Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 799/2023-T
Data da decisão: 2024-06-13  IRC  
Valor do pedido: € 78.758,00
Tema: IRC 2019 – Princípio da especialização dos exercícios – Princípio da justiça e da capacidade contributiva.
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SUMÁRIO:

  1. Ainda que os gastos em análise devessem ter sido imputados aos anos de 2017 e 2018 –  o que o que não resulta claro face à pendência do processo de insolvência – caso em que existiria violação efetiva do princípio da periodização, seria sempre necessário ponderar a admissibilidade da imputação dos encargos, em 2019, por força do princípio da justiça.
  2. A AT não alega, nem resulta da fundamentação do ato de liquidação que consta do RIT, qualquer intencionalidade ou voluntariedade da Requerente no diferimento da imputação dos rendimentos e gastos com o objetivo de redução ou diferimento da tributação.
  3. Também não alega a AT que o Estado tenha sido prejudicado com a imputação dos gastos, em 2019.
  4. Pelo contrário, se os encargos tivessem sido imputados, em 2017 e 2018, a Requerente aumentaria o prejuízo fiscal de 2017 e deixaria inclusivamente de pagar imposto, em 2018, aumentando os prejuízos reportáveis.
  5. Neste sentido, considera este Tribunal Arbitral que a violação formal do princípio da periodização deve ceder perante o princípio da justiça, garantindo-se que a tributação versa o rendimento real da Requerente, isto é, a sua verdadeira capacidade contributiva, que não seria considerada se não se permitisse a valoração destes encargos, ainda que fora do exercício respetivo.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Professora Doutora Carla Castelo Trindade (Presidente), Dr.ª Alexandra Iglésias (Adjunta e Relatora) e Professor Doutor Gustavo Gramaxo Rozeira (Adjunto) designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral coletivo, acordam no seguinte:

 

I. RELATÓRIO

A... LDA, número de contribuinte ..., com sede na Rua ..., n.º ...,  ..., ..., ...-... Algés (doravante Requerente), nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º do RJAT, deduziu pedido de pronúncia arbitral (doravante PPA) para declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento de reclamação graciosa, peticionando ainda a título mediato, enquanto objeto daquela, a declaração de ilegalidade da liquidação de IRC n.º 2022..., no valor de € 78.758,00 (setenta e oito mil, setecentos e cinquenta e oito euros), referente a 2019, com a consequente anulação e respetiva restituição do montante em causa pago pela Requerente, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal aplicável.

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT), em 09-11-2023.

O Requerente optou por não designar Árbitros.

Nos termos do disposto na alínea a), do n.º 2, do artigo 6.º e da alínea b), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, foram os árbitros designados pelo Ex.mo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 02-01-2024, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico.

Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º, do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral coletivo, foi constituído em 22-01-2024.

Na mesma data, foi proferido despacho arbitral ordenando a notificação do dirigente máximo do serviço da administração tributária para apresentar Resposta, nos termos e prazo do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT, o que efetuou, em 26-02-2024, tendo juntado o Processo Administrativo (doravante PA), em 07-05-2024.

Por despacho de 04-03-2024, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, e facultar às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem alegações escritas por prazo simultâneo de 15 (quinze) dias, o que a Requerente efetuou tempestivamente, em 15‑03-2024, e a Requerida fora do prazo, em 08-05-2024, limitando-se a remeter para a Resposta e nada mais acrescentando.

 

II. Síntese da posição das Partes:

Da Requerente

Os argumentos apresentados no PPA, bem como em alegações escritas, sublinham o seguinte:

  • Em 2017 adquiriu crédito hipotecário ao Montepio e ao Novo Banco, detido sobre a sociedade insolvente B...;
  • Não reconheceu como gastos do período no ano do seu vencimento os encargos financeiros (€ 399.239,61) e outras despesas relacionadas com estas operações (€ 48.383,12), no valor total de € 447.622,73, por alegadamente ter dúvidas quanto à sua imputação ao período do correspondente vencimento dos juros;
  • Alega que entendeu, de acordo com o parágrafo 93 da estrutura conceptual do SNC, que a dedução daqueles gastos deveria ser balanceada com os proveitos financeiros decorrentes da titularidade do crédito, ou seja, apenas deveria deduzir os encargos financeiros quando começasse a receber os proveitos financeiros dos créditos adquiridos;
  • Em 2018, o Tribunal decidiu que a sociedade insolvente ia liquidar os créditos em prestações anuais, com juros à taxa de 1,5%;
  • Em 2019, a sociedade insolvente iniciou a amortização da dívida, tendo nesse ano sido calculados os juros vencidos, até 31-12-2019;
  • Em 2019, a Requerente reconheceu os rendimentos e os encargos até então apurados com a operação de aquisição do crédito hipotecário;
  • Alega a Requerente que não violou o princípio da especialização porque se limitou a fazer o balanceamento de gastos com réditos;
  • Alega também a Requerente que mesmo que tivesse violado formalmente aquele princípio, sempre se impunha pelo princípio da justiça a admissibilidade da imputação no exercício de 2019 dos encargos em causa, até porque a AT admitiu a imputação dos rendimentos ainda que referentes a exercícios anteriores;
  • Alega a Requerente que não existiu prejuízo para o Estado em resultado deste deferimento temporal da imputação de gastos;
  • Isto porque, em 2017, apurou um prejuízo fiscal de € 8.738,93 e um saldo de prejuízos fiscais reportáveis de € 20.925,92 e em 2018 apurou um lucro tributável de € 27.440,77 e um saldo de prejuízos fiscais reportáveis de € 1.717,38;
  • Segundo a Requerente, se os gastos reconhecidos, em 2019, tivessem sido imputados aos períodos de 2017 e 2018, teria aumentado os prejuízos fiscais no primeiro daqueles anos e deixado de pagar imposto no segundo;
  • Conclui a Requerente que não obteve qualquer vantagem fiscal com este deferimento e que a imputação dos gastos no exercício de 2019 deve ser admitida por força dos princípios da justiça e da capacidade contributiva.

Da Requerida

Sintetizam-se os argumentos apresentados na Resposta pela Requerida:

No relatório de inspeção, os SIT apuraram o seguinte:

  • Os encargos associados à operação de aquisição de crédito hipotecário correspondem a gastos financeiros e de fornecimentos e serviços externos, que foram registados contabilisticamente, nos anos de 2017 e 2018, através de inventários;
  •  Por mudança da política contabilística de registo, no ano de 2019, aqueles gastos foram reclassificados para a conta de resultados, como se tivessem sido incorridos no exercido de 2019;
  • Não se pode considerar que os gastos, à data do encerramento de contas dos anos de 2017 e 2018, eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidos, antes pelo contrário, esses gastos eram, ao tempo, gastos previsíveis e conhecidos, tanto que eram, que foram reconhecidos contabilisticamente nesses anos;
  • Assim sendo, não se poderá desconsiderar o efeito da incrementação dos gastos incorridos em períodos anteriores, no montante de € 447.622,73, na determinação do resultado fiscal do ano de 2019, já que esse incremento viola o princípio da especialização dos exercícios previsto no artigo 18.º do CIRC, não sendo aplicável nenhuma das suas exceções.

 

III. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à luz do preceituado nos artigos 2.º n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT) e é competente.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

O processo não enferma de nulidades.

Inexiste, deste modo, qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

IV. MATÉRIA DE FACTO

IV.1. Factos provados:

Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

  1. A A... Lda., é uma sociedade por quotas, constituída em 06-03-2008, com o CAE 70220 – “Outras atividades consultoria para os negócios e a gestão”.
  2. Em sede de IRC, encontra-se enquadrada no período em análise, no regime geral de tributação, e em sede de IVA, no regime normal de periodicidade trimestral.
  3. A Requerente adquiriu créditos, em 09-11-2017, à Caixa Económica Montepio Geral e, na mesma data, ao Novo Banco, e celebrou um contrato de abertura de crédito com a Caixa Económica Montepio Geral.
  4. Os pagamentos por parte da B... só começaram em 2019.
  5. A Requerente entregou a declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC, para o ano de 2019.
  6. A Requerente foi objeto de ação inspetiva sob a OI 2021..., que teve por objeto avaliar a situação tributária do sujeito passivo quanto ao resultado fiscal do exercício e, bem assim, quanto ao cumprimento das obrigações declarativas em sede de IRC e IVA.
  7. Em 29-06-2022, a Requerente foi notificada do projeto de relatório de inspeção, através do ofício ... para exercer o direito de audição sobre as correções propostas no relatório de inspeção, cumprindo o disposto no artigo 60.º da LGT e no artigo 60.º do RCPITA, o que não sucedeu dentro do prazo estabelecido.
  8. Em resultado da ação inspetiva a Requerente foi notificada da liquidação n.º 2022..., no valor de € 72.670,56, da liquidação de juros compensatórios n.º 2022..., no valor de € 5.980,88 e da liquidação de juros compensatórios por recebimento indevido n.º 2022..., no valor de € 106,56, referentes ao IRC de 2019, que perfazem o valor total de € 78.758,00.
  9. A liquidação em análise tinha como prazo limite de pagamento, 15-11-2022;
  10. A Requerente apresentou reclamação graciosa que foi enviada por carta registada – RH...PT, em 14-03-2023.
  11. Foi exarado, em 31-05-2023, despacho no sentido do indeferimento do pedido de reclamação graciosa que tramitou sob o n.º ...2023...;
  12. A Requerente foi notificada, nos termos da alínea b), do n.º 1, do artigo 60.º da LGT, para exercer o direito de audição prévia, no prazo de 15 (quinze) dias, através do ofício n.º... de 31-05-2023, expedido através do registo CTT RH ... PT, datado de 31‑05-2023 e recebido em 02-06-2023.
  13. A exposição para exercício daquela faculdade foi enviada por carta registada através do RH ... PT, datado de 16-06-2023, e obteve a entrada GPS 2023... .
  14. A Requerente foi notificada em 07-09-2023 do indeferimento da reclamação graciosa.
  15. Em 8-11-2023 a Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral.

IV. 2. Factos não provados:

Com relevo para a decisão da causa, não existem factos que não tenham ficado provados.

IV. 3. Fundamentação da fixação da matéria de facto:

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe antes o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.

Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º n.º 1 alínea e), do RJAT).

Os factos dados como provados foram-no com base nos documentos juntos aos autos com o PPA, e no PA - todos documentos que se dão por integralmente reproduzidos - e, bem assim, no consenso das partes.

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º n.º 7, do CPPT (aqui aplicável por força do disposto no artigo 29.º n.º 1, alínea a), do RJAT), a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

V. DO DIREITO

A questão a decidir:

Atendendo às posições das partes assumidas nos articulados apresentados está essencialmente em causa apurar se os gastos não devem ser dedutíveis no período de tributação de 2019, por alegada violação do princípio da especialização dos exercícios, previsto no artigo 18.º do CIRC (cf. §2º da p.i.).

Cumpre apreciar e decidir.

 

V.1. Do enquadramento teórico e jurisprudencial

A este propósito, seguimos de perto os fundamentos invocados relativamente ao modo como o princípio da especialização dos exercícios se deve relacionar com o denominado princípio da justiça, na decisão tomada no processo do CAAD n.º 334/2018-T:

“O princípio da periodização económica ou da especialização dos exercícios está positivado no n.º 1 do artigo 18.º do Código do IRC e traduz-se na regra de que devem ser considerados como ganhos ou perdas de determinado exercício os proveitos e os custos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, que a esse exercício digam respeito, sendo irrelevante o exercício em que elas se materializam.

No n.º 2 daquele mesmo artigo 18.º prevê-se uma exceção para as componentes positivas ou negativas do lucro tributável que, na data do encerramento das contas de determinado exercício, eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.

