Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 726/2023-T
Data da decisão: 2024-06-25  IRC  
Valor do pedido: € 19.508,10
Tema: IRC; regime simplificado; efeitos da cessação do regime simplificado
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Sumário:

  1. A (não) verificação do requisito do montante anual ilíquido de rendimentos não superior a € 200.000, para aplicação do regime simplificado, reporta-se ao ano imediatamente anterior, por remissão expressa da primeira parte da aliena a) do n.º 6 do artigo 86.º-A do Código do IRC.
  2. Os efeitos da cessação do regime simplificado de tributação somente deverão ocorrer no ano seguinte.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A Árbitra Ana Pinto Moraes designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, decide o seguinte:

 

I. RELATÓRIO

 

  1. A... UNIPESSOAL LDA, pessoa coletiva n.º ..., com sede na..., Rua ..., n.º..., ...-... Évora (‘Requerente’), vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), na sequência do indeferimento no âmbito do procedimento de Reclamação Graciosa n.º ...2023..., com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à  anulação do acto tributários de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (‘IRC’) com o n.º 2022... e da demonstração de acerto de contas n.º 2023..., através das quais a Administração Tributária apurou um valor total a pagar de € 19.508,10 (dezanove mil, quinhentos e oito euros e dez cêntimos), valor este que incluí o valor apurado pela demonstração de liquidação de juros compensatórios n.º 2023..., no valor de € 2.375,14 (dois mil, trezentos e setenta e cinco euros e catorze cêntimos), a título de IRC do ano de 2018.

 

  1. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 13 de outubro de 2023 pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (‘CAAD’) e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (‘AT’ ou ‘Requerida’).

 

  1. A Requerente não exerceu o direito à designação de árbitro pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitro do Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. As partes foram notificadas dessa designação em 5 de dezembro de 2023, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

  1. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral singular ficou constituído em 27 de dezembro de 2023.

 

I.1 ARGUMENTOS DAS PARTES

  1. A Requerente veio sustentar a procedência do seu pedido, em síntese, tendo em conta os seguintes argumentos:
  1. A Requerente manteve o regime simplificado no ano de 2018, porque cumpriu com os requisitos previstos no n.º 1 do artigo 86.º-A do Código do IRC, relativamente ao período fiscal do ano imediatamente anterior, ou seja, 2017, e, portanto, em 2018 cumpre com os requisitos previstos no referido normativo legal.
  2. No exercício de 2017, a Requerente declarou € 79.461.11 (setenta e nove mil quatrocentos e sessenta e um euros e onze cêntimos) de rendimentos do período e de volume de negócios, tributado pelo regime simplificado.
  3. No exercício de 2018 foram declarados rendimentos do período no valor total de € 271.423,46 (duzentos e setenta e um mil quatrocentos e vinte e três euros e quarenta e seis cêntimos) e volume de negócios no valor total de € 271.421,66 (duzentos e setenta e um mil quatrocentos e vinte e um euros e sessenta e seis cêntimos), também sujeito a tributação pelo regime simplificado.
  4. O facto de a REQUERENTE ultrapassar, no ano de 2018, o limite de € 200.000 estabelecido na alínea a) do n.º 1 do artigo 86-A do Código do IRC, não permite afastar a aplicação do regime simplificado de tributação com efeitos a 1 de janeiro de 2018.

 

  1. A Requerida, tendo sido devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta em 8 de fevereiro de 2024, tendo concluído pela improcedência da presente ação e, consequentemente, pela sua absolvição do pedido.

 

