Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 754/2023-T
Data da decisão: 2024-07-07  IVA  
Valor do pedido: € 63.494,79
Tema: IVA – locação financeira – pro rata - afetação real – art. 23º do CIVA e ofício-circulado nº 30108, de 30-01-2009.
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Sumário:

 

1. Nos termos do disposto no artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, não padece de ilegalidade a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de operações que conferem o direito a dedução e em operações que não conferem esse direito através da afetação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação, designadamente quando a utilização dos bens e serviços de utilização mista seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira.

2. Cabe ao sujeito passivo o ónus de alegar e provar que a utilização de bens ou serviços mistos não é sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos de locação financeira.

3. O TJUE utilizou o vocábulo “disponibilização” neste contexto precisamente ao referir-se à parte das rendas que na locação financeira corresponde à amortização de capital – e que serve para compensar a disponibilização, a entrega dos veículos, por contraposição à parte das rendas correspondente a juros – e que serve para compensar os custos de financiamento e gestão dos contratos.

 

 

 

 

 

 

Decisão Arbitral

 

A..., S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, NIPC ..., com sede na Rua ..., n.º..., ..., ..., ..., Lisboa, veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

I - Relatório

 

 

  1. O pedido

 

A Requerente peticiona:

- a anulação da decisão de indeferimento que versou sobre a reclamação graciosa da (auto)liquidação por si apresentada;

- a anulação parcial da (auto)liquidação de IVA relativa aos meses de julho e agosto de 2021;

- a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.

- a título subsidiário, solicita que o Tribunal Arbitral promova um reenvio prejudicial das questões que entenda suscitar para o Tribunal de Justiça da União Europeia, relativamente à consideração do valor das amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira no cálculo da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido nos recursos de utilização mista.

 

  1. O Litígio

 

O tema a decidir prende-se com o método de dedução (parcial) do IVA nos recursos de utilização mista das instituições de crédito que desenvolvam, a par de outras, atividades de leasing, nomeadamente leasing automóvel. A questão nuclear presente nos autos é a de saber se, face ao regime do Código do IVA e às normas europeias, deverá considerar-se, ou não, a componente de amortização de capital, para efeitos da determinação do critério de dedução – coeficiente de imputação específico – referente ao IVA suportado na aquisição de recursos de utilização mista.

Na perspetiva da Requerente, a resposta é afirmativa, invocando em seu abono um conjunto de argumentos conducentes à inaplicabilidade do regime vertido no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009, essencialmente a sua dissonância com o direito europeu.

Por seu turno, a Requerida pugna pela manutenção da legalidade da autoliquidação, rejeitando que esta padeça de qualquer vício.

 

 

  1. Tramitação do processo

 

A Requerente exerceu a opção de designar um árbitro, tendo a sua escolha recaído na Srª Drª Catarina Belim. A Requerida exerceu igual direito, tendo a sua escolha recaído na Srª Drª Sofia Ricardo Borges. O árbitro presidente, a solicitação destas, foi designado pelo Conselho Deontológico do CAAD.

O Tribunal ficou constituído no dia 26/02/2024.

A AT, respondeu, por impugnação, defendendo que o pedido deve ser julgado improcedente.

Em reunião havida em 23/05/2024, foi deliberado, com o acordo das partes, a junção aos autos da prova testemunhal produzida no processo nº 755/2023 e, consequentemente, prescindir-se da audição das testemunhas. Foi, ainda, acordado prescindir-se de alegações.

 

  1.  Saneamento

 

O processo não enferma de irregularidades ou nulidades.

Não foram suscitadas questões que pudessem ser obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

 

 

 

II – PROVA

 

II.1. Factos Provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Requerente é uma instituição de crédito.
  2. No âmbito da sua atividade, realiza operações financeiras enquadráveis na isenção constante da alínea 27 do artigo 9.º do Código do IVA, que não conferem o direito à dedução deste imposto, designadamente operações de financiamento/concessão de crédito e operações relativas a pagamentos e transações de títulos.
  3. A Requerente realiza também operações que conferem o direito à dedução deste imposto, nomeadamente operações de locação financeira mobiliária.
  4. Para determinar a medida (quantum) de IVA dedutível relativamente às aquisições de bens e serviços afetos indistintamente às diversas operações por si desenvolvidas (recursos de “utilização mista”), a Requerente aplicou o método supletivo da percentagem de dedução, conforme previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IVA.
  5. A referida percentagem de dedução foi determinada por aplicação do coeficiente de imputação específico definitivo do ano 2021, em consonância com o preceituado no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30 de janeiro de 2009, da Área de Gestão Tributária do IVA.
  6. Na sequência de uma revisão de procedimentos relativos à sua atividade, a Requerente concluiu  que o cálculo da referida percentagem de dedução se encontrava viciado por erro no regime jurídico aplicável ao seu direito à dedução porquanto, se no cálculo da referida percentagem de dedução tivesse incluído os montantes respeitantes às amortizações financeiras do leasing, não aplicando as restrições preconizadas pela AT no Ofício Circulado n.º 30108, a percentagem de dedução definitiva por si apurada para o ano em causa seria de 22%.
  7. No âmbito da atividade de locação financeira, a Requerente incorre em custos com a contratação e gestão destes contratos e com a disponibilização das viaturas.
  8. No que concerne ao leasing automóvel, a Requerente realiza um conjunto heterogéneo de ações entre as quais constam as seguintes: ação comercial, negociação do contrato, registo da propriedade do veículo, emissão de faturas e recibos mensais relativos à cobrança de rendas, controlo da manutenção de seguro válido pelo cliente, nos termos em que a Requerente entende que ele tem de ser mantido ao longo da vigência do contrato, tratamento de cessões da posição contratual, interações com entidades terceiras (como autoridades policiais ou concessionárias de autoestradas) em caso de existência de contraordenações ou dívidas de portagens, manutenção de serviço de call center, tratamento da documentação relativa à venda do veículo no final do contrato e alteração do registo de propriedade.
  9. O contrato de leasing automóvel tem, em regra, duração de 48 meses, e a respetiva atividade da Requerente caracteriza-se por duas fases distintas, a 1.ª tendo uma duração de entre 15 dias a um mês, com a celebração do contrato e a disponibilização/entrega da viatura, e a 2.ª que se prolonga pelo período restante de vigência do contrato, de cerca de 4 anos. 
  10. Em 11/05/2023, a Requerente reclamou graciosamente da parte das autoliquidações de IVA que agora impugna, reclamação que foi indeferida com data de 24/07/2023.