O princípio da especialização dos exercícios deriva da periodização dos resultados que é imposta por necessidades de gestão e de informação, sendo «caracterizado pela cisão da vida da empresa em intervalos temporais e pela imputação dada a um deles das componentes, positivas e negativas, que tornem possível determinar o resultado que lhe corresponde», impondo essa especialização «a realização de inventário de fim de exercício, dela decorrendo a necessidade de imputar a cada exercício todos os proveitos e custos que lhe são inerentes e só esses»; desta forma, «a periodização anual do imposto implica que tanto os rendimentos como os gastos (e as variações patrimoniais fiscalmente relevantes) sejam imputados a cada período de tributação. Esta imputação resulta essencialmente da aplicação das normas contabilísticas, justamente porque o nosso legislador entendeu que as regras de periodização aí previstas oferecem um sistema coerente, fiável e eficaz também para efeitos fiscais.» 

(…)

A importância e razão de ser do princípio da periodização económica resultam evidentes se se tiver presente que «a especialização temporal das componentes do lucro é ainda mais importante para efeitos fiscais do que contabilísticos, dados os condicionalismos em que decorre a determinação do imposto a pagar, de modo a evitar desvios de resultados entre exercícios diferentes com propósitos de minimização da carga fiscal, (…). Com efeito, essa imputação temporal pode ser instrumento de uma manipulação de resultados, de modo a, designadamente:

  1. Diferir no tempo os lucros;

b) Fracionar os lucros, distribuindo-os por exercícios diferentes, com o objetivo de evitar, num imposto de taxas progressivas, a tributação por taxas mais elevadas;

c) Concentrar o lucro em exercício onde se podem efetivar deduções mais avultadas (v. g. por reporte de prejuízos ou por incentivos fiscais).»   

Efetivamente, existem, «em abstrato, dois tipos de erros fiscais ligados à imputação temporal das componentes positivas e negativas do rédito ao exercício competente:

- a omissão ou esquecimento (erro voluntário ou involuntário): conhece-se a regra, que é indisputável, mas por algum motivo (ilegítimo ou justificado) não se regista o proveito ou o custo no ano devido;

- a álea ou abertura interpretativa: errónea inscrição temporal dum proveito ou um custo, efetuada, todavia, com base numa interpretação plausível da regra fiscal (geral ou específica) da especialização dos exercícios, regra essa que possui um conteúdo aplicativo equívoco (ou não concludente) diante do caso concreto.» 

É pois, vedado aos contribuintes definirem como bem entenderem ou segundo critérios de oportunidade ou, ainda, em conformidade com a sua estratégia comercial ou de gestão, o timing para declararem os proveitos e os custos decorrentes da sua atividade comercial ou industrial, porquanto lhes são legalmente impostos limites e regras para o efeito, designadamente no sentido de os obrigar a imputar esses proveitos e custos ao exercício a que digam respeito.

Assim, todos os custos e proveitos que sejam reconhecidos em determinada data devem ser registados no exercício a que correspondem de modo a que se produza uma imagem fidedigna da posição da empresa para esse período; ou seja, devem ser imputados «ao exercício os encargos que emergem de operações nele realizadas, ainda que nele não suportadas, do mesmo modo que se devem imputar a um exercício os proveitos resultantes de operações nele feitas mesmo que arrecadados noutro» (acórdão do STA, proferido em 02/04/2008, no processo n.º 0807/07, disponível em www.dgsi.pt).

Porém, tem-se registado, por parte dos tribunais, duas teses antagónicas em torno do princípio da especialização de exercícios.”

(…)

 “a) a corrente primitiva, de cariz formal e legalista, não admite quaisquer violações do princípio da especialização de exercícios;

b) a tese actual, de cariz material, aceita a violação formal do princípio da especialização, desde que essas inscrições erróneas não se reconduzam a comportamentos voluntários e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios.

