Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 947/2023-T
Data da decisão: 2024-06-27  IVA  
Valor do pedido: € 63.872,82
Tema: IVA – Reabilitação urbana; verba 2.23 Lista I do Código do IVA; desnecessidade de prévia aprovação de ORU.
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SUMÁRIO: 

1.     A verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, na redação anterior à Lei n.º 56/2023, de 06.10.2023, tem aplicação quando se verifiquem as seguintes condições: (a) estamos perante uma empreitada de reabilitação urbana, conforme legalmente definida e (b) a empreitada de reabilitação urbana realizar-se em imóvel ou espaços públicos localizados em Área de Reabilitação Urbana (ARU), legalmente delimitada.

2.     Para além das condições referidas, nem da letra, nem do espírito da Lei, resulta qualquer outra exigência para a aplicação da taxa reduzida de IVA ao abrigo da mencionada verba 2.23, na redação anterior à Lei n.º 56/2023, designadamente a prévia aprovação de uma operação de reabilitação urbana (ORU) para o território em causa.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

Os Árbitros Rui Duarte Morais, Raquel Montes Fernandes e António Pragal Colaço, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:

 

 

 

 

 

 

              I.         RELATÓRIO

A..., Lda., NIPC ..., com sede em ..., ..., Rua..., n.º ..., ..., ...-... Vila Nova de Gaia, veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

A)   O pedido

O Requerente pede a anulação (i) do ato de liquidação de IVA n.º 2023..., referente ao período 2019/09T, no valor de € 56.276,34, e (ii) do ato de liquidação de juros compensatórios do mesmo período, no valor de € 7.596,48, no total de € 63.872,82.

 

 

B) Tramitação

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo foi aceite em 11.12.2023.

 

O Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários desta decisão, que aceitaram. As partes não se opuseram a tais designações. 

 

O Tribunal encontra-se, desde 20.02.2024, regularmente constituído. 

 

A Requerida, apresentou a sua resposta, e respetivo processo administrativo.

 

Por despacho de 05.04.2024, foi prescindida a realização da reunião a que se refere o art.º 18º do RJAT, bem como a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs.

 

 

 

          II.           O LITÍGIO

O Requerente (na qualidade de dono da obra) celebrou um contrato de empreitada com a sociedade B..., UNIPESSOAL, LDA. (empreiteiro), para a reconstrução de um prédio destinado a habitação, em Aveiro.

 

Por entender que a referida obra preenche os requisitos da verba 2.23 da Lista anexa ao Código do IVA (é uma obra de reabilitação urbana qualificada como tal pela Câmara Municipal de Aveiro, e encontra-se no âmbito da respetiva ARU, tal como delimitada em aviso publicado em 22.09.2016), o Requerente autoliquidou IVA à taxa reduzida de 6% nas 4 faturas emitidas em agosto, setembro e dezembro de 2019 pelo empreiteiro. 

 

Por seu turno, a Requerida entende que a aplicação da taxa reduzida ao abrigo da supra mencionada verba não se basta com a observância desses dois critérios, tendo ainda de se atentar à aprovação da respetiva operação de reabilitação urbana (ORU), que funciona como plano de pormenor da ARU. Nesse sentido, como a ORU respeitante à ARU de Aveiro apenas foi publicada em 10.12.2019, considera a AT que apenas a partir dessa data estão reunidas as condições legais para poder classificar aquela obra como empreitada de reabilitação urbana.

 

Nesse sentido, no que respeita às duas faturas emitidas pelo empreiteiro ao Requerente em data anterior à aprovação da ORU de Aveiro, entende a AT que a taxa de IVA aplicável para efeitos de autoliquidação é 23%, e não 6%, havendo, consequentemente, imposto em falta. Diferentemente, no que respeita à parte dos serviços de empreitada (respeitante à mesma obra) faturada após a aprovação da ORU, a Requerida aceita a aplicação da taxa reduzida de IVA.

 

 

 

 

         III.         SANEAMENTO

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.