 

 

 

II.2 - Factos não provados

 

Não se provou:

Que a utilização dos inputs mistos nas operações de leasing foi primordialmente determinada pela disponibilização dos veículos e não pelo financiamento e gestão dos contratos.

 

 

            II.3. Fundamentação da matéria de facto

 

Os factos dados como provados estão documentalmente comprovados, não tendo suscitado divergências entre as partes.

Relativamente aos factos considerados não provados não foi produzida qualquer prova documental.

Quanto à prova testemunhal produzida (gravação das inquirições em outro processo), aceita-se que as testemunhas depuseram com isenção, revelando conhecimento direto dos factos que relataram.  Porém, os seus depoimentos não permitem determinar minimamente qualquer quantificação relativa aos recursos de utilização mista que são utilizados em cada uma das atividades desenvolvidas no âmbito dos contratos de locação financeira. Tendo-se concluído que durante a vigência do contrato serão realizadas mais tarefas do que as desenvolvidas na fase de contratualização, não se logrou comprovar que o consumo de recursos gerais da Requerente é primordialmente determinado pela disponibilização da viatura face aos gastos relacionados com o financiamento e a gestão do contrato de locação financeira, sendo que também na fase de vigência do contrato são suportados custos mistos que apenas são relativos à gestão do mesmo (v.g., processamento de rendas, tratamento de cessões da posição contratual, extinção do contrato).

Sempre se diga, ainda, que também não resultou provado a Requerente incorrer nas “despesas com a disponibilização dos veículos” em que alega ter incorrido desde logo uma vez que as que identifica como tal são, afinal, despesas que não se destinam à disponibilização dos veículos, i. e., à entrega das chaves, mas sim despesas “constantes ao longo da vida do leasing” (cfr, entre o mais, 68 a 71 do PPA).

 

III- DO MÉRITO[1]

 

A questão de direito que se coloca neste processo já foi objeto de uma extensa e profunda reflexão neste CAAD e no STA, existindo também jurisprudência europeia sobre a matéria e que vem sendo argumentativamente mobilizada nas decisões pátrias na análise da questão.

 

No CAAD, prevaleceu inicialmente a tese da Requerente, tendo-se entendido em diversas decisões arbitrais que o método explanado no ponto 9 do citado Ofício-Circulado 30108 seria inadmissível face ao disposto no artigo 23.º do Código do IVA, o que se traduziria numa violação do princípio da legalidade fiscal previsto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea i), e 103.º, n.º 2, da Constituição.

 

Esta posição não foi, porém, sufragada pelo STA que, no seu acórdão para uniformização de jurisprudência, de 20 de janeiro de 2021, tirado no processo n.º 0101/19, concluiu que “[n]os termos do disposto no artigo 23.º, n.º 2, do Código do IVA (conjugado com a alínea b) do seu n.º 3), a Administração Tributária pode obrigar o sujeito passivo que efetua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito, a efetuar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos através da afetação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação” e que “na aplicação do método de afetação real nos termos do n.º anterior, a Administração Tributária pode obrigar o sujeito passivo que seja um banco que exerce atividades de ‘Leasing’ e de ‘ALD’ a incluir no numerador e no denominador que serve para o cálculo da percentagem da dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos a essa atividade, quando a utilização daqueles bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos respetivos”. Este entendimento foi reiterado no Acórdão de 24 de março de 2021, tirado no processo n.º 87/20, onde se procedeu à uniformização da jurisprudência no seguinte sentido: “nos termos do disposto no art. 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, a AT pode obrigar o sujeito passivo que efectua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações através da afectação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação”, acrescentando-se ser improcedente a invocação da violação do princípio da legalidade tributária (art.103,n.º2 da CRP) e da reserva de lei da Assembleia da República (art. 165.º n.º1, alínea i) da CRP, porquanto o denominado “método de imputação específica” não se traduz num método inovador que não esteja previsto no artigo 23.º, “mas é ainda um método de afetação real com alguns ajustamentos (‘condições especiais’), motivo por que deve considerar-se subsumível à previsão daquela norma”.

 

            A jurisprudência do STA encontra-se alinhada com a decisão proferida no processo C-183/13, de 10 de julho de 2014 (“Banco Mais”), no qual o TJUE considerou que “os Estados-Membros podem obrigar um banco que exerce atividades de locação financeira a incluir no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar”.