Esta corrente jurisprudencial [a tese primitiva] não pactua com a violação da regra legal da especialização de exercícios. Não aceita a inscrição duma rubrica (positiva ou negativa) do rendimento, em exercício diverso do que lhe compete. Fica-se pelo mero enunciado do princípio. Sobrevaloriza-o face à ponderação doutros factores de justiça material, como a interferência em exercício alheio ao objecto do processo ou ao atendimento de razões desculpabilizantes (actuação de boa-fé, sustentada numa interpretação plausível dum comando complexo).

A Jurisprudência consente, actualmente, a violação formal do princípio da especialização de exercícios, desde que não se reconduzam a comportamentos voluntários e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios. Aceita a inscrição dum custo ou proveito em exercício diverso do que lhe competia, por intervenção de razões desculpabilizantes (actuação de boa-fé, sustentada numa interpretação séria e plausível dum comando complexo, assente em interpretações abertas e dúbias da sua estatuição).

A tese actual (…) rompe com o facilitismo do formalismo legalista. Procura a solução material e justa. Faz prevalecer um princípio estrutural (capacidade contributiva) sobre uma regra operacional (especialização de exercícios). O seu ponto de partida é irrepreensível: se a sociedade incorreu num verdadeiro custo, esse decaimento tem de modelar, obrigatoriamente, o rédito fiscal. A convenção formal da especialização não tem o condão de impedir o efeito material, nem de torná-lo excessivamente oneroso ou complexo. O mesmo se passa, mutatis mutandis, com os proveitos. Contribuem uma só vez para o lucro (…).»

Com efeito, constitui jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal Administrativo que a rigidez do princípio da especialização dos exercícios tem de ser temperada com a invocação do princípio da justiça – nomeadamente, nas situações em que, estando já ultrapassados todos os prazos de revisão do ato tributário e não havendo prejuízo para o Estado, se deve evitar cair numa injustiça não justificada para o administrado –, o qual funcionará então como uma válvula de escape. Neste sentido, ficou lapidarmente consignado o seguinte no acórdão proferido em 19/11/2008, no processo n.º 0325/08 (disponível em www.dgsi.pt):

«O princípio da justiça é um princípio básico que deve enformar toda a actividade da Administração Tributária, como resulta do preceituado nos arts. 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT.

Embora estes princípios constitucionais tenham um domínio primacial de aplicação no que concerne aos actos praticados no exercício de poderes discricionários, introduzindo neste exercício aspectos vinculados cuja não observância é susceptível de constituir vício de violação de lei, a sua relevância não se esgota nos actos praticados no exercício desses poderes discricionários.

Na verdade, por um lado, o texto do art. 266.º da CRP não deixa entrever qualquer restrição à sua aplicação a qualquer tipo de actividade administrativa, pelo que, em princípio, dever-se-á fazer tal aplicação, se não se demonstrar a sua inviabilidade.

Por outro lado, na aplicação da legalidade, tanto pela Administração como pelos tribunais, não pode ser encarada isoladamente cada norma que enquadra uma determinada actuação da Administração, antes terá de se atender à globalidade do sistema jurídico, com primazia para o direito constitucional, como impõe o princípio da unidade do sistema jurídico, que é o elemento primacial da interpretação jurídica (art. 9.º, n.º 1, do CC).

Não se pode afirmar, que, nos casos de exercício de poderes vinculados, a obediência a uma determinada lei ordinária se sobrepõe aos princípios constitucionais referidos, pois estes princípios fazem também parte do bloco normativo aplicável, eles são também definidores da legalidade e, como normas constitucionais, são de aplicação prioritária em relação ao direito ordinário.

Tanto são normas legais a primeira parte do n.º 2 do art. 266.º da CRP, que impõe à Administração a observância do princípio da legalidade (…), como a sua segunda parte em que se prevêem os outros princípios e que generalizadamente impõem os modelos de actuação de toda a actividade administrativa, como também é uma norma legal a que, em determinada situação específica, prevê uma determinada actuação da Administração, designadamente, no caso em apreço, a aplicação do princípio da especialização dos exercícios (art. 18.º, n.º 1, do CIRC).

