Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 160/2024-T
Data da decisão: 2024-06-11  Selo  
Valor do pedido: € 129.462,85
Tema: Imposto de selo; contrato de crédito; conta-corrente; prazo de reembolso
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SUMÁRIO

Quando, nos contratos de crédito, não se procede à fixação de um prazo de reembolso dos empréstimos e se admite que estes possam ser reembolsados quando o mutuário entender, no decurso dos anos durante os quais se mantém aberta a linha de crédito, considera-se que se está numa relação negocial de conta corrente e aplica-se a correspondente taxa de Imposto de Selo. 

                                                                                           

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Rui Duarte Morais (Presidente), Jónatas Machado e Alexandra Iglésias (vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o presente Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

  1. Relatório

 

         1. A..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na ..., n.º ..., ...,...–... Lisboa, doravante designada por “A...” ou “Requerente”, estando abrangida pelos serviços periféricos locais do Serviço de Finanças de Lisboa ..., veio, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de Janeiro, e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 Março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral, para apreciação e declaração de ilegalidade da liquidação adicional de Imposto do Selo (IS) n.º 2022..., das liquidações de juros compensatórios, relativas ao período de tributação de 2019, emitidas pela Autoridade Tributária (doravante AT ou Requerida) n.ºs 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022... e 2022..., e dos atos de indeferimento das reclamações graciosas apresentadas pela Requerente contra as referidas liquidações de IS, de que foi notificada a 29.11.2023.

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 08.12.2024 e automaticamente notificado à Requerida.

 

3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD nomeou três árbitros do tribunal arbitral coletivo, no dia 26.03.2024.

 

         4. As partes foram devidamente notificadas dessa nomeação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do art. 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos art.s 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

         5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 16.04.2024.

 

         6. Na sua Resposta, apresentada em 20.05.2024, a AT veio impugnar as razões da Requerente, sustentando a improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral.

 

 

  1. Exposição dos factos pela Requerente

         7. No âmbito da sua atividade no setor das telecomunicações, a Requerente, sociedade comercial com sede em Portugal, contratou com a sociedade B..., S.a.r.l., que integra o mesmo grupo internacional, diversas linhas de abertura de crédito no montante total de 490.000.000,00 €, das quais 390.000.000 € encerradas em março de 2019, nos termos a seguir expostos:

 

Contrato

Data de celebração do contrato

Montante máximo de utilização

Montante utilizado a 31 de março de 2019

Montante utilizado a 31 de dezembro de 2019

[A]

22 de julho de 2014

140 000 000,00

140 000 000,00

0.00

[B]

30 de setembro de 2015

100 000 000,00

100 000 000,00

0.00

[C]

29 de abril de 2016

100 000 000,00

44 777 990,15

0.00

[D]

13 de julho de 2017

50 000 000,00

0.00

0.00

[E]

31 de março de 2019

100 000 000,00

19 284 000,00

0.00

Total

 

490 000 000,00

304 061 990,15

0.00

 

         8. Em março de 2019, a requerente procedeu ao cancelamento das linhas de crédito identificadas no quadro supra como [A], [B], [C] e [D], tendo contratado em 31 de março de 2019 uma nova linha de crédito acima identificada como [E], a qual assumiu características semelhantes às anteriores regidas pelos respetivos contratos de abertura de crédito sob a forma de conta-corrente que correspondem aos seguintes: a) Contrato de abertura de crédito até ao montante máximo de 140.000.000,00 €, celebrado em 22.07.2014; b) Contrato de abertura de crédito até ao montante máximo de 100.000.000,00 €, celebrado em 30.09.2015; c) Contrato de abertura de crédito até ao montante máximo de 100.000.000,00 €, celebrado em 29.04.2016; d) Contrato de abertura de crédito até ao montante máximo de 50.000.000,00 € celebrado em 13.07.2017; e) Contrato de abertura de crédito até ao montante máximo de 100.000.000,00 €, celebrado em 31.03.2019.