 

Em consonância com o sentido emergente dos mencionados arestos, começa-se por afastar a incompatibilidade do regime de direito interno com o disposto nos artigos 173.º e 174.º da Diretiva do IVA. Com efeito, é o próprio TJUE que refere que a disposição do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, “conjugada com o artigo 23.°, n.° 3, do CIVA, no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, um sujeito passivo pode ser obrigado a efetuar a dedução do IVA em função da afetação real da totalidade ou de parte dos bens e serviços utilizados (...) reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada no artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva, que é uma disposição derrogatória da regra prevista nos artigos 17.°, n.° 5, primeiro parágrafo, e 19.°, n.° 1, dessa diretiva” e considerou, como se disse supra, ser compatível com o direito europeu o regime que se encontra espelhado no Ofício-Circulado n.º 30108 (parágrafos 17, 18 e 35 do Acórdão “Banco Mais”). Clarificou-se aí que, “embora a realização, por um banco, de operações de locação financeira para o setor automóvel, como as que estão em causa no processo principal, possa implicar a utilização de certos bens ou serviços de utilização mista, como edifícios, consumo de eletricidade ou certos serviços transversais, na maioria dos casos esta utilização é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes, e não pela disponibilização dos veículos” e “nestas condições, o cálculo do direito à dedução em aplicação do método baseado no volume de negócios, que tem em conta os montantes relativos à parte das rendas que os clientes pagam e que servem para compensar a disponibilização dos veículos, leva a determinar um pro rata de dedução do IVA pago a montante menos preciso do que o resultante do método aplicado pela Fazenda Pública, baseado apenas na parte das rendas correspondente aos juros que constituem a contrapartida dos custos de financiamento e de gestão dos contratos suportados pelo locador financeiro, uma vez que estas duas atividades constituem o essencial da utilização dos bens e serviços de utilização mista destinada à realização das operações de locação financeira para o setor automóvel” (parágrafos 33 e 34 do Acórdão “Banco Mais”).

 

A Requerente chama ainda à colação a decisão do TJUE no processo Volkswagen Financial Services, C-153/17, de 18 de Outubro de 2018. No entanto, tal como se assumiu no processo n.º 128/2021-T, não nos encontramos perante uma situação transponível para o caso concreto, já que, no nosso ordenamento jurídico, o IVA incide sobre a totalidade da renda (artigo 16.º, n.º 2, alínea h), do CIVA), abarcando a componente do juro, ao passo que no caso referido, o regime fiscal do Reino Unido obrigava à desagregação das rendas em duas operações, estando a componente juro isenta de IVA e sendo tributada a parte relativa à amortização, excluindo as autoridades fiscais deste país a componente de amortização do pro rata, não sendo tidas em conta as despesas com bens e serviços repercutidos na parte dos juros.

Também o STA não retirou quaisquer consequências desta jurisprudência que determinassem a reversão das suas posições, mencionando-se no Acórdão de 20 de janeiro de 2021, “que o Tribunal de Justiça da União Europeia não pretendeu ali reformular o entendimento firmado no acórdão “Banco-Mais”, mas sublinhar que aquela jurisprudência não podia ser aplicada de maneira geral, abrangendo todos os tipos de operações de locação financeira para o setor automóvel. [§] Incluindo aquelas em que a aplicação de um método de repartição que não tenha em conta o valor do veículo aquando na sua entrega não seja adequada a garantir uma repartição mais precisa do que a baseada no volume de negócios. [§] O que sucedia naquele caso específico porque havia uma afetação real e significativa dos custos gerais a operações que conferiam o direito à dedução (§ 57). Porque esses custos eram efetuados tendo em vista a disponibilização de veículos (§ 44) e eram, apesar disso, imputados aos próprios custos de financiamento, em vez de serem imputados ao valor inicial do veículo aquando da sua entrega (§ 13). Em lado algum se conclui que, no caso dos autos, também havia uma afetação significativa dos custos gerais à disponibilização dos veículos, até porque o Tribunal Arbitral se absteve de indagar e analisar concretamente o sistema de negócio montando pelo sujeito passivo”.

 

 

Face ao exposto, tal como decorre da jurisprudência comunitária e vem sendo reiterado nas decisões do STA, haverá que apurar se nas operações de locação financeira automóvel, que podem implicar a utilização de certos bens ou serviços de utilização mista, essa utilização é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação ou pela disponibilização dos veículos, o que não deixa de ser reconhecido pela Requerente quando alega que no caso dos autos se está “perante uma situação em que uma parte significativa dos gastos tem relação directa e imediata com a disponibilização das viaturas ou equipamentos de leasing”.

 

Deve começar por dizer-se que quando se fala neste contexto - quando assim o faz o TJUE na jurisprudência atrás citada (e, bem assim, o nosso STA, cfr também supra) - em “disponibilização” das viaturas, quer-se significar a entrega das mesmas. Ou a entrega das suas chaves, se se preferir. E não a manutenção/a constância das mesmas na posse dos clientes ao longo da duração (de cerca de 4 anos) dos contratos. Como bem se compreende.

