Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 518/2023-T
Data da decisão: 2024-06-14  IMI  
Valor do pedido: € 4.805,38
Tema: IMT – a impugnação da liquidação em IMI no propósito de se conseguir a correção da errónea fixação do valor patrimonial tributário (VPT) é um meio processual inadequado, dado o facto de aquele ato de fixação do VPT ser um ato autónomo, que deve ser objeto de impugnação própria, em meio processual específico, nos termos do art. 86º da LGT, e não em sede de impugnação da liquidação, em relação à qual é um ato pressuposto.
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SUMÁRIO

 

          Em sede de IMI, a impugnação da liquidação oficiosa que tem por pressuposto uma errada avaliação do valor patrimonial tributário (VPT) deve ser feita no momento da fixação daquele valor, o qual é um ato autónomo e antecedente da liquidação em IMI, para tanto existindo a indicação legislativa de um meio impugnatório específico, nos termos do art. 86º da LGT, não podendo usar-se o meio da impugnação da liquidação em IMI que tenha exclusivamente que ver com a definição prévia daquele valor.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

O árbitro Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 25 de setembro de 2023, decide o seguinte:

 

  1. RELATÓRIO

                                

            1. A... – Fundo Especial de Investimento Imobiliário Fechado, (doravante abreviadamente designado por “ Requerente”), com o número de identificação fiscal..., aqui representado pela sua sociedade gestora B...– Sociedade Gestora de Organismos de Investimento Coletivo, S. A., com o número de identificação fiscal ... e sede na ..., ..., ..., ...-... Lisboa, veio requerer, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Decreto‐Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112‐A/2011, de 22 Março, a constituição de tribunal arbitral, na sequência da formação da presunção do indeferimento tácito do recurso hierárquico apresentado pela Requerente, junto da Autoridade Tributária (“AT”), em 14 de fevereiro de 2023, com vista à anulação parcial dos atos tributários de liquidação de Imposto Municipal sobre os Imóveis (“IMI”) 2017..., 2017..., 2017..., 2018..., 2018..., 2018..., 2019 ..., 2019..., 2019..., 2020 ..., 2020 ..., 2020 ..., com referência aos anos 2017 a 2020.

            Alegou que, no seu entender, tais atos seriam manifestamente ilegais em resultado de errónea coleta de IMI relativamente a valores patrimoniais tributários (VPT) mal calculados nos terrenos para construção.

            Pelo que solicitou o reembolso do dinheiro indevidamente pago, com o acréscimo de juros indemnizatórios.

 

2. Sumariamente, esse pedido tem estes seguintes fundamentos:

- a errónea determinação do valor patrimonial tributário (VPT) dos “terrenos para construção”;

- a errónea aplicação da majoração de 25% prevista no artigo 39.º do CIMI para determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção;

- a anulabilidade (parcial) dos atos tributários de liquidação de IMI em resultado da errónea determinação do valor patrimonial tributário dos “terrenos para construção”;

- a inconstitucionalidade da interpretação da legislação processual que exclua a Requerente da possibilidade de impugnar a incorreção do VPT em sede de liquidação do IMI que foi criada e aplicada pela AT.

 

3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD, em 8 de julho de 2023, e em conformidade com o preceituado no art. 11.º, n.º 1, al. c) do  Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66º-­B/2012, de 31 de dezembro, tendo sido notificada nessa data a Autoridade Tributária (AT).

 

4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto do art. 6.º, n.º 1, e do art. 11.º, n.º 1, al. b), do RJAT, o Conselho Deontológico, em 22 de agosto de 2023, designou o árbitro signatário, que comunicou, no prazo legalmente estipulado, a aceitação do respetivo encargo.

 

5. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do art. 11.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT e arts. 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

6. Deste jeito, o Tribunal Arbitral foi regularmente constituído em 25 de setembro de 2023, com base no disposto nos arts. 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio, tendo sido subsequentemente notificada a AT para, querendo, apresentar resposta, o que veio a fazer na sua qualidade de Requerida.

 

7. A Requerida, chamada a pronunciar-se, sustentou em 31 de outubro de 2023 que a Requerente pretendia um efeito processual indevido, relativo à fixação do VPT, o qual não seria possível em sede de liquidação de IMI, antes noutra sede.

Ainda assim, entendeu que Requerida que a liquidação, não tendo sido impugnada a fixação do VPT dos prédios em causa, estaria dentro da legalidade, citando disposições legais e a orientação geral fixada pelo STA.

Não havendo, portanto, lugar ao reembolso e ao pagamento de quaisquer juros indemnizatórios peticionados.

