SUMÁRIO:
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A Directiva (UE) 2018/1910 do Conselho, de 4 Dezembro 2018, passou a exigir que o adquirente de uma transacção intracomunitária - quando se esteja registado, para efeitos de IVA, num Estado membro diferente do da expedição dos bens – comunique atempadamente o seu número identificativo de IVA ao fornecedor e que este o mencione nas facturas.
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Nestes termos, este requisito passou a ser exigido para que estejamos perante uma operação de transmissão intracomunitária de bens isenta para efeitos de IVA, com todos os efeitos daí decorrentes.
I – Decisão Arbitral
1. A..., LDA., NIF..., com sede em ..., ...-... ..., Vila Nova de Famalicão, de ora em diante designada por Requerente, veio, nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), artigo 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), em conjugação com os artigos 96.º e seguintes e 104.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), requerer a CONSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto tributário consubstanciado na liquidação adicional de Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA) n.º ..., referente ao período de tributação de Maio de 2023 (23/05M), no montante de € 33.290,07.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Requerida.
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que a ora signatária foi nomeada pelo CAAD em 19 de Março de 2024, e as partes, devidamente notificadas, não manifestaram intenção de o recusar, pelo que o Tribunal ficou constituído em 9 de Abril de 2024.
4. A Requerente arrolou testemunhas e juntou à petição diversos documentos.
5. Tendo este Tribunal exarado Despacho a 9 de Abril de 2024 para no prazo de 30 se notificar o dirigente máximo do Serviço da Autoridade Tributária e Aduaneira para apresentar Resposta, a 8 de Maio de 2024 veio a AT apresentar a sua Resposta.
6. A 13 de Maio de 2024 proferiu este Tribunal o seguinte Despacho: “No presente processo não está em causa a discussão de quaisquer excepções, não tendo sido arroladas testemunhas, pelo que não se vê utilidade na realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT. Assim, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, da simplificação e informalidade processuais [artigos 16.º, alínea c], 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do RJAT), dispensa-se a realização da reunião prevista no artigo 18.º. Notifiquem-se as partes para, no prazo de 10 dias, e se assim o entenderem, apresentarem alegações escritas simultâneas, bem como para enviarem a este Tribunal as peças em formato word. Indica-se o dia 31 de Julho de 2024 como data limite para a prolação da decisão arbitral. Até essa data a Requerente deverá pagar a taxa arbitral subsequente.”
7. Em 28 de Maio de 2024 veio a Requerida apresentar alegações, reproduzindo o invocado na sua Resposta.
8. A Requerente não apresentou alegações.
9. Em linhas gerais, na situação controvertida está em causa aferir se se verificam os pressupostos da isenção das transmissões intracomunitárias de bens em conformidade com o disposto no Direito da União Europeia e o Direito interno, maxime no artigo 14.º do Regime do IVA nas Transmissões Intracomunitárias de Bens/RITI.
10. Neste contexto, invoca a Requerente, essencialmente, pugna pela ilegalidade das correcções efectuadas pela AT e, consequentemente, pela ilegalidade da liquidação delas recorrentes, uma vez que considera provado que as mercadorias em causa saíram do território nacional e deram entrada no território de outro Estado membro.
Para o efeito cita a jurisprudência constante do TJUE exarada até 2020, nomeadamente a constante do Caso EURO TYRE BV – Sucursal em Portugal (Proc. C-21/16), com base na redacção do artigo 138.º da Directiva IVA vigente à data, Caso este que foi suscitado em sede de reenvio prejudicial por um Colectivo do Tribunal Arbitral no qual a signatária participou.
Entende ainda a Requerente que a liquidação está também viciada por um vício procedimental, dado que a inspecção tributária que esteve na sua origem foi indevidamente qualificada de interna, com a consequente redução das garantias da inspeccionada.
11. Analisada a situação, conclui a AT na sua Resposta que,
“42. Sucede que, no caso em apreço, não se verificam todos os pressupostos da isenção do imposto, nos termos acima enunciados.