Não existem questões que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

 

          IV.         MATÉRIA DE FACTO

A.   Factos dados como provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

1.                 O Requerente é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à compra, venda, permuta, revenda de bens imóveis, bem como ao seu arrendamento e promoção imobiliária, e ainda à reconstrução e reabilitação de edifícios, entre outras atividades sem interesse direto para a causa.

2.                 O Requerente é um sujeito passivo misto para efeitos de IVA (i.e., pratica operações que conferem direito à dedução, e operações que não conferem tal direito) e está enquadrado no regime trimestral de IVA.

3.                 O Requerente contratou uma empreitada com a sociedade B... para a reconstrução de um prédio em propriedade horizontal, com 5 pisos, destinado a habitação, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... da união de freguesias de ... e ..., sito na Travessa ..., n.º ..., ...-... Aveiro (Doc. 6 do PPA).

4.                 Para a referida obra de reconstrução, a Câmara Municipal de Aveiro emitiu ao Requerente licenças por despachos de 31.01.2019 e 03.12.2019, a que corresponde o alvará de licenciamento de obras de construção n.º .../2017 (Doc. 7 do PPA), com aditamento a 12.12.2019.

5.                 No âmbito da referida obra, o empreiteiro emitiu 4 faturas, das quais apenas as primeiras duas constituem objeto deste PPA (Doc. 8 do PPA), a saber:

                        i.         Fatura n.º FAC A/1900046, emitida em 07.08.2019, no valor de 
€ 246.028,58;

 

                      ii.         Fatura n.º FAC A/1900052, emitida em 12.09.2019, no valor de 
€ 85.008,66;

                    iii.         Fatura n.º FAC A/1900093, emitida em 18.12.2019, no valor de 
€ 46.324,94;

                     iv.         Fatura n.º FAC A/1900094, emitida em 18.12.2019, no valor de 
€ 9.662,50.

6.                 Todas as faturas foram emitidas sem IVA, com a indicação “IVA-Autoliquidação”, e sobre todas elas o Requerente procedeu à autoliquidação de IVA à taxa de 6%.

7.                  No que respeita às faturas objeto deste processo (FAC A/1900046 e FAC A/1900052), o Requerente entregou ao Estado, por conta da aquisição destes serviços, o montante de IVA de € 19.862,23, não tendo procedido à dedução deste imposto.

8.                 O imóvel em causa encontra-se localizado na ARU (área de reabilitação urbana) de Aveiro, conforme Aviso n.º 11614/2016 da deliberação da Assembleia Municipal de Aveiro, publicado na 2ª série do Diário da República n.º 183, de 22.09.2016;

9.                 A ORU de Aveiro – que se aplica à ARU desse município – foi aprovada por deliberação da Assembleia Municipal de Aveiro de 12.11.2019, tendo o respetivo Aviso n.º 19819/2019 sido publicado na 2ª série do Diário da República n.º 237, de 10.12.2019 (Doc. 11 do PPA);

10.              A AT desenvolveu um procedimento de inspeção externa ao Requerente, referente a IVA de 2019, tendo em vista apurar o cumprimento das obrigações do sujeito passivo, por ter sido detetado, no período de 2019/09T, um substancial acréscimo de operações sujeitas à taxa reduzida e redução da base tributável de operações sujeitas à taxa normal (conforme Relatório de Inspeção junto com o processo administrativo);

 

 

11.              No âmbito desse procedimento inspetivo, a AT confirmou que os valores de imposto à taxa reduzida declarados pelo Requerente nesse período respeitavam à autoliquidação por si efetuada na aquisição dos serviços em empreitada acima referidos, cujo IVA não foi deduzido (por respeitar a um imóvel destinado a habitação);

12.                 A Câmara Municipal de Aveiro emitiu certidão ao Requerente, em 28.03.2023, a atestar (i) que o imóvel em causa se encontra inserido na respetiva ARU e (ii) que a intervenção (obra) em causa tem enquadramento na alínea j) do art.º 2 do Decreto-Lei n.º 307/2009, na vertente de empreitada de reabilitação urbana (Doc. 10 do PPA);

