DECISÃO ARBITRAL
CAAD: Arbitragem Tributária
Processo nº 139/2014 – T
Tema: IUC – Incidência subjectiva; presunções legais.
I – RELATÓRIO
A. – PARTES
“A”, SA., a seguir designado por Requerente, pessoa colectiva nº …, com sede na Rua …, nº…, …-… Lisboa, veio requerer em 15 de Fevereiro de 2014 a constituição do tribunal arbitral singular em matéria tributária, ao abrigo do prescrito nos art. 2º, nº 1, alínea a) do Decreto – Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico de Arbitragem Tributária -RJAT) e nos arts. 1º, alínea a) e 2º da Portaria nº 112 – A/2011, de 22 de Março, com a finalidade de ser dirimido o litígio que a opõe à Autoridade Tributária e Aduaneira, que doravante será designada por Requerida.
B. – CONSTITUIÇÃO DO TRIBUNAL
1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD em 18/02/2014 e automaticamente notificado ao Requerente e à Autoridade Tributária e Aduaneira em 20/02/2014, tendo o Presidente do respectivo Conselho Deontológico designado o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral Singular, ao abrigo do disposto no art. 6º, nº 1, do RJAT, encargo este que foi aceite, nos termos legalmente estabelecidos.
2. Em 04/04/2014, as Partes foram notificadas dessa designação, nos termos das disposições combinadas do art. 11º, nº 1, alínea b) do RJAT, nos artigos 6º e 7º do Código Deontológico, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro.
3. Nestas circunstâncias, o Tribunal foi constituído em 22/04/2014, nos termos do preceituado na alínea c), do nº 1, do art. 11º do Decreto – Lei nº 10/2011, o que foi notificado às Partes nessa data.
C. – PRETENSÃO
O Requerente pretende que o Tribunal Arbitral declare a ilegalidade e a consequente anulação de 45 actos de liquidação relativos ao Imposto Único de Circulação, respeitantes a 15 veículos identificados nos autos, no valor de 1.927,63 euros, nos termos descritos no Pedido de Pronúncia Arbitral, e, em consequência.
Determine a restituição do imposto que foi pago pelo Requerente, acrescido de juros indemnizatórios.
D. – TRAMITAÇÃO DO PROCESSO
Após a comunicação da data da constituição do Tribunal Arbitral, em 22/04/2014, seguiram-se os posteriores termos processuais na forma seguinte:
- Em 23/04/2014 – Foi notificada a Requerida para, nos termos dos nºs 1 e 2 do art. 17º do RJAT, apresentar resposta no prazo de 30 dias e, querendo, solicitar produção de prova adicional e remeter ao Tribunal Arbitral cópia do processo administrativo, por via electrónica.
- Em 22/05/2014 – A Requerida apresentou Resposta ao Pedido de Pronúncia Arbitral, remeteu despacho de designação dos juristas representantes da Requerida e inseriu na “Plataforma” on line do CAAD o processo administrativo, tendo sido, de tudo, notificado o Requerente.
- Em 30/05/2014 – O Tribunal designou o dia 16/06/2014 para a reunião prevista no art. 18º do RJAT, a pedido e com o acordo das Partes, o que foi notificado às mesmas (anteriormente estava marcada para 02/06/2014).
- Em 16/06/2014 – Realizou-se a reunião prevista no art. 18º do RJAT, de que resultou, o seguinte:
- O Requerente requereu a junção aos autos da Decisão no Proc. nº 129/2014 -T de 06/06/2014 do CAAD e da respectiva Informação da AT, o que o Tribunal deferiu, face à não oposição da Requerida.
- O Requerente requereu a concessão dum prazo de 15 dias para juntar documentos comprovativos dos pagamentos efectuados pelos locatários que compraram os veículos, tendo o Tribunal deferido, concedendo um prazo de 10 dias à Requerida para se pronunciar sobre os mesmos.
- Em 01/07/2014 – O Requerente juntou a documentação a cuja apresentação se tinha obrigado.
- Em 01/09/2014 – A Requerida pronunciou-se sobre a aludida documentação.
- Em 04/09/2014 – O Tribunal fixou a data de 22/09/2014 para inquirição das testemunhas e alegações orais.
- Em 09/09/2014 – O Requerente prescindiu da audição das testemunhas e requereu a produção de alegações escritas, em simultâneo, no prazo de 15 dias.
- Em 16/09/2014 – A Requerida opôs-se à produção de alegações escritas simultâneas.
- Em 18/09/2014 – O Tribunal fixou a data de 22/09/2014 para a reunião tendo por objecto a produção de alegações orais, a qual, a pedido do Requerente, foi adiada, por despacho do Tribunal de 19/09/2014, para 29/09/2014.
- Em 23/09/2014 – A Requerida requereu a junção aos autos de duas decisões arbitrais, o que o Tribunal deferiu em 26/09/2014, com notificação à parte contrária.
- Em 29/09/2014 – Realizou-se a reunião marcada pelo Tribunal em 18/09/2014, da qual resultou o seguinte:
- O Requerente prescindiu do prazo de vista relativamente ao requerimento da
Requerida de 23/09/2014.
- Foi requerido e deferido pelo Tribunal, com o acordo do Requerente, a junção
aos autos de um novo despacho de designação dos representantes da
Requerida.
- Foram produzidas alegações orais pelas Partes.
- Foi fixado o dia 20 de Outubro de 2014 para a prolação da decisão arbitral.
- Em 20/10/2014 – Prolação da decisão arbitral.
E. – PRETENSÃO DO REQUERENTE E SEUS FUNDAMENTOS
A fundamentar o Pedido de Pronúncia Arbitral, o Requerente, alegou, em síntese, o seguinte:
- O Requerente “A”, SA. (e, antes dele, a “B”, cuja carteira de activos foi assumida pelo Requerente) é uma instituição de crédito com forte presença no mercado nacional.
- De entre as suas áreas de actividade, assume especial relevância o financiamento ao sector automóvel, sendo, actualmente, um dos maiores bancos portugueses especializados a operar naquela área particular de financiamento.
- Assim, uma parte substancial da sua actividade reconduz-se à celebração – entre outros – de contratos de locação financeira destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis.
- Estes contratos obedecem, de forma geral, a um guião comum, próprio deste tipo de financiamentos: o Requerente, depois de contactado pelo cliente – que, nessa fase, escolheu já o tipo de veículo que pretende adquirir, as suas características (marca, modelo, acessórios, etc.), e inclusive o seu preço – adquire o veículo ao fornecedor que lhe seja indicado pelo cliente, e procede, de seguida à sua entrega ao referido cliente – que assume, pois, a qualidade de locatário.