Se dúvidas houvesse, recorde-se que foi para distinguir entre a parte da renda correspondente à amortização do capital (reembolso do preço de aquisição do veículo) e a outra sua parte, correspondente a juros, que o TJUE recorreu ao dito vocábulo. Para concluir/decidir que, uma vez que no pagamento daquela parte da renda - ref. amortização do capital – os clientes estão a “compensar a disponibilização dos veículos” (v. supra, Ac. Banco Mais), em consequência, se se considerar na fracção do pro rata essa parte da renda então estar-se-á a apurar um pro rata de dedução de IVA pago a montante menos preciso (menos preciso do que o baseado apenas na parte da renda correspondente a juros). Foi nestes termos que o TJUE entendeu distinguir entre as duas componentes na renda que é paga ao abrigo dos contratos de leasing.

E, sempre se diga, dessa componente dupla contida nas rendas não vem a Requerente duvidar. Dito isto.

 

Haverá, talvez, que começar por explicitar o que está em causa: a Requerente pretende calcular a medida do direito à dedução de IVA incorrido em inputs mistos por recurso ao método pro-rata, tal como previsto no artigo 23.º, n.º 4 do CIVA, considerando na fração também a parte da renda da locação financeira correspondente à amortização do capital, com base na argumentação de que tal renda seria (também ou em parte) a remuneração dos serviços prestados ao longo da vigência do contrato. Ou de que para a disponibilização dos veículos incorreu em inputs mistos de significativo peso e que, por isso, lhe deverá ser concedido deduzir o IVA em que assim incorreu.

Ora, a parcela “amortização do capital” (e o IVA que lhe está associado), no âmbito da renda mensal por contrapartida da locação financeira, está intimamente ligada ao IVA suportado no preço de compra inicial do veículo, objeto do contrato de locação, e que é inicialmente deduzido pela Requerente através de uma imputação direta.

O mesmo é dizer que a consideração da parcela da amortização financeira na fração do numerador do pro rata, ao longo da vida útil do contrato, poderá conduzir a uma dupla dedução de IVA.

Portanto, há que ter presente que não estará em causa necessariamente, neste tipo de situações uma subdedução do IVA suportado, como parece pretender a Requerente. Pelo contrário, o recurso a um pro-rata determinado nos termos por ela pretendidos, poderá conduzir a um excesso de dedução.

 

 

            No caso concreto, a Requerente determinou o valor do IVA a deduzir tendo em consideração as orientações genéricas emanadas pela AT, procedendo à aplicação do coeficiente de imputação específico definitivo do ano 2021, em estrita consonância com o preceituado no ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009, não estando aqui em causa a questão de saber se a tal estava obrigada pelo referido instrumento administrativo.

 

 

            Pretendendo ver alterada a percentagem de dedução, recaía sobre ela o ónus da prova dos factos constitutivos do direito à dedução do imposto (artigo 74.º, n.º 1, da LGT), competindo-lhe demonstrar, face à realidade que vertera na sua declaração de autoliquidação de IVA, a verificação dos factos que determinam o aumento da percentagem do imposto dedutível de 6% para 22%. Ou seja: a demonstração de que a utilização de bens ou serviços mistos (inputs mistos) não foi sobretudo determinada pelo financiamento e gestão dos contratos de locação financeira, mas sim pela disponibilização das viaturas.

 

Fazemos nossas as palavras da Requerida: por este motivo, é errado que a Requerente parta para este processo alcandorada a uma percentagem de 22% - cujo cálculo obteve pela aplicação integral do artigo 23.º, n.º 4 do CIVA, isto é, obteve através da aplicação de norma jurídica -, mas que a justifique através da produção de prova no sentido de tentar, sem sucesso, qualificar a intensidade do trabalho e a complexidade da locação financeira. Em que é que a putativa predominância dos consumos por atos de disponibilização de veículo (consumo de horas dos trabalhadores, consumo de água, luz, software, economato, etc.), que a Requerente nem sequer consegue provar/quantificar por recurso a elementos de contabilidade, se coaduna com a consideração da parcela do capital na fração do numerador, por aplicação do método do pro-rata?

 

Estamos, pois, (antes de tudo o mais) perante uma questão de prova, de ónus da prova.

 

Nos Acórdãos do STA de 20 de janeiro de 2021, já citado, e de 23 de março de 2022, tirado no processo n.º 066/21, onde se considera que «cabe ao sujeito passivo “alegar e demonstrar que, no seu caso concreto, a utilização de bens ou serviços mistos não é sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos” – cfr. Acórdão do Pleno de 20 de janeiro de 2021. Proc. n.º 0101/19.1BALSB -, sendo este o único ónus da prova que reconhece impor-se no caso dos autos, e mais nenhum outro». O que se compreende, visto que no caso concreto é o próprio sujeito passivo que pretende alterar o valor da dedução do IVA face ao valor também por si declarado. Destarte, considerando que a determinação inicial do imposto que apurou se encontrava viciada, caber-lhe-ia, tout court, fazer a prova dos factos constitutivos do direito que invoca.

            Ora, a prova produzida não permitiu determinar minimamente qualquer quantificação relativa aos recursos de utilização mista que são utilizados em cada uma das atividades desenvolvidas no âmbito dos contratos de locação financeira, nem se logrou comprovar que o consumo de recursos gerais da Requerente é aí primordialmente determinado pela disponibilização da viatura face aos gastos relacionados com o financiamento e a gestão do contrato de locação financeira.

            Consequentemente, não procede a pretensão da Requerente.

 

           

III.1 - Pedido de Reenvio prejudicial

           

            Como se deixou explicitado, a questão fundamental discutida nos autos e que constitui ratio decidendi do juízo supra firmado foi já clarificada pelo próprio TJUE no caso “Banco Mais”, atrás referido, e encontra-se também consolidada na jurisprudência do STA, que por diversas vezes se vem pronunciando sobre a matéria, a questão de interpretação das pertinentes normas do direito europeu.

