Sumário:
I - O benefício previsto no artigo 70.º, n.º 4, alínea b), do Estatuto dos Benefícios Fiscais, no âmbito de medidas de apoio ao transporte rodoviário de passageiros e de mercadorias, é aplicável, além de outras condições, aos veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias público ou por conta de outrem, que se encontrem registados como elementos do ativo fixo tangível de sujeitos passivos de IRC;
II - De acordo com os critérios de hermenêutica jurídica, não se justifica uma interpretação extensiva da referida norma, de modo a abranger os veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias que se encontrem registados como ativo intangível, ainda que essa qualificação resulte de normas contabilísticas específicas aplicáveis ao sujeito passivo.
DECISÃO ARBITRAL
Acordam em tribunal arbitral
I – Relatório
1. A..., S.A., Pessoa Coletiva n.º..., com sede em ... ...-... ..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade do ato de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) relativa ao período de tributação de 2019, bem como do indeferimento do recurso hierárquico, interposto da decisão da reclamação graciosa incidente sobre a referida autoliquidação.
Fundamenta o pedido nos seguintes termos.
A Requerente é uma sociedade comercial de direito português que tem como objeto social a exploração e a gestão de um sistema multimunicipal de tratamento e recolha seletiva de resíduos urbanos, no âmbito de um contrato de concessão celebrado com o Estado Português.
O contrato de concessão rege-se pelo Decreto-Lei n.º 96/2014, de 25 de junho, que consagrou o regime jurídico da concessão da exploração e da gestão, em regime de serviço público, dos sistemas multimunicipais de tratamento e de recolha seletiva de resíduos urbanos.
Ao abrigo do referido diploma e dos contratos de concessão celebrados com o Estado Português, as atividades das concessionárias consistem na recolha seletiva de resíduos sólidos urbanos (RSUs), ou seja, a recolha nos ecopontos, ecocentros e outros pontos de recolha localizados no âmbito geográfico da concessão, incluindo a respetiva triagem e entrega às entidades licenciadas para sua retoma, e no tratamento de resíduos urbanos gerados nas áreas dos municípios utilizadores cuja gestão se encontre sob responsabilidade dos municípios.
No cumprimento das suas funções de concessionária na região do Algarve, a atuação da Requerente relaciona-se essencialmente com a triagem de materiais recicláveis, a deposição em aterro sanitário, e o tratamento e valorização dos resíduos, sendo que a triagem de materiais recicláveis inclui a recolha seletiva dos RSUs, ou seja, o transporte dos resíduos colocados pela população nos ecopontos e outros pontos específicos de recolha através dos seus camiões.
Adicionalmente, a Requerente possui dois aterros sanitários localizados em Portimão e em Loulé, nos quais os RSUs provenientes da recolha indiferenciada são objeto de tratamento, cabendo à Requerente a sua monitorização após a deposição por parte dos municípios.
Em resultado do distanciamento entre os aterros sanitários e alguns dos municípios abrangidos pela concessão, a Requerente assegura o transporte dos RSUs depositados por essas entidades nas estações de transferência localizadas em Aljezur, Vila do Bispo, Lagos, Albufeira, Loulé, Tavira, Castro Marim e Alcoutim.
Por sua vez, a Requerente desenvolve igualmente serviços de transporte de RSUs provenientes da recolha indiferenciada, em substituição dos municípios.
Sendo que, no âmbito destes serviços de transporte de RSUs prestados no período de tributação de 2019, a Requerente incorreu em gastos com a aquisição de gasóleo necessário ao funcionamento das várias vertentes da sua atividade, no montante total de € 2.134.262,46.
No dia 15 de julho de 2020, a Requerente procedeu à entrega da sua declaração periódica de rendimentos “Modelo 22” do IRC, com referência ao período de tributação de 2019, tendo resultado um montante total de imposto a pagar de €3.224,10.
No entanto, no âmbito de uma revisão interna de procedimentos, a Requerente veio a constatar que, por manifesto erro, tal declaração não refletiu corretamente a sua situação tributária, na medida em que, no apuramento do resultado tributável daquele período de tributação, não foi devidamente considerada a dedução do benefício fiscal previsto no artigo 70.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, o qual respeita às medidas de apoio ao transporte rodoviário de passageiros e de mercadorias.
Neste sentido, a Requerente apresentou a reclamação graciosa da autoliquidação, que foi objeto de decisão de indeferimento, na qual a Autoridade Tributária conclui, que, sendo cumulativas as condições para aplicação do benefício fiscal, a pretensão do sujeito passivo não procede devido ao facto dos veículos não se encontrarem registados como elementos do ativo fixo tangível.
Por não se conformar com a decisão, a Requerente interpôs recurso hierárquico que veio a ser indeferido.
Entende a Requerente que a decisão de indeferimento incorre em erro nos pressupostos de facto e de direito e assenta numa interpretação acrítica da lei.
O artigo 70.º, n.º 4, alínea b), do EBF estabelece, como benefício fiscal, a possibilidade de dedução para determinação do lucro tributável, em valor correspondente a 120% do respetivo montante, dos gastos suportados com a aquisição de combustíveis para abastecimento de veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias público ou por conta de outrem, com peso bruto igual ou superior a 3,5 t, registados como elementos do ativo fixo tangível de sujeitos passivos de IRC.
No caso, a Autoridade Tributária denega a aplicação do benefício fiscal em causa, invocando que as viaturas afetas ao transporte de mercadorias não se encontram registadas como elementos do ativo fixo tangível da Requerente.
Sucede que existem situações em que, por imposição de normas contabilísticas específicas aplicáveis a determinados operadores e sectores de atividade, as viaturas de transporte registadas no ativo imobilizado não se encontram contabilizadas como ativo fixo tangível, como é o caso da Requerente.
De facto, enquanto concessionária do serviço público de exploração e a gestão de um sistema multimunicipal de tratamento e recolha seletiva de resíduos urbanos, as demonstrações financeiras da Requerente encontram-se preparadas de acordo com interpretação efetuada pelo “International Accounting Standards Board” vertida na IFRIC 12 - Acordos de Concessão de Serviços, que se aplica aos acordos de concessão de serviços pelo sector público ao privado, quando a entidade concedente controla ou regulamenta os serviços que o concessionário deve prestar com as infraestruturas, a quem os deve prestar e a que preço (§ 5).