- Durante o período que vier a ser estipulado no contrato, este locatário mantém o gozo temporário do veículo – que permanece propriedade do Requerente –, mediante remuneração a entregar ao Requerente sob a forma de rendas; podendo vir a adquirir o veículo, no termo do contrato, mediante o pagamento de um valor residual.
- O gozo do automóvel adquirido durante a vigência do contrato, é do cliente/locatário.
- Os veículos automóveis identificados na listagem junta ao Pedido de Pronúncia Arbitral como ANEXO A foram dados em locação financeira, pelo Requerente, aos clientes aí também identificados.
- Na data do termo destes Contratos, os locatários dos referidos veículos automóveis decidiram exercer a sua opção de compra, a qual lhes é legal e contratualmente assegurada, tendo-se tornado, pois, proprietários dos mencionados veículos e procedido ao pagamento do respectivo valor residual.
- Recentemente, o Requerente foi notificado para proceder ao pagamento dos IUC a que respeitam os actos de liquidação adicional identificados na tabela junta ao Pedido de Pronúncia Arbitral como ANEXO A, o que veio a fazer.
- Alguns destes actos de liquidação respeitam a anos nos quais os veículos em apreço ainda se encontravam sob a vigência de contratos de locação.
- Outros respeitam a anos nos quais os mesmos veículos já haviam sido alienados para os respectivos locatários, por já ter terminado o correspondente contrato de locação.
- A responsabilidade por suportar os IUC cujos actos de liquidação o Requerente contesta jamais pertenceu a este, mas aos respectivos locatários (antes da data da venda) e proprietários (depois daquela venda).
- Não obstante, o Requerente pagou, motivo pelo qual solicita o competente reembolso.
- Por ter procedido ao seu pagamento ao abrigo do regime excepcional instituído pelo Decreto-Lei 151-A/2013 (Regime Excepcional de Regularização de Dívidas Tributárias e à Segurança Social), o Requerente apenas pagou o montante devido (e constante dos referidos actos de liquidação) a título de imposto, tendo-lhe sido dispensado o pagamento dos correspondentes juros compensatórios.
- Pelo que, apenas requer a restituição do montante pago a título de imposto, no valor global de € 1.927,63.
- Quanto aos actos de liquidação referentes aos anos durante os quais os contratos de leasing ainda estavam em vigor, alega o Requerente que:
- O IUC é o tributo que visa onerar os contribuintes pelo custo ambiental e viário que lhes está associado, numa lógica de equivalência e igualdade tributária (art. 1.º do Código do IUC).
- Assim, quanto a este imposto, o legislador optou por onerar o sujeito passivo não de acordo com (e na medida da) sua riqueza – afastando o princípio da capacidade contributiva –, mas sim na justa medida do custo para o ambiente e para as infra‑estruturas viárias que aquele sujeito passivo, através da utilização de veículos automóveis, pode gerar.
- Subjacente a esta regra de incidência está, claro está, o pressuposto do potencial de utilização de veículos automóveis: é precisamente porque tem à sua disposição o direito de utilizar um veículo – gerador de determinado nível de poluição, desgaste das vias, etc. –, que aquele sujeito passivo tem um potencial acrescido de provocar danos ao ambiente e às infra-estruturas, danos esses que justificam, do ponto de vista económico-jurídico, a sua tributação em sede de IUC.
- Segundo o Requerente, o peso da componente ambiental, no IUC, é muito significativo.
- Terá sido, no seu entender, um dos pontos centrais da reforma global da tributação automóvel que, em 2007, promoveu a substituição do (extinto) Imposto Automóvel pelo (actual) IUC, conforme resulta da Proposta de Lei Nº 118/X, que precedeu a Lei nº 22-A/2007.
- Esta preocupação de natureza ambiental encontra-se reflectida na própria configuração do imposto.
- Segundo o Requerente, o art. 3º do CIUC, depois de fixar a regra geral de que a obrigação de pagamento de imposto cabe “[a]os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados”, fez-lhes equivaler, logo de seguida, “os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.
- Na opinião do Requerente, nestes casos – de locação financeira, aquisição com reserva de propriedade, etc. –, o legislador optou, por onerar com a obrigação de imposto não os proprietários, mas os indivíduos a quem cabe o gozo (potencial de utilização) exclusivo dos automóveis: os locatários financeiros, adquirentes com reserva de propriedade ou locatário com opção de compra.
- O que estará em conformidade com o pressuposto subjacente a este imposto: a potencial capacidade de poluição associada à utilização do veículo automóvel sobre que incide a tributação.
- Num contrato de locação financeira, o direito de utilizar o bem é subtraído ao respectivo proprietário – que, nesta sede, se assume como locador – para se integrar na esfera do locatário.
- Com efeito, nos contratos de locação financeira, é o locatário que tem o gozo exclusivo do bem locado, conforme resulta da própria noção de “locação financeira”, consagrada no diploma legal que a regula e do estabelecido em vários preceitos do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho (alterado pelos Decretos-Lei 265/97, de 2 de Outubro, e 30/2008, de 25 de Fevereiro).
- Em conclusão, alega o Requerente que, de acordo com o nº 2 do artigo 3º do Código do IUC, a regra é muito simples: cabendo às entidades nele referidas o gozo exclusivo do veículo automóvel sobre o qual recai o contrato, cabe-lhes também a obrigação de pagar o imposto.
- Designadamente, no que respeita à locação financeira, em que o legislador fiscal reconhece o locatário como “utilizador do veículo locado” (art. 19º), pelo que deve pertencer ao locatário a responsabilidade por indemnizar os custos (ambientais e viários) associados ao potencial de utilização do respectivo veículo.
- Assim sendo, segundo o Requerente, por estarem sujeitos a contratos de locação financeira, os veículos automóveis identificados no ANEXO A junto ao Pedido de Pronúncia Arbitral não foram, em momento algum, utilizados pelo Requerente, mas sim pelos respectivos locatários.
- Pese embora seja o Requerente o seu proprietário, enquanto entidade locadora, este jamais dispôs sequer do potencial de utilização daquelas viaturas.
- Alega, ainda o Requerente que os veículos automóveis já se encontravam na posse dos respectivos locatários no termo do mês da matrícula ou, tratando-se do ano de registo do veículo, noventa dias após a data da matrícula, sem excepção.