43. Com efeito, não obstante os bens terem sido expedidos e descarregados na República da Irlanda, facto é que os bens foram adquiridos pelo cliente “B... LTD”, sediado em Inglaterra, com o número de IVA GB ..., o qual cessou a atividade em 31/12/2020 e não se encontrava registado para o exercício de uma atividade num Estado-membro diferente de Portugal, nem possuía número válido para efeito de VIES.
44. Contrariamente ao que a Requerente alega, para que se possa afirmar a existência de uma transmissão intracomunitária isenta de IVA, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º do RITI, é imprescindível que as transmissões de bens sejam efetuadas por um sujeito passivo que se encontre abrangido, no país de origem, por um regime de tributação das aquisições intracomunitárias de bens, que o adquirente seja uma pessoa singular ou coletiva registada para efeitos do IVA noutro Estado-membro, que este utilize o respetivo número de identificação para efetuar a aquisição e o mesmo se encontre abrangido por um regime de tributação das aquisições intracomunitárias de bens nesse outro Estado-membro, de modo a poder-se comprovar a sua efetiva tributação no país de destino.
46. (…) a exigência de que o cliente seja um sujeito passivo de IVA em outro Estado membro, que tenha utilizado o respetivo número de identificação fiscal para efetuar a aquisição e aí se encontre abrangido por um regime de tributação das aquisições intracomunitárias de bens, não sendo uma questão meramente formal, representa um dos pressupostos da questionada isenção tributária. 46. Neste sentido, qualquer sujeito passivo de IVA que pretenda realizar aquisições e ou transmissões intracomunitárias de bens tem de ter registo válido no VIES.
47. Pelo que, a falta de registo válido implicará a desconsideração da operação como aquisição ou transmissão intracomunitária e a sua tributação no Estado membro de origem.
48. Tudo visto e ponderado, de acordo com o regime acima referido e o citado artigo 14.º, n.º 1, alínea a) do RITI, para que existisse isenção de IVA nas operações realizadas entre a Requerente e o cliente “B... LTD”, só seria possível se este último se encontrasse registado para o exercício de uma atividade num Estado-membro diferente de Portugal e possuísse número de registo válido para efeitos de VIES, o que não se verifica nos presentes autos.
(…)
80. Concretizando e aplicando aos presentes autos o artigo 13.º do RCPITA tal como é pretensão do legislador, verificamos que os elementos e documentos em que os SIT se basearam para efetuar as correções em sede de IVA, e que estiveram na base da liquidação impugnada, foram obtidos no âmbito do procedimento levado a cabo à Requerente, daí que, duvidas não existam de que se enquadram no procedimento previsto na alínea a) do artigo 13.º do RCPITA, ou seja, num procedimento de cariz interno.
(…)
83. De resto, estas mesmíssimas questões, relativas ao mesmo sujeito passivo de imposto, diferindo apenas o período de imposto em questão, foram apreciadas no Processo 701/2023-T, no qual o Tribunal Colectivo, por unanimidade, decidiu pela total improcedência do Pedido.”
II- Saneador
1. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
2. O Tribunal encontra-se regularmente constituído, é competente e o processo não enforma de nulidades.
III – Fundamentação
1. Questões decidendas
As questões cuja pronúncia se impõe ao Tribunal Arbitral consubstanciam-se, no essencial, em apurar se estão, ou não, preenchidas as condições de aplicação da alínea a) do artigo 14.º do Regime do IVA nas Transações Intracomunitárias, para que as transmissões de bens declaradas pela Requerente, no período objecto de ação inspectiva, possam beneficiar da respetiva isenção.
Acresce ainda a questão de se analisar se ocorreu, conforme alegado pela Requerente, a violação das regras procedimentais previstas para o procedimento de inspecção.
2. Matéria de facto
2.1 Factos provados
Em face das posições das partes expressas nos articulados e dos documentos integrantes do processo administrativo anexo bem como do depoimento das testemunhas, julgam-se como provados os seguintes factos pertinentes para a decisão da causa:
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No âmbito da Ordem de Serviço n.º OI2023..., de 23/06/2023, foi realizada à Requerente uma ação de inspecção interna e de âmbito parcial, que incidiu sobre o período 2023/05 e que «(…) teve por objetivo a análise ao pedido de reembolso do período 2023/05, da qual resultaram correções aritméticas em sede de IVA, no valor de 33.290,07 EUR.» (cf. capítulo III. do Relatório de Inspeção Tributária – RIT).
