Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 121/2024-T
Data da decisão: 2024-07-03   Outros 
Valor do pedido: € 335.527,69
Tema: Contribuição de Serviço Rodoviário; Pressupostos processuais; Ilegitimidade da Requerente.
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SUMÁRIO:

 

 

1. Não sendo a Requerente o sujeito passivo da CSR, nem repercutido legal desta contribuição, não lhe assiste legitimidade processual, a menos que, como interessada, alegue e demonstre factos que suportem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade.

 

2. As facturas de venda de combustível e a declaração genérica de um dos fornecedores não permitem atestar que a Requerente suportou, efectivamente, o tributo contra o qual reage. E esta seria a única forma de lhe poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente acção arbitral.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Carla Castelo Trindade (Presidente), Hélder Faustino (relator) e Rui Miguel Zeferino Ferreira, designados pelo CAAD para formar o Tribunal Arbitral Colectivo, constituído em 9 de Abril de 2024, acordam no seguinte:

 

  1. RELATÓRIO

 

1. No dia 29 de Janeiro de 2024, na sequência da presunção de indeferimento tácito de um pedido de revisão oficiosa apresentado em 30 de Junho de 2023, junto da Alfândega de Setúbal, o contribuinte A..., S.A., com sede em ..., ...-..., com número de pessoa colectiva n.º ... (“Requerente”), formulou pedido de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (“Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária – RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“Requerida” ou “AT”), solicitando a anulação da decisão de indeferimento tácito sobre o pedido de revisão oficiosa apresentado em 30 de Junho de 2023; a anulação dos actos de repercussão de Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”), respeitantes ao período compreendido entre 30 de Junho de 2019 e 31 de Dezembro de 2022, e a anulação, nessa medida,  dos actos de liquidação de CSR que lhes deram origem  e, bem assim, o reembolso à Requerente do valor de CSR indevidamente suportado, o qual ascende a € 335.527,69, acrescido dos respectivos juros indemnizatórios.

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.

 

2.1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitros, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os presentes signatários como árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, os quais comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

2.2. As partes foram devidamente notificadas das designações, não tendo manifestado vontade de recusar as mesmas, nos termos conjugados do disposto no artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

2.3. Por requerimento de 20 de Fevereiro de 2024, a Requerida solicitou a identificação do(s) acto(s) de liquidação cuja legalidade a Requerente pretende ver sindicada. Por Despacho, na mesma data, do Presidente do CAAD, ficou a matéria remetida para decisão do Tribunal Arbitral a constituir.

 

2.4. Por requerimento de 26 de Fevereiro de 2024, no exercício, por iniciativa própria, do direito ao contraditório, a Requerente apresentou resposta ao Requerimento da Requerida. Por Despacho, na mesma data, do Presidente do CAAD, ficou a matéria remetida para decisão do Tribunal Arbitral a constituir.

 

2.4.1. Entende a Requerente que tendo em conta a diminuta capacidade de arquivo do Portal do CAAD, juntou apenas como acto impugnado a primeira página do pedido de revisão oficiosa e respectivo comprovativo de entrega, em 30 de Junho de 2023, junto da Requerida.

 

2.4.2. Alega que apresentou o pedido de pronúncia arbitral na qualidade de repercutido, o que significa que muito estranho seria que, para além das facturas nas quais a CSR lhe foi repercutida pelo sujeito passivo (fornecedor do combustível) e da declaração deste, atestando que procedeu à repercussão legal da CSR e a entregou nos cofres do Estado, a Requerente também tivesse na posse dos actos de liquidação e respectivos documentos de cobrança do ISP e da CSR do sujeito passivo.

 

2.4.3. Defende que na generalidade dos impostos directos, como é o caso do ISP / CSR, muito embora se pretenda onerar os adquirentes / consumidores, por serem estes os titulares da capacidade contributiva, por razões de praticabilidade, a lei qualifica como sujeitos passivos os vendedores, que procedem à introdução dos bens no consumo.

 

2.4.4. E que os adquirentes / consumidores, não sendo sujeitos passivos de imposto, integram a categoria de contribuintes, uma vez que suportam o encargo económico do imposto, através do mecanismo da repercussão legal.

 

2.4.5. Que da última alteração legislativa ao Código dos IEC, introduzida pela Lei n.º 24‑E/2022, de 30 de Novembro, resulta expressamente a obrigatoriedade de repercussão da carga económica dos impostos especiais sobre o consumo nos respectivos consumidores.

 

2.4.6. E que a Lei Geral Tributária (“LGT”) se encarrega de atribuir, de forma expressa, legitimidade aos repercutidos, para que estes possam lançar mão dos meios de defesa / reacção judiciais ou arbitrais, estendendo a legitimidade àqueles que, como a Requerente, suportam o encargo do imposto por repercussão legal.

 

2.4.7. E que todos os mecanismos legais a que alude o n.º 4 do artigo 18.º da LGT estejam ao alcance dos repercutidos, sob pena de manifesta e inaceitável restrição do acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva, tal como plasmado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).

 

2.4.8. Pelo que, tendo em conta a atribuição de legitimidade aos repercutidos, não lhes poderá ser exigido que juntem documentos que não estão na sua posse, mas são do conhecimento da Requerida, sob pena de esvaziamento do direito que lhes assiste de verem anulados os actos de repercussão e os actos de liquidação que lhes deram origem.

 

2.4.9. Defende que os actos de liquidação de ISP / CSR apresentados pelos sujeitos passivos (fornecedores de combustível) em causa ( B..., S.A. e C..., Lda.), cuja anulação se pretende, são de conhecimento oficioso da Requerida.

 

2.4.10. E que ainda que o Tribunal Arbitral a constituir venha a considerar necessário para a boa decisão da causa notificar a B..., S.A. e a C..., Lda., para que venham fazer prova do pagamento do imposto, tal informação está já na posse da Requerida, pelo que a mesma, em cumprimento dos princípios da legalidade e do inquisitório a que está obrigada no âmbito do procedimento arbitral e administrativo, não deverá invocar o desconhecimento de tais actos.