  1. A Requerida sustentou a sua resposta, sumariamente, com base nos seguintes argumentos:
  1. O sujeito passivo que preencher os requisitos cumulativos do artigo 86.º- A do Código do IRC, pode optar pelo enquadramento no regime simplificado de determinação da matéria coletável.
  2. O regime simplificado cessa quando o sujeito passivo não cumprir com os requisitos do n.º 1 do artigo 86.º-A do Código do IRC ou quando este renunciar à aplicação do regime, nos termos do n.º 4 do referido artigo.
  3. A cessação ou renúncia reportam-se ao 1.º dia do período de tributação em que se deixem de verificar os requisitos das alíneas a) a e) do n.º 1 do artigo 86.º-A do Código do IRC.
  4. Qualquer interpretação que não a propugnada pela Requerida, colide frontalmente com o princípio da legalidade fiscal, da reserva legislativa da Assembleia da República em matéria de impostos, e do princípio da proibição de atos não legislativos de interpretação e integração das leis, expressamente consagrado no artigo 103.º, nºs 2 e 3 da Constituição.
  5. Invoca a Requerida o Despacho n.º 77/2014-XIX, de 27 de março do Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, tendo em vista o esclarecimento de eventuais dúvidas quanto à aplicação do regime, sancionado pela AT na circular n.º 6/2014 de 28 de março, no que diz respeito à cessação do regime (pontos 8 e 9): «8. O regime simplificado cessa quando: i) O sujeito passivo renuncie à sua aplicação, devendo manifestar esta intenção na declaração de alterações a apresentar ate ao fim do 2.º mês desse período de tributação. ii). Neste caso, durante três anos não pode voltar a optar pela aplicação deste regime. ii) Deixe de se verificar algum dos requisitos referidos nas alíneas a) a e) do n.º 1 do artigo 86. º-A; iii) O sujeito passivo não cumpra as obrigações de emissão e comunicação das faturas previstas, respetivamente, no Código do IVA e no n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 198/2012, de 24 de agosto. 9. Os efeitos da cessação ou da renuncia do regime reportam-se ao primeiro dia do período de tributação em que deixem de se verificar os referidos requisitos.».
  6. A Requerente ultrapassou no período de tributação de 2018, os montantes estabelecidos na alínea a) do n. º1 do artigo 86.º-A do Código do IRC, o que faz cessar o regime por força da alínea a) do n.º 6 do referido artigo, retroagindo os seus efeitos ao primeiro dia do período de tributação em que se deixe de verificar alguns dos requisitos previstos nas alíneas a) a e) do n.º 1 do artigo 86.º-A do Código do IRC.
  7. Acolhendo a interpretação da Requerente, a não emissão e comunicação de faturas, não tem nenhuma consequência já que não faz cessar o regime no período em que ocorreu o incumprimento.
  8. Se o legislador prevê a admissibilidade da opção do regime simplificado no ano 1, quando no ano -1 os rendimentos ilíquidos anuais apurados eram de menos de € 200.000, por maioria de razão, os rendimentos auferidos em ano 1, ano +2, ano +3, para que se mantenham no regime simplificado, terão, obrigatoriamente, de ficar aquém daquele valor, sem o qual estar-se-á a criar um vazio legal num determinado exercício económico o que poderia suscitar, no limite, uma situação de abuso de direito.

 

  1. Por despacho proferido em 4 de março de 2024, foi dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais, previstos nos artigos 16.º, alínea c) e 29.º, n.º 2, ambos do RJAT, facultando-se às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem alegações escritas, as quais foram apresentadas pela Requerente e Requerida.

 

II. SANEAMENTO

 

  1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 5.º, todos do RJAT.

 

  1. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

  1. O processo não enferma de nulidades.

 

III. DO MÉRITO

 

III.1. MATÉRIA DE FACTO

III.1.1. Factos provados

 

  1. Analisada a prova produzida no âmbito do presente processo, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
  1.  A Requerente é uma sociedade unipessoal, por quotas, dedicada a comércio a retalho de produtos eletrónicos.
  2.  A Requerente ficou enquadrada no regime simplificado de tributação de IRC quando iniciou a sua atividade em 2017.
  3. No ano de 2019, a Requerente procedeu à entrega da Declaração Modelo 22 de IRC, no Portal das Finanças, relativa ao período de tributação decorrido entre 1 de janeiro e 31 de dezembro de 2018.
  4. Na Declaração Modelo 22 de IRC de 2018 foram declarados os rendimentos do período no valor total de € 271.423,46 (duzentos e setenta e um mil quatrocentos e vinte e três euros e quarenta e seis cêntimos) e volume de negócios no valor total de € 271.421,66 (duzentos e setenta e um mil quatrocentos e vinte e um euros e sessenta e seis cêntimos).
  5. A Requerente foi alvo de inspeção tributária e em dezembro de 2022 foi notificada do Relatório de Inspeção Tributária emitido no âmbito da Inspeção a que se refere a Ordem de Serviço n.º OI2022... .
  6. Entenderam os serviços de inspeção que o apuramento da matéria coletável em 2018, através do regime simplificado, está incorreto, porque o sujeito passivo já não reunia as condições, previstas no n.º 1 e n.º 6 do artigo 86º -A do Código do IRC.
  7. A Requerente apresentou a Reclamação Graciosa que correu termos com o n.º ...2023... .
  8. A Reclamação Graciosa com o n.º ...2023... foi expressamente indeferida pela Requerida.