- Concluindo que a responsabilidade pela liquidação do imposto pertencia não à entidade locadora, o Requerente, mas aos locatários.
- Locatários esses cuja identidade seria do pleno conhecimento da AT; visto que o Requerente em cumprimento do disposto no artigo 19.º do Código do IUC, deu oportuna e atempada informação da existência dos referidos contratos de locação, assim como da identidade (mormente, número de identificação fiscal) do “utilizador do veículo locado”.
- Pelo que estariam os referidos locatários perfeitamente identificados junto da Conservatória do Registo Automóvel.
- O Requerente conclui dizendo que, vigorando um contrato de locação financeira no momento em que se torna exigível o IUC, é ao locatário, e não ao locador (ainda que seja este que detém a propriedade do veículo), que compete liquidá-lo.
- Não aceitando a tese que o referido imposto consiste responsabilidade de ambas as entidades – locatário e locador.
- Sendo o primeiro o obrigado principal, e pertencendo ao locador a responsabilidade de, em segunda linha, proceder ao pagamento do imposto em falta.
- Isto porque, segundo o Requerente, analisadas as normas legais que foram invocadas, não se vislumbra qualquer indício de que o legislador pretendeu onerar a entidade locadora com a responsabilidade – subsidiária, conjunta, solidária ou qualquer outra de pagamento do imposto, sempre que exista um locatário.
- Quanto aos actos de liquidação referentes aos anos nos quais a propriedade dos veículos já havia sido transmitida para os locatários, por já ter terminado o correspondente contrato de leasing:
- Alega o Requerente, que, nos casos em que o locatário se torna proprietário do veículo, passa a aplicar-se-lhe o disposto no nº 1 do artigo 3º do CIUC.
- Pelo que, a partir do momento em que a locatária adquire o veículo, é apenas a si, já enquanto proprietária do mesmo, que incumbe pagar o IUC e demais encargos associados.
- Segundo o Requerente a ausência de registo não afecta a aquisição da qualidade de proprietário, porque o registo não é condição de validade do contrato de compra e venda, nem condição de produção do efeito translativo do mesmo.
- Alega o Requerente que a AT não se pode servir do argumento da falta de registo de transmissão para vir exigir o imposto em falta ao Requerente.
- Não apenas porque, a não ser válida a transmissão, esta permaneceria a “mera” entidade locadora do veículo em questão – o que, como já se encontra pacificado entre nós e se demonstrou já, determina a sua ilegitimidade para assumir o encargo do IUC.
- Mas, sobretudo, porque a falta de registo não afecta a validade do contrato de compra e venda mas apenas a sua eficácia, e, mesmo esta, unicamente perante terceiros de boa-fé para efeitos do registo; qualificação que a AT indubitavelmente não assume no caso em apreço.
- Conclui que o registo da aquisição de veículos automóveis junto da Conservatória do Registo Comercial não é condição para a transmissão da propriedade, nem afecta a sua validade.
- Por este motivo, pois, devem as liquidações realizadas na esfera do Requerente ser consideradas ilegais e consequentemente anuladas, o que, nesta sede, expressamente requer.
- Conclui o Requerente que todos os actos de liquidação adicional de IUC identificados no ANEXO A junto ao Pedido de Pronúncia Arbitral são ilegais, uma vez que, quanto a todos eles, a responsabilidade de proceder à sua liquidação não compete ao Requerente:
- Quanto àqueles que respeitam a anos durante os quais estava em vigor um contrato de locação: porque essa responsabilidade pertencia ao locatário.
- Quanto àqueles que respeitam a anos nos quais o contrato já havia terminado e o veículo já havia sido transmitido para os locatários: porque essa responsabilidade pertencia justamente a estes locatários, já na qualidade de proprietários.
- Relativamente à cumulação de pedidos, argui o Requerente que o Pedido de Pronúncia Arbitral é deduzido por referência a um vasto conjunto de actos de liquidação adicional de imposto, que se encontram identificados na tabela junta ao Pedido de Pronúncia Arbitral como ANEXO A, constituindo 45 actos de liquidação adicional de IUC, relativos a 15 veículos, e referentes aos anos de 2009 a 2012.
- Entende o Requerente que todos estes actos de liquidação adicional de imposto assentam nos mesmos factos e, bem assim, nos mesmos fundamentos de direito, implicando o apuramento da (i)legalidade das sobreditas liquidações a análise dos mesmos fundamentos de facto e a interpretação e aplicação das mesmas regras e princípios de Direito.
- Pelo que, considerando esta identidade de factos tributários, de fundamentos de facto e de direito e, bem assim, do tribunal competente para a decisão, e atendendo ainda ao elevado número de viaturas e ao volume de documentação necessária para comprovar os factos, requer ao Tribunal, ao abrigo dos artigos 3º do RJAT e 104º do Código do Procedimento e do Processo Tributário, e tendo em consideração o princípio da economia processual, que emita, no âmbito do presente processo arbitral, um juízo de ilegalidade acerca dos 45 (quarenta e cinco) actos de liquidação de imposto aqui em apreço.
F. – RESPOSTA DA REQUERIDA E SEUS FUNDAMENTOS
A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou tempestivamente a sua Resposta, na qual, em síntese, alegou o seguinte:
- Não infirma os 45 actos tributários de liquidação de IUC identificados no Pedido de Pronúncia Arbitral, tendo por objecto os 15 veículos também identificados nos autos, no valor de 1.927,63 euros.
- Impugna a alegada ilegitimidade do Requerente como sujeito passivo do IUC, nas situações em apreço, porquanto, no seu entender:
- O Requerente faz uma leitura enviesada da letra da lei, dado que o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que os sujeitos passivos do IUC são os proprietários, ou os que se encontram nas situações indicadas no nº 2 do art. 3º do CIUC, considerando-os como tal as pessoas em cujo nome se encontram os veículos registados, razão pela qual não foi utilizada neste dispositivo legal a expressão “presumem-se”, mas sim “considerando-se”.
- O normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do nº 1 do artigo 3º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, para efeitos de residência, de localização, entre muitos outros, como, por exemplo, nos artigos 2º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), 2º, 3º e 4º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) e 4º, 17º, 18º e 20º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC).
- Conclui, afirmando que a interpretação feita pelo Requerente de que o legislador consagrou no art. 3º, nº 1 uma presunção é uma interpretação contra legem.
