Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 939/2023-T
Data da decisão: 2024-06-02  IRC  
Valor do pedido: € 583.835,63
Tema: Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC). Prova do preço efetivo na transmissão de imóveis
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SUMÁRIO:

I - Para efeitos do disposto no artigo 139.º, n.º 1, do CIRC, a Requerente não tem de fazer prova de ter adotado nas transmissões em causa o “valor normal de mercado” (a que se refere o artigo 64.º, n.º 1, do CIRC), mas tem, isso sim, de fazer prova do “preço efetivamente praticado nas transmissões”, afastando, assim, a presunção contida no n.º 2 do artigo 64.º do CIRC.

II - O não acesso pela AT à informação bancária da Requerente e dos seus administradores, na medida em que configura um meio apto a contribuir para a prova do preço efetivo na transmissão de imóveis, nos termos do n.º 6 do artigo 139.º do CIRC, vicia a decisão da AT assente na fundamentação de que tal prova não foi feita.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os Árbitros José Poças Falcão (Presidente), Ana Teixeira de Sousa e Paulo Nogueira da Costa (relator), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:

 

I – RELATÓRIO

  1. A..., S.A., com sede social na ... n.º..., ...-... Lisboa, com o número de identificação de pessoa coletiva..., (adiante designada “Requerente”), veio, termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a Constituição de Tribunal Arbitral.
  2.  A Requerente peticiona a declaração da ilegalidade e a anulação do ato de liquidação adicional de IRC n.º 2023..., referente ao período de 2020, do qual resultou o apuramento de prejuízos fiscais no valor de € 810.671,90, ao invés do valor considerado inicialmente de € 1.394,507,53.
  3. A Requerente fundamenta o PPA nos termos e com argumentos que de seguida se sintetizam:
    1. A Requerente entende que o ato de liquidação contestado padece de uma incorreta interpretação e aplicação das normas relativas à determinação da matéria coletável, em sede de IRC e, em concreto, às normas que preceituam a prova do preço efetivo praticado nas transmissões de bens imóveis, designadamente, os artigos 64.º e 139.º do CIRC;
    2. A lei admite que o sujeito passivo faça prova de que o preço efetivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis foi inferior ao valor patrimonial tributário que serviu de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (n.º 1 do artigo 139.º do CIRC);
    3. Essa prova deverá ser realizada através de procedimento próprio, instaurado mediante requerimento dirigido ao diretor de finanças competente e apresentado em janeiro do ano seguinte àquele em que ocorreram as transmissões, caso o VPT já se encontre definitivamente fixado – tal como sucedeu no caso vertente - ou nos 30 dias posteriores à data em que a avaliação se tornou definitiva - nos restantes casos;
    4. O procedimento em causa rege-se pelo disposto nos artigos 91.º e 92.º da LGT, com as necessárias adaptações, ou seja, pelas regras consagradas para o pedido de revisão da matéria tributável;
    5. Sendo apresentado este pedido de prova do preço efetivo, a AT pode, nos termos do disposto no n.º 6 do artigo 139.º do CIRC, aceder à informação bancária da Requerente e dos respetivos administradores ou gerentes, relativamente ao período de tributação em que ocorreu a transmissão e ao período de tributação anterior. Para o efeito, devem ser anexados pela Requerente os correspondentes documentos de autorização.
    6. Alega a Requerente que, no caso vertente, todas as regras acima elencadas foram por si escrupulosamente cumpridas, tendo apresentado, em 12 de janeiro de 2021, um pedido de prova do preço efetivo de diversas transações de imóveis realizadas no ano de 2020, devidamente instruído nos termos legais.
    7. A AT procedeu a uma errónea interpretação do instituto da prova do preço efetivo, resguardando-se no conceito da necessidade de prova das condições anormais de mercado para rejeitar a prova do preço praticado.
    8. O regime previsto no artigo 139.º do Código do IRC não autoriza a AT a tecer quaisquer considerações sobre a bondade ou oportunidade das transmissões de imóveis levadas a cabo pelos sujeitos passivos (máxime, sobre os preços praticados em tais operações) permitindo apenas à AT apurar se a prova produzida pelo sujeito passivo é suficiente para demonstrar que o preço declarado corresponde ao preço efetivamente praticado;