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Dessa acção inspectiva, em 29/09/2023, foi elaborado RIT, tendo os Serviços de Inspeção Tributária (SIT) da AT verificado: i) que a Requerente iniciou a actividade em 1995-01-02; ii) que exerce a actividade principal de FABRICAÇÃO DE MEIAS E SIMILARES DE MALHA, a que corresponde o código 14310 da C.A.E.; e, iii) que se encontra registada em sede de IRC no regime geral de determinação do rendimento e, em sede de IVA, no regime normal de periodicidade mensal.» (cf. capítulo III. do RIT).
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No decurso do procedimento de inspecção, conforme vertido no capítulo «V. Descrição dos factos e fundamentos das correções/irregularidades» do RIT, os SIT verificaram o seguinte: «V.1. – Venda de bens considerados indevidamente TICB. V.1.1. – Cliente Inglês “B... LTD” – GB ... . (…) Cumpre referir, que foi efetuado um pedido de cooperação Administrativa (Troca de Informações) à República da Irlanda, nr.º 2023..., ao abrigo do despacho DI2023.., questionando se o sujeito passivo irlandês é representante fiscal do sujeito passivo inglês, no território da União Europeia. Em 2023-08-30, obtivemos resposta da Autoridade Tributária da República da Irlanda, a qual informa que o SP “IE6...N –C...” não foi nomeado representante fiscal (no território da União Europeia) do SP Inglês com o contribuinte “GB...” e designação “B... LTD”, não havendo por esse facto comprovativo (prova documental) dessa nomeação, e também por esse facto não declarou (nem tinha que declarar não sendo representante fiscal) as respetivas aquisições na plataforma do VIES. O SP “B...LTD” estabelecido em Inglaterra (país Terceiro), não nomeou representante fiscal, em nenhum Estado membro da União Europeia, incluindo na República da Irlanda, conforme ficou provado através da resposta da Autoridade Tributária da República da Irlanda ao nosso pedido de cooperação administrativa. (…) Em face do referido, bem como do mencionado no capítulo III.8.5, não pode o SP “A... LDA” beneficiar de isenção em IVA, evocando a norma prevista no art.º 14.º do RITI. (…) V.1.2. – Cliente Canadiano “D... Inc.” – CA202.... (…) O SP A... LDA efetuou vendas no valor 1.747,50 EUR (1.864,00 – 116,50) para o seu cliente Canadiano, tendo por ordem dele as mercadorias sido enviadas para a Dinamarca conforme consta da fatura n.º 115. O SP A... LDA não liquidou IVA ao abrigo do normativo previsto no art.º 14º. “D... Inc.” nomeasse representante fiscal em território da União Europeia (excluindo Portugal, caso contrário, seria uma operação interna sujeita a IVA à taxa normal), sendo o mesmo obrigatoriamente mencionado na fatura emitida, o que não foi o caso.(…)».
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Nessa sequência, concluíram os SIT (cf. capítulo V. do RIT) que, a) Relativamente ao cliente inglês “B... LTD”, «(…) cabe ao SP A... LDA a liquidação e entrega de imposto que se mostre devido, que por aplicação da taxaprevista na alínea c) do n.º 1 do art.º 18.º do CIVA, ascende a 32.888,14 EUR (142.991,92X23%).»; b) Relativamente ao cliente canadiano “D... Inc.”, «(…) cabe ao SP A... LDA a liquidação e entrega de imposto que se mostre devido, que por aplicação da taxa prevista na alínea c) do n.º 1 do art.º 18.º do CIVA, ascende 401,93 EUR (1.747,50X23%).».
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Os bens em acusa foram expedidos e descarregados na República da Irlanda.
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Os bens em causa foram adquiridos pelo cliente “B... LTD”, sediado em Inglaterra, com o número de IVA GB..., o qual cessou a actividade em 31/12/2020 e não se encontrava registado para o exercício de uma actividade num Estado membro diferente de Portugal, nem possuía número válido para efeito de VIES.
