SUMÁRIO:
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Os serviços de mediação imobiliária e de property management prestados ao Requerente são específicos e essenciais às funções de gestão e administração de fundos de investimento imobiliários, pelo que beneficiam da isenção de IVA da subalínea g) da alínea 27) do art.º 9 do Código do IVA.
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Inexistindo abuso ou fraude fiscal, o IVA indevidamente liquidado em tais serviços pode ser reembolsado ao adquirente em conformidade com as normas nacionais aplicáveis.
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Porém, apenas pode ser efetuado o seu reembolso diretamente pelo Estado se e na medida em que o respetivo reembolso pelo fornecedor seja, comprovadamente, impossível ou excessivamente difícil, cabendo tal prova ao adquirente dos bens ou serviços. O que se compreende se tivermos em atenção, desde logo, que a liquidação de IVA pelo fornecedor em tais serviços teve impacto direto no exercício por este de direito à dedução do imposto suportado nas suas aquisições.
DECISÃO ARBITRAL
A...– Fundo de Investimento Imobiliário Aberto, NIPC..., com sede na..., n.º ..., ...‐... Lisboa, representado por B..., Sociedade Gestora de Organismos de Investimento Coletivo, S.A., NIPC..., com sede na Rua ..., ..., ...‐... Lisboa, veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I - RELATÓRIO
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O pedido
O Requerente pede a anulação da decisão de indeferimento que pôs termo ao procedimento de reclamação graciosa n.º ...2023... .
Em tal procedimento, o Requerente contestou os atos de (auto)liquidação de IVA efetuados por uma entidade que lhe prestou serviços de mediação imobiliária durante o período compreendido entre junho e julho de 2022. O Requerente entende que suportou um montante de IVA superior ao legalmente devido no valor de € 427.228,1.
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O litígio
O Requerente celebrou um contrato de mediação imobiliária com uma sociedade, no âmbito do qual esta se comprometeu, em regime de exclusividade, a diligenciar pela obtenção de interessados na compra e arrendamentos dos ativos imobiliários existentes na carteira do Requerente e, ainda, a prestar outros serviços de gestão de ativos imobiliários.
O Requerente entende que o preço de tais serviços está isento de IVA ao abrigo da subalínea g) da alínea 27) do art.º 9 do Código do IVA.
A Requerida fundamentou a decisão de indeferimento da reclamação graciosa[1] invocando, em suma:
- o caráter excecional do direito do repercutido resultante do disposto no art. 18º, nº 4, da LGT.
- - não estar provado ter ao Requerente solicitado à sociedade sua fornecedora a regularização do imposto, nos termos do art. 78º do CIVA,
- que o direito à dedução, assim como à regularização de imposto, são opções do sujeito passivo, não configuram erros, não podendo a AT substituir-se ao sujeito passivo no seu exercício;
- de acordo com a alínea c) do n.º 1 do art.º 2 do Código do IVA, a menção de IVA (ainda que indevido) em faturas determina que tal montante faturado deve ser entregue ao Estado.
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Tramitação
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo foi aceite em 30/01/2024.
O Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários desta decisão, que aceitaram. As partes não se opuseram a tais designações.
O Tribunal encontra-se, desde 03/04/2024, regularmente constituído.
A Requerida, apresentou a sua resposta e o processo administrativo.
Tendo sido deduzida defesa por exceção, foi o Requerente notificado para se pronunciar sobre a mesma, o que veio a suceder através de requerimento apresentado em 04/06/2024.
Por despacho de 26/05/2024, haviam sido prescindidas a reunião a que se refere o art. 18º do RJAT bem como a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs
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Saneamento
O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.
Não existem outras questões que obstem ao conhecimento do mérito para além da exceção que a seguir se apreciará.
Da Ilegitimidade Material do Requerente
Está em causa uma exceção perentória inominada de ilegitimidade material do Requerente arguida pela Requerida ao abrigo do disposto nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 3 e 579.º do CPC, aplicáveis ex vi o artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT1
Em primeiro lugar, haverá que relembrar o conceito de exceção, enquanto figura processual.
Citando, por todos, o Conselheiro Francisco Ferreira de Almeida[2]: Para que o pedido possa surtir êxito, isto é, para que o autor possa obter vencimento na sua pretensão (procedência), torna-se necessário o preenchimento de determinadas condições. E, desde logo, que a situação de facto (controvertida), integradora da providência concretamente requerida (pelo autor) em juízo caiba na estatuição-previsão abstrata de uma dada norma de direito substantivo (…). Os requisitos indispensáveis para que possa ser concedida (deferida ou julgada procedente) uma qualquer providência judiciária constituem as chamadas condições da ação.