 

2.4.11. Conclui que os actos de liquidação da CSR que introduziram no consumo o combustível vendido à Requerente e que a levaram a suportar a CSR, por repercussão legal, incluem o combustível vendido à Requerente e a todos os outros clientes da B..., S.A. e C..., Lda., pelo que a junção de actos de liquidação apenas referentes ao combustível em causa nos presentes autos constitui uma prova impossível.

 

2.5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 9 de Abril de 2024.

 

3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.

 

4. A Requerida apresentou resposta em 12 de Maio de 2024, defendendo-se por excepção(ões) e impugnação. Juntou, ainda, o processo administrativo. Em relação às excepções, a Requerente apresentou em 24 de Maio de 2024, resposta escrita, em respeito do princípio do contraditório.

 

5. Tendo sido exercido o contraditório em matéria de excepção(ões), e uma vez que esta matéria pode ser apreciada no âmbito da decisão final, entendeu o Tribunal Arbitral não ser necessária a prova testemunhal para a justa composição do litígio. Neste sentido, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.

 

6. A Requerente apresentou requerimento em 21 de Junho de 2024 a renovar o pedido feito na sua petição inicial para que fosse ouvida a testemunha arrolada.

 

6.1. Por despacho de 3 de Julho de 2024 veio o Tribunal indeferir o requerimento referido no número precedente por não considerar necessária a produção de prova testemunhal visto que (i) as questões em apreço são essencialmente de direito, (ii) a prova testemunhal teria necessariamente de cingir-se à interpretação do contexto dos documentos juntos aos autos, não podendo incidir nos factos que esses documentos provam, nos termos do artigo 393.º do Código Civil e que (iii) a decisão de dispensa de prova já havia sido determinada por despacho de 5 de Junho de 2024, recaindo tal decisão na autonomia do tribunal arbitral na condução do processo e na livre determinação das diligências de produção de prova necessárias, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção dos árbitros, em conformidade com o disposto nas alíneas a) e e) do artigo 16.º do RJAT.

 

  1. SANEAMENTO

 

7. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

 

8. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão devidamente representadas (cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

9. Em face das excepções invocadas (relativas à competência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, à ilegitimidade da Requerente, à ineptidão do pedido de pronúncia arbitral por falta de objecto e à caducidade do direito de açcão), impõe-se o conhecimento prioritário das mesmas (vd., ponto IV abaixo). Seguir-se-á – se a resposta àquelas o permitir – a análise do mérito do pedido.

 

 

  1. FUNDAMENTAÇÃO

 

 

III.1. MATÉRIA DE FACTO

 

 

10. Com relevância para a presente decisão, consideram-se assentes e provados os seguintes factos:

 

10.1. A Requerente é uma sociedade comercial que, no âmbito da actividade que desenvolve (siderurgia e fabricação de ferro-ligas e fabricação de gases industriais), procede regularmente à aquisição de combustíveis.

 

10.2. A B..., S.A. é uma empresa que comercializa combustíveis (Documentos n.º 6 e Documento n.º 9 juntos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

10.3. A C..., Lda. é uma empresa que comercializa combustíveis (Documentos n.º 3 a n.º 6 juntos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

10.4. Entre 30 de Junho de 2019 e 31 de Dezembro de 2022, a Requerente adquiriu à B..., S.A. e à C..., Lda., 3.022.272 litros de combustível (Documentos n.º 3 a n.º 6 juntos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

10.5. A B..., S.A. emitiu uma declaração com o seguinte teor: “(…) declara, para os devidos efeitos legais, que a Contribuição de Serviço Rodoviário entregue, na qualidade de sujeito passivo, junto dos cofres do Estado – Autoridade Tributária e Aduaneira, por referência ao combustível fornecido à empresa A..., S.A., foi por si integralmente repercutida na esfera da referida empresa (…)” (Documento n.º 9 junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

10.6. Em 30 de Junho de 2023, a Requerente deduziu, junto da Alfândega de Setúbal, um pedido de revisão oficiosa com vista à anulação dos actos de liquidação e repercussão de CSR respeitantes ao período decorrido entre 30 de Junho de 2019 e 31 de Dezembro de 2022 – pedido sobre o qual não recaiu, até ao momento, qualquer decisão (Documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

10.7. Para tanto, a Requerente alegou que com a aquisição do referido combustível, em resultado da repercussão efectuada pela B..., S.A. e C..., Lda., suportou, a título de CSR, a quantia global de € 335.527,69 (Documentos n.º 1 a n.º 9 juntos com o pedido de pronúncia arbitral).

 

10.8. Em 29 de Janeiro de 2024 foi apresentado o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

 

III.2. FACTOS NÃO PROVADOS

 

11. Não foi feita prova de que tenha sido a Requerente a suportar economicamente o imposto em causa, dado que, para fazer tal prova, seria necessário demonstrar duas vertentes cumulativas: i. Que a CSR foi repercutida à Requerente, quais os montantes e em que períodos; ii. Que foi a Requerente que suportou em definitivo o encargo da CSR, ou seja, que no preço dos bens / serviços que presta aos seus clientes não estava contemplada a repercussão de CSR (e/ou a medida em que não o estava), por forma a poder sustentar que suportou, de forma efectiva, o encargo do imposto. A Requerente limitou-se a juntar as facturas de aquisição de combustível aos seus fornecedores de combustíveis e uma declaração genérica da B..., S.A., as quais não contêm os elementos concretos indispensáveis à comprovação do acima exposto.

 

12. De notar, ainda, que das facturas apresentadas pela Requerente apenas constam valores referentes ao IVA, não contendo aquelas qualquer referência aos montantes pagos a título de CSR e/ou ISP, sendo absolutamente omissas nesse aspecto.