Por outro lado, o Estado português, enquanto entidade concedente, controla os serviços prestados e as condições em que são prestados através do regulador (Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos - ERSAR), e os diversos ativos utilizados para a prestação dos serviços revertem para o concedente no final do contrato de concessão.
Deste modo, a concessão dos serviços públicos da Requerente encontra-se abrangida pela IFRIC 12, que prevê o reconhecimento dos ativos subjacentes à concessão de serviços públicos de acordo com três modelos: modelo do ativo financeiro, modelo do ativo intangível ou modelo misto. E, nos termos do § 17 da IFRIC 12 “o concessionário deve reconhecer um ativo intangível na medida em que lhe seja conferido o direito (licença) de cobrar um preço aos utentes do serviço público”.
No caso em concreto, atendendo aos termos do contrato de concessão, nomeadamente no que se refere ao modelo regulatório, foi entendido que as operações da Requerente são enquadráveis no modelo do ativo intangível, em virtude de, essencialmente, esta ter o direito incondicional de cobrar aos utilizadores uma determinada tarifa e, bem assim, assumir os riscos operacionais, de investimento e de financiamento da concessão.
Neste sentido, por aplicação da IFRIC 12, todos os ativos afetos à concessão encontram-se registados nas demonstrações financeiras da Requerente como ativo fixo intangível (designado Direito de Utilização de Infraestruturas), onde se incluem as viaturas de transporte utilizadas para a prestação do serviço de transporte dos resíduos recicláveis e outros RSUs indiferenciados.
No entanto, os veículos afetos ao transporte de mercadoria por conta de outrem encontram-se identificados através de um número de ativo, pelo qual se pretende refletir a contabilização dessas viaturas no seu balanço na rubrica de ativos intangíveis conforme o SNC (#44 – Ativos Intangíveis).
Ora, tendo presente a ratio do benefício fiscal (a majoração de encargos com combustíveis incorridos por veículos de transporte de mercadorias) não se vislumbra qualquer razão que determine que o mesmo apenas vise abranger os veículos de transporte registados, em rubrica do ativo, enquanto ativo fixo tangível, sobretudo quando, para efeito da aplicação do regime previsto no artigo 70.º do EBF, e como consequência da aplicação da IFRIC 12, a circunstância de os veículos da Requerente se encontrarem registados como ativo fixo intangível não coloca em causa o interesse extrafiscal que a lei pretendeu salvaguardar.
Pelo exposto, considera a Requerente que a circunstância de os seus veículos se encontrarem contabilizados no ativo fixo, como intangível, não prejudica a aplicação do benefício fiscal previsto no n.º 4 do artigo 70.º do EBF, como medida de apoio ao transporte rodoviário de mercadorias.
Sendo esta a única interpretação do preceito legal que respeita, quer a materialidade das operações, quer a finalidade subjacente à concessão do benefício fiscal, quer a coerência do sistema jurídico, ao passo que a interpretação levada a efeito pela Autoridade Tributária tem por base exclusivamente o elemento literal.
Havendo de entender-se, nestes termos, que só uma interpretação extensiva e a consequente aplicação do benefício fiscal à situação da Requerente contribui para a prossecução da finalidade de interesse público que justificou em benefício fiscal em causa.
Sem prescindir, a Requerente sustenta que o artigo 70.º n.º 4.º, alínea b), do EBF, na interpretação efetuada pela Autoridade Tributária, viola os princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade e da capacidade contributiva, além de que afronta o princípio da proteção da confiança, na medida em que, com base na primitiva redação do preceito e na redação resultante do Decreto-Lei n.º 38/2016, a Requerente firmou a legitima expectativa de aplicabilidade do benefício fiscal em causa.
Conclui no sentido da procedência do pedido arbitral, com a consequente anulação do despacho de indeferimento do recurso hierárquico e o reconhecimento à Requerente do direito ao benefício fiscal consagrado no artigo 70.º n.º 4, alínea b), do EBF.
A Autoridade Tributária, na sua resposta, refere o seguinte.
Por aplicação da IFRIC 12 – Acordos de Concessão de Serviços e atendendo ainda a que nos termos do contrato de concessão, a Requerente tem o direito incondicional de cobrar aos utilizadores uma determinada tarifa e assumir os riscos operacionais, de investimento e de financiamento da concessão, todos os ativos afetos à concessão encontram-se registados nas demonstrações financeiras da Requerente como ativo fixo intangível “Direitos de Utilização de Infraestruturas”, incluindo, no que respeita ao caso sub judice, as viaturas utilizadas para a prestação do serviço de transporte dos resíduos.
Atento este enquadramento e em relação ao valor residual dos ativos afetos à concessão - e considerando que de acordo com o contrato de concessão, a empresa tem o direito de ser ressarcida no final da concessão com base no valor líquido contabilístico dos ativos concessionados -, este foi integrado também como uma parte do ativo intangível.
Isso porque, em aplicação da IFRIC 12, nomeadamente do seu §11, as infraestruturas de serviço público em apreço não se qualificam como ativo fixo tangível, uma vez que o contrato de concessão não confere à concessionária o direito de controlar o seu uso, esta apenas tem acesso a essas infraestruturas, a fim de prestar o serviço público por conta da entidade concedente (Estado), de acordo com as condições especificadas no contrato.
Neste sentido, nos termos do §17 da IFRIC 12, tendo a Requerente o direito incondicional de cobrar aos utilizadores do serviço público uma determinada tarifa, todos os ativos afetos à concessão encontram-se registados nas demonstrações financeiras da Requerente como ativo fixo intangível e aí estão incluídas todas as viaturas de transporte utilizadas para a prestação de serviços de transporte de resíduos.
No caso vertente, a Requerente pretende que lhe seja aplicável o benefício fiscal previsto no artigo 70.º, n.º 4, alínea b), do EBF, que prevê a dedução dos gastos suportados com a aquisição de combustíveis para abastecimento de veículos, no valor correspondente a 120 % do respetivo montante, quando se trate de veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias público ou por conta de outrem, que, além de outras condições, se encontrem registados como elementos do ativo fixo tangível de sujeitos passivos IRC.