    9. A AT prescindiu da análise das contas bancárias, referindo na decisão final do procedimento, de uma forma que não corresponde à verdade, que a Requerente, em síntese, não apresenta outros argumentos, tendo apenas juntado ao pedido cópia das escrituras de compra e venda respetivas, bem como os documentos de autorização para acesso à documentação bancária, e os respetivos documentos de identificação;
    10. A liquidação objeto dos autos configura, segundo a Requerente, uma violação ao princípio da tributação do rendimento real, consagrado no artigo 104.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), uma vez que tal liquidação se traduz numa tributação de um valor que não corresponde ao valor real dos rendimentos recebidos pela Requerente;
    11. O ato de liquidação em apreço também deve ser anulado com fundamento na violação do disposto no artigo 68.º-A da LGT, por assentar em doutrina administrativa – Ofício-Circulado n.º 20136, de 11/03/2009, da Direção de Serviços do IRC – que, para além de não ser fonte de Direito, é ilegal;
    12. Da obrigatoriedade de autorização do acesso às contas bancárias, por um lado, e da importância de tal informação bancária para a descoberta da verdade material em caso de dúvida quanto ao preço efetivamente praticado, por outro lado, resultam as seguintes consequências: (i) caso a AT entenda que a documentação apresentada pelo sujeito passivo é suficiente para demonstrar o preço efetivamente praticado, deve abster-se de aceder à informação bancária; (ii) caso subsistam dúvidas sobre a correspondência entre o preço declarado e o preço efetivo efetivamente praticado, a AT tem não só o poder como o dever ou ónus de aceder à informação bancária com vista a dissipar tais dúvidas;
    13. O incumprimento pela AT do seu dever de acesso às contas bancárias, nos casos acima enunciados e sem qualquer justificação válida para esse efeito, deve ser enquadrado como omissão de diligências necessárias à descoberta da verdade material, pelo que, uma eventual dúvida sobre o preço efetivo do imóvel, deverá ser valorada contra a AT;
    14. Acresce que, mesmo que se admitisse que no caso vertente a Requerente teria de ter realizado a prova das condições “anormais” de mercado, teria de se concluir que a mesma tinha na sua posse elementos que permitiam, e permitem, comprovar que o valor de venda correspondeu ao valor de mercado – os Relatórios de Avaliação elaborados previamente à venda dos imóveis;
    15. Desses Relatórios resulta evidenciado, por um lado, que os valores de venda foram superiores aos valores de mercado apurados e, por outro lado, que os “cálculos” realizados pela AT, baseados nos VPTs, se revelam manifestamente desajustados e desfasados da realidade dos imóveis em causa.
  4. É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante designada somente por “Requerida” ou “AT”).
  5. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 11-12-2023.
  6. A Requerida foi notificada da apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral em 15-12-2023.
  7. Os signatários foram designados como árbitros pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, nos termos dos números 2, alínea a), e 3 do artigo 6.º do RJAT, tendo a nomeação sido aceite, no prazo e nos termos legalmente previstos.
  8. Em 31-01-2024 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos do disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, conjugado com os artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
  9. Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 20-02-2024.
  10. Em 23-02-2024 foi a Requerida notificada para apresentar Resposta.
  11. A Requerida remeteu cópia do processo administrativo em 03-04-2024.
  12. A Requerida apresentou Resposta em 05-04-2024, na qual apresenta defesa por exceção e por impugnação.
  13. Na defesa por exceção, a Requerida alega, em síntese o seguinte:
    1. o tribunal arbitral não tem competência para validar o preço de venda de imóveis;
    2. tal implicaria, além do mais, a análise das contas bancárias da Requerente para, corroborando a tese da mesma, aferir os pressupostos do mecanismo do artigo 139.º do CIRC;
    3. admitir-se que o Tribunal Arbitral tem competência para esta apreciação e, de alguma forma, quantificar a matéria tributável representaria o exercício pelo Tribunal de competências próprias da AT;
    4. inexiste, no âmbito do RJAT, qualquer suporte legal que permita que sejam proferidas pelos tribunais arbitrais condenações de outra natureza que não as decorrentes dos poderes fixados no mesmo RJAT: poderes declaratórios com fundamento em ilegalidade;
    5. assim, também não pode ser proferida decisão que, na prática, reconheça o direito da Requerente a ver reconhecido o preço efetivo na transmissão dos imóveis;