Também se deixou explicitado que o STA já tomou posição expressa sobre a questão de saber se o acórdão Volkswagen havia alterado a doutrina afirmada pelo acórdão “Banco Mais”, tendo concluído pela negativa.

Não parece, pois, existir uma dúvida razoável na interpretação de normas do Direito da União (de normas do CIVA que transpõe a Diretiva IVA) capaz de justificar o apelo ao TJUE.

 

Mais importante: mesmo a existirem tais dúvidas, a consulta ao TJUE resultaria irrelevante para a boa decisão da causa pois a Requerente não fez prova de factos que seriam o pressuposto necessário à aplicação do entendimento normativo por si sustentado.

 

Assim, considera-se desnecessário o reenvio prejudicial, indeferindo-se o requerido.

 

 

            III.2- Juros indemnizatórios

 

            Face à decisão de improcedência do pedido arbitral, improcede também, consequentemente, o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.

 

 

IV – Decisão

 

Face ao exposto, acordam os árbitros em:

  1. Julgar improcedente o pedido de anulação parcial da autoliquidação de IVA respeitante a julho e agosto de 2021, mantendo na ordem jurídica a decisão de indeferimento da reclamação graciosa;
  2. Indeferir o pedido de reenvio prejudicial;
  3. Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios;

 

 

Valor: € 63.494,79, montante impugnado das liquidações

 

Custas, no montante de € 12.000,00, nos termos da Tabela II anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente por ter exercido a opção de nomear árbitro.

 

7 de julho de 2024

 

Os Árbitros

 

 

Rui Duarte Morais (relator)

 

 

Catarina Belim (vencida conforme declaração anexa)

 

 

 

Sofia Ricardo Borges

 

 

 

Catarina Belim - Voto de vencida com 10 páginas

 

Com todo o respeito pela decisão do coletivo, que versa sobre uma matéria complexa, voto vencida por entender que a decisão do TJUE no processo Volkswagen Financial Services (doravante “VWFS”) é uma evolução do caso Banco Mais, a qual, em conjunto com a prova efetuada pela Requerente nos autos, deveria levar a que se procedesse a reenvio prejudicial para o TJUE.

Neste contexto, a decisão arbitral aplica um critério de prova assente no caso Banco Mais, i.e. exige a prova de que a utilização dos inputs mistos nas operações de leasing foi primordialmente determinada pela disponibilização dos veículos e não pelo financiamento e gestão dos contratos - quando o critério de prova exigido pela decisão do acórdão VWFS invocado pela Requerente é menos exigente, i.e. basta-se com a demonstração de que os custos gerais tenham sido, “em certa medida”, efetuados tendo em vista a disponibilização dos veículos (que corresponde ao valor do capital financiado) para negar que os Estados-Membros apliquem um “método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega” que é precisamente o que se passa em Portugal, quando o “coeficiente específico” que a AT impõe aos contribuintes nacionais pelo Ofício-Circulado da Área de Gestão Tributária do IVA n.º 30108, de 30 Janeiro de 2009, não tem em conta o valor do veículo aquando da sua entrega.

 

Vejamos com maior profundidade o racional do meu voto de vencida.

 

  1. Banco Mais vs. Volkswagen Financial Services

 

  1. A comparação entre o Banco Mais vs. VWFS pode ser resumida da seguinte forma:

Comparação Banco Mais vs. VWFS

Item

Banco Mais

Portugal

Volkswagen Financial Services – Reino Unido

Ano do Acórdão

2014

2018

Objeto social do sujeito passivo em causa

Instituição Bancária (n.º 6)

Sociedade Financeira (n.º 9)

Enquadramento em IVA do sujeito passivo em causa

SP misto

SP misto

Atividades em causa

Locação financeira no setor automóvel  (n.º 8)

 

Locação financeira no setor automóvel  (n.º 11)

Componentes da renda da locação financeira

Capital/amortização (i.e. valor veículo) +

Juros +

Encargos

(n.º 15)

Capital/amortização (i.e. valor veículo) +

Juros +

Encargos

(n.º 13)

 

Tratamento em IVA da renda (ex.: renda de 100)

 

100 + IVA

 

 

 

(n.º 9)

 

100 divididos:

  • 80 (capital) + IVA
  • 20 (juros) – isento de IVA

(n.º 14)

 

Tratamento pretendido pelo sujeito passivo para a dedução do IVA dos custos gerais (i.e. custos utilizados simultaneamente nas operações isentas e sujeitas)

 

VS.

 

Tratamento pretendido pela administração fiscal para a dedução do IVA dos custos gerais

Dedução pelo prorata geral incluindo o valor total das rendas, 100% sujeitas a IVA, no numerador e denominador.

(n.º 9)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O valor do capital (i.e. o valor do veículo), deve ser excluído do cálculo da percentagem de prorata de dedução alegando que o valor da locação financeira é imputável à concessão do financiamento.

Apenas o valor da componente dos juros pode entrar no cálculo do prorata.

(n.º 11 e n.º 15)

 

 

Dedução dos custos gerais com base na relação parte da renda sujeita a IVA (capital) vs. parte da renda isenta de IVA (juros), ou seja, considerando o valor do capital para cálculo da % de dedução.

