Sumário:
O art. 10.º, 1, a), CIRS, não se aplica a negócio jurídico de alienação do direito a quinhão hereditário constituído por imóvel, pois não integra o conceito de alienação onerosa do direito real sobre bens imóveis.
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
A. Dinâmica processual
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A..., viúva, residente na ..., ..., Lisboa, NIF ... (“Requerente”) apresentou pedido de pronúncia arbitral ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), para que seja declarada a ilegalidade do ato de liquidação relativo ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2024 ... de 26 de janeiro de 2024, no valor de € 15.157,57, referente ao período tributário de 2022 e, consequentemente, o mesmo anulado, e efetuado o reembolso correspondente, acrescido dos juros indemnizatórios à taxa legal em vigor.
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No dia 4 de março de 2024 o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à Requerente e à AT.
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A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, 1, e artigo 11.º, 1, b), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável
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Em 23 de abril de 2024 as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar.
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Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 14 de maio de 2024.
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No dia 7 de junho de 2024, a Requerente, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta, defendendo-se por impugnação, bem como juntou aos autos o processo administrativo (PA).
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No dia 20 de junho de 2024 foi proferido despacho no sentido de, ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art. 16.º, e n.º 2 do art. 29.º, ambos do RJAT, ser dispensada a realização da reunião a que alude o art. 18.º do RJAT, bem como a de apresentação de alegações escritas. Mais foi indicado que a decisão final seria notificada até ao dia 25 de julho de 2024.
B. Posição das partes
Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que o identificado ato se encontra viciado pois teve origem na qualificação, a título de mais-valias, de rendimento por ela auferido em resultado da cessão de quinhão hereditário em herança indivisa que lhe pertencia por óbito de sua mãe.
Tal ato não é enquadrado pelo art. 10.º, 1, CIRS, pois, na sua perspetiva, a transmissão ocorrida não integra o conceito de alienação onerosa do direito real sobre bem imóvel, uma vez que não é transmitido um direito real sobre os bens da herança, mas um direito abstratamente considerado e idealmente definido de uma quota parte na herança ilíquida e indivisa.
Para além disso, pede juros indemnizatórios por entender que ocorreu erro imputável aos serviços do qual resultou pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, nos termos dos arts. 24.º, 5, RJAT, 43.º, 1, 4, LGT, 61.º, 5, CPPT, e 100.º, LGT.
Conclui pedindo o reembolso do imposto pago bem como os correspondentes juros indemnizatórios.
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Por sua vez, a AT pugna pela legalidade do ato de liquidação pois, no seu entendimento, a alienação de quotas em propriedade de bens imóveis subsume-se à previsão contida na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS, sendo as suas regras aplicáveis às situações de comunhão, como sucede com os quinhões hereditários pelo que o ato de liquidação deve manter-se na ordem jurídico-tributária.
II. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, 1, a), 5.º, 6.º, 1, e 10.º, 1, RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. arts. 4.º e 10.º, 2, RJAT, e art. 1.º, Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
III. QUESTÕES A DECIDIR
— Se as mais valias resultantes da alienação onerosa do direito ao quinhão hereditário sobre a herança constituída apenas por uma terça parte indivisa de imóvel é abrangida pelo âmbito de incidência do artigo 10.º, 1, a), CIRS.
IV. FUNDAMENTAÇÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
A) A Requerente é uma pessoa singular, residente em Portugal, titular do NIF ... .
B) Em 13 de agosto de 1996, na freguesia ..., concelho de Lisboa, faleceu B..., no estado de viúva, com última residência habitual na ..., ..., ..., concelho de Lisboa.
C) Por escritura de habilitação de herdeiros emitida pelo ... Cartório Notarial de Lisboa, de 26 de julho de 1999, foi declarado que sucederam como únicas herdeiras da falecida as suas filhas, a ora Requerente e C... .
D) Da herança apenas fazia parte um terço indiviso do prédio denominado “Moradia n.º...”, sito na...— ..., freguesia de ..., inscrito na matriz da união das freguesias de ... e ... sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ... da referida freguesia de ... .