No entanto, os veículos afetos pela Requerente ao transporte rodoviário encontram-se registados nas demonstrações financeiras como ativo fixo intangível, de onde resulta que não se estão preenchidos os requisitos da alínea b) do n.º 4 do artigo 70.º do EBF, para efeito da concessão do benefício fiscal.
Conclui no sentido da improcedência do pedido arbitral.
2. Por despacho arbitral de 20 de maio de 2024, o tribunal determinou a dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações, por considerar que não existem novos elementos sobre que as partes devam pronunciar-se.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6. ° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228. ° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 1 de março de 2024.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.
Cabe apreciar e decidir.
II - Fundamentação
Matéria de facto
4. Os factos relevantes para a decisão da causa que poderão ser tidos como assentes são os seguintes.
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A Requerente é uma sociedade comercial de direito português, constituída sob o tipo de sociedade anónima pelo Decreto-Lei n.º 109/95, de 20.05, e que tem como objeto social a exploração e a gestão de um sistema multimunicipal de tratamento e recolha seletiva de resíduos urbanos, no âmbito de um contrato de concessão celebrado com o Estado Português.
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Nos termos dos contratos de concessão, as atividades das concessionárias consistem no seguinte: (i) recolha seletiva de resíduos sólidos urbanos (RSU), ou seja, a recolha nos ecopontos, ecocentros e outros pontos de recolha localizados no âmbito geográfico da concessão, incluindo a respetiva triagem e entrega às entidades licenciadas para sua retoma, de forma a manter o fluxo de resíduos separados por papel e cartão, embalagens de vidro e embalagens de plástico, metal, madeira e cartão para líquidos alimentares; (ii) tratamento de resíduos urbanos gerados nas áreas dos municípios utilizadores cuja gestão se encontre sob responsabilidade dos municípios.
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No cumprimento das suas funções de concessionária na região do Algarve, na qual se integram os municípios de Albufeira, Alcoutim, Aljezur, Castro Marim, Faro, Lagoa, Lagos, Loulé, Monchique, Olhão, Portimão, São Brás de Alportel, Silves, Tavira, Vila do Bispo e Vila Real de Santo António, as áreas de atuação da Requerente relacionam-se essencialmente com a triagem de materiais recicláveis, a deposição em aterro sanitário e o tratamento e valorização dos resíduos.
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A área de negócio correspondente à triagem de materiais recicláveis inclui a recolha seletiva dos resíduos sólidos urbanos (RSU), ou seja, o transporte dos resíduos colocados pela população nos ecopontos e outros pontos específicos de recolha através dos seus camiões.
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Adicionalmente, a Requerente possui dois aterros sanitários localizados no distrito de Faro, o aterro sanitário do ..., localizado em ..., e o aterro sanitário do ..., localizado em ..., no qual os resíduos sólidos urbanos (RSU) provenientes da recolha indiferenciada são objeto de tratamento.
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O transporte dos resíduos sólidos urbanos (RSU) provenientes da recolha indiferenciada é da responsabilidade dos municípios, cabendo à Requerente a monitorização das atividades dos aterros sanitários após a deposição dos resíduos por parte dos municípios.
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Em situações específicas, resultantes do distanciamento entre os aterros sanitários e alguns dos municípios abrangidos, a Requerente assegura o transporte dos resíduos sólidos urbanos (RSU) depositados por essas entidades nas estações de transferência, localizadas em Aljezur, Vila do Bispo, Lagos, Albufeira, Loulé, Tavira, Castro Marim e Alcoutim, para os aterros sanitários.
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No âmbito dos serviços de transporte de resíduos sólidos urbanos (RSU) prestados no período de tributação de 2019, a Requerente incorreu em gastos com a aquisição de gasóleo necessário ao funcionamento da sua atividade, no montante total de € 2.134.262,46 conforme o quadro seguinte:
Valores em Euro
Gastos com gasóleo
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31/12/2019
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Conta #6242003023
"Combustíveis Gasóleo"
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2.134.262,46
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Decomposição por realidade
Outras
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328.239,80
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Aterro
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100.238,46
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Compostagem
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20.991,48
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Triagem
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18.500,76
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Manutenção
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43.079,70
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Transporte - Estações de transferência(*)
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860.725,87
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Transporte - Recolha seletiva(*)
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741.212,78
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Tratamento de águas lixiviantes
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21.273,61
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Total
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2.134.262,46
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(*) Adquiridos, em território português, para abastecimento de veículos afetos ao transporte
rodoviário de mercadorias por conta de outrem, com peso bruto igual ou superior a 3,5t registados como elemento do ativo fixo da Reclamante e licenciados pelo IMT, I.P.
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Os veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias utilizados pela Requerente no exercício da sua atividade encontram-se registados como elementos do ativo fixo intangível.
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No dia 15 de julho de 2020, a Requerente procedeu à entrega da sua declaração periódica de rendimentos Modelo 22 do IRC, com referência ao período de tributação de 2019, com um montante total de imposto a pagar de € 3.224,10 (documentos n.ºs 2 e 3 juntos ao pedido arbitral).
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Por considerar que tal declaração não refletiu corretamente a sua situação tributária, na medida em que, no apuramento do resultado tributável daquele período de tributação, não foi devidamente considerada a dedução do benefício fiscal previsto no artigo 70.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, a Requerente apresentou reclamação graciosa da autoliquidação (documento n.º 4 junto ao pedido arbitral).
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Por carta registada de 24 de janeiro de 2023, a Requerente foi notificada do projeto de decisão da reclamação graciosa, no sentido do indeferimento do pedido, para efeito do exercício do direito de audição prévia (documento n.º 5 junto ao pedido arbitral).
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Por despacho do Chefe de Finanças de Loulé, de 28 de abril de 2023, praticado por delegação de competências, enviado por carta registada da mesma data, a Requerente foi notificada da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa (documento n.º 6 junto ao pedido arbitral).
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Em 29 de maio de 2023, a Requerente interpôs recurso hierárquico da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa (documento n.º 1 junto ao pedido arbitral).