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O IVA liquidado adicionalmente pela AT foi deduzido ao valor de imposto a ser reembolsado à Requerente.
Note-se que relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º7, do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
A convicção do Tribunal para dar os presentes factos como provados assentou na análise crítica do teor dos documentos constantes do processo administrativo e dos restantes documentos constantes dos autos, os quais não foram impugnados pelas partes e relativamente aos quais não há indícios que ponham em causa a respectiva genuinidade, de acordo com o indicado em cada um dos números do probatório.
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Factos não provados
Não ficou provado, por ausência de qualquer meio de prova, que o número identificativo constante das facturas corresponda ao número de IVA do representante fiscal do adquirente (a sociedade inglesa) na Irlanda.
Não há outros factos relevantes para a decisão que não se tenham provado.
3. Das questões de direito
Encontrando-se a aludida material de facto dada como provada, importa seguidamente determinar o direito aplicável aos factos subjacentes, de acordo com as questões supra.
O artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b) i), da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006 (Directiva IVA), na redacção em vigor à data dos factos, determina que: “1. Estão sujeitas ao IVA as seguintes operações:
a) As entregas de bens efectuadas a título oneroso no território de um Estado-Membro por um sujeito passivo agindo nessa qualidade;
b) As aquisições intracomunitárias de bens efetuadas a título oneroso no território de um Estado-Membro:
i) Por um sujeito passivo agindo nessa qualidade ou por uma pessoa coletiva que não seja sujeito passivo, quando o vendedor seja um sujeito passivo agindo nessa qualidade (…).”
Nos termos do disposto no artigo 14.º, n.º 1, da Directiva IVA, na redacção em vigor à data dos factos, entende-se por “entrega de bens”, “a transferência do poder de dispor de um bem corpóreo como proprietário.”
No tocante às isenções relacionadas com as operações intracomunitárias, o artigo 138.º, n.º 1, da Directiva IVA, na redacção em vigor à data dos factos, dispõe que, “1. Os Estados-Membros isentam as entregas de bens expedidos ou transportados, para fora do respetivo território mas na Comunidade, pelo vendedor, pelo adquirente ou por conta destes, efetuadas a outro sujeito passivo ou a uma pessoa coletiva que não seja sujeito passivo agindo como tal num Estado-Membro diferente do Estado de partida da expedição ou do transporte dos bens.”
Acresce ainda que, o artigo 214.º, n.º 1, alíneas a) e b), da Directiva IVA, na redacção em vigor à data dos factos, relativamente às obrigações dos sujeitos passivos, determina que, “1. Os Estados -Membros tomam as medidas necessárias para que sejam identificadas através de um número individual as seguintes pessoas:
a) Os sujeitos passivos, com excepção dos referidos no n.º 2 do artigo 9.º , que efectuem, no respectivo território, entregas de bens ou prestações de serviços que lhes confiram direito a dedução e que não sejam entregas de bens ou prestações de serviços em relação às quais o IVA seja devido unicamente pelo destinatário em conformidade com os artigos 194.º a 197.º e 199.º ;
b) Os sujeitos passivos ou as pessoas colectivas que não sejam sujeitos passivos que efectuem aquisições intracomunitárias de bens sujeitas ao IVA, em conformidade com a alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º , ou que tenham feito uso da opção, prevista no n.º 3 do artigo 3.º , de sujeitar ao IVA as suas aquisições intracomunitárias; (…).”
Por sua vez, o artigo 220.º, n.º 1, ponto 3., da Directiva IVA, determina que, “1. Os sujeitos passivos devem assegurar que seja emitida uma factura, por eles próprios, pelos adquirentes ou destinatários ou, em seu nome e por sua conta, por terceiros, nos seguintes casos: (…) 3. Relativamente às entregas de bens efectuadas nas condições previstas no artigo 138.º; (…).” O artigo 226.º, alínea 4), da Directiva IVA dispõe que, “Sem prejuízo das disposições específicas previstas na presente directiva, as únicas menções que devem obrigatoriamente figurar, para efeitos do IVA, nas facturas emitidas em aplicação do disposto nos artigos 220.° e 221.° são as seguintes: (…) 4) O número de identificação para efeitos do IVA do adquirente ou destinatário, referido no artigo 214.º, ao abrigo do qual foi efectuada uma entrega de bens ou uma prestação de serviços pela qual aquele seja devedor do imposto ou uma entrega de bens referida no artigo 138.º; (…).”