 

         9. Não obstante nos contratos em causa se indicarem, em geral, quatro datas possíveis por ano para eventuais reembolsos, (a) nenhuma obrigação a mutuária tem de os fazer, isto é, essas quatro datas não são prazo fixado para reembolso algum, (b) a mutuária antes é inteiramente livre para reembolsar quando entender (até ao final do compromisso de abertura de crédito), (c) pode em geral voltar a fazer retiradas após reembolsos que eleja fazer (até ao limite máximo do comprometimento de linha de crédito aberta, evidentemente), isto é, a linha de crédito funciona em modo de conta corrente, e (d) o reembolso fora de uma dessas quatro datas anuais não obriga a pagar juro igual ao que se pagaria até à data mais próxima, apenas dá direito ao mutuante de exigir a diferença entre o juro que se pagaria até à data mais próxima e o benefício que retire desde o reembolso até essa data trimestral mais próxima.

 

        10. Os contratos estabelecem que caso a Requerente proceda ao reembolso (total ou parcial) do empréstimo em data diferente das datas de corte supra referenciadas, ficará incumbida do dever de pagamento de eventual compensação à sociedade mutuante (“break costs”), que corresponde à eventual diferença, se alguma, entre (a) juro contado até à data de corte trimestral mais próxima e (b) o benefício que o mutuante retire do montante recebido anteriormente à data de corte trimestral desde aquele recebimento até esta data.

 

      

11. Na ausência de fixação de prazo para o reembolso, que antes é efetuado a qualquer momento por eleição do mutuário até ao termo final da linha de crédito aberta, e atento também o funcionamento em conta corrente desta linha de crédito no período de tributação de 2019, a Requerente procedeu ao cálculo do IS devido sobre a utilização de crédito em causa tendo por referência o saldo médio mensal da conta interna “48510000/conta em SNC – 25400000 – Financiamentos obtidos – Emp. Subsidiárias e Assoc.” obtido através da soma dos saldos em dívida diariamente durante o mês divididos por 30, e sobre esta base tributável mensalmente apurada aplicou então mensalmente a taxa de 0,04% prevista na verba 17.1.4 da TGIS, tendo assim efetuado em 2019 pagamentos de Imposto do Selo relativos às linhas de crédito em causa no montante total de 372.348,41 €.

 

        12. A Requerente veio sustentar a procedência do seu pedido com base nos argumentos aqui sintetizados:

  1. Sempre que a Requerente pretenda proceder ao reembolso (total ou parcial) do empréstimo, poderá fazê-lo no final de cada trimestre, isto é, em 31 de Março, em 30 de Junho, em 30 de Setembro ou em 31 de Dezembro de cada ano, quanto aos contratos celebrados em 22.07.2014, 30.09.2015, 29.04.2016 e 31.03.2019 e, bem assim, após 12 meses desde a data da utilização do crédito em causa quanto ao contrato celebrado em 13.07.2017, por coincidir com a data de pagamento dos juros devidos;
  2. A Requerente é livre de reembolsar em qualquer o momento e, quando o faça, não paga juro, nem sequer limitadamente até uma das datas de corte referenciadas.
  3. Os “custos de corte” não correspondem ao juro acordado, mas apenas à eventual diferença entre (a) o juro contado até à data de corte trimestral mais próxima e (b) o benefício que o mutuante retire do montante recebido anteriormente à data de corte trimestral desde aquele recebimento até esta data;
  4. Nenhum prazo determinado ou determinável de reembolso se encontra no contrato; não tem que ser reembolsado no primeiro, no segundo, no terceiro, no quarto, no quinto ou no sexto, etc., trimestres de vigência, sendo que a única relevância nem sequer é do trimestre/três meses, mas do dia final de cada trimestre, qual seja a relevância de isentar a mutuária de qualquer eventual custo adicional caso eleja reembolsar o empréstimo numa qualquer dessas muitas datas finais de trimestre que ocorrerão ao longo da vigência da linha de crédito;
  5. A indicação de quatro datas por ano, correspondentes ao final dos quatros trimestres, não fixa nenhuma data de reembolso, são apenas datas preferenciais para reembolso caso a mutuária decida fazer algum, podendo eventual decisão de reembolso de acordo com a disponibilidade financeira da mutuária (no caso, a Requerente) para o efeito, ocorrer dentro ou fora dessa cadência de quatro datas por ano, por sua livre eleição;

A AT não explica os seus cálculos relativos ao IS alegadamente em falta, antes vai diretamente para o resultado final, donde, desde logo, se manifesta a insuficiência de fundamentação.