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Por despacho do Diretor de Finanças, de 23 de setembro de 2023, praticado por subdelegação de competências, enviado por carta registada de 25 de setembro seguinte, a Requerente foi notificada da decisão de indeferimento do recurso hierárquico (Documento n.º 1 junto ao pedido arbitral).
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A decisão de indeferimento do recurso hierárquico baseia-se na informação dos serviços que, na parte relevante, é do seguinte teor:
III - Factos e apreciação
A recorrente A... SA, é uma sociedade comercial, constituída sob o tipo de sociedade anónima que iniciou a sua atividade em 1995/07/24, e tem como atividade principal o “Tratamento de outros resíduos não perigosos - CAE 38212” e como atividade secundária o “Comércio por grosso de desperdícios de materiais, NE - CAE 46773. O seu enquadramento fiscal, em termos de IVA, no regime normal mensal por opção e em termos de IRC, no regime geral.
Da análise efetuada à certidão permanente verifica-se que a sociedade tem por objeto social,
1 - Promoção do tratamento e valorização de resíduos sólidos, nomeadamente através de:
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Promoção direta ou indireta da conceção, construção e exploração de unidades integrantes dos sistemas de transporte, valorização, tratamento e destino final de resíduos sólidos;
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Prestação de serviços de gestão, fiscalização, assessoria técnica e administrativa a entidades públicas ou privadas que prossigam total ou parcialmente atividades do mesmo ramo;
2 - A sociedade poderá, desde que para o efeito esteja habilitada, exercer outras atividades para além daquelas que constituem o objeto da concessão desde que consideradas assessórias ou complementares e devidamente autorizadas pela concedente.
No dia 15 de julho de 2020, o sujeito passivo à entrega da declaração de rendimentos modelo 22 de IRC referente ao período de tributação de 2019, tendo da mesma resultado um montante de imposto a pagar de 3.224,10€, referente a tributações autónomas.
No dia 14 de setembro de 2020, o sujeito passivo procedeu à entrega da declaração de informação empresarial simplificada (IES) referente ao período de tributação de 2019. sendo que no âmbito dos serviços de transporte de resíduos sólidos urbanos prestados no período de tributação de 2019, o sujeito passivo inscreveu no campo A8058 o valor de 2.136.505,21€ referente a aquisição de combustíveis.
Posteriormente, a entrega da declaração de rendimentos modelo 22 de IRC, referente ao período de tributação de 2019, o sujeito passivo constatou que não havia refletido na respetiva declaração de rendimentos a dedução do benefício fiscal previsto no artigo 70.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), o qual respeita as medidas de apoio ao transporte rodoviário de passageiros e de mercadorias. Neste sentido e por considerar que a dedução do benefício fiscal previsto no artigo 70.º do EBF era aplicável ao seu caso concreto, vem o sujeito passivo solicitar a correção da autoliquidação referente ao período de tributação de 2019.
O artigo 70. ° do EBF, versa sobre as medidas de apoio ao transporte rodoviário de passageiros e de mercadorias, que transcrevemos de seguida:
“Artigo 70.º - Medidas de apoio ao transporte rodoviário de passageiros e de mercadorias
(...)
4 - Os gastos suportados com a aquisição, em território português, de combustíveis para abastecimento de veículos são dedutíveis, em valor correspondente a 120% do respetivo montante, para efeitos da determinação do lucro tributável, quando se trate de:
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Veículos afetos ao transporte público de passageiros e estejam registados como elementos do ativo fixo tangível de sujeitos passivos de IRC que estejam licenciados pelo IMT, I.P.;
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Veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias público ou por conta de outrem, com peso bruto igual ou superior a 3,5 t, registados como elementos do ativo fixo tangível de sujeitos passíveis de IRC ou alugados sem condutor por estes e que estejam licenciados pelo IMT, I.P.;
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Veículos ao transporte de táxi, registados como elementos do ativo fixo tangível dos sujeitos passivos de IRS ou de IRC, com contabilidade organizada e que estejam devidamente licenciados.
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– O benefício previsto no número anterior encontra-se excluído do âmbito de aplicação do n° 1 do artigo 92° do Código do IRC.
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- Os benefícios fiscais previstos no presente artigo são aplicáveis durante o período de tributação que se inicie em ou após 1 de janeiro de 2016 e seguintes.
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- O benefício fiscal previsto no presente artigo não é aplicável, nos períodos de tributação que se iniciem em ou após 1 de janeiro de 2017, aos gastos suportados com a aquisição e combustíveis que tenham beneficiado do regime de reembolso parcial para gasóleo profissional.”
O recorrente considera que a majoração lhe e aplicável por se verificar a situação elencada no artigo 70.º n.º 4 alínea b) do EBF, ou seja, os veículos estão afetos ao transporte rodoviário de mercadorias público ou por conta de outrem, têm peso bruto igual ou superior a 3,5t e encontram-se registados como elementos do ativo fixo tangível de sujeitos passiveis de IRC ou alugados sem condutor por estes e estão licenciados pelo IMT, I.P.
Conforme resulta do artigo 70.º n.ºs 4 e 7 do EBF, a aplicação deste benefício fiscal por parte dos sujeitos passivos de IRC depende da verificação cumulativa das condições que se enumeram de seguida:
i. A aquisição de combustível deve ser realizada em território nacional;
i. Os veículos devem ser afetos ao transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem;
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O peso bruto dos veículos deve ser igual ou superior a 3,5 t;
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Os veículos devem de estar registados como elementos do ativo fixo tangível ou alugados sem condutor;
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Os veículos devem ser licenciados pelo IMT, I.P.
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Os gastos com a aquisição de combustíveis não se encontrarem abrangidos pelo regime de reembolso parcial do gasóleo profissional.
Relativamente ao cumprimento dos requisitos para aplicação das medidas de apoio ao transporte rodoviário previstas no artigo 70.º do EBF, vem o recorrente nos números 48 a 108 do recurso hierárquico, apresentar os seus argumentos com a finalidade de que, apesar da contabilização em ativos fixos intangível dos seus veículos não prejudica que lhe deva ser aplicável o beneficio fiscal do artigo 70.º n.º 4 do EBF, através da possibilidade conferida pelo exercício de interpretação extensível, legalmente prevista no artigo 10º do EBF e artigo 11.º da LGT, ou seja, considerar em valor correspondente a 120% dos gastos suportados com a aquisição de combustíveis, para efeitos da determinação do lucro tributável.