 

13. Entende o Tribunal Arbitral que nenhum dos elementos de prova apresentados, sustentam qualquer facto invocado no pedido de pronúncia arbitral, nomeadamente, que o valor pago pelo combustível que adquiriu aos seus fornecedores de combustíveis tenha incluído a totalidade (ou sequer, parte) da CSR e/ou ISP paga pelo sujeito passivo, nem constitui prova bastante quanto aos valores alegadamente suportados a título de CSR e/ou ISP, o que deve ser devidamente valorado em termos de prova, sendo certo que impendia sobre a Requerente o ónus de tal prova (cfr. artigo 74.º, n.º 1, da LGT).

 

14. Tal como impendia sobre a Requerente o ónus de provar que o preço dos serviços / bens que presta aos seus clientes, não comporta, a jusante, a repercussão da CSR e/ou ISP, por forma a poder sustentar que suportou de forma efectiva o encargo daqueles tributos.

 

 

III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA FIXAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

15. O Tribunal Arbitral não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

16. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objecto do litígio no direito aplicável (cfr. artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

17. A convicção do Tribunal Arbitral fundou-se na livre apreciação das posições assumidas pelas Partes (em sede de facto) e no teor dos documentos juntos aos autos.

 

 

  1. APRECIAÇÃO DE EXCEPÇÕES E QUESTÕES PRÉVIAS QUE PODEM OBSTAR (OU NÃO) AO CONHECIMENTO DO MÉRITO DO PRESENTE PEDIDO ARBITRAL

 

 

IV.1. INTRODUÇÃO E SEQUÊNCIA

 

18. A questão jurídica material ou de fundo reporta-se à ilegalidade (ou não) da CSR, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, por ser (ou não) um tributo desconforme ao Direito da União Europeia, nomeadamente com o n.º 2 do artigo 1.º da Directiva 2008/118/CE, de 16 de Dezembro de 2008, tendo por base o entendimento sufragado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia de 7 de Fevereiro de 2022, no Processo n.º C-460/21.

 

19. Porém, na resposta, a Requerida invoca várias excepções (muito bem resumidas na resposta da Requerente às excepções invocadas), que, a proceder alguma, obstam ao conhecimento do pedido – e que, por isso, são de decisão prévia e antecedente.

 

20. A decisão arbitral tem de conhecer, em primeiro lugar, estas questões – as quais, a proceder, algum delas, prejudicam o conhecimento das restantes (das questões materiais suscitadas nos presentes autos) – cfr. artigo 608.º do CPC.

 

IV.2. A POSIÇÃO DAS PARTES

 

21. Efectua-se, de seguida, a súmula dos argumentos das partes, sem prejuízo de mais desenvolvimentos aquando da decisão destes temas na decisão arbitral.

 

 

IV.2.1. QUANTO À (IN)COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL

 

22. A Requerida invoca a incompetência material do tribunal: i) Por falta de vinculação da AT, ao abrigo do disposto no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março; ii) Por falta de competência do Tribunal Arbitral para fiscalizar a legalidade de normas em abstracto e para apreciar pedidos de restituição de tributos; e iii) Por estarem em causa atos de repercussão.

 

23. A Requerente considera que a concluir-se pela qualificação da CSR como imposto, inexistem quaisquer obstáculos para concluir pela competência material do Tribunal Arbitral, bem como pela vinculação da AT. E que contrariamente ao que a AT parece fazer crer, o objecto do pedido de pronúncia arbitral não é a fiscalização da legalidade de normas em abstracto, nem tampouco a execução de qualquer sentença. A Requerente formulou um pedido de pronúncia arbitral sobre a legalidade dos actos de liquidação de CSR referente ao período decorrido entre 31 de Julho de 2019 e 31 Dezembro de 2022, invocando como causa de pedir, a desconformidade da CSR com a Directiva 2008/118/CE, do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008. Assim, o que a Requerente pretende é a declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de CSR, que originaram os actos de repercussão na sua esfera jurídica, bem como a declaração de ilegalidade destes últimos, em razão da desconformidade daqueles com o Direito Comunitário. Por outro lado, a declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de CSR, implica necessariamente a declaração de ilegalidade dos subsequentes actos de repercussão na esfera da Requerente. Contrariamente ao que alega a AT, os actos de repercussão que fazem parte do objecto dos presentes autos, correspondem efectivamente a um caso de repercussão legal, na medida em que a CSR se reconduz ao quadro dos IECs, a obrigação de repercussão da carga económica do imposto resulta directamente de uma imposição legal, motivo pelo qual a relação de repercussão integra ainda a relação jurídico-tributária e, consequentemente, a relação de liquidação.

 

 

IV.2.2. SOBRE A ILEGITIMIDADE DA REQUERENTE

 

24. A Requerida estriba a alegada falta de legitimidade processual activa da Requerente, nos seguintes fundamentos: i) Por um lado, afirma que, de acordo com o regime previsto nos artigos 15.º e 16.º do Código dos IECs, apenas os sujeitos passivos são titulares do direito à revisão do acto tributário e que, não sendo a Requerente sujeito passivo de ISP / CSR, carecia de legitimidade processual activa para apresentar o pedido de revisão oficiosa que antecedeu o presente pedido de pronúncia arbitral, situação que se refletiria necessariamente na legitimidade para apresentar o presente pedido de pronúncia arbitral; ii) Por outro lado, afirma que, ainda que assim não fosse, a ilegitimidade processual da Requerente sempre decorreria do facto de, alegadamente, não estar em causa uma situação de repercussão legal, mas meramente económica; iii) Por último, invoca ainda a AT que a Requerente não fez prova de que o preço pago pelo combustível que adquiriu às suas fornecedoras tem incluído o valor da CSR, nem que suportou, a final, o encargo do imposto.