 

III.1.2. Factos não provados

 

  1. Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.

 

 

III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

  1. Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

  1. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

  1. Tendo em conta as posições assumidas pelas partes, o disposto nos artigos 110.º, n.º 7 e 115.º, n.º 1, ambos do CPPT, a prova documental e o PPA junto aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

 

  1. Questiona-se a admissibilidade ou não da aplicação do regime simplificado, em sede de IRC, previsto no art.º 86.º-A do Código do IRC, no período de 2018, cujo valor dos rendimentos ilíquidos auferidos pela atividade empresarial do sujeito passivo excederam nesse mesmo exercício de 2018 o montante de € 200.000,00 (duzentos mil euros).

 

  1. Entenderam os serviços de inspeção que o apuramento da matéria coletável em 2018, através do regime simplificado, está incorreto, porque o sujeito passivo já não reunia as condições, previstas no n.º 1 e n.º 6 do artigo 86º -A do Código do IRC.

 

 

 

 

  1. Ora, dispõe o n.º 1 do artigo 86º-A, do Código de IRC, o seguinte:

«1 - Podem optar pelo regime simplificado de determinação da matéria coletável, os sujeitos passivos residentes, não isentos nem sujeitos a um regime especial de tributação, que exerçam a título principal uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e que verifiquem, cumulativamente, as seguintes condições:

a) Tenham obtido, no período de tributação imediatamente anterior, um montante anual ilíquido de rendimentos não superior a (euro) 200 000;

b) O total do seu balanço relativo ao período de tributação imediatamente anterior não exceda (euro) 500 000;

c) Não estejam legalmente obrigados à revisão legal das contas;

d) O respetivo capital social não seja detido em mais de 20%, direta ou indiretamente, nos termos do n.º 6 do artigo 69.º, por entidades que não preencham alguma das condições previstas nas alíneas anteriores, exceto quando sejam sociedades de capital de risco ou investidores de capital de risco;

e) Adotem o regime de normalização contabilística para microentidades aprovado pelo Decreto-Lei n.º 36-A/2011, de 9 de março;

f) Não tenham renunciado à aplicação do regime nos três anos anteriores, com referência à data em que se inicia a aplicação do regime» (cit.).

 

  1. Quanto à produção de efeitos no período de início de atividade, o n.º 2 do referido artigo determina que o «enquadramento no regime simplificado de determinação da matéria coletável faz-se, verificados os demais requisitos, em conformidade com o valor anualizado dos rendimentos estimado, constante da declaração de início de atividade» (cit.).

 

  1. O que releva nos presentes autos são os efeitos da não verificação dos requisitos no decorrer da atividade do sujeito passivo.

 

  1. Para o efeito o n.º 4 do artigo 86º-A do Código de IRC estabelece que «o regime simplificado de determinação da matéria coletável cessa quando deixem de se verificar os respetivos requisitos ou o sujeito passivo renuncie à sua aplicação» (cit.).

 

  1. O n.º 5 do mesmo artigo determina ainda que nos casos em que não sejam cumpridas as obrigações de emissão de fatura, o regime cessa igualmente, sem prejuízo das demais sanções aplicáveis.

 

  1. Contudo é no n.º 6 do artigo em causa que o legislador densificou o momento no qual a não verificação dos requisitos produziria efeitos.

 

  1. Neste sentido determina o n.º 6 o seguinte:

«6 - Os efeitos da cessação ou da renúncia do regime simplificado de determinação da matéria coletável reportam-se ao 1.º dia do período de tributação em que:

a) Deixe de se verificar algum dos requisitos referidos nas alíneas a) a e) do n.º 1 ou se verifique a causa de cessação prevista no número anterior;

b) Seja comunicada a renúncia à aplicação do regime simplificado de determinação da matéria coletável, nos termos e prazos previstos na alínea b) do n.º 3» (cit).