No que se reporta ao nosso Código do IVA/CIVA, nos termos do disposto no n.º 1 do respectivo artigo 3.º, “[considera-se], em geral, transmissão de bens a transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade.”, sendo que, em conformidade com o consignado no n.º 1 do seu artigo 6.º, “[são] tributáveis as transmissões de bens que estejam situados no território nacional no momento em que se inicia o transporte ou expedição para o adquirente ou, no de caso de não haver expedição ou transporte, no momento em que são postos à disposição do adquirente.”
Ora, para que estejamos perante uma operação qualificada como aquisição intracomunitária de bens (artigo 3.º do RITI), é necessário que, em simultâneo:
a) O adquirente seja um sujeito passivo devidamente registado para efeitos de IVA em território nacional;
b) Esteja em causa um bem móvel corpóreo;
c) Haja transferência do direito de propriedade para o adquirente;
d) O bem seja transportado com destino ao adquirente para um Estado membro diferente do Estado membro do início da expedição ou transporte;
e) O vendedor seja um sujeito passivo que não beneficie de um regime de isenção, ou não sujeição, no Estado membro de origem dos bens.
No que se reporta à regra de isenção nas transmissões de bens intracomunitárias de bens, esta encontra-se no artigo 14.º, n.º 1, alínea a), conjugado com a alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, ambos do RITI, que determinam o seguinte “1. Estão isentas do imposto:
a) As transmissões de bens, efetuadas por um dos sujeitos passivos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, expedidos ou transportados pelo vendedor, pelo adquirente ou por conta destes, a partir do território nacional para outro Estado-Membro com destino ao adquirente, quando este seja uma pessoa singular ou coletiva registada, para efeitos do imposto sobre o valor acrescentado, em outro Estado-Membro, que tenha utilizado e comunicado ao vendedor o respetivo número de identificação para efetuar a aquisição e aí se encontre abrangido por um regime de tributação das aquisições intracomunitárias de bens; (…)”. E, “1. São considerados sujeitos passivos do imposto pela aquisição intracomunitária de bens:
a) As pessoas singulares ou coletivas mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA que realizem transmissões de bens ou prestações de serviços que conferem direito à dedução total ou parcial do imposto; (…).”
Ou seja, de acordo com as regras vigentes à data dos factos, para que uma transmissão de bens, efectuada por um sujeito passivo registado em Portugal, beneficie da isenção consagrada no artigo 14.º, n.º 1, alínea a), do RITI, é necessário que se verifiquem os seguintes requisitos cumulativos:
a) Os bens sejam expedidos ou transportados a partir do território nacional para outro Estado membro; e,
b) O adquirente se encontre registado para efeitos do IVA noutro Estado membro, tenha indicado o respectivo número de identificação fiscal e aí se encontre abrangido por um regime de tributação das aquisições intracomunitárias de bens.
Note-se que a verificação de tais requisitos incumbe ao sujeito passivo vendedor, que deve ser capaz de comprovar todos os elementos exigidos pelo artigo 14.º do RITI, sob pena de a operação ser considerada localizada em território nacional e, como tal, sujeita a imposto.
Neste contexto e tal como a AT bem salienta, verifica-se que a identificação fiscal é um elemento fundamental para o funcionamento deste sistema, na medida em que permite o controlo das operações efectuadas, devendo para o efeito os operadores económicos estar aptos a conhecer o NIF dos sujeitos passivos com os quais se relacionam.
Como nota a AT na sua Resposta, “50. (…) o Reino Unido deixou de fazer parte da União Europeia por força do «Brexit».
51. Em 31 de janeiro de 2020, o Reino Unido deixou de ser um Estado-membro da União Europeia, na medida em que, nesse momento, entrou em vigor o “Acordo de Saída”, garantindo uma saída ordenada desse país da União Europeia, tendo-se iniciado um período transitório, que terminou no dia 31/12/2020, data em que a “B... LTD” deixou, efetivamente, de constar do VIES.