- Alega, ainda, a Requerida que aquela interpretação não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime que impõe a obrigatoriedade do registo automóvel, de modo a evitar que a Autoridade Tributária caia em absoluta incerteza relativamente ao sujeito passivo do IUC, colocando até em risco o decurso do prazo de caducidade, razão pela qual o legislador quis intencional e expressamente que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, para os mencionados efeitos tributários, as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados.
- Alega, também, a Requerida que a mencionada interpretação do Requerente ignora o elemento teleológico da interpretação da lei: a ratio do regime consagrado não só no dispositivo legal em apreço, mas também em todo o CIUC.
- Considera a Requerida que o CIUC procedeu a uma reforma do regime de tributação dos veículos em Portugal, alterando de forma substancial o regime de tributação automóvel, passando os sujeitos passivos do imposto a ser os proprietários constantes do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública. Isto é, o Imposto Único de Circulação passou a ser devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietárias dos veículos.
- Resulta tal conclusão do teor dos debates parlamentares em torno da aprovação do Decreto-Lei nº 20/2008, de 31 de Janeiro, da Recomendação nº 6-B/2012 do Provedor de Justiça e do espírito do CIUC que, tendo sido motivado, no essencial, por uma preocupação ambiental a sua “ratio” é a de tributar os utilizadores dos veículos, os quais, por força da respectiva utilização provocam um custo ambiental.
- Alega, ainda, que a interpretação veiculada pelo Requerente se mostra contrária à Constituição.
- Pois, o sempre propalado princípio da capacidade contributiva não é o único nem o principal princípio fundamental que enforma o sistema fiscal.
- Ao lado deste princípio encontramos outros com a mesma dignidade constitucional, como sejam o princípio da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade.
- Impondo-se por isso que na tarefa interpretativa do artigo 3.º do CIUC o princípio da capacidade contributiva seja articulado, ou se se preferir temperado, com aqueloutros princípios.
- A interpretação proposta pelo Requerente, uma interpretação que no fundo desvaloriza a realidade registal em detrimento de uma “realidade informal” e insusceptível de um controlo mínimo por parte da Requerida, é ofensiva do basilar princípio da confiança e segurança jurídica que deve enformar qualquer relação jurídica, aqui se incluindo a relação tributária.
- Paralelamente, a interpretação dada pelo Requerente é ofensiva do princípio da eficiência do sistema tributário, na medida em que se traduz num entorpecimento e encarecimento das competências atribuídas à Requerida, com óbvio prejuízo para os interesses do Estado Português, de que quer o Requerente quer a Requerida fazem parte.
- Constituindo um entendimento que está nas antípodas daquele princípio e da própria reforma da tributação automóvel, na medida em que, ao pretender desconsiderar a realidade registal, uma realidade que constitui a pedra angular na qual assenta todo o edifício do IUC, gera para a Requerida, e em última instância para o Estado Português, custos administrativos adicionais, entorpecimento do desempenho dos seus serviços, ausência de controlo do tributo e inutilidade dos sistemas de informação registal.
- Finalmente, a argumentação veiculada pelo Requerente representa uma violação do princípio da proporcionalidade, na medida em que o desconsidera totalmente no confronto com o princípio da capacidade contributiva, quando na realidade o Requerente dispõe dos mecanismos legais necessários e adequados à salvaguarda daquela sua capacidade (v.g., o registo automóvel), sem que, contudo, os tenha exercitado em devido tempo.
- Acresce que o Requerente teria que fazer prova idónea dos factos constitutivos do direito que alega em juízo arbitral, o que, segundo a Requerida, não ocorre, por a prova apresentada pelo Requerente não ser por si só, bastante para efectuar prova concludente da transmissão dos veículos em causa.
- Com efeito, apresenta cópias das facturas de vendas, as quais, na óptica da Requerida não constituem documento idóneo para comprovar a venda dos veículos em causa, uma vez que as mesmas não são mais do que um documento unilateralmente emitido pelo Requerente.
- Segundo a Requerida, as facturas não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois aquele documento não revela por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte do pretenso adquirente, mormente neste processo em que o Requerente não juntou prova documental dos meios de pagamento do preço, ou os recibos de quitação da dívida.
- Não faltando casos de emissão de facturas referentes a transmissão de bens e/ou de prestações de serviços que nunca chegaram a concretizar-se.
- Segundo a Requerida, uma factura unilateralmente emitida pelo Requerente não pode substituir o Requerimento de Registo Automóvel, que é um documento aprovado por modelo oficial.
- Assim sendo, a Requerida conclui que os actos tributários em crise não enfermam do alegado erro sobre os pressupostos de facto, na medida em que à luz do disposto no artigo 3º, nºs 1 e 2 do CIUC e do artigo 6º do mesmo código, era o Requerente, na qualidade de proprietário, o sujeito passivo do IUC, uma vez que o IUC visa tributar o proprietário do automóvel, sendo que a propriedade é revelada através do seu registo.
- Sendo responsável pelas custas arbitrais relativas ao presente pedido de pronúncia arbitral, dado que a falta do fornecimento dos dados deu inexoravelmente azo à emissão das liquidações sub judice.
- Quanto à responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais, se o IUC é liquidado de acordo com a informação registal oportunamente transmitida pelo Instituto dos Registos e Notariado, e não de acordo com informação gerada pela própria Requerida, e se o Requerente não procedeu oportunamente à sua actualização no Registo Automóvel, a Requerida não é responsável por esse pagamento.
- Aplicando-se o mesmo raciocínio relativamente ao pedido de condenação no pagamento de juros indemnizatórios, não estando reunidos os pressupostos legais que conferem direito a serem peticionados.
- À luz dos artigos 43º da LGT e 61º do CPPT, o direito a juros indemnizatórios depende da verificação dos seguintes pressupostos: Estar pago o imposto, ter a respectiva liquidação sido anulada, total ou parcialmente, em processo gracioso ou judicial, determinação, em processo gracioso ou judicial, que a anulação se funda em erro imputável aos serviços, o que não ocorreria no caso, uma vez que os actos tributários em crise são válidos e legais, porque conformes ao regime legal em vigor à data dos factos tributários, razão pela qual não ocorreu qualquer erro imputável aos serviços.