 

25. A Requerente entende que o regime especial consagrado nos artigos 15.º e 16.º do CIEC não é aplicável à CSR, pela simples razão de que que a remissão para o Código dos IEC opera, exclusivamente, quanto às matérias de liquidação, cobrança e pagamento da CSR, deixando-se de fora – ou seja, sujeitando ao respectivo regime geral – todas as restantes matérias, entre as quais as atinentes aos meios e prazos de reaçcão para contestar este tributo. Por outro lado, ainda que tal regime fosse aplicável à CSR – o que não se admite –, a exclusão dos repercutidos legais do respectivo âmbito subjetivo de aplicação violaria, de forma grosseira e flagrante, os princípios constitucionais do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, previstos no artigo 20.º da CRP. Nesta senda, o interesse dos contribuintes em não suportar impostos ilegais, nomeadamente por desconformes ao Direito Comunitário, sempre seria um interesse legal e constitucionalmente salvaguardado, pelo que o legislador não poderia impedir o acesso ao contencioso judicial ou arbitral, fechando a porta ao acesso à revisão oficiosa precedente. A Requerente não pode concordar com a posição sustentada pela AT, no sentido de que a repercussão da CSR assume natureza meramente económica. Com efeito, da última alteração legislativa ao Código dos IEC, introduzida pela Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Novembro, resulta expressamente a obrigatoriedade de repercussão da carga económica dos impostos especiais sobre o consumo nos respectivos consumidores. Por fim, cumpre esclarecer que a argumentação aduzida pela AT assenta num evidente equívoco, pois parece confundir o pressuposto da legitimidade processual com a legitimidade substantiva. Assim, uma coisa é saber se as partes são os sujeitos da pretensão formulada para efeitos do pressuposto processual da legitimidade, outra, bem diversa, é apurar se a pretensão que a Requerente vem exercer nos autos existe efectivamente, ou seja, se é a Requerente a efectiva titular do direito que pretende exercer, pelo que contende única e exclusivamente com o mérito da acção. No que concerne à concreta questão da prova da repercussão dos montantes de CSR aqui em causa – questão que apenas se colocará acaso se venha a concluir que a repercussão de CSR não deriva de imposição legal –, o TJUE já veio esclarecer, no despacho de 7 de Fevereiro de 2022, proferido em sede reenvio prejudicial, requerido no âmbito do Processo n.º 564/2020-T, que “a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos”. Quer isto dizer que a prova da repercussão apenas poderia contender com a legitimidade substantiva da Requerente, enquanto requisito de procedência do pedido por si formulado, mas nunca com a legitimidade activa enquanto pressuposto processual. Relativamente à alegada falta de legitimidade substantiva da Requerente, sempre se dirá que a prova da repercussão resulta, desde logo, da declaração emitida pelo seu fornecedor de combustível,  B..., S.A., que atesta a repercussão de parte dos montantes de CSR aqui em causa. Acresce que, a existência da repercussão resultaria, em última instância, das regras da experiência comum. Com efeito, reconduzindo-se a CSR ao quadro dos IECs, as regras da experiência comum sempre levariam a concluir que os fornecedores de combustível da Requerente repercutiram a CSR, suportada a montante, nas facturas de venda de combustível.

 

 

IV.2.3. SOBRE A INEPTIDÃO DO PEDIDO ARBITRAL

 

26. A Requerida considera ser “exigível à Requerente que proceda à identificação dos atos tributários impugnados, formulando uma pretensão concreta por referência a esses atos e que indique os factos essenciais e concretos que, alegadamente, justificam a sua pretensão.”. E que “a identificação das liquidações não é feita pela Requerente, nem é possível à AT suprir tal omissão, dada a impossibilidade absoluta em estabelecer qualquer correlação/correspondência (datas, quantidades de produto, valores) entre as faturas apresentadas pela Requerente e os atos de liquidação que, a montante, estiveram subjacentes à introdução no consumo (DIC) dos produtos que vieram a ser adquiridos pela Requerente às suas fornecedoras”.

 

27. A Requerente julga ter identificado cabalmente a causa de pedir dos presentes autos – ilegalidade por violação do disposto no n.º 2, do artigo 1.º da Directiva 2008/118, de 16 de Novembro de 2008, e o pedido, a saber: i) a anulação da decisão de indeferimento tácito que recaiu sobre o pedido de revisão oficiosa apresentado em 30 de Junho de 2023; ii) a declaração de ilegalidade dos actos de repercussão da CSR consubstanciados nas facturas referentes ao gasóleo rodoviário adquirido pela Requerente no decurso do período compreendido entre 30 de Junho de 2019 e 31 de Dezembro de 2022, iii) a declaração de ilegalidade das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela Requerida, com base nas Declarações de Introdução no Consumo submetidas pelos respectivos fornecedores de combustíveis, e consequente anulação de tais actos de liquidação nessa medida e, consequentemente, iv) o reembolso das quantias suportadas a esse título, acrescido de juros indemnizatórios. Para além de não poder exigir-se à Requerente que identifique os actos de liquidação que não estão, nem nunca estiveram na sua posse, tal questão revela-se totalmente desnecessária para apurar da legalidade da cobrança de CSR à Requerente e do consequente direito ao reembolso das quantias indevidamente suportadas a esse título.

 

 

IV.2.4. SOBRE A CADUCIDADE DO DIREITO À ACÇÃO

 

28. A Requerida defende que o pedido de revisão oficiosa, que antecedeu a presente acção, foi apresentado de forma intempestiva, circunstância que acaba por ter também como consequência a intempestividade do pedido de pronúncia arbitral agora apresentado pela Requerente. A AT entende não ser aplicável ao caso sub judice o prazo de 4 anos previsto na segunda parte do n.º 1, do artigo 78.º da LGT, escudando-se no facto de não ter havido qualquer erro imputável ao serviços.