    6. por isso, o pedido de pronúncia arbitral não consubstancia o meio próprio, o que, no caso, redunda na própria incompetência do Tribunal Arbitral para, em alternativa, à ação administrativa que é o meio próprio, condenar a AT à prática de um ato devido
    7. sendo constitucionalmente vedada, por força dos princípios constitucionais do Estado de direito e da separação dos poderes (cf. artigos 2.º e 111.º, ambos da CRP), bem como do direito de acesso à justiça (artigo 20.º da CRP) e da legalidade [cf. artigos 3.º, n.º 2, 202.º e 203.º da CRP e ainda o artigo e 266.º, n.º 2, da CRP], como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT, a interpretação, ainda que extensiva, que amplie a vinculação da AT à tutela arbitral fixada legalmente, por tal pressupor, necessariamente, a consequente dilatação das situações em que esta obrigatoriamente se submete a tal regime, renunciando nessa medida ao recurso jurisdicional pleno [cf. artigos 25.º e 27.º da RJAT, que impõem uma restrição dos recursos da decisão arbitral].”;
    8. o que, a verificar-se, traduziria a existência de uma exceção dilatória, consubstanciada na incompetência material do tribunal arbitral, a qual obsta ao conhecimento do pedido, e, por isso, deve determinar a absolvição da entidade Requerida da instância, atento o disposto nos artigos 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
  14. Na defesa por impugnação, a Requerida alega, em síntese o seguinte:
    1. Na transmissão de um direito real sobre um bem imóvel é obrigação das partes contratantes adotar o “valor normal de mercado” para efeitos da determinação do lucro tributável em sede de IRC (artigo 64.º n.º 1 do CIRC);
    2. O procedimento previsto no artigo 139.º do CIRC, para afastamento da presunção ínsita no artigo 64.º, n.º 2 do mesmo Código, rege-se polo disposto nos artigos 91º e 92º da LGT, com as necessárias adaptações;
    3. Não tendo sido possível chegar a acordo, no âmbito do referido procedimento, cada um dos peritos lavrou o seu laudo;
    4. Nos termos do n.º 6 do artigo 92º da LGT, na falta de acordo, o órgão competente para a fixação da matéria tributável resolverá, de acordo com o seu prudente juízo, tendo em conta as posições dos peritos;
    5. Não foi demonstrado de forma clara e inequívoca que o valor constante no contrato corresponde ao preço efetivamente praticado;
    6. Não foram de forma inequívoca justificadas as condições anormais de mercado em que dizem terem sido realizadas as transmissões, de que resultou a fixação de preço inferior ao valor patrimonial tributário definitivo dos imóveis transmitidos;
    7. O ónus da prova, de que os preços efetivamente praticados nas transmissões dos imóveis foram inferiores aos VPT’S, cabe ao sujeito passivo;
    8. A prova de que os preços efetivos correspondem aos valores constantes dos contratos depende da justificação das condições anormais de mercado em que se realizaram as transmissões, de que resultaram as fixações de preços inferiores aos VPT’S definitivos dos bens imóveis;
    9. Não foi demonstrado pelo sujeito passivo, nem pelo seu perito, que os preços efetivamente praticados nas transmissões onerosas em causa, foram inferiores aos VPT’S fixados, tal como determina o disposto no nº 1 do artigo 139º do CIRC;
    10. Determina ainda o nº 11 do Ofício-Circulado Nº 20136 de 11.03.2009 da Direção de Serviços do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, que a promoção de reunião de peritos, com o propósito de obter um acordo sobre os preços efetivamente pagos pelo adquirente dos bens, não se deve basear só nos elementos de acesso ao segredo bancário, mas também do exame das condições especiais ou normais de mercado que circundaram a transmissão;
    11. A prova das condições anormais de mercado é a condição maior para provar a fixação de um preço efetivo inferior ao VPT, nos termos do artigo 64.º n.º 2 do CIRC;
    12. No caso em apreço, entende a Requerida que não foram de forma inequívoca justificadas as condições anormais de mercado em que foram realizadas as transmissões dos imóveis, das quais resultou a fixação de um preço inferior ao VPT, pelo que não se encontra reunida uma das condições necessárias e exigidas.
  15. Em 06-04-2024, o tribunal arbitral proferiu despacho no qual dispensou a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, concedendo às Partes prazo para apresentarem alegações finais escritas, no âmbito das quais a Requerente teve oportunidade de exercer o direito ao contraditório relativamente à defesa por exceção apresentada pela Requerida.
  16. As Partes apresentaram alegações escritas, nas quais reiteraram, no essencial, os argumentos expendidos em sede de PPA e de Resposta.