Já em relação ao requisito que os veículos devem de estar registados como elementos do ativo fixo tangível ou alugados sem condutor, situação que não se verifica na contabilidade do recorrente, já que da análise a declaração de informação empresarial simplificada, Quadro 04-A do Balanço, apresentada pela recorrente, referente ao período de tributação de 2019, constatou-se desde logo que não se encontra registado em Ativos Fixos Tangíveis, qualquer valor referente bens imobilizados.
Informação
Vem a recorrente contra argumentar com a versão original do artigo 70.º do EBF, com as alterações a que o artigo 70.º do EBF foi sendo sujeito, mantendo-se inalterado a partir do ano de 2019 e com o facto das suas demonstrações financeiras se encontrarem preparadas de acordo com a interpretação efetuada pelo Internacional Accounting Standardes Board vertida na IFRIC 12 - Acordos de concessão de serviços e pelo facto da IFRIC 12 prever o reconhecimento dos ativos subjacente à concessão de serviços públicos de acordo com três modelos: modelo do ativo financeiro, modelo do ativo intangível ou modelo misto, tendo o sujeito passivo entendido que as suas operações são enquadráveis no modelo do ativo intangível, e nesse sentido, todos os ativos afetos a conceção, no qual se incluem as viaturas de transporte utilizadas para a prestação de serviços de transporte dos resíduos, encontram-se registados nas demonstrações financeiras da recorrente, como ativo fixo intangível.
E ainda que, a contabilização em ativos fixos intangível dos seus veículos não prejudica que lhe deva ser aplicável o benefício fiscal do artigo 70.º n.º 4 do EBF, uma vez que o benefício fiscal em apreço visa a compensação de um gasto afeto a viaturas com determinadas caraterísticas, e não a sua contabilização em ativos fixos tangíveis ou intangíveis, através do exercício de interpretação extensível, legalmente prevista no artigo 10.º do EBF e artigo 11.º da LGT. Contudo, o artigo 70.º n.º 4 alínea b) do EBF é taxativo quanta as premissas necessárias, para a concessão do benefício fiscal, sendo uma delas, que os veículos estejam contabilizados como ativos fixos tangíveis.
IV - Conclusão
Face aos elementos recolhidos e análise efetuada, e verificando-se que os gastos suportados com a aquisição, em território português de combustíveis para abastecimento de veículos são dedutíveis, em valor correspondente a 120% do respetivo montante, para efeitos da determinação do lucro tributável, quando se trate de veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias público ou por conta de outrem, com peso bruto igual ou superior a 3,5 t, registados como elementos do ativo fixo tangível de sujeitos passives IRC ou alugados sem condutor por estes e que estejam licenciados pelo IMT, I.P. e que as condições são cumulativas, não se confirma as pretensões do sujeito passivo, devido ao facto dos veículos não se encontrarem registados como elementos do ativo fixo tangível.
Pelo que, face aos elementos apresentados pela recorrente aos autos, é meu parecer que seja mantido a decisão do ato recorrido em sede de reclamação graciosa de indeferimento.
VI - Direito de audição
Do projeto de decisão, com a respetiva fundamentação de facto e de direito, foi notificado o reclamante em 2023-08-06, através de via CTT, nos termos do artigo 38.º n.º 1 alínea d) do CPPT, para no prazo de 15 dias, exercer, querendo, o direito de participação na decisão na modalidade de audição prévia previsto no artigo 60.º da LGT, não tendo até à presente data, usado desse direito. Os prazos do procedimento tributário relativos aos atos praticados pelos contribuintes nos procedimentos ao exercício do direito de audição, que terminem no decurso do mês de agosto são transferidos para o primeiro dia útil do mês seguinte, ou seja, o prazo de direito de audição conta-se a partir de 2023-09-01, nos termos do artigo 57.º-A n.º 2 da LGT.
VII – Decisão final
Perante o exposto, sou de parecer que se deverá manter a decisão de não proceder, por não estarem reunidos todas as condições elencadas no benefício fiscal do artigo 70.º n.º 4 do EBF, nomeadamente, os veículos estarem registados como elementos do ativo fixo tangível.
Perante o exposto e tendo em atenção os factos e fundamentos invocados no projeto de decisão, propõe-se que o mesmo se converta em definitivo (Indeferimento).
Q) A Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral em 21 de dezembro de 2023.
Factos não provados
Não há factos não provados que relevem para a decisão da causa.
Motivação da matéria de facto
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição inicial e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta.
Matéria de direito
5. Em debate está a questão de saber se a norma do artigo 70.º, n.º 4, alínea b), do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), que prevê, para efeitos da determinação do lucro tributável, uma majoração de 20% relativamente a gastos suportados com a aquisição de combustíveis para abastecimento de veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias, quando estejam registados como elementos do ativo fixo tangível, poderá ser objeto de uma interpretação extensiva, de modo a entender-se que o benefício fiscal é aplicável mesmo quando os veículos se encontram registados na contabilidade do sujeito passivo como ativo fixo intangível.
A Requerente alega que, sendo concessionária do serviço público de exploração e gestão de um sistema multimunicipal de tratamento de resíduos urbanos, as suas demonstrações financeiras estão abrangidas pela IFRIC 12 - Acordos de Concessão de Serviços, aplicável aos contratos de concessão de serviços públicos, que prevê o reconhecimento dos ativos subjacentes à concessão no modelo do ativo intangível. E, considerando a ratio do benefício fiscal, considera que não existe motivo para excluir a sua aplicação nos casos em que os veículos de transporte se encontram registados como ativo fixo intangível.
Em contraposição, a Autoridade Tributária entende que o artigo 70.º, n.º 4, alínea b), do EBF é aplicável apenas quando se trate de veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias registados como elementos do ativo fixo tangível, e não sendo esse o caso dos veículos afetos à atividade da Requerente, não se encontram preenchidos os requisitos da atribuição do benefício fiscal.