E) Por escritura pública datada de 4 de fevereiro de 2022, lavrada de fls. 31 a fls. 32v do Livro n.º ... das notas do Cartório Notarial sito na ..., Lisboa, a cargo da Notária D..., a Requerente declarou vender pelo preço de € 85.000,00 a E..., casado com F..., NIF..., residente na Rua ..., n.º ..., ..., Oliveira do Hospital, um terço indiviso do imóvel identificado no ponto anterior.
F) Por escritura pública sob o título 'CESSÃO DE QUINHÃO HEREDITÁRIO" lavrada de fls. 33 a fls. 34 do Livro n.º ... das notas do Cartório Notarial sito na ..., Lisboa, a cargo da Notária D..., no dia 4 de fevereiro de 2022, a ora Requerente declarou vender pelo preço de 47.500,00 euros, ao mesmo E..., o quinhão hereditário que lhe pertencia por óbito da referida B... .
G) Na declaração mod. 3, IRS, relativo ao período tributário de 2022, resulta do campo 4001 do quadro 4 do anexo G a declaração de alienação de uma quota-parte de 33,33% do prédio melhor identificado pelo montante de € 85.000,00, bem como a aquisição em 24 de fevereiro de 1975, pelo preço de € 45.475,38.
H) Foi emitida a 13 de junho de 2023, nota de liquidação de IRS n.º 2023..., no montante de € 5.288,17.
I) A Requerente entregou a 2 de julho de 2023 a declaração mod. 3 de IRS de substituição, referente ao ano de 2022, tendo inscrito no campo 501 do quadro 5 do anexo G1 a alienação, pelo montante de € 85.000,00, do citado prédio, e o valor de aquisição em 24 de fevereiro de 1975, pelo preço de € 1.296,87.
J) Foi emitida a 12 de julho de 2023, nota de liquidação de IRS n.º 2023..., no montante de € 5.288,17.
K) Foi emitida declaração de acerto de contas n.º 2023..., datado de 14-07-2023, porque se apurou o mesmo montante de imposto a pagar nas liquidações ns. 2023 ... e 2023..., resultou a zeros.
L) Em 13 de junho de 2023 foi instaurado no Serviço de Finanças de Lisboa ... um procedimento de gestão de divergências em nome da ora Requerente, relativo ao IRS de 2012, subordinado ao motivo “alienação de imóveis”.
M) Concluído o procedimento, foi emitida declaração oficiosa onde se fez constar no campo 4001 do quadro 4 do anexo G, a alienação de uma quota-parte de 16,67% do prédio já melhor identificado pelo montante de € 47.500, que tinha sido adquirida em agosto de 1996 pelo preço de € 2.101,06.
N) A citada declaração oficiosa manteve no campo 501 do quadro 5 do anexo G todos os dados, factos e valores que a Requerente havia feito constar na declaração de substituição.
O) Desta declaração oficiosa resultou a liquidação de IRS nº 2024..., no montante de € 14.939,69, acrescido de € 217,88 a título de juros compensatórios.
P) A 30 de janeiro de 2024 a AT emitiu declaração de acerto de contas com o montante apurado na liquidação de IRS n.º 2023..., de 12 de julho de 2023, e com a liquidação n.º 2023..., de 13 de junho de 2023, acerto de contas no 2024..., o qual se apurou a importância de € 9.869,40.
Q) A 13 de fevereiro de 2024 a Requerente ordenou o pagamento de € 9.869,40 a favor da AT relativo ao imposto liquidado e respetivos juros.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não foram identificados outros factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, 2, CPPT, e art. 607.º, 3, CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, 1, a) e e), RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (cfr. anterior art. 511.º, 1, CPC, correspondente ao atual art. 596.º, aplicável ex vi art. 29.º, 1, e), RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do art. 110.º, 7, CPPT, e a prova documental aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
B. DE DIREITO
B.1 Do mérito
O thema decidendum centra-se em interpretar o disposto no art. 10.º, 1, a), CIRS, no sentido de determinar se abrange ou não atos jurídicos qualificados como de alineação onerosa do direito a quinhão hereditário de herança constituída por bem imóvel.