 

II – SANEAMENTO

  1. A apresentação do pedido de pronúncia arbitral foi tempestiva.
  2. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas quanto ao pedido de pronúncia arbitral e estão devidamente representadas.
  3. Atendendo a que a Requerida suscitou a exceção dilatória de incompetência material do tribunal arbitral, que obstaria ao conhecimento do pedido, importa, desde já, apreciar e decidir sobre a mesma.
  4. Conforme resulta dos autos, a Requerente formula o seu pedido nos seguintes termos: “deverá ser declarada a ilegalidade do ato de liquidação de IRC e demais atos impugnados, referente ao ano de 2020, com a sua consequente anulação, nos termos e com os fundamentos acima expostos”.
  5. Sobre a competência dos tribunais arbitrais, o artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT estabelece o seguinte:

1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

[…]”.

  1. Assim sendo, e uma vez que nos autos é pedida a declaração da ilegalidade e a anulação de um ato de liquidação, este tribunal considera-se competente para conhecer do presente pedido de pronúncia arbitral, pelo que julga improcedente a exceção de incompetência material do tribunal arbitral, suscitada pela Requerida.
  2. Não foram alegadas outras exceções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
  3. Não se verificam nulidades.

 

III – FACTOS RELEVANTES

§1.       Factos provados

  1. Consideram-se provados os seguintes factos:
    1. A Requerente é uma sociedade que se dedica à compra de imóveis para revenda e gestão de imóveis próprios – CAE 68100 “Compra e venda de bens imobiliários”;
    2. No âmbito dessa atividade, durante o ano de 2020, a Requerente alienou três imóveis de que era proprietária por valores inferiores aos respetivos VPT;
    3. Previamente à sua alienação a Requerente solicitou a uma entidade terceira a avaliação desses imóveis;
    4. Para realização da prova do preço efetivamente praticado naquelas operações de venda, a Requerente apresentou, em 12 de janeiro de 2021, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 139.º do Código do IRC e 91.º a 94.º da LGT, um pedido de prova do preço efetivo, dirigido à Direção de Finanças de Lisboa;
    5. Para o efeito, instruiu aquele pedido com a cópia das respetivas escrituras de compra e venda, bem como com os documentos de autorização de acesso à informação bancária da Requerente e dos seus administradores;
    6. E indicou, também, o perito que a representaria na reunião a realizar nos termos do disposto nos artigos 91.º e 92.º da LGT;
    7. No âmbito do referido procedimento, a Requerente, a 23 de janeiro de 2021, foi notificada de um “Pedido de elementos ao abrigo do princípio de colaboração”;
    8. A Requerente atendeu ao pedido e solicitou, ainda, a substituição do perito por si indicado anteriormente;
    9. Nessa sequência, foi realizada, a 16 de março de 2023, a reunião de peritos a que se referem os artigos 91.º e 92.º da LGT, na qual não houve acordo entre a perita nomeada pela AT e o perito nomeado pela Requerente;
    10. Através do Ofício n.º DFLISBOA..., datado de 17 de agosto de 2023, a Requerente foi notificada pela Direção de Finanças de Lisboa da decisão proferida no referido procedimento, que indeferiu o pedido da Requerente, por considerar, em síntese, que:

- não foi demonstrado de forma clara e inequívoca que os valores constantes nas escrituras públicas de compra e venda correspondem aos preços efetivamente praticados;

- não foram de forma inequívoca justificadas as condições anormais de mercado em que foram realizadas as transmissões de que resultaram as fixações de preços inferiores aos valores patrimoniais tributários definitivos dos imóveis transmitidos;

  1. Foi decidida a manutenção dos VPT de cada um dos imóveis, para efeitos do apuramento da matéria coletável de IRC da Requerente para o exercício de 2020;
  2. Em resultado do entendimento acima exposto, foi emitido o ato de liquidação de IRC ora contestado, em nome da Requerente, nos termos do qual a AT procedeu a uma correção à matéria coletável do período de tributação de 2020, no montante total de € 583.835,63, que se refletiu na liquidação objeto do pedido de pronúncia arbitral.

 

§2. Factos não provados

  1. Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

§3. Motivação quanto à matéria de facto

  1.  Cabe ao Tribunal selecionar os factos relevantes para a decisão e discriminar a matéria provada e não provada [artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT].
  2. Os factos pertinentes para a decisão são escolhidos em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito [cfr. artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].
  3. Consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo por base a prova documental e o Processo Administrativos juntos aos autos, e as posições assumidas pelas partes, e não contestadas, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT.

 

IV – MATÉRIA DE DIREITO

  1. Questão a decidir
  2. A questão a decidir prende-se com saber se o ato de liquidação contestado é, ou não, ilegal por violação do disposto nos artigos 64.º, n.ºs 1 e 2, e 139.º do CIRC e do princípio da tributação pelo rendimento real, e por erro na quantificação.

 

b) Enquadramento normativo

 

  1. O enquadramento jurídico da questão tem de atender ao disposto nos artigos 64.º, n.ºs 1 e 2 e ao artigo 139.º, n.ºs 1 e 6, do CIRC, os quais estabelecem o seguinte:

Artigo 64.º

Correções ao valor de transmissão de direitos reais sobre bens imóveis

1 - Os alienantes e adquirentes de direitos reais sobre bens imóveis devem adotar, para efeitos da determinação do lucro tributável nos termos do presente Código, valores normais de mercado que não podem ser inferiores aos valores patrimoniais tributários definitivos que serviram de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) ou que serviriam no caso de não haver lugar à liquidação deste imposto.

2 - Sempre que, nas transmissões onerosas previstas no número anterior, o valor constante do contrato seja inferior ao valor patrimonial tributário definitivo do imóvel, é este o valor a considerar pelo alienante e adquirente, para determinação do lucro tributável.

 […]”

Artigo 139.º

Prova do preço efetivo na transmissão de imóveis

1 - O disposto no n.º 2 do artigo 64.º não é aplicável se o sujeito passivo fizer prova de que o preço efetivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis foi inferior ao valor patrimonial tributário que serviu de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis.

[…]

6 - Em caso de apresentação do pedido de demonstração previsto no presente artigo, a

administração fiscal pode aceder à informação bancária do requerente e dos respetivos

administradores ou gerentes referente ao período de tributação em que ocorreu a transmissão e ao período de tributação anterior, devendo para o efeito ser anexados os correspondentes documentos de autorização.

[…]”.

 

c) Apreciação

  1. É entendimento deste tribunal, em linha com outras decisões arbitrais (designadamente as proferidas nos processos n.º 73/2022-T e 598/2017-T), que, para efeitos do disposto no artigo 139.º, n.º 1, do CIRC, a Requerente não tem de fazer prova de ter adotado nas transmissões em causa o “valor normal de mercado” (a que se refere o artigo 64.º, n.º 1, do CIRC), mas tem, isso sim, de fazer prova do “preço efetivamente praticado nas transmissões”, afastando, assim, a presunção contida no n.º 2 do artigo 64.º do CIRC.
  2. A este respeito, subscreve-se a fundamentação contida na decisão arbitral proferida no âmbito do processo n.º 73/2022-T, expressa nos seguintes termos:

“[…]

Conforme tem vindo a ser reconhecido pela doutrina e jurisprudência, a regra estabelecida no art. 64º, nº 2 do CIRC, segundo a qual, sempre que, nas transmissões onerosas em causa, o valor do contrato for inferior ao valor patrimonial tributário definitivo, é este o valor a considerar pelo alienante e adquirente, para determinação do lucro tributável, tem ínsita a presunção de que existe uma simulação de preço.