Por isso, para definir a legalidade a que a Administração está vinculada, terão de se ter em conta todas essas normas e fazer uma ponderação e escolha entre elas caso a sua aplicação global, abstractamente compatível, se demonstre inviável em determinada situação concreta.

Assim, (…), do referido art. 18.º, n.º 1, do CIRC resulta uma vinculação para a Administração, que, em regra, deve aplicar o princípio da especialização dos exercícios na sua actividade de controle das declarações apresentadas pelos contribuintes.

Mas, o exercício deste poder de controle, predominantemente vinculado, pode conduzir a uma situação flagrantemente injusta e, nessas situações, é de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos arts. 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT, para obstar a que se concretize essa situação de injustiça repudiada pela Constituição. Na ponderação dos valores em causa (por um lado o princípio da especialização dos exercícios que é uma regra legislativamente arbitrária de separação temporal, para efeitos fiscais, de um facto tributário de duração prolongada e, por outro lado, o princípio da justiça, que reflecte uma das preocupações nucleares de um Estado de Direito), é manifesto que, numa situação de incompatibilidade se deve dar prevalência a este último princípio.»

Neste mesmo sentido, pronunciou-se o Tribunal Central Administrativo Sul da seguinte forma:

«I - O princípio da especialização ou autonomia dos exercícios impõe que os proveitos e os custos economicamente imputáveis a um determinado exercício, sejam considerados apenas nesse exercício, só eles podendo, assim, influenciar o seu resultado.

II - Tal princípio sofre as excepções, previstas na lei, quais sejam: nos casos em que haja imprevisibilidade ou manifesto desconhecimento das componentes positivas ou negativas e das obras de carácter plurianual (artigos 18.º, n.ºs 2 e 5 e 19.º do CIRC); nas situações em que a administração fiscal não teve qualquer prejuízo com o erro praticado pelo contribuinte e quando esse erro não resultar de omissões voluntárias ou intencionais, com vista a operar as transferências de resultados entre exercícios.» 

(…)

No mesmo sentido decisório a jurisprudência tributária do CAAD (v.g. no processo n.º 262/2015-T, em 29/04/2016, no processo n.º 588/2015-T, em 15/12/2017, no processo n.º 244/2017-T e em 24/10/2017, no processo n.º 233/2017-T (disponíveis em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/), respigando-se aqui o seguinte segmento deste último aresto: 

«(…) O princípio da justiça (…) é imposto à globalidade da actividade da Administração Tributária pelos artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT.

Da observância concomitante dos princípios da legalidade e da justiça conclui-se que o dever de a Administração Tributária aplicar o princípio da legalidade não se traduz numa mera subordinação formal às normas que especificamente regulam determinadas situações, abrangendo também o dever de a Administração Tributária ter em conta as consequências da sua actividade e abster-se da aplicação estrita de normas quando delas decorra um resultado manifestamente injusto.

A aplicação do princípio da justiça será de sobrepor ao princípio da especialização dos exercícios nos casos em que do incumprimento não tenha resultado prejuízo para o erário público e aquele não tenha sido concretizado intencionalmente com o objectivo de obter vantagens fiscais.

O Supremo Tribunal Administrativo tem adoptado este entendimento, tendo decidido, relativamente ao princípio da especialização dos exercícios, que «esse princípio deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), (…), desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios».

A própria Administração Tributária há muito reconheceu a necessidade de flexibilidade na aplicação do princípio da especialização dos exercícios, no Ofício circular n.º C-1/84, de 8‑6‑84, publicado, com o respectivo parecer, em Ciência e Técnica Fiscal, n.ºs 307-309, páginas 781-791, em que se adoptou o seguinte entendimento, a propósito da questão paralela que se colocava no domínio da Contribuição Industrial:

“Sempre que em determinado exercício existam custos e proveitos de exercícios anteriores, o tratamento fiscal correspondente deverá obedecer às seguintes regras:

a) Não aceitação dos custos e dos proveitos resultantes de omissões voluntárias ou intencionais no exercício em que são contabilizados, considerando-se, em princípio, como tais as que forem praticados com intenções fiscais, designadamente, quando:

- está para expirar ou para se iniciar um prazo de isenção;

- o contribuinte tem interesse em reduzir os prejuízos em determinado exercício para retirar maior benefício do reporte dos prejuízos previsto no artigo 43.º do Código;

- o contribuinte pretende reduzir o montante dos lucros tributáveis para aliviar a sua carga fiscal.

b) Nos restantes casos, não deverão corrigir-se os custos e proveitos de exercícios anteriores.”