 

29. A Requerente entende que, no caso em apreço, o erro de direito em que se fundou o pedido de revisão provém da desconformidade da lei que procedeu à criação da CSR com o disposto na Directiva 2008/118/CE, que se materializou nos vários actos de liquidação de CSR que posteriormente viriam a ser repercutidos à Requerente, no período compreendido entre 30 de Junho de 2019 e 31 de Dezembro de 2022. Que a Directiva em questão goza de efeito directo na ordem jurídica interna dos Estados Membros da União Europeia, como aliás decorre do disposto no artigo 8.º, n.º 4 da CRP. E que o TJUE reconhece aos cidadãos o direito de invocar normas comunitárias, emergentes de Directivas Europeias, perante os tribunais nacionais, contanto que o prazo de transposição já haja decorrido (vd. Van Gend en Loos, Van Duyn v Home Office, Foster v British Gas).

 

 

IV.3. DECISÃO

 

IV.3.1. QUANTO À (IN)COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL

 

 

30. O Tribunal Arbitral é competente para conhecer da ilegalidade de liquidações de CSR, por se tratar de um imposto, em linha com a argumentação constante da decisão do processo arbitral 304/2022-T, de 5 de Janeiro de 2023. Neste sentido, reproduzem-se alguns excertos da mencionada decisão:

 

«Baseando-nos em todas os anteriores contributos jurisprudenciais e doutrinários, mas sobretudo no último acórdão citado do STA, concluímos que não é o simples facto de um tributo ter, desde logo, a designação de “contribuição” (ac. TC n.º 539/2015) e nem o facto de esse tributo ter a respetiva receita consignada (ac. TC n.º 232/2022), que o qualifica automaticamente como “contribuição financeira”; antes é, para tal, necessário, como judicia o STA, que esse tributo tenha com finalidade compensar prestações administrativas realizadas de que o sujeito passivo seja presumidamente beneficiário.”

Com efeito, o sistema tributário comporta tributos que têm a designação de “contribuições” e são verdadeiros impostos, como se extrai, desde logo, do n.º 3 do art.º 4.º da LGT.

Por outro lado, o sistema tributário comporta igualmente impostos que, ao arrepio do princípio da não consignação da receita dos impostos (estabelecido no art.º 7.º da Lei de Enquadramento Orçamental[5]), têm a sua receita consignada (vg. ac. TC n.º 369/99, de 16.06.1999, proc. 750/98).

Por conseguinte, nem o nomen juris “contribuição”, nem a afetação da receita a uma finalidade específica são suficientes para qualificar um tributo como “contribuição financeira”.

O elemento decisivo para essa qualificação é a existência de uma estrutura de comutatividade que se estabelece entre o ente beneficiário da receita e os sujeitos passivos do tributo.

[...]

Ou seja, para que possamos afirmar estar-se perante uma “contribuição financeira”, é necessário que as prestações públicas que constituem a contrapartida coletiva do tributo beneficiem ou sejam causadas pelos respetivos sujeitos passivos.

[...]

Entendemos, assim, que o que distingue uma “contribuição financeira” de um imposto de receita consignada é a necessária circunstância, de, na primeira, a atividade da entidade pública titular da receita tributária ter um vínculo direto e especial com os sujeitos passivos da contribuição. Tal vínculo pode consistir no benefício que os sujeitos passivos, em particular, retiram da atividade da entidade pública, ou pode consistir num nexo de causalidade entre a atividade dos sujeitos passivos e a necessidade da atividade administrativa da entidade pública.

A Contribuição de Serviço Rodoviário não cabe em nenhuma destas hipóteses. Desde logo, a CSR não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva. A contribuição é estabelecida a favor da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art. 3.º, n.º 2 da Lei n.º 55/2007), sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (art.º 6.º). No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (art. 3.º, n.º 2 da Lei n.º 55/2007).

Em segundo lugar, também não se encontra base legal alguma para afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da tarefa administrativa em causa – que no caso será a “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas” – é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários. Pelo contrário, o art.º 2.º da Lei n.º 55/2007 diz expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E.P. E., (...), é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.”

Portanto, apesar de ser visível, de forma clara, o elemento de afetação da contribuição para financiar a atividade de uma entidade pública não territorial – a EP - Estradas de Portugal, E. P. E. – não é de modo algum evidente a existência, pelo contrário, afigura-se inexistir um “nexo de comutatividade coletiva” entre os sujeitos passivos e a responsabilidade pelo financiamento da respetiva atividade, ou entre os sujeitos passivos e os benefícios retirados dessa atividade.

A Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art.º 1.º da Lei 55/2007). O financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., é assegurado pelos respetivos utilizadores (art.º 2.º). São, estes, como se conclui, os sujeitos que têm um vínculo com a atividade da entidade titular da contribuição e com a atividade pública financiada pelo tributo; são eles os beneficiários, e são eles os responsáveis pelo seu financiamento.

No entanto, a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do art.º 4.º n.º 1, al. a) do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”, não existindo qualquer nexo específico entre o benefício emanado da atividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos respetivos sujeitos passivos.

Embora a Autoridade Tributária afirme que a posição dos revendedores de produtos petrolíferos é a de uma “espécie de substituição tributária”, não entendemos assim, pois tal entendimento não tem apoio na lei.

Nos termos do n.º 1 do art.º 20.º da LGT, “a substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte”.

Para que estivéssemos, no caso presente, perante uma situação de substituição tributária, era necessário que os consumidores que pagam o preço dos combustíveis aos revendedores estivessem na posição de “contribuintes”.

Sobre o conceito de contribuintes, o n.º 3 do art.º 18.º diz que “o sujeito passivo é a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.” De onde se retira que o contribuinte é uma das espécies da categoria “sujeitos passivos” e estes são as pessoas (ou entidades) que estão obrigadas ao pagamento da prestação tributária, o que não acontece com os consumidores dos combustíveis. Concluímos, assim, que não estamos perante uma situação de substituição, pelo que os sujeitos passivos da CSR são igualmente os respetivos contribuintes diretos.