No entanto, face ao princípio, estabelecido no art. 73º da LGT, de que as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, o art. 139º, nº 1 do CIRC veio, expressamente, admitir a possibilidade do sujeito passivo afastar a aplicação da presunção fazendo “prova de que o preço efetivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre imóveis foi inferior ao valor patrimonial tributário que serviu de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis”

Para este efeito, o nº 3 deste art. 139º do CIRC veio preceituar que essa prova deve ser efetuada em procedimento instaurado mediante requerimento dirigido ao diretor de finanças competente.

Este procedimento, que na epígrafe do artigo é designado por “Prova do preço efetivo na transmissão de imóveis”, é regido pelo disposto nos arts. 91º e 92º da LGT, com as necessárias adaptações, de acordo com o prescrito no seu nº 5.

Convém sublinhar que, neste procedimento tributário, não existe qualquer restrição aos meios de prova que o sujeito passivo pode utilizar, desde que admitidos em direito, face ao disposto no art. 72º da LGT, regra esta que também se aplica aos processos arbitrais tributários, como o presente, face ao disposto no art. 115º, nº 1 do CPPT, aplicável ex vi art. 29º, nº 1, alínea c) do RJAT.

Ora, na decisão do procedimento, foi invocado o Ofício-Circulado nº 20136, de 11/03/2009, que determinou o sentido da decisão, no qual são apontados como requisitos cumulativos para a prova do preço efetivo, os seguintes:

- Justificação das condições anormais de mercado em que foi realizada a transmissão, de que resultou a fixação de um preço inferior ao valor patrimonial tributário definitivo do imóvel transmitido;

- Renúncia expressa do requerente e dos administradores ou gerentes à tutela conferida pelo segredo bancário.

Assim sendo, e, tendo em conta que houve renúncia expressa do sujeito passivo, dos seus administradores e gerentes, ao segredo bancário, terá sido o requisito de que não foram de forma inequívoca justificadas as condições anormais de mercado em que foram realizadas as transmissões dos imóveis, que foi determinante para a decisão de indeferimento.

Ora este entendimento não tem suporte legal, pois, como já se referiu, o sujeito passivo pode utilizar quaisquer meios de prova do preço efetivamente praticado, independentemente de existirem, ou não, condições anormais de mercado, razão pela qual a falta dessa demonstração de condições anormais de mercado não poderá constituir fundamento de indeferimento do procedimento.

Acresce que, a desconsideração da relevância da documentação bancária, a que alude o nº 6 do art. 139º do CIRC, assumida pela AT, quando considera que, para a prova do preço efetivo não eram relevantes as informações bancárias, inquina a decisão, e, consequentemente, a liquidação em apreço, no que a esta matéria diz respeito.

Conforme é reconhecido, sendo o preço a contrapartida da venda, de que resultam fluxos financeiros entre, pelo menos, duas partes, o acesso aos dados bancários da alienante surge como elemento determinante no apuramento do preço praticado.

Daí o relevo probatório que lhe é conferido pelo nº 6 do art. 139º do CIRC quando considera imprescindíveis as autorizações para a AT lhe ter acesso e poder confirmar que não houve pagamento superior ao declarado nos contratos.

Este direito de acesso às informações, cuja relevância se sublinhou, é um poder-dever da Administração Tributária, uma vez que, permitido o seu acesso, esta fica vinculada a usar esse poder para a descoberta da verdade material, em concretização dos princípios do inquisitório e da imparcialidade.

