacho de revogação anexo ao mesmo, para que, querendo, sobre eles se pronunciasse, mas decorrido o prazo que lhe foi assinado, nada disse.

          Os factos foram dados como provados com base nos documentos constantes dos presentes autos. Nomeadamente os juntos com o PPA.

 

3.2 Factos não provados.

          Não existem factos não provados com interesse para a decisão deste processo.

         

 

4. Matéria de direito

 

4.1 - Como questões a resolver, temos apenas a questão de saber se a revogação dos actos tributários impugnado pela requerente acarreta a inutilidade superveniente da lide por falta de objecto para pronúncia arbitral.

Nos termos do disposto no artigo 277º alínea e) do Código de Processo Civil, a instância extingue-se com a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.

Tais casos de extinção da instância ocorrem quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir deixa de ter qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio, designadamente por acordo extrajudicial ou judicial, mas neste caso fora do processo em questão (cfr. Alberto Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3.º págs. 367-373 e Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, vol. 1º, 2.ª Ed., pág. 555).

É este o caso, na medida em que, por efeito de revogação pela entidade requerida da totalidade dos actos tributários impugnados nos presentes autos, a decisão sobre a sua legalidade e consequente declaração de invalidade deixou de ter objecto, pelo que é inútil o prosseguimento dos presentes autos, sendo certo que a mesma ocorreu depois de a requerida ter sido notificada para apresentar resposta.

Pelo exposto julga-se extinta o presente processo arbitral por inutilidade superveniente da lide, face ao acto de revogação pela requerida dos actos tributários nele impugnados.

Com a extinção da instância por inutilidade superveniente relativamente ao pedido de liquidação e dado que a requerente não se opôs ao prosseguimento dos presentes autos, quanto aos pedidos de restituição do imposto pago e do pedido de essa restituição ser acrescida de juros indemnizatórios, tem de ser conhecer desses pedidos, tendo em conta a confissão dos mesmos pedidos pela requerida que considera ter a requerente direito a essa restituição do imposto pago, bem como do direito a juros indemnizatórios pelo que são devidos esses juros pela reparação dos danos decorrentes de um pagamento indevido ou atraso na restituição do reembolso de IVA.

Deste modo, para além da declaração da extinção da lide quanto à declaração de inutilidade da apreciação do pedido de anulação das liquidações impugnadas, deve também a requerida ser condenado no pedido de restituição do imposto pago, bem como no pedido de esta restituição ser acrescida do pagamento de juros indemnizatórios.

No que concerne às custas, importa ponderar que, por força do disposto no artigo 536º, nºs 3 e 4 do Código de Processo Civil, nos casos previstos em que não ocorra uma alteração das circunstâncias não imputável às partes, a responsabilidade pelas custas, decorrente da extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, ficará a cargo do réu ou requerido, quando esta decorra da satisfação voluntária, por parte deste, da pretensão do autor ou requerente, como é o caso presente.

 

5. Decisão

        Nestes termos, decide-se julgar extinto o presente processo arbitral por inutilidade superveniente da lide, face ao acto de revogação pela requerida dos actos tributários nele impugnados, condenando-se a requerida no pedido de restituição do imposto suportado pela requerente, bem como no pedido de esta restituição ser acrescida do pagamento de juros indemnizatórios.

 

6. Valor do processo

          De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 51.971,78, indicado pela Requerente.

 

 

7. Custas

          Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante total das custas a pagar em € 2.142,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da requerida.

 

Lisboa, 24-06-2024

O Árbitro

 

(José Joaquim Monteiro Sampaio e Nora)

 

Texto elaborado com a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.