 

        13. A Requerida respondeu sustentando que o presente pedido deve ser julgado improcedente, com os fundamentos a seguir sintetizados:

  1. Durante o período compreendido entre 01.01.2019 e 31.12.2019, na sequência de um conjunto de operações de financiamento, a A... recebeu e manteve linhas de crédito de curto prazo junto da sociedade B..., S.a.r.l. sem que se tenha verificado a devida liquidação e entrega do Imposto do Selo sobre estas operações de crédito, nos termos do n.º 1 do artigo 1.º do Código do Imposto do Selo (Código do IS) conjugado com a verba 17.1.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS);
  2. Os contratos de empréstimo previam um mecanismo para obter diversas linhas de crédito junto da B..., S.A.R.L., tendo sido expressamente clausulada a possibilidade da A...  pagar e voltar a utilizar o crédito, prevendo-se que as datas de reembolso operem trimestralmente (31 de março, 30 de junho, 30 de setembro e 31 de dezembro todos os anos);
  3. Os empréstimos foram concedidos com a estipulação de prazo de reembolso pois os mesmos estão condicionados ao prazo do pagamento dos juros, prova de que esses financiamentos tiveram prazo determinado porquanto a obrigação de pagamento do juro no final do trimestre oferece a possibilidade de determinação da sua duração previsível;
  4. Ainda que ocorra o reembolso no 1º dia do mês, os juros têm de ser pagos até ao final do trimestre, logo ficando demonstrado que o prazo de utilização dos empréstimos estava previamente definido;
  5. A análise conjunta da cláusula contratual que obriga ao pagamento de juros no final do trimestre aquando da realização de reembolsos deixa bem clara a intenção de fixar que o valor das facilidades de crédito tem natureza trimestral com um plano de reembolso previamente definido no tempo;
  6. A realidade a enquadrar nas normas tributárias é a de contrato de empréstimo na modalidade de linha corrente celebrado entre a A... e a B..., S.a.r.l., e tendo os contratos termo determinado não lhes sendo aplicável a verba 17.1.4;
  7. A operação de crédito encontra-se abrangida pela incidência do IS, enquadrando-se na Verba 17.1.1 da respetiva Tabela Geral, por o prazo de crédito ser determinável, tendo-se apurado IS em falta no montante de € 113.967,80;
  8. O imposto foi declarado e pago pelo sujeito passivo, aqui Requerente, e as respetivas liquidações efetuadas de acordo com as normas vigentes, a Administração Fiscal limitou-se, portanto, a aplicar as consequências jurídicas, que, do ponto de vista fiscal, se impunham face à ocorrência dos pressupostos de fato e de direito, devendo, por conseguinte, ser julgada improcedente a impugnação quanto aos juros peticionados.

 

II. SANEAMENTO

        14. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 4.º, ambos do RJAT, e melhor se fundamentará em 3.2.1.

        15. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (cfr. Arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma, e art.s 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

III. Do Mérito

        16. Com base nos elementos colhidos no RIT e no PA e os demais trazidos aos autos elencam-se os factos dados como provados e não provados.

III.1.1. Factos provados

        17. Com relevância para a decisão do caso concreto são estes os factos dados como provados:

 