Para a Requerente não restam dúvidas que o citado preceito não abrange a alienação referida. Refere que o herdeiro sucede no património do falecido e legatário enquanto sucessor universal logo, recebe, sempre, uma universalidade, seja a totalidade do património do de cujus, seja uma quota do património do falecido. Sendo vários herdeiros, cada um sucede na quota-parte do património autónomo na sua universalidade. Mas, só com a partilha é que o herdeiro se torna pleno titular dos direitos de propriedade e pode exercer os respetivos direitos, conforme resulta do previsto no art. 2119.º, CCiv. De acordo com o art. 2124.º, CCiv., o que o herdeiro transmite é o direito à herança, isto é, o “direito de quinhão hereditário”, que traduz uma quota-parte ideal da herança. Cita vária jurisprudência, judicial e arbitrária, e doutrina pugnando pela sua posição.
Por sua vez, a AT tem posição diametralmente oposta. Cita o disposto nos arts. 2128.º, o adquirente do “(...) quinhão hereditário sucede nos encargos respetivos”; 2119.º; 1404.º “As regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos (...)”; todos do CCiv., para depois concluir que "a alienação de quotas em propriedade de bens imóveis (é) subsumível à previsão contida na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS, sendo as suas regras aplicáveis às situações de comunhão, como sucede com os quinhões hereditários, e sendo indiscutível a retroactividade da aceitação da herança ao momento da sua abertura". Aliás, até porque "o n.º 1 do artigo 46.º do CIRS é claro ao remeter para o CIMT o apuramento de valores de aquisição de bens imóveis", sendo que a "alienação de quinhões hereditários quando nestes se compreendam bens imóveis surge expressamente prevista como sujeita a IMT na parte final da alínea c) do n.º 5 do artigo 2.o do CIMT".
Antecipando desde já a nossa posição, não vemos como a argumentação tecida pela AT permite, no caso concreto, sustentar a aplicação do citado art. 10.º, 1, a), CIRS, pois ela contraria aquele que é o quadro teórico-legal que emerge da transmissão mortis causa, nomeadamente, os direitos do herdeiro sobre a herança (“direito de quinhão hereditário) e os direito que ele transmite antes de a partilha se realizar (quota-parte ideal da herança).
Com efeito, este tema tem sido profusamente debatido nos tribunais judiciais (acórdãos STA de 15.06.2016, Proc. n.º 01863/13; de 25.11.2009, Proc. n.º 0975/09; de 28.01.2015, Proc. n.º 0450/14; de 24-02-2021, Proc. 05/09.6BESNT; e acórdãos STJ de 21.04.2009, proc. n.º 635/09; de 30.01.2013, Proc. n.º 1100/11.7TBABT; de 09.02.2012, Proc. n.º 2752/07.8TBTVD.L1.S1, entre outros), e arbitrais (Proc. n.º 627/2017-T; Proc. 247/2022-T), quanto à conceptualização que lhe subjaz. Além disso, o enquadramento doutrinário encontra-se devidamente solidificado.
Não ignoramos decisões em sentido contrário ao peticionado pela Requerente (v.g., CAAD, proc. 176/2017 — tome-se nota, no entanto, que neste caso o negócio jurídico objeto de análise foi uma escritura pública de compra e venda e não uma cessão de quinhão hereditário; além disso, diz-se que "o quinhão hereditário do Requerente (se traduz) no direito de propriedade sobre uma quota do imóvel aqui em apreciação" bem como "Tratando-se de uma quota-parte de um imóvel e do respetivo direito de propriedade sobre o mesmo...." o que não nos parece ser inteiramente rigoroso).
Seguimos de perto as decisões CAAD prolatadas nos processos 627/2017-T e 247/2022-T, pois espelham convenientemente o nosso entendimento.
Antes de mais, apreciemos o conceito e a natureza jurídica de 'quinhão hereditário'.