52. Nestes termos, estamos perante uma condição substantiva e não meramente formal, como defende a Requerente.
53. Tanto assim é que, nos termos da Diretiva (UE) 2018/1910 do Conselho, de 4 de dezembro, a isenção de IVA prevista no n.º 1 do artigo 138.º da Diretiva IVA, passou a exigir a verificação das seguintes condições: a) Os bens sejam fornecidos a outro sujeito passivo ou a uma pessoa coletiva que não seja sujeito passivo agindo nessa qualidade num Estado-membro diferente do Estado de partida da expedição ou do transporte dos bens; b) O sujeito passivo ou a pessoa coletiva que não seja sujeito passivo a quem a entrega é efetuada esteja registado para efeitos do IVA (no regime de tributação das aquisições intracomunitárias) num Estado-membro diferente do Estado de partida da expedição ou do transporte dos bens e utilizou e comunicou esse número de identificação IVA ao fornecedor.
54. Esta alteração foi realizada no sentido de clarificar que, além do transporte dos bens para fora do Estado-membro onde ocorreu a transmissão, a inclusão do número de identificação, para efeitos de IVA do adquirente dos bens, atribuído por um Estado diferente do Estado-membro de início do transporte dos bens, no sistema de intercâmbio de informações sobre o IVA (sistema «VIES») e a sua comunicação ao transmitente dos bens constitui igualmente uma condição substantiva para a aplicação daquela isenção e não um mero requisito formal. 55. Resumindo, a lei exige, então, por um lado, que ocorra a entrega de bens expedidos ou transportados, pelo vendedor ou pelo adquirente ou por conta destes, para fora do território de um Estado-membro, mas no interior da União, efetuada a outro sujeito passivo agindo como tal num Estado-membro e, por outro lado, que o adquirente dos bens se encontre registado para o exercício de uma atividade (ou tenha nomeado representante, que não é condição obrigatória, mas facultativa, conforme decorre do artigo 30.º do Código do IVA ou norma equivalente a vigorar noutros Estados-membros) num Estado-membro diferente de Portugal e possua número de registo válido para efeitos de VIES.
56. Ora, no caso em apreço, os pressupostos legais encontram-se reunidos no que concerne ao “adquirente” a quem os bens foram entregues (segunda transmissão), mas não já relativamente ao primeiro adquirente dos bens, o cliente inglês (intermediário), na medida em que esta operação não configura uma transmissão intracomunitária de bens.
57. Na verdade, nem configura uma operação triangular; estamos, antes, perante uma falsa operação triangular.
(…)
65. Acontece que, existem outras operações designadas por “falsas triangulares”. É o caso em que intervém um operador económico situado num país terceiro. É o caso «sub judice». Vejamos então,
66. No caso em análise nos presentes autos, temos que: a) A primeira transmissão de bens (Portugal – Inglaterra, ou seja, “Território Nacional – País Terceiro”), é uma operação sujeita, nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do Código do IVA, que prescreve que «[são] tributáveis as transmissões de bens que estejam situados no território nacional no momento em que se inicia o transporte ou expedição para o adquirente ou, no caso de não haver expedição ou transporte, no momento em que são postos à disposição do adquirente»; porém,
b) Aquela operação poderia beneficiar de isenção, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º do Código do IVA, desde que os bens fossem expedidos ou transportados para fora da Comunidade (União), pelo vendedor ou por um terceiro por conta deste; contudo, c) Os bens não saíram do território da União, por isso, essa isenção (do artigo 14.º do Código do IVA) não se aplica ao caso concreto; d)Aquela operação poderia ainda beneficiar da isenção prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º do RITI, caso o cliente inglês “B... LTD” se encontrasse registado para efeitos de IVA em qualquer Estado-membro e tivesse utilizado o referido número de identificação fiscal na aquisição dos bens.
67. Ora, nesta última situação apontada [alínea d)], teríamos uma transmissão intracomunitária de bens, em que o vendedor português (a Requerente) declarava uma transmissão intracomunitária de bens na declaração recapitulativa e o adquirente inglês (o cliente “B... LTD”) uma aquisição intracomunitária de bens, sendo o correspondente envio dos bens para fora do território nacional com destino a outro Estado-membro (a República da Irlanda).”