  1. A Requerente é uma sociedade comercial com sede em Portugal, que desenvolve a sua atividade no sector das telecomunicações (cfr. capítulo II.3.1, na pág. 7/34, do RIT junto como Doc. n.º 1);
  2. A Requerente contratou com a sociedade B..., S.a.r.l., que integra o mesmo grupo internacional, diversas linhas de abertura de crédito no montante total de € 490.000.000,00 €, das quais 390.000.000 € encerradas em março de 2019; (capítulo III.3.1, na pág. 26/34 do RIT junto como Doc. n.º 1);
  3. Em março de 2019, a Requerente procedeu ao cancelamento das linhas de crédito identificadas no quadro supra (como [A], [B], [C] e [D], tendo contratado em 31 de março de 2019 uma nova linha de crédito acima identificada como [E], a qual assumiu características semelhantes às anteriores (vide a nota 19 do Relatório e Contas da requerente referente ao período de 2018, findo em março de 2019, na pág. 42, que aqui se junta como Doc. n.º 4), regidas pelos respetivos contratos de abertura de crédito sob a forma de conta-corrente que correspondem aos seguintes:
    1. Contrato de abertura de crédito até ao montante máximo de 140.000.000,00 €, celebrado em 22.07.2014 (Docs. n.º 5 e n.º 6);
    2. Contrato de abertura de crédito até ao montante máximo de 100.000.000,00 €, celebrado em 30.09.2015 (Docs. n.º 7 e n.º 8);
    3. Contrato de abertura de crédito até ao montante máximo de 100.000.000,00 €, celebrado em 29.04.2016 (Docs. n.º 9 e n.º 10);
    4. Contrato de abertura de crédito até ao montante máximo de 50.000.000,00 €, celebrado em 13.07.2017 (Docs. n.º 11 e n.º 12);
    5. Contrato de abertura de crédito até ao montante máximo de 100.000.000,00 €, celebrado em 31.03.2019 (Docs. n.º 13 n.º 14);
  4. Com exceção do contrato celebrado em 13.07.2017 (Docs. n.º 11 e n.º 12), qualquer montante que tenha sido utilizado e posteriormente reembolsado pode ser objeto de nova utilização de crédito, desde que respeitadas as demais disposições contratuais (Docs. n.º 5 e n.º 6, n.º 7 n.º 8; n.º 9 n.º 10, n.º 13 n.º 14)
  5. Em nenhum dos referidos contratos se procede à fixação de um prazo de reembolso dos empréstimos em causa (cfr. Docs. n.ºs 5 a 14), sendo eles reembolsados quando o mutuário entender, no decurso dos cincos anos durante os quais se mantém aberta a linha de crédito;
  6. Sempre que a Requerente pretenda proceder ao reembolso (total ou parcial) do empréstimo, poderá fazê-lo no final de cada trimestre, isto é, em 31 de Março, em 30 de Junho, em 30 de Setembro ou em 31 de Dezembro de cada ano, quanto aos contratos celebrados em 22.07.2014, 30.09.2015, 29.04.2016 e 31.03.2019 (Docs. n.º 5, n.º 6, n.º 7 , n.º 8, n.º 9, n.º 10; n.º 13 n.º 14) e, bem assim, após 12 meses desde a data da utilização do crédito em causa quanto ao contrato celebrado em 13.07.2017, por coincidir com a data de pagamento dos juros devidos (Docs. n.º 11 e n.º 12).
  7. Os contratos preveem a existência de “break costs” a pagar pela Requerente à mutuante na eventualidade de proceder ao reembolso (total ou parcial) do empréstimo em data diferente das datas de corte referenciadas, correspondente à eventual diferença, entre (a) o juro contado até à data de corte trimestral mais próxima e (b) o benefício que o mutuante retire do montante recebido anteriormente à data de corte trimestral desde aquele recebimento até esta data (Doc. n.º 5 n.º 6; n.º 7, n.º 8; n.º 9 n.º 10; n.º 11, n.º 12; e n.º 13 e n.º 14);
  8. A Requerente procedeu ao cálculo do IS devido sobre a utilização de crédito em causa tendo por referência o saldo médio mensal da conta interna “48510000/conta em SNC – 25400000 – Financiamentos obtidos – Emp. Subsidiárias e Assoc.” obtido através da soma dos saldos em dívida diariamente durante o mês divididos por 30, e sobre esta base tributável mensalmente apurada aplicou então mensalmente a taxa de 0,04% prevista na verba 17.1.4 da TGIS, tendo assim efetuado em 2019 pagamentos de IS relativos às linhas de crédito em causa no montante total de € 372.348,41 (Docs. n.º 1 e 15);
  9. A Requerente foi alvo de um procedimento inspetivo, na sequência do qual foi notificada da liquidação adicional de Imposto do Selo n.º 2022 ... e, bem assim, das liquidações de juros compensatórios n.ºs 2022..., 2022 ..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022 ... e 2022 ... (Docs . n.º 1 e n.º 2); 
  10. A Requerente apresentou reclamação graciosa contra as referidas liquidações de Imposto do Selo e juros compensatórios, sendo notificada do seu indeferimento por meio eletrónico com data de registo em 29.11.2023 (Doc. n.º 3);
  11. Em 23.01.2023, a Requente procedeu ao pagamento da liquidação adicional de IS no montante de 129.462,85 €, incluindo o imposto no montante de 113.967,80 € e juros compensatórios no montante de 15.495,05 € (Doc. 16).