G. – QUESTÕES A DECIDIR
Face às posições assumidas pelas Partes conforme os argumentos apresentados, são as seguintes questões que cabe apreciar e decidir:
1.– Questões Principais:
1.1- Interpretação do nº 1 do art. 3º CIUC, de forma a ser determinado se a norma de incidência subjectiva nela inscrita, consagra, ou não, uma presunção legal de incidência tributária, susceptível de ilição, isto é, admite, ou não, que o contribuinte, em nome do qual se encontre o veículo registado na Conservatória do Registo Automóvel, possa demonstrar, através de meios de prova em Direito permitidos, que não é, no período a que o imposto respeita, o seu proprietário, ou quem dele dispõe, afastando, assim, a presunção de sujeito subjectivo do imposto que sobre ele recai.
1.2 - Interpretação do art. 3º do CIUC, de forma a ser determinado se a norma de incidência subjectiva nela inscrita, admite, ou não, a sujeição do locatário ao pagamento do IUC, na vigência do contrato de locação.
2 – Juros indemnizatórios – Existência, ou não, do direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do art. 43º da LGT, no caso de serem anuladas as liquidações e determinado o reembolso da importância peticionada, que teria sido indevidamente paga.
3 – Responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais.
H. – PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
1. O Tribunal Arbitral está regularmente constituído e é material competente, de acordo com o disposto na alínea a), do nº 1, do art. 2º do RJAT (Decreto – Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro).
2. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas, nos termos dos arts. 4º e 10º, nº 2 do RJAT e art. 1º da Portaria nº 112/2011, de 22 de Março.
3. Considerada a identidade do facto tributado, do tribunal competente para a decisão e dos fundamentos de facto e de direito invocados, o Tribunal admite a cumulação de pedidos de declaração de ilegalidade dos actos tributários que são objecto deste processo, uma vez que estão cumpridos os requisitos estabelecidos no art. 3º, nº 1 do RJAT.
4. O processo não enferma de vícios que afectem a sua validade.
I. – MATÉRIA DE FACTO
I. 1 – FACTOS PROVADOS
Com relevância para a apreciação das questões suscitadas, o Tribunal dá como provado os seguintes factos:
1 - O Requerente “A”, SA. (e, antes dele, a “B”, cuja carteira de activos foi assumida pelo Requerente) é uma instituição de crédito com forte presença no mercado nacional.
2 - De entre as suas áreas de actividade, assume especial relevância o financiamento ao sector automóvel, sendo, actualmente, um dos maiores bancos portugueses especializados a operar naquela área particular de financiamento.
3 - Assim, uma parte substancial da sua actividade reconduz-se à celebração – entre outros – de contratos de locação financeira destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis.
4 - Estes contratos obedecem, de forma geral, a um guião comum, próprio deste tipo de financiamento: o Requerente, depois de contactado pelo cliente – que, nessa fase, escolheu já o tipo de veículo que pretende adquirir, as suas características (marca, modelo, acessórios, etc.), e também o seu preço – adquire o veículo ao fornecedor que lhe seja indicado pelo cliente, e procede, de seguida à sua entrega ao referido cliente – que assume, pois, a qualidade de locatário.
5 - Durante o período que vier a ser estipulado no contrato, este locatário mantém o gozo temporário do veículo – que permanece propriedade do Requerente –, mediante remuneração a entregar ao Requerente sob a forma de rendas; podendo vir a adquirir o veículo, no termo do contrato, mediante o pagamento de um valor residual.
6 - O gozo do automóvel adquirido durante a vigência do contrato, é do cliente/locatário.
7 - Os veículos automóveis identificados na listagem junta ao Pedido de Pronúncia Arbitral como ANEXO A foram dados em locação financeira, pelo Requerente, aos clientes aí também identificados.
8 - Na data do termo destes contratos, os locatários dos referidos veículos automóveis decidiram exercer a sua opção de compra, a qual lhes é legal e contratualmente assegurada, tendo-se tornado, pois, proprietários dos mencionados veículos e procedido ao pagamento do respectivo valor residual.
9 - Recentemente, o Requerente foi notificado para proceder ao pagamento dos IUC a que respeitam os actos de liquidação adicional identificados na tabela junta ao Pedido de Pronúncia Arbitral como ANEXO A, o que veio a fazer.
10 - Alguns destes actos de liquidação respeitam a anos nos quais os veículos em apreço ainda se encontravam sob a vigência de contratos de locação, comunicados à Requerida.
11 – E os outros respeitam a anos nos quais os mesmos veículos já haviam sido alienados para os respectivos locatários, por já ter terminado o correspondente contrato de locação.
12 – O Requerente pagou os IUC em apreço, ao abrigo do regime excepcional instituído pelo Decreto-Lei 151-A/2013 (Regime Excepcional de Regularização de Dívidas Tributárias e à Segurança Social).
13 – Em 18 de Fevereiro de 2014, o Requerente apresentou o Pedido de Pronúncia Arbitral, que deu origem aos presentes autos.
I. 2 – FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS
Os factos dados como provados estão baseados nos documentos indicados relativamente a cada um deles, e nos elementos factuais carreados para o processo pelas Partes, na medida em que a sua adesão à realidade não foi questionada.
Relativamente às facturas e aos documentos de venda referentes aos veículos, que foram ulteriormente juntos ao processo, o Tribunal decidiu que os mesmos constituem meio de prova com força bastante para titular a transmissão da sua propriedade, por gozarem da presunção de veracidade estabelecida no art. 75º, nº 1 da LGT, e com base nos restantes fundamentos que melhor constam da Decisão
I. 3 – FACTOS NÃO PROVADOS
Não existem factos não provados com relevância para a apreciação das questões a decidir
J. – MATÉRIA DE DIREITO
Fixada a matéria de facto, procede-se, de seguida, à sua subsunção jurídica e à determinação do Direito a aplicar, tendo em conta as questões a decidir que foram enunciadas.
Quanto à primeira questão a decidir, o Requerente alega que não era proprietário dos veículos que identifica à data em que ocorreram os factos tributários que originaram as liquidações de IUC, e, consequentemente, não era sujeito passivo do imposto que lhe foi liquidado.
A Requerida Autoridade Tributária assume uma posição oposta relativamente a esta questão da incidência subjectiva do IUC, defendendo que, nos termos do art. 3º, nº 1 do CIUC, é sujeito passivo do IUC a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado na Conservatória do Registo Automóvel, facto este que ocorria com o Requerente, no período em causa.