Igualmente no tocante às questões suscitadas quanto ao procedimento inspectivo colhe a fundamentação da AT. Como bem se faz notar na sua Resposta, “72. O artigo 13.º do RCPIT, sob a epígrafe «Lugar do procedimento de inspecção» dispunha, na sua versão original, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 413/98, de 31/12, o seguinte: «Quanto ao lugar da realização, o procedimento pode classificar-se em: a) Interno, quando os actos de inspecção se efectuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos; b) Externo, quando os actos de inspecção se efectuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.».
73. Este artigo veio a manter a mesma redação até 01 de julho de 2016, data em que, com a aprovação do Decreto-Lei n.º 36/2016, de 1 de julho, passou a dispor o seguinte: «Quanto ao lugar da realização, o procedimento pode classificar-se em: a) Interno, quando os actos de inspecção se efectuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos por esta detidos ou obtidos no âmbito do referido procedimento; b) Externo, quando os actos de inspecção se efectuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.»
74. Verifica-se, pois, que a partir da entrada em vigor daquele Decreto-Lei n.º 36/2016, de 1 de julho, no âmbito de um procedimento de inspeção interno, os documentos a analisar não se têm de cingir aos já detidos pela administração tributária, podendo ainda englobar a análise de documentos por esta obtidos, desde que no “âmbito do referido procedimento”.
(…)
80. Concretizando e aplicando aos presentes autos o artigo 13.º do RCPITA tal como é pretensão do legislador, verificamos que os elementos e documentos em que os SIT se basearam para efetuar as correções em sede de IVA, e que estiveram na base da liquidação impugnada, foram obtidos no âmbito do procedimento levado a cabo à Requerente, daí que, duvidas não existam de que se enquadram no procedimento previsto na alínea a) do artigo 13.º do RCPITA, ou seja, num procedimento de cariz interno.”
Ainda como alega a AT, as mesmíssimas questões, relativas ao mesmo sujeito passivo de imposto, diferindo apenas o período de imposto em questão, foram apreciadas no Processo 701/2023-T, de 18 de Março de 2024, no qual o Tribunal Colectivo, por unanimidade, decidiu pela total improcedência do Pedido.
Ora, no seu essencial, aderimos às referidas conclusões da AT, bem como às conclusões a que o Colectivo chega no aludido Processo arbitral, já transitado em julgado, no sentido da improcedência do pedido, as quais passamos a transcrever no seu fundamental:
- “É bom de ver que os elementos contabilísticos, solicitados pela AT e fornecidos pelo SP se mostraram totalmente inúteis para a fundamentação da liquidação impugnada, a qual resultou apenas do constante do VIES e do exame das quatro faturas em causa.
O mesmo é dizer que o facto de a inspeção em causa ter sido qualificada como interna, e não como externa, como pretende a Requerente, é materialmente irrelevante. Embora sejam diferentes os formalismos a observar em cada caso, de tal não resultou uma qualquer diminuição das garantias do sujeito passivo. Nem nenhuma concreta alegação foi feita nesse sentido.
Mais, a Requerente não terá tido em conta a alteração (de 2016) à redação da al. a) do art. 13º do RCPITA: o procedimento pode classificar-se em interno quando os atos de inspeção se efetuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos por esta detidos ou obtidos no âmbito do referido procedimento;
Ou seja, uma inspeção só deve ser qualificada como externa quando aconteçam atos inspetivos em instalações do sujeito passivo ou de terceiros, o que não é alegado ter acontecido.
A obtenção de documentos no decurso do procedimento, nomeadamente em resultado de solicitação feita ao sujeito passivo, como foi o caso, documentos esses que depois são analisados pelos serviços nas instalações destes, não altera a qualificação da inspeção como sendo “interna”.
Pelo que se indefere a pretensão anulatória da Requerente com este fundamento.
- Estão em causa vendas de bens efetuadas em janeiro de 2023 a um cliente inglês. Estas vendas foram reportadas pela Requerente como transmissões intracomunitárias de bens, isentas ao abrigo do art.º 14 do RITI (que resulta da transposição do art.º 138 da Diretiva IVA), uma vez que os bens foram expedidos de Portugal para outro Estado-Membro (República da Irlanda).