É esta a questão que cabe dirimir.
O artigo 70.º do EBF, sob a epígrafe “Medidas de apoio ao transporte rodoviário de passageiros e de mercadorias”, na parte que interessa considerar, dispõe nos seguintes termos:
[…]
4 - Os gastos suportados com a aquisição, em território português, de combustíveis para abastecimento de veículos são dedutíveis, em valor correspondente a 120 % do respetivo montante, para efeitos da determinação do lucro tributável, quando se trate de:
-
Veículos afetos ao transporte público de passageiros e estejam registados como elementos do ativo fixo tangível de sujeitos passivos de IRC que estejam licenciados pelo IMT, I.P.;
-
Veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias público ou por conta de outrem, com peso bruto igual ou superior a 3,5 t, registados como elementos do ativo fixo tangível de sujeitos passivos IRC ou alugados sem condutor por estes e que estejam licenciados pelo IMT, I.P.; […].
Numa interpretação literal do preceito legal, resulta com evidência que o benefício fiscal consistente na dedução, para efeitos fiscais, dos gastos suportados com a aquisição de combustíveis para abastecimento de veículos, no valor correspondente a 120 % do respetivo montante, depende, entre outras condições, de os veículos afetos ao transporte, se encontrarem registados como elementos do ativo fixo tangível dos sujeitos passivos.
Sendo essa uma exigência imposta, quer aos veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias público ou por conta de outrem, a que se refere a alínea b) do n.º 4 do artigo 70.º do EBF - aplicável ao caso dos autos -, quer aos veículos afetos ao transporte público de passageiros, como consta da alínea a).
Segundo o disposto no artigo 9.º do Código Civil, “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (n.º 1), mas “não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 2).
Em anotação a esta disposição, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA referem que não é possível prescindir por completo da letra da lei, para atender apenas à vontade do legislador, “quando no n.º 2 se afasta a possibilidade de qualquer pensamento legislativo valer como sentido decisivo da lei, se no texto desta não encontrar um mínimo de correspondência verbal” (Código Civil Anotado, 4.ª edição, Coimbra Editora, pág. 58).
Dentro da mesma linha de entendimento, BAPTISTA MACHADO, referindo-se ao elemento gramatical de interpretação, sublinha o seguinte:
O texto é o ponto de partida da interpretação. Como tal, cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer "correspondência" ou ressonância nas palavras da lei. Mas cabe-lhe igualmente uma função positiva, nos seguintes termos. Primeiro, se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma, com a ressalva, porém, de se poder concluir com base noutras normas que a redação do texto atraiçoou o pensamento do legislador.
Quando, como é de regra, as normas (fórmulas legislativas) comportam mais que um significado, então a função positiva do texto traduz-se em dar mais forte apoio a, ou sugerir mais fortemente, um dos sentidos possíveis. É que, de entre os sentidos possíveis, uns corresponderão ao significado mais natural e direto das expressões usadas, ao passo que outros só caberão no quadro verbal da norma de uma maneira forçada, contrafeita. Ora, na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto (nem sempre exato) de que o legislador soube exprimir com correção o seu pensamento (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1993, pág. 182).
Em idênticos termos, KARL LARENZ esclarece que “o sentido literal a extrair do uso linguístico geral ou, sempre que ele exista, do uso linguístico especial da lei ou do uso linguístico jurídico geral, serve à interpretação, antes de mais, como uma primeira orientação, assinalando, por outro lado, enquanto sentido literal possível (…) o limite da interpretação propriamente dita. Delimita, de certo modo, o campo em que se leva a cabo a ulterior atividade do intérprete” (Metodologia da Ciência do Direito, 7.ª edição, Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, pág. 457).
Referindo-se ao uso linguístico especial da lei, o mesmo Autor anota que “[o]s termos que obtiveram na linguagem jurídica um significado específico, como, por exemplo, contrato, crédito, impugnabilidade, nulidade de um negócio jurídico, herança, legado, são usados nas leis, na maioria das vezes, com este significado especial. Deste modo, eliminam-se inúmeras variantes de significado de uso linguístico geral e o círculo de possíveis significados adentro do qual se há de proceder com base noutros critérios, estreita-se em grande medida”. Vindo a concluir que “uma interpretação que não se situe já no âmbito do sentido literal possível, já não é interpretação, mas modificação de sentido” (ob. cit., págs. 452 e 454).
No caso em análise, o dispositivo do artigo 70.º, n.º 4, alínea b), do EBF utiliza uma expressão com um significado jurídico preciso e inequívoco (ativo fixo tangível), que se contrapõe a uma outra expressão de uso linguístico especial e igualmente inequívoca (ativo fixo intangível), não sendo possível ao intérprete estabelecer uma qualquer conexão de significado entre as duas expressões, que têm um campo de aplicação próprio.
De facto, o Código do IRC refere-se distintamente a ativos fixos tangíveis e a ativos intangíveis para definir o regime fiscal aplicável.
Segundo o disposto no artigo 29.º do Código de IRC, referindo-se a elementos depreciáveis ou amortizáveis, são aceites como gastos as depreciações e amortizações de elementos do ativo sujeitos a deperecimento, considerando-se como tais (a) os ativos fixos tangíveis e os ativos intangíveis e (b) os ativos biológicos não consumíveis e as propriedades de investimento contabilizados ao custo de aquisição (n.º 1). Como princípio geral, consideram-se sujeitos a deperecimento os ativos que, com caráter sistemático, sofram perdas de valor resultantes da sua utilização ou do decurso do tempo (n.º 2).
O artigo 45.º-A, aditado pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, epigrafado como “Ativos intangíveis, propriedades de investimento e ativos biológicos não consumíveis”, passou a considerar que os ativos intangíveis adquiridos são depreciáveis quando não tenham uma vigência temporal limitada, caso em que a amortização será efetuada por um período de 20 anos, distinguindo-se dos ativos com vigência temporal limitada em que a amortização será efetuada de acordo com a respetiva vigência temporal.
É conhecida, por outro lado, a distinção entre essas diferentes categorias de ativos.