Mas, para que o tribunal possa chegar a pronunciar-se sobre o mérito da causa (…) exige-se a verificação de determinados requisitos de ordem formal/processual, os denominados pressupostos processuais. A exigência legal destes requisitos ou condições destina-se a garantir a idoneidade e a utilidade da decisão da causa.
A doutrina distingue entre exceções processuais e exceções materiais, diferenciação que é também pacificamente aceite pelos nossos tribunais, nomeadamente a propósito da legitimidade, em dicta do seguinte teor ou similares[3]:
I - A legitimidade processual, constituindo uma posição do autor e do réu em relação ao objecto do processo, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como o autor a desenhou.
II - A legitimidade material, substantiva ou “ad actum” consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa.
Entendimento que é – cremos que também pacificamente – transponível para os demais pressupostos processuais.
Foi, cremos, a falta de consciência do significado da diferenciação entre “legitimidade processual” e “legitimidade material” que motivou as alegações, feitas a título de exceção, da Requerida ora em análise.
Resulta do exposto que a verificação dos pressupostos processuais (da eventual ocorrência de exceções processuais) é, necessariamente, anterior à apreciação do mérito. Anterior também em sentido substantivo (e não apenas temporal), pois que a falta de um desses pressupostos tem como consequência o não conhecimento do mérito.
As exceções de natureza processual terão que ser apreciadas à luz do pedido e não das causas de pedir (a validade destas últimas é que determinará o mérito da ação).
Esta é a doutrina afirmada entre nós desde inícios do século passado, formulada por Barbosa de Magalhães a propósito da legitimidade[4], que entendemos logicamente aplicável aos demais pressupostos processuais.
Ou seja, em resumo, a verificação dos pressupostos processuais é aferida de forma perfunctória, partindo apenas do pedido, porquanto tal basta para garantir a utilidade da lide: que o tribunal é competente para apreciar aquele pedido e que as partes presentes são aquelas sobre as quais a decisão de mérito (seja ela qual for), a acontecer, deverá produzir os seus efeitos úteis.
2- A Requerida, louvando-se no acórdão arbitral 471/2023-T, entende que Requerente não cumpre os pressupostos que lhe permitam ser titular direto do direito ao reembolso do IVA que alega ter suportado em montante superior ao devido, não tem legitimidade material, substantiva ou ad actum para figurar no presente processo arbitral, pelo que estaria verificada a exceção perentória inominada de ilegitimidade material do Requerente arguida pela Requerida, ao abrigo do disposto nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 3 e 579.º do CPC, aplicáveis ex vi o artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Salvo o devido respeito pelos autores de tal decisão arbitral, perfilhada pela Requerida, a chamada ilegitimidade material não ´constitui uma exceção, mas sim algo que diz respeito ao mérito da causa, algo que, a verificar-se, determinará a improcedência do pedido.
Diferença que não é meramente doutrinária pois que tem importantes consequências práticas, nomeadamente no tocante à distribuição do ónus da prova.
3- Resulta do exposto o nosso entendimento que a ilegitimidade material não constitui uma exceção, mas sim uma condição de mérito da ação. Pelo que a invocação de tal exceção vai aqui indeferida, sem prejuízo de o argumentário em que se funda vir a ser, adiante, analisada no contexto da apreciação do mérito da causa.
II- PROVA
A) Factos provados
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Consideram-se provados os seguintes factos:
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O Requerente é um fundo de investimento imobiliário sujeito ao Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo, aprovado pela Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro.
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A sua atividade materializa‐se através do investimento em “valores imobiliários com as seguintes finalidades: i) aquisição para revenda; ii) aquisição para arrendamento ou destinados a outras formas de exploração onerosa; iii) realização de obras de melhoramento, ampliação e de requalificação de imóveis em carteira”.