O art. 3º, nº 1 do CIUC dispõe relativamente a esta matéria controvertida, o seguinte:
“Art. 3º - Incidência subjectiva
1. São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares e colectivas, de direito público ou privado, em nome dos quais os mesmos se encontrem registados
------------------------------------------------------------------------------------------“
Das posições assumidas pelas Partes no presente processo, resulta claro que no fundo esta primeira questão se resume a saber se a norma de incidência subjectiva acima transcrita, constante do nº 1 do art. 3º do CIUC, estabelece uma presunção legal, susceptível de ilisão, como pretende o Requerente ou, expressa e intencionalmente, considera as pessoas em nome de quem os veículos estão registados como proprietários para efeito de incidência subjectiva do IUC, como entende a Requerida.
As orientações arrogadas pelo Requerente e pela Requerida quanto a esta matéria e a sua fundamentação estão expostas em síntese, ou com parcial transcrição, em E. e F. do Relatório desta Decisão.
Cumpre, então, decidir:
Um ponto preliminar para se apreciar a questão do valor jurídico do registo automóvel.
O nº 1 do art. 1º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, que disciplina o registo de veículos automóveis, dispõe que o registo de veículos “tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos… tendo em vista a segurança do comércio jurídico”.
Por seu lado, estabelece o art. 7º do Código do Registo Predial, aplicável ao registo automóvel por força do disposto no art. 29º do referido Decreto-Lei nº 54/75, que “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo define”.
Verifica-se, assim, que o registo definitivo é tão-só uma presunção da existência do direito, que admite prova em contrário, constituindo, portanto, presunção ilidível, conforme, aliás, tem sido reconhecido na jurisprudência.
Dado que não existe neste Código qualquer disposição que exija o registo como condição de validade dos contratos, conclui-se que, para se adquirir a qualidade de proprietário de um veículo, basta figurar como comprador num contrato de compra e venda.
Relativamente ao teor da norma em apreço – art. 3º, nº 1 do CIUC -, há que dizer que, conforme reconhecido unanimemente e se encontra consagrado no art. 11º da LGT, as leis fiscais devem ser interpretadas de acordo com os princípios gerais de interpretação, avultando, assim, para o efeito, o preceito fundamental de interpretação que é o art. 9º do Código Civil, o qual fornece as regras e os elementos para a interpretação das normas.
Significa isto que se devem utilizar os instrumentos tradicionais de hermenêutica jurídica, com vista a ser determinado o pensamento legislativo, de acordo com o disposto no art. 9º do Código Civil.
Nesta conformidade, comecemos a interpretação do art. 3º, nº 1 do CIUC, pelo elemento literal, aquele em que se visa detectar o pensamento legislativo que se encontra objectivado na norma, para se verificar se a mesma contempla uma presunção, ou se determina, em definitivo, que o sujeito passivo do imposto é o proprietário que figura no registo.
A questão que se coloca é saber se a expressão “considerando-se” utilizada pelo legislador no CIUC, em vez da expressão “presumindo-se”, que era a que constava nos diplomas que antecederam o CIUC, terá retirado a natureza de presunção ao dispositivo legal em apreço.
A nosso ver, a resposta tem necessariamente de ser negativa, uma vez que, da análise do nosso ordenamento jurídico, se retira de forma clara que as duas expressões têm sido utilizadas pelo legislador com sentido equivalente, seja ao nível de presunções ilidíveis, seja no quadro das presunções inilidíveis, pelo que nada habilita a extrair a conclusão pretendida pela Autoridade Tributária por uma mera razão semântica.
Na verdade, assim acontece em variadas normas legais que consagram presunções utilizando o verbo considerar, de que se indicam, meramente a título de exemplo, as seguintes:
No âmbito do direito civil - o nº 3 do art. 243º do Código Civil, quando estabelece que “considera-se sempre de má-fé o terceiro que adquiriu o direito posteriormente ao registo da acção de simulação, quando a este haja lugar”;
também no âmbito do direito da propriedade industrial o mesmo se passa, quando o art. 59º, nº 1 do Código da Propriedade Industrial dispõe que “As invenções cuja patente tenha sido pedida durante o ano seguinte à data em que o inventor deixar a empresa, consideram-se feitas durante a execução do contrato de trabalho”;
e, também, no âmbito do direito tributário, quando os nºs 3 e 4 do art. 89-A da LGT dispõem que incumbe ao contribuinte o ónus da prova que os rendimentos declarados correspondem à realidade e que, não sendo feita essa prova, presume-se (“considera-se” na letra da Lei) que os rendimentos são os que resultam da tabela que consta no nº 4 do referido artigo;
Esta conclusão de haver total equivalência de significados entre as duas expressões, que o legislador utiliza indiferentemente, satisfaz a condição estabelecida no art. 9º, nº 2 do Código Civil, uma vez que se encontra assegurado o mínimo de correspondência verbal para efeitos da determinação do pensamento legislativo.
Importa, de seguida, submeter a norma em apreço aos demais elementos de interpretação lógica, designadamente, o elemento histórico, o racional ou teleológico e o de ordem sistemática.
Através da análise do elemento histórico, extrai-se a conclusão que, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei 59/72, de 30 de Dezembro, o primeiro a regular esta matéria, até ao Decreto-Lei nº 116/94, de 3 de Maio, o último a anteceder o CIUC, foi consagrada a presunção dos sujeitos passivos do IUC serem as pessoas em nome das quais os veículos se encontravam matriculados à data da sua liquidação.
Verifica-se, portanto, que a lei fiscal teve, desde sempre, o objectivo de tributar o verdadeiro e efectivo proprietário e utilizador do veículo, afigurando-se indiferente a utilização de uma ou outra expressão que, como vimos, têm na nossa ordem jurídica um sentido coincidente.
O mesmo se diga quando nos socorremos dos elementos de interpretação de natureza racional ou teleológica.
Com efeito, o actual e novo quadro da tributação automóvel consagra princípios que visam sujeitar os proprietários dos veículos a suportarem os prejuízos por danos viários e ambientais causados por estes, como se alcança do teor do art. 1º do CIUC.
Ora a consideração destes princípios, designadamente, o princípio da equivalência, que merecem tutela constitucional e consagração no direito comunitário, e são também reconhecidos em outros ramos do ordenamento jurídico, determina que os aludidos custos sejam suportados pelos reais proprietários, os causadores dos referidos danos, o que afasta, de todo, uma interpretação que visasse impedir os presumíveis proprietários de fazer prova de que já não o são por a propriedade estar na esfera jurídica de outrem.