 

  1. Ora, estabelece este n.º 6 que os efeitos da não verificação dos requisitos do regime simplificado e como tal o enquadramento forçado no regime geral de tributação reportam-se ao 1.º dia do período de tributação em que ocorra um dos factos elencados nas alienas a) e b) do n.º 6.

 

  1. Para o presente caso releva apenas a parte inicial da alínea a).

 

  1. Pelo que os efeitos da cessação do regime simplificado de determinação da matéria coletável reportam-se ao 1.º dia do período de tributação em que deixe de se verificar algum dos requisitos referidos nas alíneas a) a e) do n.º 1.

 

  1. Optou, assim, o legislador por uma remissão para a alíneas a) a e) do n.º 1 do mesmo artigo.

 

  1. Remissão essa que determina que o requisito em análise é o seguinte: Tenham obtido, no período de tributação imediatamente anterior, um montante anual ilíquido de rendimentos não superior a € 200.000.

 

  1. E neste ponto a norma da alínea a) do n.º 1 é clara, há que aferir se no ano anterior, e não no próprio período se se ultrapassou o montante anual ilíquido de € 200.000.

 

  1. Qualquer interpretação contrária não tem apoio na letra da lei, que é clara e expressa ao remeter para uma alínea que exige a verificação no ano anterior e não no próprio período.

 

  1. Pelo que, ao contrário do que defende a Requerida, não é a Requerente que opera uma interpretação ab-rogante, travestida de impulso legiferante.
  2.  
  3. Entende este tribunal que defender o que não se retira da letra da lei é isso sim uma interpretação ab-rogante.

 

  1. Vem a Requerida invocar o artigo 9.º do Código Civil, no seguimento do já invocado no Despacho n.º 77/2014-XIX, de 27 de março do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, e da Circular n.º 6/2014, de 28-03-2014, olvidando o n.º 2 do referido artigo.

 

  1. Certo é que o n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil determina que «A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (cit.).

 

  1. Igualmente certo é que o n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil vem ressalvar que a letra da lei tem de ser protegida, e por esse motivo «não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (cit., negrito nosso).

 

  1. Neste contexto, é entendimento deste Tribunal Arbitral que a letra da lei é clara:

 

Tenham obtido, no período de tributação imediatamente anterior, um montante anual ilíquido de rendimentos não superior a (euro) 200 000.

 

  1. Pelo que entender que é no próprio ano de 2018, ano em que a Requerente ultrapassou o valor de € 200.000,00, que deve cessar a aplicação do regime, é eliminar indevida e grosseiramente a expressão “no período de tributação imediatamente anterior” da letra da lei e interpretar a norma sem um mínimo de correspondência verbal.

 

  1. No mesmo sentido as Decisões Arbitrais proferidas nos processos 843/2023-T, 288/2023-T e 392/2022-T.

 

  1. Vem ainda a Requerida invocar que «acolhendo a interpretação da Requerente, a não emissão e comunicação de faturas, não tem nenhuma consequência já que não faz cessar o regime no período em que ocorreu o incumprimento» (cit).

 

  1. Porém, a lei é clara quanto a esse requisito.

 

  1. Os efeitos da cessação reportam-se ao primeiro dia do próprio período de tributação em que se verifica a causa de cessação prevista no n.º 5 (não emissão de faturas) – conforme parte final da aliena a) do n.º 6 do artigo 86-A do Código do IRC.

 

  1. Neste caso, a letra da lei é igualmente clara, mas opera a produção de efeitos imediatos no próprio ano:

«6 – Os efeitos da cessação ou da renúncia do regime simplificado de determinação da matéria coletável reportam-se ao 1.º dia do período de tributação em que:

a) Deixe de se verificar algum dos requisitos referidos nas alíneas a) a e) do n.º 1 ou se verifique a causa de cessação prevista no número anterior(cit., sublinhado e negrito nosso).