 

III.1.2. Factos não provados

 

        18. Com relevo para a decisão sobre o mérito não existem factos alegados que devam considerar-se como não provados.

 

 

III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

       19. O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. art. 123.º, n.º 2, do CPPT, e art. 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

        20. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objeto do litígio no direito aplicável (vd. art. 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT)

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III.2. MATÉRIA DE DIREITO

        21. O ato objeto do pedido de pronúncia do Tribunal Arbitral é o indeferimento da reclamação graciosa supra identificado e, consequentemente (e em termos finais ou últimos), os atos de liquidação de Imposto do Selo e de juros compensatórios relativos ao período de tributação de 2019, na medida em que concretizam as correções aplicadas pelos Serviços de Inspeção Tributária resultantes do RIT e incorporam aumento da base tributável de Imposto do Selo sobre a utilização de crédito, para efeitos da aplicação da taxa de 0,04% prevista na verba 17.1. da Tabela Geral de Imposto do Selo (“TGIS”), tendo originado um montante de imposto e juros compensatórios indevidamente liquidado no valor total de € 129.462,85, incluindo Imposto do Selo liquidado adicionalmente no montante de € 113.967,80 e, bem assim, juros compensatórios no montante de € 15.495,05.

        22. Pretende a ora requerente submeter à apreciação do Tribunal Arbitral (i) a legalidade deste indeferimento da reclamação graciosa, na medida em que desatende o reconhecimento da ilegalidade das liquidações de Imposto do Selo e juros compensatórios dirigidas à A... referentes ao período de tributação de 2019 em causa e, bem assim, (ii) a legalidade daquelas liquidações de Imposto do Selo e juros compensatórios dirigidas à A... referentes ao referido período de tributação de 2019, cujo montante total ascende a € 129.462,85 (incluindo Imposto do Selo liquidado adicionalmente no montante de € 113.967,80 e, bem assim, juros compensatórios no montante de € 15.495,05).

        23. Em causa estão, nos presentes autos, juros pagos no âmbito de contratos de abertura de linhas de crédito em que se discute se existe um prazo determinado ou determinável para reembolso dos montantes mutuados, ou, o que vai dar ao mesmo, se a tributação deve ser feita pela verba 17.1 ou pela verba 17.1.4 da TGIS. Trata-se de saber se se trata de um feixe de créditos de curto prazo ou, alternativamente, de um contrato de conta corrente ou de uma outra modalidade de abertura de crédito que permita ao mutuário fazer saques quando entender e reembolsar quando entender – fazendo novos saques quando entender, reembolsáveis quando entender – devendo quaisquer dúvidas suscitadas pelas semelhanças que os contratos em concreto apresentem com referidas tipologias, ser resolvidas atendendo à preponderância da evidência.

 

        24. O nascimento da obrigação tributária, no caso das operações de crédito, ocorre, segundo o disposto no artigo 5.º, n.º 1, alínea g), do CIS, “no momento em que forem realizadas ou, se o crédito for utilizado sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou qualquer outro meio em que o prazo não seja determinado nem determinável, no último dia de cada mês”, devendo concluir-se que, em sintonia com a jurisprudência dos tribunais superiores, com a doutrina e, bem assim, com o entendimento que tem vindo a ser propugnado pela própria AT, que o facto tributário a considerar para efeitos de sujeição a IS é a utilização do crédito[1].

 

       25. Uma análise dos contratos de abertura de crédito celebrados entre a Requerente e a B..., S.a.r.l, leva este Tribunal Arbitral a concordar com – e a seguir de perto – a decisão arbitral do CAAD proferida no Processo n.º 755/2022-T e a entender que estes contratos estabeleceram prazos unicamente para o pagamento de juros, que não para o reembolso dos valores do crédito concedidos, sendo por isso subsumíveis ao conceito de contrato de conta corrente.