Estamos perante as denominadas “falsas operações triangulares”, ou seja, operações em que intervêm dois Estados-membros da U.E. (Portugal e a República da Irlanda) e um país terceiro (Grã-Bretanha): o bem não sai da União Europeia, ainda que no circuito documental, que não acompanha o circuito físico dos bens, haja um operador sedeado num país terceiro.
Da leitura das normas de incidência objetiva do IVA aplicáveis ao comércio intracomunitário e previstas no RITI pode inferir-se que estas operações devem ser tributadas no país de destino. Em termos de territorialidade, vigora a regra de que o local de tributação dos bens é aquele onde os bens se encontram no momento em que termina o transporte ou a expedição para o adquirente.
Até 2020, era jurisprudência constante do TJUE, de que é exemplo a citada pela Requerente, nomeadamente o acórdão EURO TYRE BV – Sucursal em Portugal (proc. C-21/16), com base na redação do art.º 138 da Diretiva IVA vigente à data, que a aplicação da isenção de IVA constante deste artigo dependia do cumprimento dos requisitos substantivos elencados no mesmo, os quais não incluíam uma obrigação de o adquirente dos bens disponibilizar previamente o seu número de IVA noutro Estado-Membro.
A jurisprudência consolidada do TJUE entendia então que a existência de um número de IVA válido do adquirente dos bens constituía um requisito de natureza formal, o qual não prejudicava a aplicação da isenção de IVA se, na sua ausência, os requisitos substantivos constantes do mencionado art.º 138 (em particular, os relativos à prova do transporte dos bens entre Estados-Membros) estivessem preenchidos.
Porém, tendo em vista reforçar o controlo e a monitorização das operações intracomunitárias de bens e, em particular, a luta contra a fraude, os Estados-Membros acordaram, em 2018, transformar a disponibilização ao fornecedor, pelo adquirente dos bens, de um número de IVA válido no sistema VIES, atribuído por um Estado-Membro diferente do de partida dos bens, em condição substantiva (e já não meramente formal) para a aplicação da isenção de IVA prevista no art.º 138 da Diretiva IVA.
Neste sentido, o referido art.º 138 da Diretiva IVA foi alterado pela Diretiva (UE) 2018/1910 do Conselho, de 4 dezembro 2018[1], passando, a partir de 1 de janeiro de 2020, a ser exigido que o sujeito passivo adquirente dos bens esteja registado, para efeitos de IVA, num Estado-Membro diferente do de expedição dos bens, e tenha atempadamente comunicado esse mesmo número ao seu fornecedor.
In casu, não se provou que este requisito substancial esteja cumprido porquanto não foi feita a prova de que o número de IVA constante das faturas corresponda a um número de IVA irlandês do adquirente dos bens ou de um seu representante.
Ou seja, ainda que demonstrado que os bens saíram de Portugal com destino a outro Estado-membro (Irlanda), a Requerente não faz uma transmissão intracomunitária subsumível no artigo 14.° do RITI, porquanto, não se verificam todos os pressupostos agora exigidos para o efeito.”
Face ao exposto, pelos motivos amplamente aduzidos pela AT e constantes da decisão supra, concluímos pela improcedência total do pedido, com todos os efeitos daí provenientes.
IV- DECISÃO
Termos em que se decide o seguinte:
-
Julgar totalmente improcedente o pedido de anulação da liquidação adicional de Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA) n.º ..., referente ao período de tributação de Maio de 2023 (23/05M), no montante de € 33.290,07.
-
Condenar a Requente no pagamento das custas.
V- VALOR DA CAUSA
De harmonia com o disposto no artigo 306.º n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 33.290,07 (trinta e três mil, duzentos e noventa euros e sete cêntimos).
VI- CUSTAS
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2 e 24.º, n.º 4 do RJAT e 4.º, n.º 5 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em 1.836,00 €, que fica a cargo da Requerente (artigo 536.º, n.º 3, do CPC).
Notifique -se
Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 31 de maio de 2024
Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5, do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
A Árbitra
Clotilde Celorico Palma