 

  1. Há uma evidente penalização das empresas que não cumpram os requisitos de faturação, condição necessária para o apuramento do valor anual ilíquido e por esse motivo, o regime deverá cessar de imediato, por impossibilidade da verificação de um dos seus requisitos –valor anual ilíquido de € 200.000,00.

 

  1. Por outro lado, argumenta a Requerida que «acolhendo a interpretação que a Recorrente vem defender colocaria em causa os objetivos do regime simplificado bem como os limites que o legislador procurou acautelar» (cit.).

 

  1. E acrescenta ainda que «de forma não exaustiva, o legislador limitou a aplicação do regime a sujeitos passivos com rendimentos inferiores a €200 000 e balanço inferior a €500 000».

 

  1. Refere ainda a Requerida neste contexto que «naturalmente, o legislador não tem como objetivo “premiar” os SP incumpridores, pelo que a única interpretação que decorre da letra da lei é que os efeitos de cessação do regime retroagem ao 1.º dia útil do período em que se verificou o incumprimento» (cit).

 

  1. Sucede que em sede de IRS e no mesmo ano em que foi igualmente implementado este regime simplificado em IRC, com regras semelhantes e tendo sido estabelecido o mesmo limite de € 200.000,00, o próprio legislador permitiu a manutenção do regime simplificado em dois anos.

 

  1. No seguimento da argumentação da Requerida, o legislador em sede de IRS terá pretendido premiar os “incumpridores”.

 

  1. Ora, certamente que não está em causa ser incumpridor ou não, nem será esse o objetivo do legislador – punir os incumpridores –, veja-se que foi o legislador que criou este regime simplificado com um intuito claro de apoio às pequenas empresas (bem como aos pequenos empresários em nome individual).

 

  1. Trata-se de uma norma de apoio e incentivo às pequenas empresas/empresários, que cessa a partir do momento em que no ano anterior se ultrapassa determinado valor.

 

 

  1. Veja-se o n.º 6 do artigo 28.º do Código do IRS:

«6 – A aplicação do regime simplificado cessa apenas quando o montante a que se refere o n.º 2 seja ultrapassado em dois períodos de tributação consecutivos ou, quando o seja num único exercício, em montante superior a 25%, caso em que a tributação pelo regime de contabilidade organizada se faz a partir do período de tributação seguinte ao da verificação de qualquer desses factos» (cit., negrito nosso).

 

  1. É, assim, evidente que em sede de IRS, o legislador foi ainda mais além, pretendendo proteger, beneficiar e até incentivar os pequenos empresários em nome individual, mantendo-se  a opção de tributação pelo regime simplificado por dois anos, salvo se o excesso ultrapassar 25%.

 

  1. Pelo que, não colhe o argumento da Requerida quando refere que sem desconsiderar o regime simplificado no próprio ano de 2018 «estar-se-á a criar um vazio legal num determinado exercício económico o que poderia suscitar, no limite, uma situação de abuso de direito» (cit.).

 

  1. Desta forma, à luz do pensamento legislativo expresso naquela norma – artigo 86.º-A do Código do IRC –, a verificação do requisito referente ao rendimento anual reporta-se ao ano anterior.

 

  1. No caso concreto, tendo cessado a verificação do requisito em 2018, tal facto determinará o enquadramento da Requerente, no regime geral, em 2019, quando se verificar que no ano anterior, isto é, em 2018, cessou a aplicação do regime simplificado, por falta de cumprimento do requisito previsto na alínea a) do n.º1 do artigo 86.º-A do Código do IRC.

 

  1. Pelo que, em consequência da anulação da liquidação há lugar ao reembolso da quantia indevidamente paga, acrescido de juros indemnizatórios.

 

 

 

IV. DECISÃO

 

Termos em que se decide:

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando o ato de indeferimento expresso da reclamação graciosa e o ato de liquidação objeto do presente processo;
  2. Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios;
  3. Condenar a Requerida a suportar integralmente as custas do processo.

 

V. VALOR DO PROCESSO

           

            Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 19.508,10 atribuído pela Requerente e sem contestação da Requerida.

 

VI. CUSTAS

 

Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 1.224,00, a cargo da Requerida, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 25 de junho de 2024

 

 

Ana Pinto Moraes