Esta interpretação tem assento no disposto no nº 1, do art. 9º do Código Civil, que preceitua que a busca do pensamento legislativo deverá ter sobretudo em conta “a unidade do sistema jurídico e as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”.
Assim, também, da interpretação efectuada à luz dos elementos de natureza racional e teleológica, atento aquilo que a racionalidade do sistema garante e os fins visados pelo novo CIUC, resulta claro que o nº 1 do art. 3º do CIUC consagra uma presunção legal ilidível.
Em face do exposto, importa concluir que a ratio legis do imposto aponta no sentido de serem tributados os efectivos proprietários-utilizadores dos veículos pelo que a expressão “considerando-se” está usada no normativo em apreço num sentido semelhante a “presumindo-se”, razão pela qual dúvidas não há que está consagrada uma presunção legal.
Ora, estabelece o art. 73º da LGT que “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, pelo que são ilidíveis”.
Assim sendo, consagrando o art. 3º, nº 1 do CIUC uma presunção juris tantum, portanto, ilidível, a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo e que, por essa razão foi considerada pela Autoridade Tributária como sujeito passivo do imposto, pode apresentar elementos de prova visando demonstrar que o titular da propriedade é outra pessoa, para quem a propriedade foi transferida.
Analisados os elementos carreados para o processo pelo Requerente, extrai-se a conclusão que este não era proprietário dos veículos a que respeitam as liquidações em apreço, por, entretanto, já ter transferido a propriedade dos mesmos, nos termos da lei civil.
Esta transmissão de propriedade é oponível à Requerida Autoridade Tributária, porquanto, embora os factos sujeitos a registo só produzam efeitos contra terceiros quando registados, face ao disposto no art. 5º, nº 1 do Código do Registo Predial, a Autoridade Tributária não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que não se encontra na situação prevista no nº 2 do referido art. 5º do CRP, isto é, não adquiriu de um autor comum direitos incompatíveis entre si.
Relativamente à questão suscitada pela Requerida sobre a idoneidade probatória das facturas, que a Requerida põe em causa em termos genéricos, o Tribunal não tem dúvidas em aceitá-las como meio de prova da transmissão da propriedade dos veículos, mormente quando acompanhadas dos documentos de venda, posteriormente juntos pelo Requerente, pelas razões seguintes:
Na situação dos autos, estamos perante um contrato de compra e venda de coisas móveis, o qual, por aplicação do disposto no art. 219º do CC, não está sujeito a nenhum formalismo especial.
Embora se reconheça que a titulação destes contratos, por terem por objecto veículos automóveis, em que o registo é obrigatório, beneficia com a emissão de declaração de venda, que é necessária para a inscrição no registo, isso não impede que o contrato seja provado de outra forma, pois esta declaração não constitui o único e exclusivo meio de prova da venda.
Para o caso, reveste especial importância o facto de, uma vez que o Requerente tem natureza empresarial, as facturas, que foram juntas aos autos pelo Requerente, estão subordinadas a rigorosas regras legais de ordem contabilística e fiscal, com implicações, também, na cobrança de outros tributos.
Na verdade, a legislação tributária atribui-lhes uma relevância muito especial, que não pode deixar de lhe conferir credibilidade probatória, e que se encontra bem expressa no disposto nos seguintes normativos legais que, a título de exemplo, se citam: arts. 29º, nº 1, alínea b) e 19º, nº 2 do CIVA e arts. 23º, nº 6 e 123º, nº 2 do CIRC.
Ora, desde que essas facturas tenham sido emitidas de acordo com a legislação comercial e fiscal, questão que a Requerida não suscita, e o que não põe em causa, as mesmas gozam da presunção de veracidade, que lhe é atribuída pelo art. 75º, nº 1 da LGT.
Caberia à Requerida apresentar e demonstrar indícios concretos e fundamentados de que as operações tituladas pelas mencionadas facturas não correspondiam à realidade, face ao disposto no nº 2 do art. 75º da LGT, o que não ocorreu.
Nesta conformidade, atenta a relevância muito especial que a legislação tributária atribui às facturas na situação vertente e a que estas gozam da presunção de veracidade, que lhes é concedida pelo disposto no art. 75º, nº 1 da LGT, completadas, no caso, pelos respectivos documentos de venda, concluímos que constituem meio de prova suficiente para ilidir a presunção que decorre do art. 3º, nº 1 do CIUC, uma vez que comprovam que o Requerente não era proprietário dos veículos ao tempo a que diz respeito a liquidação do IUC.
Nestas circunstâncias, as liquidações relativas a esta primeira situação, em que houve transmissão da propriedade dos veículos, devem ser anuladas e, consequentemente restituído ao Requerente pela Autoridade Tributária o imposto que indevidamente lhe foi cobrado.
No Pedido de Pronúncia Arbitral, o Requerente alega também que, à data em que ocorreram os factos tributários que originaram algumas das liquidações de IUC, era locador dos veículos que identifica, uma vez que os mesmos tinham sido objecto de contratos de locação financeira, que estavam em vigor e, consequentemente, não era sujeito passivo do imposto que lhe foi liquidado, constituindo esta a segunda questão a decidir.
Pelo seu lado, a Requerida Autoridade Tributária defende que, nos termos do art. 3º do CIUC, é sujeito passivo do IUC a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado na Conservatória do Registo Automóvel, facto este que ocorria com o Requerente, no período em causa.
Das posições assumidas pelas Partes no presente processo, resulta claro que, no fundo, a questão se resume a saber se na data da ocorrência do facto gerador do IUC vigorar um contrato de locação financeira, tendo por objecto um automóvel, o sujeito passivo do IUC é o locador, seu proprietário, ou, por força do disposto no nº 2 do art. 3º do CIUC, é o locatário.
As orientações arrogadas pelo Requerente e pela Requerida quanto a esta matéria e a sua fundamentação estão expostas, também, em síntese, ou com parcial transcrição, em E. e F. do Relatório desta Decisão.
Cumpre, então, decidir quanto a esta questão:
Para uma correcta e rigorosa interpretação dos normativos em apreço, torna-se necessário indagar sobre os princípios informadores dos institutos disciplinados pelos mesmos.
Quanto ao IUC, convém referir que, actualmente, o seu princípio estruturante é o princípio da equivalência, na sua acepção de compensação pelos efeitos nefastos nas áreas ambientais e energéticas provocados pela circulação dos veículos automóveis.