Nos termos do art. 2030.º, 2, CCiv., herdeiro é o "que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados.”
Significa isto, pois, que o herdeiro sucede no património enquanto universalidade ou sucessor universal. Seja ela no seu todo (totalidade do património do de cujus) seja ela universalidade numa sua quota, numa quota do património do de cujus — cf., nesse sentido, cfr. Inocêncio Galvão Telles, Direito das Sucessões, Noções Fundamentais, 6.ª Ed., Coimbra Editora, 1991, p. 189.
Refere o citado Autor, idem, "em resumo (...) herdeiro é o que sucede no “universum ius” do falecido ou numa quota desse “universum ius”, entendendo por este o património como unidade jurídica. Num caso ou noutro há́ sucessão universal. A diferença está em que no primeiro caso a universalidade fica a pertencer a um só herdeiro, ao passo que no segundo fica a pertencer a dois ou mais, e então cada um tem uma quota."
Ora, só é possível a um herdeiro transmitir a sua quota parte na universalidade — universalidade que é o património uno e indiviso do de cujus, conjunto abstrato — enquanto se permanecer em tal indivisão. Ou seja, a alienação do quinhão hereditário só é possível até à partilha da herança. Uma vez partilhada a herança (e sendo a partilha o ato pelo qual são adjudicados bens concretos da herança a cada herdeiro para preenchimento do respetivo quinhão) por definição deixa de existir quinhão hereditário. Desde logo porque, por efeito da partilha, os bens que tiverem vindo preencher o respetivo quinhão hereditário confundem-se, então, com o património pessoal do herdeiro.
Conforme determina o art. 2124.º, CCiv., o que o herdeiro transmite é o direito à herança, isto é, conforme Capelo de Sousa o “direito de quinhão hereditário”, que traduz uma quota-parte ideal da herança. Segundo este mesmo Autor, “Pela alienação de quinhão hereditário indiviso transfere-se para o adquirente o direito de quinhão em causa, que abrange, v. g., direitos de gestão (art. 2091.º, CCiv), direitos à recepção de rendimentos (art. 2092.º, CCiv) e direitos de exigir a partilha e de composição da quota (art. 2101.º, CCiv).(...)” (cfr. Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, 2.ª Ed., Coimbra Editora, 1997, p. 98).
Conforme resulta do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) de 15 de junho de 2016, processo n.º 01863/13, “constituindo a herança indivisa uma universalidade relativamente à qual não houve ainda partilha de bens (art. 2119° do CCivil), estamos em presença de um «património autónomo» partilhado, em regime de comunhão (e não em compropriedade), pelos co-herdeiros, os quais não detêm qualquer direito próprio sobre cada bem individualizado que compõe a herança indivisa, sendo apenas seus titulares em comunhão.
Na mesma linha, o acórdão do STJ, de 21 de abril de 2009, proc. n.º 635/09, “(...) até à partilha, os herdeiros são titulares, tão somente, do direito “a uma fracção ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fracção seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada um dos elementos a partilhar (...)”. Só depois da realização da partilha é que o herdeiro poderá ficar a ser proprietário ou comproprietário de determinado bem da herança.”.
Veja-se também o acórdão do STA de 25 de novembro de 2009, processo n.º 0975/09, que determina que “enquanto a herança se mantiver indivisa, cada herdeiro é titular de um direito a uma quota de uma massa de bens, que constitui um património autónomo e não um direito individual sobre cada um dos bens que a integram”.
Ou ainda o acórdão do STA de 28 de janeiro de 2015, proferido no âmbito do processo n.º 0450/14, que refere que “(...) Embora cada um dos herdeiros tenha desde a abertura da sucessão direito a uma parte ideal da herança, é apenas com a partilha que esse direito se concretiza tornando certos e determinados os bens que couberem ao herdeiro. E só após a partilha é que o herdeiro se torna pleno titular dos direitos que por ela lhe couberem. E, ainda que a herança seja constituída por bens imóveis, só com a partilha passa a ser titular do direito de propriedade sobre eles e nessa qualidade a poder exercer os direitos correspondentes. (...)".