13.              Tendo sido questionada pela AT durante o processo inspetivo, a Câmara Municipal de Aveiro prestou informações contraditórias às conclusões da sua certidão de 28.03.2023 mas, tendo sido novamente questionada pela AT, concluiu definitivamente, em 22.06.2023, estarem em causa obras integradas na ARU, que consubstanciam uma intervenção de reabilitação urbana e estão alinhadas com os objetivos estratégicos definidos na ARU e na ORU do território (conforme carta junta como anexo 17 do Relatório de Inspeção), o que motivou a anulação de parte das correções que haviam sido propostas pela AT em sede de projeto de relatório; 

14.              Do procedimento inspetivo resultou o apuramento de imposto em falta, correspondente à diferença entre a taxa de 6% autoliquidada pelo Requerente e a taxa de 23% que a AT considera devida, tendo sido emitidas a liquidação oficiosa de IVA n.º 2023..., referente ao período 2019/09T, no valor de € 56.276,34, e a liquidação de juros compensatórios do mesmo período, no valor de € 7.596,48, no total de € 63.872,82;

15.              Não se conformando com os atos tributários acima identificados, o Requerente apresentou o presente PPA.

 

B.    Factos dados como não provados

Não foram dados por não provados quaisquer factos relevantes para a decisão da causa.

 

 

            V.         MATÉRIA DE DIREITO

É matéria decidenda deste litígio confirmar se a aprovação prévia de uma ORU para determinado território é condição necessária para que uma empreitada de reabilitação urbana efetuada numa ARU possa ser sujeita à taxa reduzida de IVA ao abrigo da verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA, na redação anterior à Lei n.º 56/2023.

 

Dispõe a al. a) do n.º 1 do art.º 18 do Código do IVA que às operações constantes da lista I anexa a este código é aplicável a taxa de 6%. Por sua vez, a verba 2.23 da referida lista I estipulava o seguinte, à data dos factos: são sujeitas à taxa reduzida de IVA as empreitadas de reabilitação urbana, tal como definida em diploma específico, realizadas em imóveis ou em espaços públicos localizados em áreas de reabilitação urbana (áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística, zonas de intervenção das sociedades de reabilitação urbana e outras) delimitadas nos termos legais, ou no âmbito de operações de requalificação e reabilitação de reconhecido interesse público nacional.

 

De acordo com a referida verba, na redação acima transcrita, os requisitos para subsunção à previsão normativa da taxa reduzida de IVA são os seguintes:

a)     Existência de uma empreitada;

b)    De reabilitação urbana, tal como definida em diploma específico;

c)     Realizada em imóvel (ou espaço público) localizado em ARU[1].

 

No caso em apreço, é facto não controvertido entre as partes que o Requerente celebrou um contrato de empreitada com a sociedade B... para uma obra a efetuar no distrito de Aveiro. Nesse sentido, o requisito acima identificado em a) [existência de empreitada] considera-se cumprido.

 

 

É, igualmente, facto provado, e comummente aceite por ambas as partes, que o imóvel objeto dessa empreitada está contido na ARU delimitada pela Assembleia Municipal de Aveiro, a qual foi publicada em 2016 (i.e., em momento anterior à referida obra), pelo que o requisito previsto em c) supra [imóvel localizado em ARU] também se considera integralmente cumprido.

 

As partes discordam, no entanto, do conceito de reabilitação urbana para efeitos de aplicação desta verba: enquanto que o Requerente argumenta que a intervenção em causa foi devidamente certificada e reconhecida pela Câmara Municipal de Aveiro como consubstanciando uma empreitada de reabilitação urbana ao abrigo da legislação aplicável, e que os requisitos legais estão plenamente cumpridos, a Requerida considera que tal intervenção apenas pode ter enquadramento no mencionado conceito de reabilitação urbana para efeitos de aplicação da verba 2.23 da Lista I após a aprovação e respetiva publicação da ORU desse território. E, para o efeito, a AT apenas reconhece ao Requerente a possibilidade de aplicar a taxa reduzida de IVA prevista na verba 2.23 da Lista I aos serviços de empreitada que lhe foram faturados após essa data (in casu, após 10.12.2019).

 

Vejamos, então, qual dos entendimentos deve prevalecer.