 

 

 

 

 

 

 

 

O valor do capital (i.e. o valor do veículo) deve ser excluído do cálculo da percentagem de dedução alegando que o valor da locação financeira é amplamente imputável à concessão do financiamento.

Apenas é recuperável o IVA relativo ao valor das outras operações tributáveis efetuadas no âmbito dos contratos, tais como as comissões de cumprimento antecipado e os custos do exercício da opção de compra.

(n.º 20)

 

 

 

 

 

 

 

Decisão do TJUE

A dedução do IVA dos custos gerais é via prorata de dedução.

 

 

Apenas a componente juros entra no prorata (não o capital), quando a utilização desses bens e serviços (custos gerais) seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos.

(decisão)

 

A dedução do IVA dos custos gerais é via prorata de dedução.

 

 

Os custos gerais, mesmo quando afetos à parte da componente juros (isenta de IVA), devem ser considerados, para efeitos de imposto sobre o valor acrescentado, como um elemento constitutivo do preço da disponibilização do veículo. Os Estados‑Membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.

(decisão)

 

 

  1. Os argumentos que levaram a cada uma das decisões do TJUE, são os seguintes:

 

Argumentos decisão TJUE Banco Mais vs. VWFS

 

Banco Mais

Portugal

Volkswagen Financial Services – Reino Unido

Ano do Acórdão

2014

2018

Argumentos do TJUE

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Argumentos do TJUE (cont.)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Argumentos do TJUE (cont.)

 

 

 

 Há que observar que, embora a realização, por um banco, de operações de locação financeira para o setor automóvel, como as que estão em causa no processo principal, possa implicar a utilização de certos bens ou serviços de utilização mista, como edifícios, consumo de eletricidade ou certos serviços transversais, na maioria dos casos esta utilização é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes, e não pela disponibilização dos veículos. Incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se é efetivamente esse o caso no processo principal.

(n.º 33)

 

 

Nestas condições, o cálculo do direito à dedução em aplicação do método baseado no volume de negócios, que tem em conta os montantes relativos à parte das rendas que os clientes pagam e que servem para compensar a disponibilização dos veículos, leva a determinar um pro rata de dedução do IVA pago a montante menos preciso do que o resultante do método aplicado pela Fazenda Pública, baseado apenas na parte das rendas correspondente aos juros que constituem a contrapartida dos custos de financiamento e de gestão dos contratos suportados pelo locador financeiro, uma vez que estas duas atividades constituem o essencial da utilização dos bens e serviços de utilização mista destinada à realização das operações de locação financeira para o setor automóvel. (n.º 34)

 

 

 

Na medida em que estes custos gerais foram realmente efetuados, pelo menos em certa medida, tendo em vista a disponibilização de veículos, que são operações tributáveis, os referidos custos são parte, enquanto tais, dos elementos constitutivos do preço dessas operações. (n.º 44)

 

 

No caso vertente, dado que os custos gerais imputados ao setor do retalho da VWFS são relativos aos bens e serviços utilizados para efetuar tanto operações que conferem direito à dedução como operações que não conferem direito à dedução, deve ser estabelecido um pro rata de dedução, em conformidade com as disposições relevantes dessa diretiva. (n.º 48)

 

 

É certo que o Tribunal de Justiça, no n.o 33 do Acórdão de 10 de julho de 2014, Banco Mais (C‑183/13, EU:C:2014:2056), declarou, a propósito de uma instituição bancária que efetuava operações de locação financeira para o setor automóvel, que, sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional nacional, embora a realização de tais operações por um banco possa implicar a utilização de certos bens ou serviços de utilização mista, como edifícios, consumo de eletricidade ou certos serviços transversais, na maioria dos casos esta utilização é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes, e não pela disponibilização dos veículos.

(art.º 54)

 

Todavia, não se pode deduzir do raciocínio desenvolvido pelo Tribunal de Justiça a propósito das operações de locação financeira em causa no processo que deu origem ao Acórdão de 10 de julho de 2014, Banco Mais (C‑183/13, EU:C:2014:2056), que o artigo 173.o, n.o 2, alínea c), da Diretiva IVA permite aos Estados‑Membros, de maneira em geral, aplicarem a todos os tipos de operações semelhantes para o setor automóvel, como as operações de locação financeira em causa no processo principal, um método de repartição que não tem em conta o valor do veículo aquando da sua entrega.

 

Em particular, atendendo à natureza fundamental do direito à dedução, recordada no n.o 39 do presente acórdão, sempre que as modalidades de cálculo da dedução não tenham em conta uma afetação real e significativa de uma parte dos custos gerais a operações que confiram direito à dedução, não se pode considerar que tais modalidades reflitam objetivamente a parte real das despesas efetuadas com a aquisição dos bens e dos serviços de utilização mista que pode ser imputada a essas operações. Por conseguinte, tais modalidades não são suscetíveis de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios. (n.º 56 e n.º 57)

 

 

Assim, no caso vertente, no que respeita ao método de cálculo do pro rata de dedução do IVA aplicado pela Administração Fiscal, cabe ao órgão jurisdicional nacional verificar se este método tem em conta a afetação real e significativa de uma parte dos custos gerais para efeitos das operações que conferem direito à dedução (n.º 58)

 

 

 

  1. Conclusões da comparação dos Acórdãos Banco Mais vs. Volkswagen Financial Services

 

  1. Resulta da comparação entre os Acórdãos Banco Mais e Volkswagen Financial Services que:

 