Com efeito, o art. 58º da LGT estabelece que a administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, das quais faz parte indiscutivelmente o acesso às informações bancárias e à consequente apreciação do seu valor probatório, atento o relevo que lhe é atribuído pelo nº 6 do art. 139º do CIRC.

Assim sendo, ao ignorar no procedimento da prova de preço efetivo na transmissão de imóveis, consignado no art. 139º do CIRC, as informações bancárias e a sua apreciação, a decisão de indeferimento está inquinada por vício de violação de lei, designadamente, erro de interpretação do art. 139º, nºs 2 e 6, do CIRC, art. 68-Aº, nº 2 da LGT e art. 104º, nº 2 da CRP, de que decorre a sua anulação de harmonia com o disposto no art. 163º, nº 1, do CPA, aplicável subsidiariamente nos termos do art. 2º, alínea c), da LGT e, consequente repercussões sobre a ilegalidade e anulação parcial deste segmento da liquidação impugnada, julgando, assim, o Tribunal Arbitral procedente o PPA, no que a esta matéria diz respeito.

            […]”

  1. Esta afigura-se-nos ser, além do mais, a interpretação mais conforme com o princípio constitucional da tributação do rendimento real, consagrado no artigo 104.º, n.º 2, da CRP.
  2. Verifica-se, assim, que um dos fundamentos invocados pela Requerida para fazer prevalecer os VPTs sobre os valores dos contratos – o de que a Requerente não justificou as condições anormais de mercado em que alega terem sido realizadas as transmissões – configura um erro de direito.

 

 

  1. E este primeiro fundamento inquina a apreciação da prova do preço efetivamente praticado, na medida em que a Requerida manifesta o entendimento de que tal prova depende da justificação das condições anormais de mercado em que se realizou a transmissão, ao afirmar o seguinte:

 

  1. Assim, o segundo fundamento – o de que “[n]ão foi demonstrado de forma clara e inequívoca que o valor constante do contrato, corresponde ao preço efetivamente praticado” – não pode, no entendimento da Requerida, ser dissociado do primeiro.
  2. Este entendimento levou a Requerida a desvalorizar as autorizações de levantamento do sigilo bancário relativamente à Requerente e aos seus administradores.
  3. Conforme é referido no PAT,

 

  1. É verdade que a derrogação do sigilo bancário da Requerente e dos respetivos administradores não é prova absoluta de que os preços efetivamente praticados correspondem ao valor do contrato, mas também não é prova irrelevante, e por isso o legislador faz-lhe expressa referência no artigo 136.º, n.º 6, do CIRC.
  2. Por outro lado, os indícios invocados pela Requerida para sustentar que não foi feita demonstração clara e inequívoca de que o valor constante do contrato corresponde ao preço efetivamente praticado justificavam, de forma acrescida, pelas dúvidas que suscitaram à AT, o acesso à informação bancária da Requerente e dos seus administradores, atendendo ao disposto no artigo 58.º da LGT.
  3. Considerando que a autorização de levantamento do sigilo bancário, quanto à Requerente e aos seus administradores, era apta, a par com a documentação junta ao procedimento, a provar o preço efetivamente praticado nas transmissões em causa, o facto de a AT ter prescindido da análise das contas bancárias deve, nestas circunstâncias, ser valorado contra si.
  4. Em conclusão, o ato de liquidação contestado é ilegal, por erro de direito, vício que justifica a sua anulação na parte contestada.
  5. Fica prejudicada, por desnecessária, a apreciação do vício de erro na quantificação, também alegado pela Requerente.

V – DECISÃO

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, este Tribunal Arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e declarar a ilegalidade e anular parcialmente o ato de liquidação objeto dos autos, com todas as consequências legais.

 

VI- VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea b), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 583.835,63.

 

VI – CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 8.874,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

  • Notifique-se.

Lisboa, 02 de junho de 2024

 

O Árbitro Presidente,

 

 

José Poças Falcão

 

A Árbitra Adjunta,

 

Ana Teixeira de Sousa

 

O Árbitro Adjunto,

 

Paulo Nogueira da Costa

(Relator)