Como resulta da matéria dada como provada, a 4 de fevereiro de 2022 "a ora Requerente declarou vender pelo preço de 47.500,00 euros, ao mesmo E..., o quinhão hereditário que lhe pertencia por óbito da referida B...".
Isto é, o que a Requerente declara transmitir é o direito ao seu quinhão hereditário, direito esse que integrava a sua esfera jurídica. E só poderia ser assim, pois, nesse momento, a Requerente é apenas titular de um direito a uma quota ideal de uma herança que ainda não foi partilhada, só se tornando proprietária dos bens ou direitos com a respetiva partilha.
Posto isto, não há, nem pode haver, uma transmissão onerosa ou gratuita de “bens concretos e determinados integrantes da herança enquanto esta permanecer indivisa” (cf. CAAD, Processo no 627/2017-T). Neste sentido, veja-se também o acórdão do STJ, de 30 de janeiro de 2013, proc. n.º 1100/11.7TBABT, no qual se conclui: “I – Tanto a Jurisprudência, como a mais balizada doutrina da especialidade, apontam decisivamente no sentido de que só se pode dividir os bens da herança de que se seja proprietário, ou seja, que tenham sido atribuídos aos herdeiros em partilha previamente realizada. II – A ratio de tal solução é muito simples: é que, até à partilha, os coherdeiros de um património comum, adquirido por sucessão “mortis causa”, não são donos dos bens que integram o acervo hereditário, nem mesmo em regime de compropriedade, pois apenas são titulares de um direito sobre a herança (acervo de direitos e obrigações) que incide sobre uma quota ou fracção da mesma para cada herdeiro, mas sem que se conheça quais os bens concretos que preenchem tal quota. III- É pela partilha(...) que serão adjudicados os bens dessa universalidade que é herança e que preencherão aquelas quotas. Por isso, assim se ponderou no aresto deste Supremo Tribunal, de 04.02.1997 supracitado: “A compropriedade pressupõe um direito de propriedade comum sobre uma coisa ou bem concreto e individualizado, ao invés do que sucede na contitularidade do direito à herança que recai sobre uma universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais deles o direito hereditário se concretizará”. (...)”
Portanto, como se disse, pela alienação de quinhão hereditário indiviso transfere-se para o adquirente o direito de quinhão em causa e não um direito de propriedade sobre um bem concreto e individualizado.
Vejamos agora o disposto no art. 10.º, 1, a), CIRS.
A transmissão do quinhão hereditário da herança quando integrada por bens imóveis, como é o caso, é distinta da alienação do direito de propriedade que o proprietário ou o comproprietário detêm sobre bens imóveis. A situação em causa não se enquadra no citado preceito do CIRS, pois, in casu, não ocorreu uma transmissão onerosa de direitos reais sobre bens imóveis.
Com efeito, resulta claro do artigo 10.º, 1, a), CIRS, que a norma de incidência tributária incide sobre a “alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis” e não sobre o direito ao quinhão hereditário, o que significa que a sua alienação em causa não está sujeita a tributação em sede de mais-valias no âmbito do IRS. Este entendimento é, aliás, acompanhado pela jurisprudência (com a cessão de quinhão hereditário transmite-se o direito ao quinhão hereditário, isto é, “um direito abstratamente considerado e idealmente definido”, conforme resulta do acórdão do STJ de 09 de fevereiro de 2012 - Proc. 2752/07.8TBTVD.L1.S1). Só com a realização da partilha é que se pode estabelecer a titularidade do direito de propriedade sobre tais bens imóveis.
Portanto, do citado preceito não resulta a subsunção ao presente caso, pois o que a Requerente detinha era um direito a quinhoar na herança líquida e indivisa, aberta por óbito do de cujus, mas daí não resulta qualquer direito de propriedade sobre os bens, in concreto, da herança. Sendo assim, a alienação desse direito não está sujeita à tributação em sede de mais-valias em IRS, contrariamente ao entendimento da AT.