Ainda poderia acrescentar-se que o universo de entidades que beneficiam ou dão causa à atividade financiada pela CSR não é um grupo delimitado de pessoas, mas é toda a população de um modo geral. E que o efetivo sacrifício fiscal, suportado através de uma repercussão meramente económica, não é suportado apenas pelos que efetivamente utilizam a rede de estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal S.A., mas também pelos que utilizam vias rodoviárias que não se incluem nessa rede.

Por conseguinte, conclui também este tribunal que a Contribuição de Serviço Rodoviário, apesar do seu nomen juris e de a sua receita se destinar a financiar uma atividade pública específica, não tem o caráter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou coletiva que é necessária à contribuição financeira.

[...]”.

 

31. Em relação aos “actos de repercussão” impugnados, o Tribunal Arbitral não pode conhecer dos mesmos, pois não são actos tributários, não estando prevista a sua sindicabilidade (cfr. artigo 2.º do RJAT). No entanto, como foram, em simultâneo, contestados pela Requerente os actos de liquidação de CSR, é sobre estes que recai a pronúncia do Tribunal Arbitral.

 

 

IV.3.2. SOBRE A EXCEPÇÃO DE ILEGITIMIDADE DA REQUERENTE

 

 

32. Não consta do RJAT a regulação do pressuposto processual da legitimidade, como possibilidade de intervenção num processo contencioso, cuja conformação jurídica tem, assim, de proceder do direito subsidiariamente aplicável, como previsto na closure rule do artigo 29.º, n.º 1, do RJAT, em concreto e de acordo com a natureza dos casos omissos, das normas de natureza processual do CPPT, do CPTA e do CPC.

 

33. A regra geral do direito processual, que emana do artigo 30.º do CPC, é a de que é parte legítima quem tem “interesse directo” em demandar[1], sendo considerados titulares do interesse relevante, para este efeito, na falta de indicação da lei em contrário, “os sujeitos da relação controvertida”. A mesma regra é reproduzida no processo administrativo, que confere legitimidade activa a quem “alegue ser parte na relação material controvertida” (cfr. artigo 9.º, n.º 1, do CPTA).

 

34. A legitimidade no processo é, pois, recortada pelo conceito central de “relação material” que, no âmbito fiscal, há de ser uma relação regida pelo direito tributário, à qual subjaz um acto tributário[2], cujo sujeito passivo é delimitado no artigo 18.º, n.º 3 da LGT, como “a pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável.”.

 

35. No domínio tributário, a legitimidade não pode deixar de ser enquadrada no âmbito das relações jurídicas tributárias que se estabelecem entre a AT, agindo como tal, e as pessoas singulares ou colectivas e entidades equiparadas (cfr. artigo 1.º, n.º 2, da LGT).

 

36. O CPPT contém uma norma específica sobre a legitimidade no processo judicial tributário, atribuindo-a aos “contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (cfr. artigo 9.º, n.º 1 e n.º 4, do CPPT). No mesmo sentido, ainda que referindo-se somente à legitimidade no procedimento, a LGT determina no seu artigo 65.º que “têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.”.

 

37. De notar que, em relação aos responsáveis (sujeitos passivos não originários, tal como os substitutos), o legislador teve a preocupação de justificar a razão pela qual lhes é concedida legitimidade processual. Quanto aos responsáveis solidários, deriva “da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal” (cfr. artigo 9.º, n.º 2, do CPPT). No tocante aos responsáveis subsidiários, está associada ao facto “de ter sido contra eles ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários” (cfr. artigo 9.º, n.º 3, do CPPT). Em ambas as situações, apesar de não corresponderem à figura do sujeito passivo originário, constitui-se uma relação jurídico‑tributária entre estas categorias de sujeitos passivos derivados e o credor tributário Estado, que encerra prestações – principais (de pagamento da obrigação tributária) e acessórias, o que sucede igualmente com o substituto.

 

38. Na situação em análise, a Requerente invoca a qualidade de repercutido legal para deduzir a acção arbitral.

 

39. Importa começar por notar que a figura do repercutido não se enquadra na categoria de sujeito passivo, nos termos do citado artigo 18.º, n.º 3, da LGT, pelo que, não sendo parte em contratos fiscais, a legitimidade, neste caso, só pode advir da comprovação de que é titular de um interesse legalmente protegido (cfr. artigo 9.º, n.º 1 e n.º 4, do CPPT).

 

40. Apesar de o repercutido não ser sujeito passivo, a alínea a) do n.º 4 do artigo 18.º da LGT pressupõe que assiste o “direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias” a quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”, estendendo a posição jurídica adjectiva ao repercutido (apesar de não o considerar sujeito passivo), na condição de estarmos perante um caso de “repercussão legal”. A lei implica desta forma que o repercutido legal é titular de um interesse legalmente protegido, condição exigida para que possa intervir em juízo (cfr. artigo 9.º, n.º 1 e n.º 4, do CPPT).

 

41. Neste âmbito, assinala JORGE LOPES DE SOUSA: “nos casos de repercussão legal do imposto, apesar de aquele que suporta o encargo do imposto não ser sujeito passivo, é-lhe assegurado o direito de reclamação, recurso e impugnação [art. 18.º, n.º 4, da LGT]. São casos de repercussão legal os do IVA e dos impostos especiais de consumo, pois, em face do respectivo regime legal, a lei exige o pagamento dos tributos aos intervenientes no processo de comercialização dos bens ou serviços, visando fazer com que eles venham a ser pagos pelos consumidores finais, que são os titulares da capacidade contributiva que se pretende tributar.” – cfr. Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6.ª edição, 2011, I volume, p. 115.