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O Requerente celebrou, em 18 de maio de 2022, um contrato de mediação imobiliária com a C..., Lda, no âmbito do qual esta última se comprometeu a diligenciar, em regime de exclusividade, pela angariação de interessados na compra dos ativos imobiliários de que o Requerente era proprietário. No âmbito deste contrato, a C... foi incumbida de realizar as seguintes funções: i) Realizar ações de promoção e apresentação dos imóveis a potenciais compradores; ii) Proceder à partilha de informação, bem como à definição de estratégias de marketing; iii) Negociar com os potenciais interessados na aquisição dos imóveis, procurando obter as melhores condições negociais a verificar‐se na esfera do Requerente; iv) Assumir a responsabilidade pela prestação da necessária assistência administrativa e burocrática em todas as fases do processo até à sua conclusão efetiva; v) Intervir ativamente nas negociações e elaboração da documentação necessária.
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Os honorários devidos em razão de tal contrato foram faturados ao Requerente, que os suportou.
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A C... enquadrou os referidos serviços de mediação imobiliária como sendo uma operação sujeita a IVA e não isenta, emitiu a correspondente fatura ao Requerente e liquidou o imposto, à taxa normal, o qual deu entrada nos cofres do Estado-
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O Requerente enviou, em 20 de novembro de 2023, uma carta à C... solicitando a anulação das faturas em causa com a respetiva aplicação da isenção deste imposto e consequentemente a restituição do IVA por ele indevidamente suportado.
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A C... respondeu por mail de 23 de dezembro de 2023, que conclui como se segue: Gostaríamos de informar que não iremos emitir notas de crédito relativamente às facturas em questão uma vez que as mesmas foram corretamente emitidas.
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A Requerente reclamou graciosamente das liquidações que ora impugna, tendo tal reclamação sido indeferida. Da fundamentação da decisão de indeferimento consta, nomeadamente:
-“[n]essesentido, impunha‐se que as faturas emitidas pela C..., nas quais incluiu IVA à taxa de 23%, fossem corrigidas, nos termos legais, para que passasse a constar das mesmas a menção e justificação para a aplicação da isenção de imposto nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 36.º do CIVA, que entende, a Reclamante, ser o enquadramento legalmente correto (…) [n]ão se verificando tais requisitos, inexistirá fundamento legal para a anulação das autoliquidações em questão, por as mesmas estarem em conformidade com as normas legais aplicáveis”
- 50. Do exposto decorre que o que está em causa nos autos é o exercício do direito à regularização do imposto a favor dos sujeitos passivos, matéria que indubitavelmente está na sua disponibilidade. […]:
Nesse sentido, a omissão da alegada regularização do imposto liquidado, não configura sequer a prática de um erro, mas uma opção legitima dos sujeitos passivos, não podendo a AT substitui‐se [sic] aos mesmos no seu exercício.
Os factos dados como provados constam de documentos juntos aos autos, cuja correspondência à verdade não foi impugnada. Mais, estes factos não suscitaram qualquer divergência entre as partes.
B) Factos não provados
Não foram detetados factos tidos por não provados com relevância para a decisão da causa.
III.1- Enquadramento em sede de IVA dos serviços prestados
Conforme resulta do supra exposto, estão em causa serviços de mediação imobiliária prestados pela C... ao Requerente.
Dispõe a subalínea g) da alínea 27) do art.º 9 do Código do IVA que estão isentas de imposto a administração ou gestão de fundos de investimento. Esta norma corresponde à transposição da alínea g) do n.º 1 do art.º 135 da Diretiva IVA, que dispõe que está isenta de imposto a gestão de fundos comuns de investimento, tal como definidos pelos Estados-Membros. Conforme refere o TJUE, “a isenção prevista nessa disposição tem por finalidade favorecer o acesso dos pequenos investidores ao mercado de valores mobiliários. Efetivamente, a gestão comum dos investimentos nos fundos comuns de investimento oferece‑lhes a possibilidade de deter, apesar de um investimento modesto, uma carteira diversificada que os protege dos riscos inerentes à flutuação do valor dos títulos e permite‑lhes repartir o custo de uma gestão especializada. Na falta de isenção, os detentores de unidades de participação nos organismos de investimento coletivo são tributados mais pesadamente do que os investidores, a priori de maior dimensão, que investem diretamente o seu dinheiro em títulos sem recorrer a prestações de gestão de fundos. Ora, o princípio da neutralidade fiscal opõe‑se a que os operadores económicos que efetuam as mesmas operações sejam tratados de forma diferente em matéria de cobrança do IVA”[5].