 

Em jeito de introdução, cumpre esclarecer que, perante uma redação estável da mencionada verba 2.23 desde 2009 até 2023, a AT foi adotando vários requisitos adicionais de interpretação desta norma que não decorrem do seu elemento literal, em particular, a posse de declaração de localização em ARU emitida pelo município competente, o licenciamento ou comunicação prévia da obra[2], ou, mais recentemente, a prévia aprovação de uma ORU para determinado território. No caso em apreço, é este último requisito que está em análise, mas mesmo neste âmbito o entendimento da AT tem evoluído, porquanto começou por aceitar a aplicação da taxa reduzida de IVA quando o respetivo município atestasse que o projeto em causa consubstanciava uma operação de reabilitação urbana[3], mas nos presentes autos, em que tal certificação existe (como resulta dos factos provados), argumenta ainda a necessidade de uma prévia aprovação da respetiva ORU.

 

A verba 2.23 da Lista I remete, como vimos, para o conceito de «reabilitação urbana, tal como definida em diploma específico», pelo que este conceito tem de ser preenchido por recurso ao diploma específico em causa, a saber, o Regime Jurídico da Reabilitação Urbana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de outubro (RJRU).

 

O RJRU contém um conjunto extenso de normas reguladoras e funcionais, que pretendem garantir intervenções urbanísticas alinhadas com os objetivos e os critérios de reabilitação definidos por cada município para o seu território. Para o efeito, as entidades municipais recorrem a instrumentos legais como a delimitação da zona de reabilitação urbana (ARU), a definição de operações de reabilitação urbana (ORU) e a emissão de licenças de construção que conformam projetos de obra, os quais, no essencial, servem propósitos de natureza urbanística.

 

No que respeita ao plano fiscal, o legislador optou por fazer remissões específicas, e não gerais, da verba 2.23 da lista I para o regime da reabilitação urbana[4]. Quer na redação desta verba após a aprovação do RJRU (que é posterior à aprovação do Código do IVA), quer na redação existente na vigência do seu antecessor (in casu, o Decreto-Lei n.º 104/2004, de 7 de maio), não se retira, do texto da referida verba, uma remissão genérica para o regime da reabilitação urbana – o que teria sido uma opção legislativa válida – mas, sim, o recurso a (apenas) dois aspetos (conceitos) específicos do RJRU:

1.     Quando se refere ao conceito de «reabilitação urbana, tal como definida em diploma específico», a verba 2.23 remete para a definição legal de reabilitação urbana constante da alínea j) do art.º 2 do RJRU[5], a qual define reabilitação urbana como «a forma de intervenção integrada sobre o tecido urbano existente, em que o património urbanístico e imobiliário é mantido, no todo ou em parte substancial, e modernizado através da realização de obras de remodelação ou beneficiação dos sistemas de infra-estruturas urbanas, dos equipamentos e dos espaços urbanos ou verdes de utilização colectiva e de obras de construção, reconstrução, ampliação, alteração, conservação ou demolição dos edifícios»;

2.     Quando se refere a «imóveis ou em espaços públicos localizados em áreas de reabilitação urbana», remete-se para a delimitação geográfica da ARU que é efetuada por cada município, no âmbito das atribuições que lhe são conferidas pelo RJRU. 

 

O legislador urbanístico previu, ainda, para cada ARU, a existência de uma ORU enquanto diploma densificador da intervenção urbana a ser realizada nesse território delimitado. A aprovação dessa ORU, de acordo com o disposto no art.º 15 do RJRU, pode ocorrer em simultâneo com a da ARU, ou até ao prazo limite de 3 anos após a aprovação da respetiva ARU (sob pena de caducidade desta). 

 

Note-se que o referido art.º 15 do RJRU não teria razão de existir se o legislador não pretendesse que a aprovação da ARU produzisse efeitos antes da aprovação da ORU. Nesse sentido, face à adoção do mencionado art.º 15, é de concluir que a delimitação de uma área de reabilitação urbana subsiste, mesmo sem a aprovação da respetiva ORU[6], e é válida e eficaz perante terceiros, até à sua (eventual) caducidade. Tal conclusão é, igualmente, suportada pelo art.º 14 do RJRU, que determina que a delimitação de uma área de reabilitação urbana (i.e., a delimitação geográfica da ARU), obriga à definição, pelo município, dos benefícios fiscais associados aos impostos municipais sobre o património (IMT e IMI) e confere aos proprietários e titulares de outros direitos, ónus e encargos sobre os edifícios compreendidos nessa área o direito de acesso aos apoios e incentivos fiscais e financeiros à reabilitação urbana. 