 

8. A jurisdição do Tribunal Arbitral foi prorrogada até 25 de julho 2024 por razões de ordem processual relacionadas com a junção, pela Requerida, de uma decisão do Supremo Tribunal Administrativo.

 

9. Dessa junção, foi dada à Requerente a oportunidade para se pronunciar.

 

  1. SANEAMENTO

 

10. O Tribunal foi regularmente constituído em 25 de setembro de 2023, em conformidade com o preceituado na al. c) do n.º 1 do art. 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.

 

11. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos arts. 4.º e 10.º do RJAT e do art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

12. O processo não padece de vícios que o invalidem.

 

          Cumpre apreciar e decidir.

 

  1. DOS FACTOS

 

13. A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral e dos elementos remetidos aos autos, fixa-se como segue:

 

  1. Factos Provados

 

14. A Requerente é um Fundo Especial com o nome A...– Fundo Especial de Investimento Imobiliário Fechado (doravante abreviadamente designado por “ Requerente”), com o número de identificação fiscal..., representado pela sociedade gestora B...– Sociedade Gestora de Organismos de Investimento Coletivo, S. A., com o número de identificação fiscal ... e sede na ..., ..., ..., ...‐... Lisboa.

 

15. A Autoridade Tributária (“AT”, doravante Requerida) procedeu às seguintes liquidações oficiosas em Imposto Municipal sobre os Imóveis (“IMI”), com alusões aos anos de 2017 a 2020, no montante de € 4.805,38:

- nº 2017...;

- nº 2017...;

- nº 2017...;

- nº 2018...;

- nº 2018...;

- nº 2018...;

- nº 2019...;

- nº 2019...;

- nº 2019...;

- nº 2020...;

- nº 2020...;

- nº 2020 ....

 

16. Estas liquidações referem-se aos seguintes bens imóveis:

a) Freguesia de ...(...):

1)U -...;

2)U - ...; e

3)U –....

b) Freguesia de ... (...):

1)U - ...;

2)U - ...;

3)U - ...; e

4)U –... .

 

17. Aquele valor considera a quantificação do VPT usada em sede de cálculo do IMI, que se entendeu pela Requerente ter sido indevidamente pago, sendo certo que a Requerida indeferiu tacitamente a reclamação apresentada.

 

18. A Requerente, nos termos do artigo 8º do CIMI, é sujeito passivo do IMI, para os anos de 2017, 2018, 2019 e 2020, correspondendo o valor tributável aos valores patrimoniais tributários reportados a 31 de dezembro dos anos a que respeita o imposto, que constam nas matrizes prediais, na respetiva titularidade.

 

  1. Factos não provados

 

19. Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.

 

  1. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

20. Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.

 

21. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito [cfr. o art. 596.º, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT].

 

22. Os factos dados como provados resultaram da análise crítica dos documentos juntos aos autos, bem como das posições assumidas pelas Partes nos respetivos articulados.

 

  1. DO DIREITO

 

  1. A inadequação do meio processual da impugnação da liquidação em IMI para corrigir valores indevidos em sede de fixação do valor patrimonial tributário (VPT) de bens imóveis

 

23. O tema fundamental dos autos, sendo uma exceção processual, respeita a saber se o meio processual utilizado pela Requerente se afigura correto para o objetivo que pretende, que é o da invalidação das liquidações em IMI realizadas por ilegalidade antecedente na fixação antecedente do VPT.

A Requerente entende que tal se afigura juridicamente viável, ao passo que a Requerida opina, ao invés, que tal só é possível no âmbito da impugnação do ato de fixação do VPT, que integra um procedimento tributário autónomo.

 

24. É entendimento do Tribunal Arbitral que não assiste razão à Requerente na defesa da ideia de que a fixação do VPT pode ser feita no âmbito da impugnação do ato de liquidação que tome aquele ato como mero pressuposto.

Assim já o decidiu o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo de 23.02.2023, no processo n.º 102/22.2BALSB (que se dá aqui por reproduzido), referindo-se que eventuais vícios próprios e exclusivos do VPT são insuscetíveis de ser impugnados no ato de liquidação que seja praticado com base no mesmo, sendo feitos em sede de impugnação autónoma daquele ato de fixação do VPT, correspondendo a uma procedimento administrativo autónomo.

Concluiu-se em tal aresto o seguinte, entendimento que o Tribunal Arbitral sufraga: “Não tendo sido impugnado judicialmente o resultado da segunda avaliação, nos termos previstos na lei, forma-se caso decidido ou resolvido sobre o valor da avaliação, pelo que esta não pode voltar a ser discutida (cfr. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12/01/2011, Processo nº 0758/10).”