As isenções previstas no n.º 1 do artigo 135.º da Diretiva IVA constituem conceitos autónomos do direito da União, que têm por objetivo evitar divergências na aplicação do regime do IVA na União e devem, consequentemente, ser objeto de uma definição comum, cujo conteúdo não pode ser modificado pelos Estados-Membros. Não obstante, tal não é o caso quando o legislador da União Europeia confia aos Estados-Membros a definição de determinados termos de uma isenção. No que respeita à mencionada alínea g), o TJUE já esclareceu que (i) o conceito de “gestão” aí mencionado é um conceito autónomo do direito da União; diferentemente, (ii) cabe aos Estados-Membros a definição do conceito de “fundos comuns de investimento”[6].
No caso em apreço, não restam dúvidas de que o Requerente se enquadra no conceito de fundo comum de investimento para efeitos do art.º 135º da Diretiva IVA.
Por sua vez, quanto ao conceito de “gestão” dos fundos comuns de investimento previsto na alínea g) do n.º 1 do art.º 135 da Diretiva IVA, é entendimento do TJUE[7] que:
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As operações abrangidas por esta norma de isenção são as que são específicas e essenciais à atividade dos organismos de investimento coletivo, abrangendo, para além da gestão da carteira de investimento (em títulos ou em ativos imobiliários), as funções de administração dos próprios organismos de investimento coletivo (como serviços jurídicos e de contabilidade de gestão do fundo, etc.); e
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Este conceito é definido em função da natureza das prestações de serviços que são efetuadas e não em função do prestador ou do destinatário do serviço, não sendo necessário, para efeitos da aplicação da isenção, que os serviços em causa sejam totalmente externalizados (porquanto tal interpretação limitaria o efeito útil da isenção de IVA quando fornecida por um terceiro).
Face ao exposto, são, portanto, abrangidas pela isenção de IVA acima identificada as prestações que “tenham um nexo intrínseco com a gestão de fundos comuns de investimento e sejam exclusivamente fornecidas para efeitos da gestão desses fundos, independentemente de serem totalmente externalizadas”[8]. Como tal, o facto de estarmos, in casu, perante serviços prestados por uma entidade terceira (a sociedade ) ao Requerente, não afasta, por si só, a aplicação da isenção da subalínea g) da alínea 27) do art.º 9 do Código do IVA, desde que os serviços de mediação imobiliária e de gestão imobiliária prestados cumpram os requisitos acima identificados pelo TJUE e, em particular, formem um conjunto distinto, apreciado de modo global, que tenha por efeito preencher as funções específicas e essenciais da gestão de fundos comuns de investimento[9].
Para aferir, em concreto, o âmbito e conteúdo das funções específicas e essenciais da gestão de fundos comuns de investimento devemos socorrer-nos, a nível europeu, da Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13.07.2009 (“Diretiva OICVM”) e, a nível nacional, do RGA, que transpõe esta Diretiva europeia para o ordenamento nacional.
No que respeita à Diretiva OICMV, estabelece o n.º 2 do seu art.º 2 que “a atividade habitual de uma sociedade gestora (de um fundo comum de investimento) inclui as funções referidas no anexo II”, o qual, de forma não exaustiva, enuncia as seguintes funções incluídas na atividade de gestão coletiva de carteiras:
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Gestão de investimento
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Administração:
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Serviços jurídicos e de contabilidade de gestão do fundo;
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Consultas dos clientes;
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Avaliação da carteira e determinação do valor das unidades de participação (incluindo declarações fiscais);
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Controlo da observância da regulamentação;
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Registo dos participantes;
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Distribuição de rendimentos;
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Emissão e resgate de unidades de participação;
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Procedimento de liquidação e compensação (incluindo o envio de certificados);
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Registo e conservação de documentos.
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Comercialização
Por sua vez, o art.º 63 do RGA regula, para o ordenamento nacional, as funções das sociedades gestoras de organismos de investimento, as quais diferem consoante se trate (i) de organismos de investimento coletivos (“OIC”) ou (ii) de organismos de investimento alternativo (“OIA”) imobiliário. E, no que respeita à gestão de OIA (in casu, o Requerente é um fundo de investimento imobiliário que assume a natureza de OIA), determina o n.º 3 do referido art.º 63 que a sociedade gestora destes organismos desempenha as seguintes funções (que são, portanto, as funções específicas e essenciais da gestão destes fundos):
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Gere instalações e presta serviços de administração imobiliária;
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Presta aconselhamento de empresas sobre a sua estrutura de capital, estratégia comercial e assuntos conexos;
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Presta aconselhamento e serviços na área das fusões e aquisições de empresas e outros serviços relacionados com a gestão do OIA e das empresas e outros ativos em que o mesmo tenha investido.