 

Ou seja, da conjugação dos art.ºs 14 e 15 do RJRU, conclui-se que a mera delimitação da ARU – com, ou sem, a aprovação simultânea da respetiva ORU – confere determinados direitos de acesso a apoios e incentivos fiscais e financeiros à reabilitação urbana, como o sejam os benefícios fiscais respeitantes ao IMT, ao IMI e – entende este Tribunal – à taxa reduzida de IVA da verba 2.23 da Lista I.

 

Retomando a análise da verba 2.23 da lista I, verifica-se que em momento algum esta elenca, como requisito ou critério de aplicação da taxa reduzida de IVA, a existência de uma ORU aprovada para o território ou, sequer, refere o conceito de operação de reabilitação urbana. O que o legislador fiscal pretendeu foi conceder um benefício fiscal, sob a forma de taxa reduzida de IVA, às intervenções urbanísticas que, cumulativamente, se insiram em determinadas zonas geográficas (ARU) e que revistam determinados critérios de intervenção urbanística sobre o tecido imobiliário (critérios esses que são definidos e aferidos pelas entidades municipais, e não pela AT), que lhes permitam obter a qualificação legal de reabilitação urbana ao abrigo do RJRU. 

 

No mesmo sentido se concluiu em processos arbitrais anteriores, tais como os processos n.º 137/2022-T e n.º 603/2022-T, em que a Requerida viu recusado o argumento de que a aplicação da verba 2.23 dependia de um terceiro requisito, que consistia na prévia apreciação e aprovação de um pedido de licenciamento camarário, ou no processo n.º 354/2023-T, cujo sumário refere o seguinte:

“1.      A verba 2.23 da Lista I Anexa ao CIVA, tem aplicação quando verificadas as seguintes condições:

(a) Estamos perante uma empreitada de reabilitação urbana, conforme legalmente definida;

(b) A empreitada de reabilitação urbana realiza-se em imóvel ou em espaços públicos localizados em Área de Reabilitação Urbana (ARU), legalmente delimitada.

(…)

3.      Para além das duas condições referidas, nem da letra, nem do espírito da Lei, resulta qualquer outra exigência para a aplicação da taxa reduzida de IVA de 6%, designadamente a exigência de que uma Câmara Municipal tenha de atestar que a empreitada consubstancia uma “Operação de reabilitação urbana”.”

 

Conforme refere Clotilde Celorico Palma no seu voto de vencida no processo 517/2013-T, para apurar se é possível conceder o benefício fiscal da taxa reduzida de IVA bastando a existência de uma ARU sem ORU, “importa desde logo salientar, que, distintamente do que se verifica em sede de concessão dos benefícios a que se refere o n.º 4 do artigo 71.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), que podem ser mobilizados quando estejam em causa encargos suportados pelo proprietário, com a reabilitação de imóveis, localizados em áreas de reabilitação urbana e recuperados nos termos das respectivas estratégias de reabilitação e no n.º 5 do mesmo artigo, a verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA não utiliza, não contém, nem emprega, em nenhum momento, o conceito de “operação de reabilitação urbana” e muito menos refere ou remete para qualquer certificação pela Câmara Municipal a “consubstanciar” tal operação”.

 

Também Paula Oliveira e Dulce Lopes[7] defendem que da aprovação da ARU resultam já efeitos fiscais, não dependentes, em termos de eficácia, da aprovação da respetiva ORU: “Com a Lei n.° 32/2012, de 14 de agosto, veio permitir-se (mas não impor-se) que a decisão complexa (traduzida num conjunto de decisões parcelares ou preliminares anteriormente referidas) seja faseada, procedendo-se, primeiro, à identificação dos concretos limites físicos da área a sujeitar à operação de reabilitação urbana (arts. 7.º, n.º 3, e 13.º), apenas depois se aprovando essa operação (art. 16.º), aprovação que integrará, para além da definição do tipo de operação a realizar (simples ou sistemática), também a estratégia ou programa estratégico a prosseguir.