  1. estão em causa, nos 2 casos, as mesmas operações ativas, i.e. locação financeira no setor automóvel;
  2. está em causa, nos 2 casos, saber se a forma de cálculo da percentagem de dedução dos custos gerais de atividade inclui ou exclui a componente do capital das rendas de locação financeira;
  3. no caso português, Banco Mais, em que a renda de locação financeira, capital + juros, é 100% sujeita a IVA, o TJUE concluiu que a componente do capital deveria ser excluída do cálculo da percentagem de dedução do IVA dos custos gerais, pois a utilização dos custos gerais era sobretudo determinada pelo financiamento e gestão dos contratos de locação (apenas o valor dos juros entra assim no  prorata); 
  4. no caso inglês, em que a renda de locação financeira é dividida entre capital sujeito a IVA e juros isentos de IVA, o TJUE conclui que a componente do capital não pode ser excluída do cálculo da percentagem de dedução do IVA dos custos gerais, pois os custos gerais, mesmo quando totalmente afetos à parte isenta dos juros (o que equivale a dizer, mesmo quando afetos ao financiamento e gestão de contratos de locação), devem ser considerados, para efeitos de imposto sobre o valor acrescentado, como um elemento constitutivo do preço da disponibilização do veículo (sujeito a IVA).

 

  1. A decisão arbitral em que voto vencida entende que não deve ser chamada à colação a decisão do TJUE no processo VWFS porque não nos encontramos perante uma situação transponível para o caso concreto, já que no nosso ordenamento jurídico, o IVA incide sobre a totalidade da renda abarcando a componente do juro, ao passo que no caso referido, o regime fiscal do Reino Unido obrigava à desagregação das rendas em duas operações, estando a componente juro isenta de IVA e sendo tributada a  parte relativa à amortização (i.e. a parte relativa ao capital).

 

  1. Ora é precisamente este tratamento diferente que deveria determinar, ao abrigo do princípio da neutralidade fiscal do IVA, que o tribunal arbitral questionasse sobre como podem os sujeitos passivos ingleses, na altura membros da UE, poder incluir a componente do capital da locação financeira, a seu favor, no cálculo da percentagem de dedução do IVA dos custos gerais, quando não entregam IVA ao Estado sobre a parte dos juros, e os sujeitos passivos nacionais, serem obrigados a excluir, em seu desfavor, essa mesma componente do mesmo cálculo, quando, ao contrário dos sujeitos passivos ingleses, entregam IVA ao Estado sobre a componente dos juros? Podemos admitir que os sujeitos passivos ingleses tenham uma capacidade de dedução maior que os sujeitos passivos nacionais sobre os custos gerais de atividade quando os sujeitos passivos nacionais entregam IVA ao Estado sobre uma base maior do que a dos ingleses?

 

Exemplificando, de forma simplista, o que aqui se afirma, para renda de locação financeira de 1000 com taxa de IVA de 23% (em que a componente capital é 800 e a componente juros 200), e operações totais (tributadas e isentas) de 8000 das quais 2000 correspondem a operações tributadas (valores em €) resulta do cálculo de % de dedução dos custos gerais, uma diferença de mais 5,9% de capacidade de dedução para os sujeitos passivos ingleses que entregam, sobre a mesma renda, menos 20% de IVA ao Estado comparando com os sujeitos passivos nacionais:

 

 

IVA entregue ao Estado sobre as rendas

 

PT - 1000* 23%= 230

 

UK – 800*23% = 184

 

IVA entregue ao Estado sobre rendas de locação financeira

Rendas da locação financeira = 1000

 

Capital = 800

 Juros  = 200

 

 

 

% Dedução do IVA dos custos gerais

1. Total das operações tributadas =  2000

2. Total das operações tributadas e isentas = 8000

3. Total da renda de locação financeira (LF) = 1000

Capital = 800

 Juros  = 200

% IVA dedutível dos
custos gerais

 

PT (Banco Mais)

 

1. (2000-capital LF)=1200

 

2.  (8000-capital LF)=7200

 

UK (VWFS)

 

1 (2000-juros LF)=1800

 

2. 8000

= 16,6%

=22,5%

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  1. No entender da presente signatária não se pode descurar o resultado aparentemente contraditório das decisões Banco Mais vs. VWFS.

 

  1. A Requerente teve razão quando chamou à colação o acórdão VWFS para fundamentar as suas pretensões:

 

  • Este acórdão é posterior ao Banco Mais e, dita a experiência, que decisões posteriores do TJUE denotam muitas vezes evoluções da posição do Tribunal (note-se que próprio TJUE utiliza a expressão “todavia” para referir que o Banco Mais não se pode aplicar sem mais);
  • Este acórdão tem um critério de prova menos exigente que o acórdão Banco Mais, i.e. basta-se com a demonstração de que os custos gerais tenham sido, “em certa medida”, efetuados tendo em vista a disponibilização dos veículos (que corresponde ao valor do capital financiado) para negar que os Estados-Membros apliquem um “método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega” (precisamente o que se passa em Portugal), sendo portanto diferente do acórdão Banco Mais quanto às suas consequências.

 

  1. Aplicação do Acórdão VWFS ao caso concreto

 

  1. Indo mais fundo, à luz do contexto jurisprudencial acima identificado, importa salientar que a Requerente demonstrou o ónus da prova que lhe competia à luz do acórdão VWFS.