Complementarmente, o art.º 225 do RGA determina as operações permitidas aos OIA imobiliário (como é o caso do Requerente), especificando que estes podem:
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Adquirir imóveis para arrendamento ou destinados a outras formas de exploração onerosa;
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Adquirir imóveis para revenda;
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Adquirir outros direitos sobre imóveis, tendo em vista a respetiva exploração económica;
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Realizar obras de melhoria, ampliação e de requalificação de imóveis em carteira;
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Desenvolver projetos de construção e de reabilitação de imóveis com uma das finalidades previstas nas alíneas a) e b).
Face ao exposto, entende este Tribunal que os serviços prestados pela C... correspondem a funções específicas e essenciais da gestão de um fundo de investimento imobiliário, que teriam de ser desempenhadas pela sociedade gestora, no exercício das suas funções core, caso não fossem externalizadas. De facto, estamos na presença de funções nucleares que seriam sempre necessárias, e essenciais, ao funcionamento de um fundo de investimento imobiliário e à efetiva gestão do seu património (i.e., dos seus ativos), e que apresentam um nexo direto e intrínseco com a especificidade da natureza do fundo em causa (OIA imobiliário), não sendo transversais a todos os tipos de fundos de investimentos.
Acresce que, frequentemente, os prestadores de serviços especializados no mercado de ativos imobiliários detêm um know-how relevante e significativo, de que as sociedades gestoras querem beneficiar, sendo, como tal, prática comum do mercado a celebração deste tipo de contratos de parceria. Ou seja, existe um racional económico e funcional por detrás da externalização deste tipo de funções pelas sociedades gestoras, que se baseia num reconhecimento de que determinados players do mercado imobiliário estão em melhores condições do que estas, face ao seu know-how acumulado, de desempenhar funções de gestão e administração de ativos imobiliários de fundos de investimento imobiliários. E, como tal, seria contrário ao princípio da neutralidade do imposto, e contrário à racionalidade e objetivo da própria isenção de IVA aqui subjacente, que o desempenho de tais funções por entidades terceiras não pudesse beneficiar da isenção de imposto.
Conclui-se, em resumo, que os serviços prestados pela C... ao Requerente têm cabimento, quer no anexo II da Diretiva OICVM, quer nas funções a desempenhar pelas sociedades gestora de OIA nos termos do disposto no RGA, e formam um conjunto distinto e autónomo, para efeitos do conceito de gestão de fundos de investimento da alínea g) do n.º 1 do art.º 135º da Diretiva IVA. Consequentemente, tais serviços estão abrangidos pela isenção de IVA da subalínea g) da alínea 27) do art.º 9 do Código do IVA.
III.2 - Da Liquidação indevida de IVA
Tendo concluído supra pela aplicação da isenção de IVA da subalínea g) da alínea 27) do art.º 9 do Código do IVA aos serviços prestados pela C... ao Requerente, é, igualmente, de concluir pela ilegalidade das liquidações ora impugnadas-
PORÉM:
Da conjugação da alínea c) do n.º 1 do art.º 2, e do n.º 2 do art.º 27, ambos do Código do IVA, resulta que IVA que seja indevidamente faturado se torna devido por força dessa menção na fatura, e deve, consequentemente, ser entregue ao Estado. Tal justifica-se por razões de salvaguarda da receita fiscal, porquanto o adquirente dos bens ou serviços pode, por sua vez, exercer o direito à dedução, na sua esfera, do montante de IVA constante dessa fatura.
In casu, no entanto, o Requerente, por realizar apenas atividades isentas de IVA, nada deduziu, pelo que o objetivo pretendido com esta cláusula de proteção do erário público já foi assegurado por via da não dedução original de imposto. Também não foram suscitadas questões de abuso ou de fraude fiscal, que pudessem justificar medidas especiais de proteção da receita fiscal por via da recusa, ao destinatário, do reembolso do IVA indevidamente faturado e pago.
MAS:
Segundo jurisprudência constante do TJUE, na falta de disposição na Diretiva IVA sobre a regularização do imposto indevidamente faturado pelo emitente da fatura, em princípio cabe aos Estados‑Membros determinar as condições em que esse IVA pode ser regularizado, devendo essas condições respeitar os princípios da equivalência e da efetividade. E, como tal, a fim de assegurar a neutralidade do IVA, cabe aos Estados‑Membros prever, na sua ordem jurídica interna, a possibilidade de regularização de qualquer imposto indevidamente faturado, desde que o emitente da fatura demonstre a sua boa‑fé[10].