Quer isto dizer que o legislador, quando disciplinou o IUC, teve em conta os custos viários e ambientais que a circulação rodoviária provoca, e que isto se encontra subjacente a este imposto.
Com efeito, o actual e novo quadro da tributação automóvel consagra este princípio, visando sujeitar os proprietários dos veículos, em princípio, seus utilizadores, a suportarem os custos decorrentes dos prejuízos por danos viários e ambientais causados por estes, como se alcança do teor do art. 1º do CIUC.
Deste modo, a sua incidência deverá ser sobre quem utiliza o veículo automóvel, isto é, quem provoca os referidos danos, o que afasta de todo, uma interpretação que visasse impedir a tributação de outros, que não, os que usufruem do gozo dos veículos automóveis.
Como regra, o legislador atribuiu essa situação ao proprietário, o que se compreende por ser essa a mais comum, em que o proprietário é simultaneamente o utilizador do veículo.
No entanto, verificando-se as situações a que alude o nº 2, do art. 3º, do CIUC, em que o proprietário, embora mantenha essa qualidade, cede o gozo exclusivo do veículo a um terceiro, a lei equiparou essa situação à do proprietário, para efeitos de incidência subjectiva do IUC, por ser este o potencial “poluidor”
Tal é o que ocorre na vigência dos contratos de locação financeira em que, embora o locador se mantenha proprietário do bem locado, é o locatário quem tem o gozo exclusivo do mesmo, utilizando-o exactamente nos mesmos termos em que o proprietário o utilizaria, caso não tivesse sido celebrado o referido contrato.
Com efeito, do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira (aprovado pelo Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Julho, com alterações posteriores), decorre, designadamente das disposições combinadas dos arts. 9º e 10º, que o uso do veículo locado é atribuído de modo exclusivo ao locatário, com vista a dele usar e fruir, como se do proprietário se tratasse.
Nesta conformidade, dúvidas não há que nos termos da letra do art. 3º do CIUC, designadamente do seu nº 2, e também da sua ratio, que é o locatário quem é responsável pelo pagamento do IUC, dado que se encontra equiparado ao proprietário por ter o uso exclusivo do veículo automóvel e, por essa razão, provocar os danos ambientais e rodoviários que o imposto pretende compensar.
Assim sendo, estamos em condições de concluir que, verificando-se, como ficou provado, que, nas datas da ocorrência dos factos geradores do IUC a que respeitam as liquidações em apreço, estavam em vigor contratos de locação financeira, que foram comunicados, nos termos do art. 19º do CIUC, à Requerida, eram os locatários os sujeitos passivos do mesmo.
Razão pela qual, as mencionadas liquidações devem ser anuladas e, consequentemente restituído ao Requerente pela Autoridade Tributária o imposto que indevidamente lhe foi cobrado.
Quanto aos juros indemnizatórios, esta matéria está regulada no art. 24º do RJAT, o qual expressamente determina no seu nº 1, alínea b) que a decisão arbitral obriga a administração tributária, nos casos aí consignados, a “Restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessárias, para o efeito”, e preceitua, ainda, no seu nº 5, que “É devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo
Tributário”.
Também o art. 100º da LGT, cuja aplicação é autorizada pelo disposto no art. 29º, nº 1, alínea a) do RJAT, preceitua de modo idêntico, no sentido da imediata reconstituição da legalidade, compreendendo a mesma o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso.
Por seu lado, o art. 43º, nº 1 da LGT condiciona o direito a juros indemnizatórios aos casos em que “houve erro imputável aos serviços de que resulta pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Nesta conformidade, a questão que se coloca é a de se saber se, face ao circunstancialismo demonstrado e ao teor do disposto no art. 3º, nºs 1 e 2 do CIUC, se pode considerar ter havido, ou não, um erro imputável aos serviços na situação vertente.
Analisada a situação, verifica-se que a Autoridade Tributária ao liquidar o IUC nos termos em que o fez, deu cumprimento ao ditame legal de ordem geral estabelecido no referido normativo, no ponto em que o sujeito passivo do imposto é o proprietário do veículo, atribuindo essa qualidade de proprietário, para os referidos efeitos, ao contribuinte em nome do qual se encontra registado o veículo na Conservatória do Registo Automóvel, sem necessidade de efectuar qualquer prova.
Só após o reconhecimento por este tribunal arbitral que o dispositivo em apreço tem a natureza de presunção juris tantum, é que o Requerente está em condições de ilidir a referida presunção, o que veio a fazer e a provar, deixando a partir de agora de ser sujeito passivo da obrigação tributária em análise, o mesmo se dizendo relativamente à situação de locação financeira, em que a Requerida terá procedido à liquidação do IUC de acordo com a informação registal fornecida pelo Instituto dos Registos e Notariado, razão pela qual se conclui pela inexistência de erro imputável aos serviços.
Quanto à responsabilidade pelas custas arbitrais, alega a Requerida que não é responsável pelo seu pagamento, por ter procedido às liquidações do imposto com os elementos de que dispunha, não podendo ser responsabilizada por o que apelida de “falta de zelo” do Requerente.
Este argumento não pode ser considerado, porquanto a lei é taxativa na imputação da responsabilidade pelo pagamento das custas à parte que for condenada, face ao disposto nos nºs 1 e 2, do art. 527 do Código do Processo Civil, aplicável por força do art. 29º, nº 1, alínea e) do RJAT.
Assim sendo, a responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais é da Requerida.
L. – DECISÃO
Atento o exposto, o presente Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar procedente, com fundamento em vício de violação de lei, o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação de IUC, relativamente a todos os veículos cujas matrículas estão identificadas nos autos, respeitantes aos anos aí referidos, e, em consequência,
b) Anular os actos tributários de liquidação correspondentes.
c) Julgar improcedente o pedido do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor do Requerente.
d) Condenar a Requerida a pagar as custas do presente processo (art. 527º, nºs. 1 e 2 do Código do Processo Civil, ex vi art. 29º, nº 1, alínea e) do RJAT).
Valor do processo: Em conformidade com o disposto nos artigos 306º, nº 2 do CPC (ex. 315º, nº 2) e 97º - A, nº 1 do CPPT e no artigo 3º, nº 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de 1.927,63 euros.
Custas: De harmonia com o nº 4 do art. 22º do RJAT, fixa-se o montante das custas em 306,00 euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Notifique-se.
Lisboa, 20 de Outubro de 2014
O Árbitro
José Nunes Barata
***
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.