 

42. JORGE LOPES DE SOUSA assinala ainda que, em matéria tributária, “é de considerar ser titular de um interesse susceptível de justificar a intervenção no procedimento tributário quem possa ser directamente afectado pelo que nele possa vir a ser decidido, inclusivamente quando esteja em causa uma mera situação de vantagem derivada do ordenamento jurídico, o que será a interpretação que melhor se compagina com o direito constitucionalmente garantido de participação dos cidadãos nas decisões que lhes disserem respeito (art . 267.º, n.º 5, da CRP), como tal se tendo de considerar, necessariamente, todas as que tenham repercussão directa na sua esfera jurídica.” – cfr. Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6.ª edição, 2011, I volume, p. 120. Raciocínio que, atenta a identidade de razões, deve considerar-se aplicável ao processo judicial tributário.

 

43. Com posição similar, LIMA GUERREIRO, em anotação ao artigo 18.º, n.º 4, da LGT, refere que o preceito “admite que, da repercussão do IVA, possa resultar a lesão de um interesse legitimamente protegido (é no mesmo sentido a anotação de Saldanha Sanches ao referido Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, in ‘Fisco’, número 28, pgs. 29 e sgs.). Essa lesão será suficiente para a fundamentação de impugnação judicial ou, se verificasse que este não era o meio apropriado dado o princípio constitucional da tutela plena e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos, da acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido. A fórmula utilizada declara expressamente, no entanto, a possibilidade de reclamação, impugnação ou recurso contra repercussão ilegalmente efectuada pelo sujeito passivo do IVA, imposto de selo ou de outros tributos sujeitos a mecanismo idêntico, pelo que se infere implicitamente não ser em geral a acção para o reconhecimento de um direito ou interesse, mas a impugnação judicial o meio adequado para reacção contra a repercussão ilegal do imposto, por razões certamente resultantes da similitude da lesão causada por acto ilegal de liquidação e da lesão resultante de repercussão ilegal e do facto de, no nosso sistema processual tributário, a impugnação não visar necessariamente efeitos meramente demolitórios do acto tributário mas também a reparação de qualquer lesão sofrida pelo impugnante. [...]. O não ser sujeito passivo não quer dizer obrigatoriamente ilegitimidade para intervir no procedimento, em caso de lesão de direito ou interesse legalmente protegido de qualquer natureza.”.

 

44. No entanto, afigura-se claro que a CSR não constitui um caso de repercussão legal. A Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, que instituiu a CSR, não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal, nem sequer, adiante-se, de repercussão meramente económica, isto, sem prejuízo de ser um dado que, em princípio, as empresas[3] repassam nos preços praticados os gastos em que incorrem, independentemente da sua natureza (e, portanto, incluindo os gastos tributários).

 

45. Infere-se do articulado da Requerente que esta legitima a sua intervenção processual no facto singelo de lhe ter sido repercutida a CSR pelas empresas distribuidoras de combustíveis – B..., S.A. e C..., Lda..

 

46. Contudo, importa, antes de mais, salientar que a repercussão económica não é, por si só, atributo de legitimidade processual, pois o artigo 9.º do CPPT requer a demonstração de um interesse legalmente protegido, ou seja, que mereça a tutela do direito substantivo.

 

47. Acresce que, nos termos da Lei que prevê a CSR (Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto), não existe qualquer referência sobre quem deve recair o encargo do tributo do ponto de vista económico. Basta atentar, para esta conclusão, no artigo 5.º, n.º 1, da citada lei: “A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações.”[4] Assim, o legislador limitou-se a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão da mesma. Nem se identifica como prevendo tal repercussão a norma do artigo 3.º, n.º 1, da mesma lei que diz que a CSR “constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis”.

 

48. Importa também assinalar, com relevância para esta questão, que a remissão para o Código do IEC efectuada pela Lei da CSR é expressamente circunscrita aos procedimentos de “liquidação, cobrança e pagamento”.

 

49. Em resultado do acima exposto, conclui-se, em síntese, o seguinte:

 

  1. A referida Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, define o sujeito passivo e devedor da CSR, mas não contém qualquer regra de repercussão legal, nem se pronuncia sobre a sua repercussão económica;
  2. A Requerente não é consumidor final, o que significa que os gastos em que incorre são presumivelmente, de acordo com as regras da experiência comum, repercutidos no elo subsequente do circuito económico até atingirem os consumidores finais, esses sim, onerados com o encargo económico do imposto e demais gastos incorridos na produção dos bens e serviços;
  3. Se a CSR foi economicamente repercutida pelos distribuidores de combustíveis à Requerente, não há razões para crer que esta, no exercício da sua actividade, não tenha também repassado de alguma forma o encargo da CSR, no todo ou em parte, para os seus clientes.

 

50. Ora, não sendo a Requerente o sujeito passivo da CSR, nem repercutido legal deste tributo, não lhes assiste legitimidade processual, a menos que, como interessada, alegue e demonstre factos que suportem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade, ou seja, a menos que evidencie a existência de um interesse directo e legalmente protegido na sua esfera, passível de justificar a faculdade de demandar a Requerida em juízo, ónus que sobre a mesma impende.

 

51. Contudo, o único facto que a Requerente alega para este efeito é o de lhe ter sido repercutida a CSR. Qualifica esta repercussão, erradamente, como legal, invocando timidamente o disposto no artigo 2.º do Código do IEC.  Recorde-se que essa repercussão – a ser “legal” –, sempre teria de constar de uma norma com essa natureza (a qual, porém, não existe).

 

52. Acresce que, sem prejuízo de a CSR ter sido consagrada como “contrapartida” da utilização da rede rodoviária nacional, a Lei não indica ou sequer sugere sobre quem é que deve constituir encargo.

 

53. Rigorosamente, a Requerente é tão-só cliente comercial do sujeito passivo que liquidou a CSR. Não é o sujeito passivo dos actos tributários – de liquidação de CSR – impugnados. Não integra, nem é parte da relação tributária, nem é repercutido legal. E também não se descortina, nem disso foi feita prova, que tenha sido a Requerente a suportar economicamente o imposto, para o que seria necessário demonstrar duas vertentes cumulativas:

 

  1. Que a CSR foi repercutida à Requerente, quais os montantes e em que períodos;
  2. Que, por sua vez, o preço dos bens / serviços que presta aos seus clientes não comporta a repercussão de CSR (ou a medida em que não a comporta, se se tratar de repercussão parcial), por forma a poderem sustentar que suportou, de forma efectiva, o encargo do imposto e o respectivo quantum.