Em particular, resulta da jurisprudência do TJUE que “uma legislação nacional nos termos da qual, por um lado, o prestador de serviços que pagou por erro o IVA às autoridades tributárias pode exigir o seu reembolso e, por outro, o destinatário dos serviços pode intentar uma ação cível para obter a repetição do indevido contra esse prestador de serviços, respeita os princípios da neutralidade do IVA e da efetividade. Com efeito, esse sistema permite que o destinatário que suportou o encargo do IVA faturado por erro obtenha o reembolso dos montantes pagos indevidamente”. E “se o reembolso do IVA se tornar impossível ou excessivamente difícil, (…) os princípios da neutralidade do IVA e da efetividade exigem que os Estados‑Membros prevejam os instrumentos e vias processuais necessários para permitir ao destinatário recuperar o IVA indevidamente faturado, nomeadamente em resposta ao seu pedido de reembolso diretamente dirigido à Autoridade Tributária” [11].
Recentemente, o TJUE voltou a afirmar este princípio no processo C-453/22, de 07.09.2023, também citado pelo Requerente, no âmbito do qual concluiu que a Diretiva IVA e os princípios da neutralidade do imposto e da efetividade devem ser interpretados no sentido de que “exigem que o beneficiário de entregas de bens disponha, diretamente junto da Autoridade Tributária, de um direito ao reembolso do IVA indevidamente faturado que ele pagou aos seus fornecedores e que estes por seu turno pagaram à Fazenda Pública, acrescido dos juros correspondentes, nas circunstâncias de, por um lado, nenhuma fraude, abuso ou negligência lhe poderem ser imputados, ele já não poder reclamar este reembolso aos seus fornecedores por força da norma prevista no direito nacional (no caso, uma norma de prescrição) e, por outro lado, haver uma possibilidade formal de, posteriormente, os referidos fornecedores reclamarem à Autoridade Tributária o reembolso do montante cobrado em excesso depois de retificadas as faturas inicialmente emitidas ao beneficiário destas entregas” (sublinhado do Tribunal).
Face ao exposto, resulta claro da jurisprudência do TJUE que:
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Os sujeitos passivos que tenham suportado indevidamente imposto na aquisição de bens ou serviços aos seus fornecedores têm direito ao reembolso desse montante indevidamente pago, nos casos em que estejam de boa-fé e, portanto, inexista abuso ou fraude fiscal, bem como perda da receita fiscal, não obstante tal imposto se ter tornado devido, num primeiro momento, por via da sua menção em fatura[12];
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O direito ao reembolso de IVA indevidamente liquidado deve ser, em primeira linha, exercido pelo sujeito passivo adquirente junto do fornecedor que procedeu à liquidação, e respetiva entrega, desse imposto ao Estado (e a legislação nacional tem mecanismos processuais que permitem o exercício desse direito em juízo cível);
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Complementarmente, o TJUE reconhece um direito ao reembolso direto pelo Estado ao adquirente / repercutido (apenas) em circunstâncias especiais, i.e., se e na medida em que o reembolso do IVA pelo fornecedor se torne impossível ou excessivamente difícil – por exemplo, quando o fornecedor não esteja em condições de promover esse reembolso por estar insolvente (C-397/21) ou quando já não seja possível ao adquirente dos bens ou serviços atuar judicialmente, por via da caducidade ou prescrição do seu direito (C-453/22). São, portanto, cenários de extrema e comprovada dificuldade ou, mesmo, absoluta impossibilidade, em que o não reembolso do imposto pelo Estado ao adquirente seria manifestamente gravoso e injustificado, porquanto este (adquirente) já não conseguirá obter tal reembolso junto do seu fornecedor;
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Nos casos em que o reembolso seja concedido ao adquirente dos bens ou serviços e não ao fornecedor, cabe às administrações fiscais adotarem os procedimentos necessários (neste caso, de recusa) para evitar o risco de duplo reembolso, caso o fornecedor desses bens ou serviços pretenda, a posteriori, ser igualmente reembolsado desse montante[13].