Nesse sentido, veja-se o acórdão do STA de 28 de janeiro de 2015, processo n.º 0450/14, “os ganhos resultantes da alienação de quinhão hereditário constituído também por imóveis não estão abrangidos pela incidência do art. 10.º, nº 1, al. a) do CIRS, conforme o Supremo Tribunal Administrativo já́ fixou jurisprudência no aresto proferido em 25/11/2009, no processo n.º 0975/09”.
Além disso, a AT considera que a "alienação de quinhoes hereditários quando nestes se compreendam bens imóveis surge expressamente prevista como sujeita a IMT na parte final da alínea c) do n.º 5 do artigo 2.º do CIMT."
Com efeito, o art. 2.º, 5, c), CIMT, sujeita a IMT a “alienação da herança ou quinhão hereditário” nos casos em que façam parte bens imóveis.
A questão é que esta norma de incidência é referente a IMT, dela não resultando quaisquer consequências jurídicas para efeitos de tributação das mais-valias resultantes da alienação de quinhão hereditário sobre herança líquida e indivisa constituída por imóveis, pelo que não pode esta norma de incidência em sede de IMT ser extrapolada para efeitos da sua aplicação em matéria de IRS.
Deste modo, deve a nota de liquidação objeto de apreciação ser anulada, por erro sobre os pressupostos de direito.
B.2. O pedido de reembolso de quantia indevidamente paga e juros indemnizatórios
A Requerente formula um pedido de reembolso do IRS indevidamente pago bem como o pagamento dos juros indemnizatórios.
É jurisprudência uniforme — maxime, cf. Ac. 630/2014-T, CAAD — que de acordo com disposto no art. 24.º, 1, b), RJAT "a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito».
E continua o citado Ac.: "Com efeito, apesar de o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação (arts. 99.º e 124.º do CPPT), pode nele ser proferida condenação da administração tributária no pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida.
Sendo processualmente viável apreciar o pedido de juros indemnizatórios será necessariamente também possível apreciar o pedido de reembolso da quantia indevidamente paga, cujo montante é factor de determinação do montante dos juros indemnizatórios.
Assim, à semelhança do que sucede com os tribunais tributários em processo de impugnação judicial, este Tribunal Arbitral é competente para apreciar os pedidos de reembolso da quantia paga e de pagamento de juros indemnizatórios.
Ficou dado como provado (art. 110.º, 7, CPPT, ex vi, art. 29.º, RJAT, e art 16.º, e), RJAT) que a Requerente pagou a quantia liquidada acima identificada.
Consequentemente, determino que a AT reembolse a Requerente do valor de liquidação de IRS indevidamente pago, e respetivos juros, porque não devidos, conforme fundamentação já expedida supra.
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Quanto aos juros indemnizatórios.
Determina o art. 24.º, 5, RJAT, que "“é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
Nos processos arbitrais tributários pode haver lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º, e 100.º, LGT, quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
In casu, ficou demonstrado que ocorreu erro imputável aos serviços, pois estes não deveriam ignorar que a mais-valia resultante da alienação do direito ao quinhão hereditário não estava abrangida pelo art. 10.º, 1, a), CIRS, nem por outra qualquer norma de incidência tributária e, em consequência, não podia ser tributada.
Sendo assim, são devidos juros indemnizatórios à Requerente.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:
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Julgar totalmente procedente o pedido de anulação do ato tributário de liquidação de IRS n.º 2024..., de 26 de janeiro de 2024 e, consequentemente, determino a sua anulação;
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Julgar procedente o pedido de reembolso da quantia paga e respetivos juros, bem como os respetivos juros indemnizatórios, calculados à taxa legal, nos termos do art. 61.º, CPPT, condenando a Autoridade Tributária a efetuar o respetivo pagamento à Requerente;
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Condenar a Requerida no pagamento integral das custas do presente processo.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 9.869,40, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, conforme o disposto no artigo 22.º, n.º 4, RJAT.
Notifique-se.
Bom Sucesso
17 de julho de 2024
O Árbitro Singular
(Ricardo Marques Candeias)