 

25. Diga-se ainda que, no âmbito do CAAD, já houve um caso em que se entendeu no mesmo sentido, na decisão arbitral do Processo nº 697/2021, de 17 de junho de 2021, no qual se afirma que “A primeira questão a decidir foi já largamente tratada pela Jurisprudência dos Tribunais Fiscais e dos Tribunais Arbitrais. De forma consistente e fundamentada tem sido entendido que a sindicância contenciosa da fixação do VPT só pode ser feita após a reclamação fundamentada prevista no artigo 134.º do CPPT”.

E ainda se acrescenta: “Ora, resulta dos factos provados que tal não aconteceu pelo que o Tribunal está impedido de apreciar a legalidade da liquidação feita do IMI com base numa fixação de Valor Patrimonial que não foi contestada autonomamente como a lei exige. Não existe vício no ato de liquidação praticado”.

 

26. É o que se verifica nos autos: não houve a impugnação atempada da fixação do VPT no lugar próprio, formando-se caso decidido, não sendo a impugnação do ato de liquidação em IMI, por suposta anomalia na definição do VPT, o meio idóneo para obter essa correção.

 

  1. A não inconstitucionalidade da norma que impõe a impugnabilidade específica e exclusiva da fixação do valor do VPT no âmbito da revisão do ato que o fixa

 

27. Além dessa consideração, a Requerente considera que entender de outro modo, como defende a Requerida, e aqui o Tribunal reafirma, seria uma interpretação inconstitucional do seu direito de acesso à justiça tributária, uma vez que poria em causa o art. 20º da CRP, ao reduzir drasticamente as suas possibilidades de acesso a tal justiça.

 

28. Desde já se refuta este argumento de inconstitucionalidade, na aceitação do meio de impugnação autónoma do ato de fixação do VPT, porque a CRP, no seu art. 20º, não proíbe a aplicação de limites e de restrições ao direito fundamental de acesso à justiça.

Basta observar, em qualquer lei processual, e a lei processual fiscal não é exceção, a imposição de pressupostos processuais, que sempre redundam na limitação desse acesso à justiça, que não pode apresentar-se de um modo absoluto.

 

29. Exemplo disso é o estabelecimento de condições de patrocínio forense ou a adoção de prazos processuais para a proposição de ações judiciais, com o fito de se garantir uma justiça segura e atempada.

Ponto é que essas limitações não sejam discriminatórias – violando o princípio da igualdade – ou desproporcionadas – se não se revelarem justificadas em função do objetivo adequado que devem atingir.

Ou ainda que não sejam criadas por ato jurídico-público organicamente inepto para tanto.

 

30. Não é essa a situação dos autos porque a legislação fiscal processual aplicável está devidamente autorizada por um poder legislativo legítimo à luz da CRP, e não parece que a exigência de a impugnação da fixação do VPT ser feita em procedimento autónomo seja discriminatória ou desproporcionada sob o ponto de vista das garantias dos contribuintes.

Em caso algum essa possibilidade é eliminada; apenas se exige que seja feita no seu tempo próprio, numa lógica aceitável de se realizar antes da operação subsequente, que é a da liquidação, que toma o ato de fixação do VPT como ato pressuposto. 

 

  1. Juros indemnizatórios

 

31. A Requerente pede ainda a condenação da AT no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

Nos termos do art. 24.º, n.º 5, do RJAT, “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, implicando o pagamento de juros indemnizatórios nos termos dos arts. 43.º, n.º 1, da LGT, e 61.º, n.º 5, do CPPT.

 

32. Não se julgando procedente o pedido, não há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios a cargo da Requerida.

 

  1. DECISÃO

 

33. Termos em que o Tribunal Arbitral decide:

  1. Absolver a Requerida do pedido, por ineptidão do meio processo utilizado;
  2. Não condenar a Requerida no pagamento de quaisquer juros indemnizatórios;
  3. Não considerar a interpretação de vedar o acesso à correção do VPT através da impugnação do posterior ato de liquidação em IMI como uma interpretação inconstitucional da lei fiscal aplicável;
  4. Condenar a Requerente no pagamento das custas.

 

  1. VALOR DO PROCESSO

 

34. De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, al. a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 4.805,38, correspondente à soma dos valores das diversas liquidações impugnadas e que é o valor do pedido de pronúncia arbitral, o qual não foi objeto de contestação nesses termos.

 

  1. CUSTAS

 

35. Calculadas de acordo com o art. 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, fixa-se o valor de € 612,00 (seiscentos e doze euros), a cargo da Requerente.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 14 de junho de 2024.

 

 

O Árbitro

 

Jorge Bacelar Gouveia