Resulta dos autos que o fornecedor se recusou, por email de 10.01.2024 (i.e., já na pendência deste processo arbitral), a corrigir (voluntariamente) a faturação emitida ao Requerente entre 2018 e 2020. É certo que tal recusa, apesar do contexto de conversação informal entre as partes em que esse email se parece inserir, deve ser entendida como uma manifestação da não-vontade do fornecedor em promover a retificação das faturas em causa, ao abrigo do art.º 78º ou do art.º 98º do Código do IVA.
No caso em apreço não ficaram provadas quaisquer outas diligências concretas junto do fornecedor, e muito menos a data da sua realização, bem como não foi comprovado pelo Requerente que este já não esteja em tempo de agir contra o seu fornecedor quanto a estas faturas, suscitando, mormente por via judicial, essa correção e o respetivo reembolso do IVA indevidamente liquidado.
Ou seja, da análise dos factos presentes nestes autos não resulta que o Requerente tenha, primeiramente, encetado todos os esforços necessários ao reconhecimento do seu direito ao reembolso junto do fornecedor para, então, num segundo plano, perante uma evidente e manifesta impossibilidade, ou excessiva dificuldade, de ser bem-sucedido nesses esforços, nomeadamente por já não dispor de um direito legal de ação contra este, optar por esta via arbitral como último recurso.
No entender deste Tribunal – dando cumprimento, como é sua obrigação, ao entendimento do TUJE – apenas perante a plena comprovação dessa impossibilidade (ou quase impossibilidade) de legalmente exercer, junto do fornecedor, o direito ao reembolso se poderia desencadear, in casu, um pedido de reembolso (direto) ao Estado, sob pena de se subverter a lógica do sistema do IVA, em que o fornecedor atua, como regra, por conta da administração fiscal.
Acresce que, in casu, a devolução ao Requerente do imposto ilegalmente liquidado pelo fornecedor tem por base a alteração dos pressupostos assumidos por este em sede de IVA – prática de operações tributadas vs. prática de operações isentas de imposto – com impacto no seu direito à dedução de IVA, o qual deveria igualmente ser acautelado para evitar perda de receita fiscal.
Está, pois, em causa uma faculdade absolutamente excecional, o que implica grande rigor na comprovação dos seus pressupostos.
Em resumo, entende-se que o Requerente não cumpriu com o ónus de prova (e, até, da alegação de factos consubstanciadores) de um requisito essencial à procedência do seu pedido.
Pelo exposto, improcedem, na totalidade os pedidos arbitrais.
Valor: fixa-se o valor do processo em 427.228,10 euros, alegado valor das liquidações impugnadas.
Custas, no valor de 7.028,00 euros, a serem suportadas pelo Requerente por ter sido total o seu decaimento.
27 de junho de 2024
Rui Duarte Morais (relator)
António Pragal Colaço
Sofia Quental
[1] Esta em causa uma reclamação necessária, pelo que a decisão de indeferimento constitui a primeira pronúncia da administração sobre o tema.
[2] Direito Processual Civil, ed. 2017, pág. 298. Encontramos passagens de sentido idêntico na generalidade dos manuais.
[3] Ac. do STJ de 18-10-2018, com numerosas remissões doutrinais e jurisprudenciais.
[4] Francisco Ferreira de Almeida, cit., pág. 383.
[5] Acórdão do TJUE de 17.06.2021, proferido nos processos apensos C-58/20 e C-59/20, ponto 37.
[6] A título de exemplo, veja-se o acórdão do TJUE, de 07.03.2013, proferido no processo C-424/11.
[7] Por todos, veja-se o acórdão do TJUE de 17.06.2021, proferido nos processos apensos C-58/20 e C-59/20.
[8] Conclusão do acórdão do TJUE de 17.06.2021, proferido nos processos apensos C-58/20 e C-59/20.
[9] Acórdão do TJUE de 17.06.2021, proferido nos processos apensos C-58/20 e C-59/20.
[10] Entre outros, v. o acórdão do TJUE de 26.04.2017, proferido no processo C-564/15.
[11] Acórdão do TJUE de 13.10.2022, proferido no processo C-397/21, pontos 21 e 22.
[12] Tal afigura-se, aliás, consentâneo com o entendimento do TJUE de que IVA indevidamente liquidado não é dedutível na esfera do adquirente (porque a operação em causa não está sujeita a imposto), pelo que não é ao nível da dedução de imposto que a situação de irregularidade pode / deve ser corrigida.
[13] A este respeito, ver pontos 30 e 31 do acórdão do TJUE no processo C-453/22, de 07.09.2023.