 

       26. O IS é regulado por dois instrumentos normativos interdependentes, sendo um o Código do Imposto do Selo (CIS) e o outro a Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), contendo esta as respetivas taxas e concretizando, por ordem alfabética, os factos tributários. Trata-se de um imposto que incide sobre operações que, independentemente da forma da sua materialização, revelem rendimento ou riqueza. Assim ele tem sido caraterizado na jurisprudência nacional, onde se diz que o IS incide sobre a formalização de atos jurídicos ou sobre outras situações tributárias, qualquer que seja a forma do respetivo pagamento[2].

 

         27. Trata-se, em regra, de um imposto indireto incidente sobre documentos e atos documentados, podendo configurar-se, em certos casos, como verdadeiro imposto sobre a despesa, sobre o consumo, ou até como taxa, numa amálgama de tributação direta e indireta. O mesmo incidia, nos termos do artigo 1.º, do respetivo Regulamento, sobre todos os documentos, livros, papéis, atos e produtos especificados na Tabela Geral do Imposto de Selo, surgindo nalguns casos como uma verdadeira taxa, como era o caso do selo devido pela emissão de certidões ou pela prática de atos notariais e registrais.

 

        28. Com a Lei nº 150/99, de 11.09, e posterior reforma do património, através do Decreto-Lei nº 287/2003, de 12.11, o IS mudou a sua natureza essencial de imposto sobre os documentos, passando a afirmar-se como um verdadeiro imposto incidente sobre operações que, independentemente da forma da sua materialização, revelem rendimento ou riqueza, como se depreende da leitura do Preâmbulo do referido diploma.

 

        29. A partir do momento em que se toma em consideração a substância dos negócios, secundarizando-se a realidade formal, a justificação ou a “causa” da tributação reassumem uma dimensão fundamental, pois que a tributação de uma realidade económica substantivamente delimitada implica uma prévia justificação dessa pretensão, que deve necessariamente exceder o simples escopo redíticio.

 

       30. Do disposto no artigo 1.º, n.º 1, do CIS, resulta que o IS incide sobre as situações jurídicas previstas na TGIS e, por sua vez, da verba 17.1.4 desta tabela decorre que serão tributáveis à taxa de 0,04% as operações financeiras pela utilização de crédito em virtude da sua concessão a qualquer título “sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou qualquer outra forma em que o prazo de utilização não seja determinado ou determinável, sobre a média mensal da dívida obtida através da soma dos saldos apurados diariamente, durante o mês, divididos pelos dias em que se verificam”. Assim, por aplicação desta verba 17.1.4 da TGIS são tributadas as operações de concessão de crédito sob a forma de conta corrente.

 

        31. Por seu lado, a verba 17.1. da TGIS é aplicável a quando da “utilização de crédito, sob a forma de fundos, mercadorias e outros valores, em virtude da concessão de crédito a qualquer título exceto nos casos referidos na verba 17.2, incluindo a cessão de créditos, o factoring e as operações de tesouraria quando envolvam qualquer tipo de financiamento ao cessionário, aderente ou devedor, considerando-se, sempre, como nova concessão de crédito a prorrogação do prazo do contrato - sobre o respetivo valor, em função do prazo”.

 

        32. E, a verba 17.1.4 da TGIS - Crédito utilizado sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou qualquer outra forma em que o prazo de utilização não seja determinado ou determinável, sobre a média mensal obtida através da soma dos saldos em dívida apurados diariamente, durante o mês, divididos por 30 - taxa 0,04%. Designa-se por “conta corrente” o contrato pelo qual as partes se obrigam a lançar a crédito e a débito os valores que entregam reciprocamente no âmbito de uma relação de negócios, exigindo apenas o respetivo saldo final apurado na data do seu encerramento, artigo 344.º do Código Comercial.

 

       33. Entre os efeitos deste contrato, previstos no artigo 346.º do mesmo diploma, destacam-se a compensação recíproca entre os contraentes até à concorrência dos respetivos crédito e débito ao termo do encerramento da conta corrente e o vencimento de juros das quantias creditadas em conta corrente a cargo do debitado desde o dia do efetivo recebimento. A vantagem desta modalidade de contrato de crédito consiste em facilitar as relações negociais entre as empresas mediante a criação de uma conta comum, sendo a sua celebração frequente entre empresas do mesmo grupo económico.