 

  1. Nesta sede, a decisão arbitral aplica um critério de prova assente no caso Banco Mais, i.e. exige a prova de que a utilização dos inputs mistos nas operações de leasing foi primordialmente determinada pela disponibilização dos veículos e não pelo financiamento e gestão dos contratos - quando o critério de prova exigido pela decisão do acórdão VWFS invocado pela Requerente é menos exigente, bastando-se com a demonstração de que os custos tenham sido, “em certa medida”, efetuados tendo em vista a disponibilização dos veículos.

 

  1. Adicionalmente, a decisão arbitral fundamenta a matéria de facto assente indicando que: “sempre se diga, ainda, que também não resultou provado a Requerente incorrer nas “despesas com a disponibilização dos veículos” em que alega ter incorrido desde logo uma vez que as que identifica como tal são, afinal, despesas que não se destinam à disponibilização dos veículos, i. e., à entrega das chaves, mas sim despesas “constantes ao longo da vida do leasing” (cfr, entre o mais, 68 a 71 do PPA).”

 

  1. Ora, compulsados os autos, entende a presente signatária que a prova não está a ser valorada corretamente na presente decisão arbitral:

 

  • à Requerente basta, como já aqui referido, segundo o acórdão VWFS, demonstrar que os custos tinham sido, “em certa medida”, efetuados tendo em vista a disponibilização dos veículos;
  • o TJUE não exige a exata medida ou quantum destes custos;
  • o TJUE não limita o conceito de disponibilização dos veículos à “entrega das suas chaves”. A disponibilização do veículo não é, de forma pública e notória, limitada ao momento da entrega das chaves mas sim continuada no tempo. Com efeito não estamos, como parece fazer crer a decisão arbitral, perante um contrato de compra e venda mas sim perante um contrato de locação financeira (serviços), continuado no tempo, em que o veículo tem que permanecer disponível ao cliente durante todo o tempo do contrato, normalmente 48 meses, segundo as regras de experiência e prova testemunhal produzida nos autos. Neste sentido, a expressão disponibilização abarca também o lidar com seguros em caso de acidente ou avaria, a disponibilização de veículos de substituição para permitir a reparação dos antigos e o pagamento de impostos e cumprimento de outras medidas regulatórias que permitam a circulação dos veículos. Por fim, crê-se que não podemos inferir da referência efetuada pelo TJUE a “valor do veículo aquando da sua entrega” efetuada pelo TJUE, que a mesma sirva para indicar que o conceito de disponibilização dos veículos esteja limitado “à entrega das chaves”, sendo mais adequado deduzir desta expressão que a mesma serve para segregar o valor do capital financiado do valor dos juros, para efeitos da sua inclusão no cálculo da percentagem de dedução dos custos gerais. 

 

  1. Nesta matéria, foi demonstrado pela Requerente que os custos gerais em causa foram efetuados para a disponibilização dos veículos (o que abarca a prova “em certa medida” exigida pelo VWFS).

 

  1. A prova foi efetuada quer por via documental do PPA (artigos 51º e seguintes e documentos 3 e 4) quer por via testemunhal, e demonstra que os custos gerais - bens ou serviços de utilização mista, como edifícios, consumo de eletricidade ou certos serviços transversais - foram realmente efetuados, pelo menos em certa medida, tendo em vista a disponibilização de veículo, designadamente:

 

 

  • Utilização de uma equipa multidisciplinar, que tanto pode trabalhar em contratos de crédito normais, cartões de consumo ou leasing, não se conseguindo segregar os custos gerais por atividade (prova testemunhal produzida sobretudo 1ª testemunha);
  • Interação dos recursos humanos com os cientes com análise dos seus  pedidos,  risco e avaliação da concessão das locações financeiras solicitadas, elaboração  e negociação das propostas da locação financeira, tendo em vista a disponibilização dos veículos;
  • Interação dos recursos humanos com os concessionários e fornecedores automóveis, contendo análise de documentação e realização de encomendas tendo em vista a disponibilização dos veículos;
  • recursos humanos, na área de jurídico e de registos afetos à na legalização dos veículos, sem os quais não é permitida a sua disponibilização;
  • interação dos recursos humanos com as seguradoras em casos de acidente ou avarias, substituição ao longo do contrato e controlo e pagamento dos impostos para a sua circulação;
  • uso de instalações, marketing, publicidade, serviços informáticos comuns para atrair clientes e receber as suas propostas, sem os quais, é facto publico e notório não é possível aumentar a base de clientela e disponibilizar os veículos em locação.
  • uso de fornecimentos externos como eletricidade, água, economato, serviços de estafetas e outros, sem os quais, senso comum e fato público e notório, não será possível concretizar o contrato e disponibilizar os veículos, quer no momento inicial do contrato quer ao longo da vida do contrato, em que o veículo deve permanecer disponível.

 

  1. Reenvio prejudicial

 

Por tudo o exposto, com todo o respeito pela decisão do coletivo, entendo que a decisão do TJUE no processo “VWFS” é uma evolução do caso Banco Mais, a qual, em conjunto com a prova efetuada pela Requerente nos autos, deveria levar a que se procedesse a reenvio prejudicial para o TJUE - a final, existem dúvidas fundadas sobre o sentido e alcance das regras em apreço.

 

Lisboa, 4 de Julho de 2024

 

A Árbitra,

 

 

Catarina Belim

 

 



[1] Reproduzimos, em larga medida, o constante da decisão arbitral nº 808/2021-T, da qual o ora árbitro presidente foi um dos subscritores, de que foi relator o Sr. Prof. Doutor João Pedro Rodrigues.