Como ativos fixos tangíveis devem entender-se os que sejam detidos para uso na produção ou fornecimento de bens ou serviços, para arrendamento ou para fins administrativos e se espera que sejam usados durante mais do que um período, e que poderá incluir a aquisição de equipamentos, as reparações e beneficiações e as benfeitorias que possam ser reconhecidos como elementos do ativo.
Os ativos fixos intangíveis ou incorpóreos consistem em bens ou direitos sem substância física, como sejam as marcas registadas, patentes, direitos autorais, licenças e autorizações.
Não pode deixar de concluir-se, em todo este contexto, que o legislador, ao aludir, na referida disposição do artigo 74.º, n.º 1, alínea b), do EBF, a veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias registados como ativo fixo tangível, adotou um teor literal juridicamente inequívoco e concretamente determinante, que afasta, desde logo, qualquer interpretação que pretenda nela incluir, como sentido literal possível, a referência a ativos fixos intangíveis. Tanto mais que, como se deixou exposto, estamos perante categorias de ativos que correspondem a figuras jurídicas distintas e têm um tratamento legislativo diferenciado.
6. Defende a Requerente, no entanto, que há lugar a uma interpretação extensiva da disposição do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), do EBF, na medida em que, tendo presente a razão de ser do benefício fiscal (a majoração de encargos com combustíveis incorridos por veículos de transporte de mercadorias), não há motivo para que se encontrem abrangidos apenas os veículos de transporte registados como elementos do ativo fixo tangível, sobretudo quando a circunstância de os veículos da Requerente se encontrarem registados como ativo fixo intangível são uma consequência da aplicação da IFRIC 12 e não coloca em causa o interesse extrafiscal que a lei pretendeu salvaguardar.
Deve começar por dizer-se que, não obstante a natureza excecional dos benefícios fiscais, o artigo 10.º do EBF não exclui a interpretação extensiva das normas que estabelecem benefícios fiscais, e apenas proíbe a interpretação analógica.
A norma desse artigo 10.º não diz mais do que a regra geral do artigo 11.º do Código Civil, aplicável, em geral, às normas excecionais, e o que pretende é distinguir entre a integração por analogia e a interpretação extensiva. A existência de uma lacuna pressupõe que determinada situação não está compreendida nem na letra nem no espírito da lei, ao passo que a interpretação extensiva permite que, dentro dos critérios gerais de interpretação, se estenda as palavras da lei de modo a atribuir-lhe um alcance conforme o pensamento legislativo.
Isso porque, apesar da natureza antissistemática dos benefícios fiscais, nada obsta à aplicação das regras gerais de interpretação (incluindo a interpretação extensiva), de modo a prevenir que “as suas finalidades sejam frustradas pelas eventuais incorreções do texto normativo” (cfr. SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 463; no mesmo sentido, SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, 2015, Coimbra, pág. 365).
Retomando a explanação de BAPTISTA MACHADO, agora quanto aos resultados ou modalidades de interpretação, o Autor refere que na interpretação extensiva, “o intérprete chega à conclusão de que a letra do texto da lei fica aquém do espírito da lei, que a fórmula verbal adotada peca por defeito, pois diz menos do que aquilo que queria dizer. Alarga ou estende então o texto, dando-lhe o alcance conforma ao pensamento legislativo, isto é, fazendo corresponder a letra da lei ao espírito da lei. Não se trata de uma lacuna da lei, porque os casos não diretamente abrangidos pela letra são indubitavelmente abrangidos pelo espírito da lei.
KARL LARENZ explica ainda, com base no elemento racional ou teleológico de interpretação, que poderá ser necessário examinar até que ponto a regulação legal deixa espaço a um ou outro princípio, de modo a evitar que as proposições jurídicas que resultem do sentido literal do texto ou do seu contexto significativo não produzam contradições de valoração (ob. cit., págs. 472-475).
Importa reter, em todo o caso, que o critério teleológico de interpretação, que poderá justificar uma interpretação extensiva da lei, só é decisivo quando os termos usados no seu sentido literal e no seu contexto possam deixar alguma dúvida quanto à finalidade da lei.
Como se deixou entrever, a norma do artigo 70.º, n.º 4, alínea b), do EBF, ao conferir um benefício fiscal de majoração de 20% relativamente a gastos suportados com o abastecimento de veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias, quando estejam registados como elementos do ativo fixo tangível, não coloca qualquer dúvida quanto ao significado técnico jurídico da expressão verbal utilizada, permitindo distinguir essa situação dos ativos intangíveis. Isto é, está a referir-se a equipamentos detidos pelo sujeito passivo para fornecimento de serviços de transporte, que se enquadram no conceito de ativo tangível, e que se não confundem com outros recursos, tais como conhecimentos científicos ou técnicos, conceção e implementação de novos processos ou sistemas, licenças, propriedade intelectual, conhecimento de mercado e marcas comerciais, que correspondem à definição de um ativo intangível e que poderão gerar benefícios económicos futuros.
Não há, por isso, nenhuma razão para efetuar uma interpretação extensiva da lei quando estamos perante conceitos distintos, com um diferente campo de aplicação, e relativamente aos quais se não coloca a necessidade de igualdade de tratamento.
7. A Requerente alega, no entanto, que, sendo concessionária do serviço público de exploração e gestão de um sistema multimunicipal de tratamento de resíduos urbanos, por imposição de normas contabilísticas específicas que constam da Interpretação IFRIC 12, aplicável a acordos de concessão de serviços, as suas viaturas de transporte encontram-se registadas como ativo fixo intangível, em virtude de a concessionária ter o direito de cobrar aos utilizadores uma determinada tarifa e assumir os riscos operacionais de investimento e de financiamento da concessão.
Extraindo daí a conclusão de que a ratio do benefício fiscal em causa é também aplicável aos veículos de transporte que, por razões de ordem contabilística, e, em especial, por aplicação da IFRIC 12, se encontrem registados como ativo fixo intangível.
Analisando esta questão, interessa ter presente as diretrizes que resultam da Interpretação IFRIC 12, no que diretamente respeita à Requerente enquanto concessionária de um serviço público.