 

        34. Mesmo que não exista reciprocidade, e se esteja diante de um mútuo por abertura de crédito com uma clara distinção entre credor e devedor, é concedida ao mutuário flexibilidade quanto à utilização do crédito e ao momento do seu reembolso.

 

        35. No caso, a indicação de quatro datas por ano, correspondentes ao final dos quatros trimestres, não fixa nenhuma data de reembolso. Trata-se apenas de datas preferenciais para reembolso caso a mutuária decida fazer algum, podendo a eventual decisão de reembolso de acordo com a disponibilidade financeira da mutuária (no caso, a Requerente) para o efeito, ocorrer dentro ou fora dessa cadência de quatro datas por ano, por sua livre eleição. Em abstrato, a previsão de diferentes prazos ao longo do ano pode ser importante para a aplicação de juros compostos, o que não significa que se esteja diante da determinação do prazo de pagamento ou que daí seja possível inferir uma duração previsível.

 

       36. O importante, in casu, é o facto de que em nenhum dos referidos contratos se procede à fixação de um prazo determinado de reembolso dos empréstimos em causa, sendo eles reembolsados quando o mutuário entender, no decurso dos cincos anos durante os quais se mantém aberta a linha de crédito, realidade que se subsume ao conceito de conta corrente, aplicando-se a correspondente taxa de IS da verba 17.1.4 da TGIS.

 

       37. Ficou provado que a Requerente, em 23.01.2023, procedeu ao pagamento do montante de IS 129.462,85.€. incluindo imposto e juros compensatórios. De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.

 

        38. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT. Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação das liquidações adicionais de IS e de juros compensatórios, a Requerente tem direito a ser reembolsada da quantia 129.462,85.€.

 

        39. Determinando o artigo 43.º da LGT, n.º 1, que serão devidos juros indemnizatórios “quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido” e considerando o teor da norma constante do artigo 24.º do RJAT, n.º 5, pode o direito a juros indemnizatórios ser reconhecido no processo arbitral no pressuposto de que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal pagamento indevido derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT.

 

        40. O artigo 24.º, alínea b), do RJAT, dispõe que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, em harmonia com o disposto no artigo 100.º da LGT aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, a) do RJAT, segundo o qual “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.

 

        41. As normas do artigo 2.º, n.º 1 a) e b) do RJAT utilizam a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos Tribunais Arbitrais que funcionam no CAAD, e apesar de não se referirem a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos Tribunais Tributários, sendo essa a interpretação que está de acordo com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, e tem como primeira diretriz: “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.

 

        42. Nos presentes autos, os atos de liquidação do Imposto do Selo e juros compensatórios foram da praticados pela AT na sequência da mencionada ação de inspeção tributária e posteriormente objeto de reclamação graciosa em que a AT teve a possibilidade sanar os erros cometidos. Deste modo, nos termos do artigo 43.º da LGT e artigo 61.º do CPPT, a AT deve proceder ao pagamento à Requerente de juros indemnizatórios à taxa legal, desde a data do pagamento do imposto e juros compensatórios em excesso até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

 

IV. DECISÃO

 

Termos em que acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
  2. Anular o ato tributário da liquidação adicional de Imposto de Selo n.ºs 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022 ... e 2022... .
  3. Anular os atos de indeferimento das reclamações graciosas apresentadas pela Requerente contra as referidas liquidações de Imposto de Selo
  4. Condenar a Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios desde 23.01.2023 até à data do processamento da respetiva nota de crédito;
  5. Condenar a Requerida no pagamento integral das custas do presente processo.

 

 

V. VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em 129.462,85 € nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, interpretados em conformidade com o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT.

 

VI. CUSTAS

Nos termos da Tabela I anexa ao RCAT, o valor das custas é de 3 060.00 €, a cargo da Requerida.

 

Notifique-se.

11 de junho de 2024

 

Árbitro Presidente

 

(Rui Duarte Morais),

 

Árbitro Vogal

 

 

(Jónatas E. M. Machado)

Árbitra Vogal

 

 

(Alexandra Iglésias)

 

 

 

 

 

 



[1] Acórdão do CAAD, no Processo n.º 61/2019-T, 06.11.2019.

[2] Cfr. Acórdão do STA prolatado no Processo 0684/19.6BEPRT, de 08.11.2023