 

54. A Requerente limitou-se a juntar as facturas dos seus fornecedores de combustíveis – B..., S.A. e C..., Lda. – e, bem assim, uma declaração genérica emitida pela B..., S.A., que estão longe de conter os elementos concretos indispensáveis à comprovação do acima exposto. Com efeito, das facturas anexas ao pedido arbitral apenas constam valores referentes ao IVA, não contendo aquelas qualquer referência a montantes pagos a título de ISP ou CSR, sendo absolutamente omissas nesse aspecto. Não logrou, por isso, atestar que suportou o tributo contra o qual reage. E esta seria, segundo entendemos, a única forma de lhe poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente acção arbitral, tendo em conta que não é sujeito passivo, nas diversas modalidades que o conceito acomoda, nem repercutido legal da CSR.

 

55. Aliás, compreende-se que o legislador não tenha adoptado um conceito irrestrito de legitimidade activa, rodeando-se de algumas cautelas, atentas as dificuldades práticas que uma tal abertura suscitaria, quer na ligação entre o acto de liquidação do imposto, a determinação da sua efectiva repercussão (económica) e a determinação do seu quantum; quer ainda no potencial desdobramento / duplicação de devoluções de imposto indevidas: simultaneamente ao sujeito passivo e ao(s) múltiplo(s) repercutido(s) económicos da cadeia de valor. Ou seja, o mesmo imposto poderia ser restituído a diversos intervenientes, de forma dificilmente controlável e mapeável, com manifesto prejuízo para o Estado, em colisão com os princípios da igualdade e da praticabilidade.

 

56. Por fim, não se diga que a Requerente ficou desprovida de tutela, pois nada impede o ressarcimento, através de uma acção civil de repetição do indevido instaurada contra o seu fornecedor, se reunirem os devidos pressupostos, nos termos declarados pelo Acórdão do Tribunal de Justiça, de 20 de Outubro de 2011, no processo C-94/10, Danfoss A/S (pontos 24 a 29). Nesta perspectiva, está acautelada a observância do princípio fundamental da tutela jurisdicional efectiva (cfr. artigo 20.º da Constituição).

 

57. De assinalar, adicionalmente, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo já entendeu, em relação a um caso de liquidação de Imposto Automóvel (correspondente ao actual Imposto sobre Veículos), que o adquirente não tem legitimidade para impugnar a respectiva liquidação precisamente por não se tratar de um caso de repercussão legal (cfr. Acórdão de 1/10/2003, processo n.º 0956/03).

 

58. Em face do exposto, deve julgar-se verificada a excepção de ilegitimidade da Requerente, constituindo a mesma excepção dilatória de conhecimento oficioso que obsta a que o Tribunal Arbitral conheça a questão de fundo e demais questões suscitadas, com a consequente absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a), e 89.º, n.º 2 e n.º 4, alínea e), do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1, do RJAT.

 

 

IV.3.3. SOBRE A INEPTIDÃO DO PEDIDO ARBITRAL E A CADUCIDADE DO DIREITO À ACÇÃO

 

59. Perante o que se concluiu quanto à ilegitimidade da Requerente, é desnecessário o pronunciamento sobre os temas da ineptidão do pedido arbitral e da caducidade do direito à acção, nos termos do artigo 608.º do CPC, e porque prejudicados pela decisão dada ao tema da ilegitimidade.

 

 

  1. DECISÃO

 

Em face do supra exposto, o Tribunal Arbitral:

 

  • Julga verificada a excepção de incompetência para apreciar a legalidade de actos de repercussão de CSR, absolvendo a Requerida quanto a esta parte da instância;
  • Julga não verificada a excepção de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar a legalidade de actos de liquidação de CSR;
  • Julga verificada a excepção de ilegitimidade (activa) da Requerente, constituindo uma excepção dilatória de conhecimento oficioso que obsta a que o Tribunal Arbitral conheça a questão de fundo e demais questões suscitadas, com a consequente absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a), e 89.º, n.º 2 e n.º 4, alínea e), do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1, do RJAT;
  • Condena a Requerente no pagamento das custas do processo.

 

 

 

  1. VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 335.527,69 (trezentos e trinta e cinco mil, quinhentos e vinte e sete euros e sessenta e nove cêntimos), nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

  1. CUSTAS

 

Custas a cargo da Requerente, no montante de € 5.814,00 (cinco mil, oitocentos e catorze euros), nos termos da Tabela I do RCPAT e do disposto no seu artigo 4.º, n.º 5, e nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 3 de Julho de 2024

 

 

 

Os Árbitros,

 

 

Carla Castelo Trindade, Presidente

 

 

 

 

Hélder Faustino, Relator

 

 

 

Rui Miguel Zeferino Ferreira, Vogal

 

A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 excepto em transcrições que o sigam.

 

 

 



[1] Ou em contradizer, no caso da entidade demandada.

[2] Ou, nalguns casos específicos de sindicabilidade autónoma no processo impugnatório, um acto de fixação da matéria colectável (cfr. artigos 2.º do RJAT e 97.º do CPPT).

[3] No caso, a Requerente é uma empresa sob a forma societária.

[4] Atente-se ainda que o artigo 93.º-A do CIEC, regime para o qual remete o artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto que cria a CSR, prevê o reembolso parcial de imposto incorrido para o gasóleo e gás profissional utilizado pelas empresas de transporte de mercadorias e de transporte colectivo de passageiros, precisamente por não ser um consumo final mas tão-só um consumo intermédio no circuito produtivo de bens e serviços.