Conforme resulta dos seus §§ 4 e 5, que definem o respetivo âmbito de aplicação, a interpretação “proporciona orientações quanto à contabilização pelos concessionários dos acordos de concessão de serviços pelo setor público ao privado”, aplicando-se aos acordos de concessão de serviços pelo setor público ao privado, designadamente “se a entidade concedente controla ou regulamenta os serviços que o concessionário deve prestar com as infraestruturas, a quem os deve prestar e a que preço (§ 5, alínea a)).
Nos termos do § 10, a interpretação estabelece princípios gerais em matéria de reconhecimento e mensuração das obrigações e direitos conexos no quadro dos acordos de concessão de serviços, tratando da interpretação de questões como o “tratamento contabilístico subsequente de um ativo financeiro e de um ativo intangível” (§ 10, alínea f)).
Ainda nos termos do § 15, referente à retribuição prestada pela entidade concedente ao concessionário, “[c]aso o concessionário preste serviços de construção ou de valorização, a retribuição recebida ou a receber pelo concessionário (…) pode corresponder a direitos sobre: (a) um ativo financeiro; (b) um ativo intangível”.
Acrescenta o § 17 que “[o] concessionário deve reconhecer um ativo intangível na medida em que lhe seja conferido o direito (licença) de cobrar um preço aos utentes do serviço público. O direito de impor um pagamento aos utentes do serviço público não é um direito incondicional de receber dinheiro, dado que as quantias dependem da medida em que o público utiliza o serviço”.
Como estatui a Norma Internacional de Contabilidade 38, para que remete o § 26 da Interpretação IFRIC 22, “[u]m ativo intangível é um ativo não monetário identificável sem substância física.
Depreende-se das regras interpretativas da IFRIC 12 acabadas de transcrever, e, especialmente, dos seus §§ 15 e 17, que a retribuição do concessionário corresponde a direitos sobre um ativo financeiro ou um ativo intangível, e o concessionário deve reconhecer um ativo intangível na medida em que lhe seja conferido o direito de cobrar um preço aos utentes do serviço público.
Sendo assim, é de concluir que qualificação dos veículos de transporte, utilizados no âmbito da atividade da Requerente, como ativo intangível resulta de a retribuição a auferir pelo concessionário se traduzir no direito de cobrar um preço aos utentes do serviço público, na medida em que um tal direito pressupõe o reconhecimento pelo concessionário de um ativo intangível, sendo essa, de resto, uma das formas de retribuição da concessão.
Estando em causa um ativo intangível, por efeito das normas contabilísticas que são especificamente aplicadas à Requerente em função da sua condição de concessionária de serviços públicos, não se descortina por que razão os veículos de transporte afetos à sua atividade deveriam ter um tratamento idêntico à dos veículos de transporte que se encontram registados como ativo tangível.
Não se aplica aqui o argumento de identidade de razão, visto que a distinta qualificação jurídica do ativo se deve regras contabilísticas que visam a concessão de serviços públicos, e que não se tornam extensíveis a outros operadores económicos que se dedicam a outro tipo de atividades. E, por conseguinte, não é invocável uma igualdade de tratamento que pudesse justificar uma interpretação teleológica em função dos objetivos da lei.
O legislador, ao conceder um benefício fiscal, consistente na majoração de 20% dos gastos suportados com a aquisição de combustível, relativamente a veículos afetos ao transporte de mercadorias registados como elementos do ativo tangível, está a efetuar uma valoração objetiva perfeitamente justificável, que não é transponível para outros meios de transporte que, por razões específicas, não se integram na categoria de ativo tangível.
Em conclusão:
Nada justifica, de acordo com os critérios de hermenêutica jurídica, uma interpretação extensiva da norma do artigo 70.º, n.º 4, alínea b), do EBF, de modo a abranger os veículos afetos ao transporte rodoviário de mercadorias utilizados pela Requerente, e, por outro lado, normas contabilísticas específicas que constam da Interpretação IFRIC 12 apenas evidenciam que, no caso dos contratos de concessão de serviço público, as viaturas de transporte usadas pelo concessionário devem encontrar-se registadas como ativo fixo intangível, pelo que não podem considerar-se abrangidas pelo benefício fiscal previsto na referida disposição do EBF.
Questões de inconstitucionalidade
8. A Requerente alega ainda que o artigo 70.º n.º 4.º, alínea b) do EBF, na interpretação preconizada pela Autoridade Tributária, viola os princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade, da capacidade contributiva e da proteção da confiança.
Como é sabido, o controlo difuso da constitucionalidade pelos tribunais é normativo, incidindo sobre uma norma ou interpretação normativa que tenha sido aplicada em decisão judicial ou em ato administrativo, competindo à parte suscitar de modo processualmente adequado a questão de constitucionalidade que se pretende ver apreciada (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
A suscitação processualmente adequada da questão implica a precisa delimitação do seu objeto, mediante a especificação da norma, segmento normativo ou a dimensão normativa que se entende ser inconstitucional, cabendo ao recorrente identificar expressamente essa interpretação ou dimensão normativa (acórdãos n.ºs 450/06, 21/06, 578/07, 131/08), não bastando a imputação da inconstitucionalidade aos próprios atos jurídicos que são objeto de impugnação judicial ou à interpretação que tenha sido formulada pela Autoridade Tributária
(cfr. LOPES DO REGO, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Coimbra, 2010, pág. 33).
Tendo-se limitado a Requerente a imputar os vícios de inconstitucionalidade à interpretação efetuada pela Autoridade Tributária, e não à norma ou interpretação normativa que entende terem sido aplicadas em violação da Lei Fundamental, não há que tomar conhecimento de qualquer dessas questões.
III – Decisão
Termos em que se decide:
-
Julgar improcedente o pedido arbitral e manter na ordem jurídica o ato de autoliquidação em IRC, referente ao período de tributação de 2019, bem como as decisões de indeferimento da reclamação graciosa e do recurso hierárquico contra ela deduzidos;
-
Não tomar conhecimento das questões de constitucionalidade suscitadas.
Valor da causa
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 320.387,73, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
Custas
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 5.508,00, que fica a cargo da Requerente.
Notifique.
Lisboa, 2 de julho de 2024
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
O Árbitro vogal
Francisco Nicolau Domingos
A Árbitro vogal
Susana Mercês de Carvalho