Pretendeu-se, com esta alteração, promover, o mais antecipadamente possível, em área de reabilitação urbana, a reabilitação de edifícios e frações pelos seus proprietários (mesmo antes da aprovação da correspetiva operação de reabilitação urbana), já que a delimitação daquela área tem como efeitos a definição, pelo município, dos benefícios fiscais associados aos impostos municipais sobre o património, designadamente o imposto municipal sobre imóveis (IMI) e o imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT), nos termos da legislação aplicável, bem como a concessão aos proprietários e titulares de outros direitos, ónus e encargos sobre os edifícios ou frações nela compreendidos do direito de acesso aos apoios e incentivos fiscais e financeiros à reabilitação urbana, nos termos estabelecidos na legislação aplicável , sem prejuízo de outros benefícios e incentivos relativos ao património cultural.

(…)

“Entendemos, como resultado da melhor ponderação dos vários interesses em confronto, que se pode interpretar o referido benefício constante do Código do IVA como extensível a intervenções que, estando integradas em áreas de reabilitação urbana, não prejudicam (ou potenciam) os objetivos estratégicos antecipados aquando da delimitação destas áreas. Achamos até adequado que assim seja, na medida em que, se assim se entender, não são apenas os municípios que têm de abdicar de receitas fiscais (já que aqueles de que estes beneficiam, IMI e IMT, têm necessariamente de ser definidos aquando da delimitação da ARU), fazendo também impender esse "encargo " sobre o Estado”.

 

Concluem, portanto, estas Autoras, à semelhança da posição assumida por Clotilde Celorico Palma no voto de vencida acima referido, que o benefício da taxa reduzida de IVA da verba 2.23 da Lista I pode ser concedido sem existência de uma ORU previamente aprovada, posição que este Tribunal acompanha. No mesmo sentido, Daniel S. de Bobos-Radu[8]esclarece que “assim como nada justifica que a Administração Tributária ou os Tribunais afiram se um «produto farmacêutico» ou um «estabelecimento hoteleiro», para efeitos da subsunção, respetivamente, às verbas 2.5 e 2.17 da Lista I anexa do Código do IVA, cumpre com todos os pressupostos regulatórios que lhe sejam especificamente aplicáveis por força de outros regimes, também nada justifica que a Administração Tributária ou os Tribunais tomem em linha de conta, v.g., a verificação do licenciamento ou comunicação prévia, ou a aprovação da operação de reabilitação urbana, para efeitos da aplicação da verba 2.23 da referida Lista I”.

 

De facto, a exigência da AT de uma prévia aprovação da ORU para aplicação da taxa reduzida de IVA ao abrigo da verba 2.23 da lista I não encontra o mínimo suporte legal, pelo que o seu acolhimento por via de instruções administrativas violaria o princípio da legalidade tributária, máxime da tipicidade tributária, previsto no n.º 2 do art.º 103 da Constituição da República Portuguesa[9].

 

Acresce que tem sido entendimento constante da Requerida que a entidade competente para certificar que determinado projeto se enquadra no âmbito de uma intervenção de reabilitação urbana, nos termos do RJRU, é o município onde se insere o respetivo imóvel, não competindo à AT tal juízo (conforme, aliás, refere a Requerida, no ponto 35 da pág. 22 do Relatório de Inspeção, citando uma sua informação vinculativa[10]).

 

No caso em apreço, para comprovação dos factos por si alegados, foi junta ao processo pelo Requerente uma certidão da Câmara Municipal de Aveiro, de 28.03.2023 (Doc. 10), que atesta que o imóvel objeto de discussão “encontra-se localizado dentro dos limites da ARU – Área de Reabilitação Urbana, cuja delimitação foi aprovada por deliberação da Assembleia Municipal de Aveiro, de 09 de setembro de 2016”, e que “a intervenção tem enquadramento na alínea j) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 307/2009”.  

 

 

 

 

Em momento anterior, durante a ação de inspeção, a Câmara Municipal de Aveiro havia prestado informação contraditória à Requerida, o que motivou, por ofício de 19.04.2023, um pedido de esclarecimentos adicionais da Requerida ao município. Nessa sequência, a Câmara Municipal de Aveiro prestou os seguintes esclarecimentos finais, por carta de 21.06.2023 (anexo 17 do relatório de inspeção):

 

 

 

Da análise desta certidão resulta, portanto, a comprovação pelo município competente de que (i) a empreitada em causa reveste a natureza de obra de reabilitação urbana de acordo com a definição legal do RJRU, e que (ii) o imóvel objeto dessa intervenção se encontra localizado na respetiva ARU – ambos requisitos necessários à aplicação da mencionada verba 2.23 – e, ainda, que (iii) as obras em causa consubstanciam uma operação de reabilitação urbana e estão alinhadas com a ORU do território (entretanto aprovada) e com os seus objetivos estratégicos (o que constitui um requisito de natureza urbanística mas não fiscal).  

 

Como tal, resulta in casu plenamente provado o cumprimento dos requisitos legais constantes da verba 2.23 da Lista I do Código do IVA e, consequentemente, a aplicação da taxa reduzida de IVA aos serviços de empreitada faturados ao Requerente por conta da reabilitação do imóvel em apreço. 

 

E estando em causa uma mesma realidade económica (i.e., uma empreitada de reabilitação de um edifício, que decorreu entre 2017 e 2019), não se aceita o argumento da Requerida de que os serviços de empreitada devem ser sujeitos a diferentes taxas de IVA, consoante as obras em causa tenham sido faturadas antes ou depois da aprovação da ORU, pois tal aprovação em nada contende com a materialidade das obras realizadas e dos serviços prestados. Não seria, aliás, conforme aos princípios de direito fiscal recusar um benefício fiscal cujos pressupostos estão indiscutivelmente preenchidos por razões meramente formais, fiscalmente irrelevantes, e que não podem ser imputadas ao sujeito passivo (neste caso, o momento da aprovação de uma ORU).

 

 

Em conclusão, nem a redação da verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA exigia, à data dos factos, a aprovação prévia de uma ORU para efeitos de aplicação da taxa reduzida de IVA, nem as informações vinculativas da AT divulgadas nesse período o exigiam. Acresce que a Câmara Municipal de Aveiro atestou a conformidade do projeto em causa com os requisitos legais da mencionada verba. 

 

Face ao exposto, não assiste razão à Requerida, devendo as liquidações de IVA e juros compensatórios sub judice ser anuladas, por erro nos pressupostos de direito, o que constitui vício de violação de lei.

 

          VI.         DECISÃO

Pelo exposto, procede, na totalidade, o pedido arbitral, com a consequente anulação dos atos tributários de IVA e juros compensatórios em crise.

 

       VII.         VALOR DO PROCESSO 

Fixa-se o valor do processo em € 63.872,82, que corresponde ao valor das liquidações impugnadas (artigo 97.º-A do CPPT).

 

     VIII.         CUSTAS

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 2.448, a serem suportadas pela AT por ter sido total o seu decaimento.

 

27 de junho de 2024.

 

 

 

Os Árbitros,

 

 

 

Rui Duarte Morais

 

 

 

 

Raquel Montes Fernandes (Relatora)

 

 

António Pragal Colaço
 

 



[1] Ou no âmbito de operações de reabilitação de interesse público nacional, não aplicável in casu.

[2] A título de exemplo, vejam-se a Informação Vinculativa n.º 12432, de 08.11.2017 e a Informação Vinculativa n.º 13727, de 18.06.2018. À data dos factos ora em discussão, as informações vinculativas prestadas pela AT assentavam nas seguintes conclusões, que não mencionavam qualquer exigência ao nível da aprovação prévia de uma ORU (a título de exemplo, transcrevemos o ponto 8 da Informação Vinculativa n.º 13727, de 18.06.2018): “a contratação de empreitada geral relativa à totalidade de uma obra de reabilitação em imóvel localizado em área de reabilitação urbana (ARU), devidamente licenciada pelo respetivo município, por concessão do respetivo alvará, é suscetível de enquadramento na verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA e, beneficiar da taxa reduzida de IVA a que se refere a alínea a) do n.º 1 do artigo 18.º do mesmo Código, quando, cumulativamente:

a) O respetivo alvará de licenciamento da reabilitação, concedido pela Câmara Municipal de ..., nos termos do artigo 4.º do RJUE, tenha enquadramento na alínea j) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23/10, nomeadamente, tratar-se de intervenção integrada sobre o tecido urbano existente, em que o património urbanístico e imobiliário é mantido, no todo ou em parte substancial, e modernizado através da realização de obras de remodelação ou beneficiação dos sistemas de infraestruturas urbanas, através de obras de construção, reconstrução, ampliação, alteração, conservação ou demolição dos edifícios; e

b) A adjudicação da referida empreitada tenha por base a universalidade dos bens e serviços cuja disponibilização se afigure essencial à concretização da operação constante do respetivo alvará”.

[3] A título de exemplo, veja-se o ponto 40 da Informação Vinculativa n.º 21440, de 01.07.2021, que conclui que “sempre que a Câmara Municipal da área em que se situa o imóvel objeto de intervenção certifique que, nos termos do citado diploma legal, o projeto:

a. Está integrado numa área de reabilitação urbana; e

b. consubstancia uma operação de reabilitação urbana,

ser-lhe-á, verificados que sejam os restantes condicionalismos (nomeadamente tratar-se de uma empreitada, nos termos do artigo 1207.º do Código Civil), aplicável a taxa reduzida do imposto, a que se refere a alínea a) do n.º 1 do artigo 18.º do CIVA”.

[4] No mesmo sentido, Daniel S. de Bobos-Radu conclui que “a utilização dos conceitos de «empreitada de reabilitação urbana» e «área de reabilitação urbana» na citada verba 2.23 tem unicamente um valor remissivo: encontrando-se os termos já definidos nos regimes de origem, o legislador tributário aproveita as referidas definições, uma vez que, por razões de analogia, as mesmas, qua tale, servem o propósito subjacente à delimitação do âmbito da previsão da taxa reduzida do imposto”, Cadernos IVA 2023, Reabilitação urbana na aceção do IVA: nota metodológica, pp. 165-166.

[5] O objetivo da remissão legislativa constante da verba 2.23 da lista I anexa ao Código do IVA era ainda mais claro na pendência do diploma anterior ao RJRU, onde se referia que a taxa reduzida de IVA era aplicada a “empreitadas de reabilitação urbana, tal como definida no artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 104/2004, de 7 de Maio”.

[6] Note-se que, mesmo na ausência de uma ORU, o município continua a ter instrumentos urbanísticos que asseguram a conformidade de determinado projeto de obra com as políticas por si definidas e pretendidas ao nível da reabilitação do seu património imobiliário (emissão de licenças de construção, fiscalização das empreitadas, etc.), que lhe permitem evitar a existência de empreitadas que, urbanisticamente, não estão alinhadas com essas politicas e que, fiscalmente, por esse mesmo motivo, não serão merecedoras de um benefício fiscal (de redução de taxa), o qual se pretende atribuir a quem recupera, de determinada forma e sob determinados critérios, edificações legalmente qualificadas como degradadas.

[7] Reabilitação urbana em ARUS sem ORUS: que conceito de reabilitação e que benefícios fiscais em matéria de IVA”, Questões Atuais de Direito Local, n.º 13, Janeiro/Março 2017, pp. 30 e 31 e 45.

[8] Cadernos IVA 2023, Reabilitação urbana na aceção do IVA: nota metodológica, pág. 165.

[9] No mesmo sentido, v. o voto de vencida de Catarina Belim no processo arbitral n.º 295/2022-T.

[10] No mesmo sentido, e meramente a título de exemplo, veja-se o ponto 39 da Informação Vinculativa n.º 21440, de 01.07.2021, que refere que “A entidade competente para certificar que determinado projeto se enquadra no âmbito de uma operação de reabilitação urbana, nos termos do Decreto-lei n.º 307/2009, de 23 de outubro (1), é a Câmara Municipal da área onde se situa o imóvel objeto de intervenção”.