(…)

Nos casos em que o Supremo Tribunal Administrativo tem admitido que deva prevalecer o princípio da justiça sobre a legalidade estrita relativa ao princípio da especialização dos exercícios são situações em que da não observância desse princípio não advém qualquer prejuízo para o erário público, nomeadamente situações em que o sujeito passivo não obteve vantagens ou até foi prejudicado pelo erro que praticou na aplicação do princípio da especialização dos exercícios. Em situações desse tipo, não se pode justificar que seja infligida ao contribuinte uma maior oneração fiscal, em nome de um respeito fetichista e acrítico pela observância da legalidade e à margem de qualquer perspectiva de prossecução do interesse público, que é o dever primacial a observar pela Administração Pública, como decorre do n.º 1 do artigo 266.º da CRP.”.

 

V.2. Da prevalência do princípio da justiça sobre o princípio da especialização dos exercícios, no caso concreto:

À luz do enquadramento teórico e jurisprudência acima expostos cumpre, de seguida, apreciar da aplicabilidade do princípio da justiça ao princípio da especialização dos exercícios, no caso concreto.

Como vimos, resulta do princípio da periodização do lucro tributável previsto no artigo 18.º do CIRC que os rendimentos e os gastos devem ser reconhecidos e levados à tributação no período em que são obtidos ou incorridos, independentemente do seu recebimento ou pagamento. Assim, apenas podem ser imputados a outros períodos os rendimentos ou gastos que na data de encerramento das contas do período a que respeitam eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidos.

Esta regra comporta, contudo, exceções, admitindo-se a imputação de rendimentos e gastos a períodos distintos daqueles a que deviam ter sido imputados, na medida em que tal se exija por força do princípio da justiça.

Para que tal aconteça, é necessário em primeiro lugar que a violação do princípio da periodização não tenha sido voluntária e intencionalmente provocada ou aproveitada pelos contribuintes com o propósito de diminuição da tributação.

Em segundo lugar, é necessário que a transferência de resultados entre exercícios não tenha resultado em prejuízos para o erário público, exigindo-se assim que numa perspetiva plurianual a operação em causa tenha sido neutra.

No presente, tendo em conta o processo de insolvência pendente, não é claro que a obrigação contabilística nasça no ano em que a AT afirma. Mas mesmo que os gastos devessem ter sido imputados, em 2017 e 2018, caso em que existiria violação efetiva do princípio da periodização, sempre seria necessário ponderar a admissibilidade da imputação dos encargos, em 2019, por força do princípio da justiça.

A AT não alega, nem resulta da fundamentação do ato de liquidação que consta do RIT, qualquer intencionalidade ou voluntariedade da Requerente no diferimento da imputação dos rendimentos e gastos com o objetivo de redução ou diferimento da tributação.

Também não alega a AT que o Estado tenha sido prejudicado com a imputação dos gastos, em 2019.

Pelo contrário, se os encargos tivessem sido imputados, em 2017 e 2018, a Requerente aumentaria o prejuízo fiscal de 2017 e deixaria inclusivamente de pagar imposto, em 2018, aumentando os prejuízos reportáveis.

Neste sentido, considera este Tribunal Arbitral que a violação formal do princípio da periodização deve ceder perante o princípio da justiça, garantindo-se que a tributação versa o rendimento real da Requerente, isto é, a sua verdadeira capacidade contributiva, que não seria considerada se não se permitisse a valoração destes encargos, ainda que fora do exercício respetivo.

De resto, afigura-se incoerente que a AT admita a imputação, no exercício de 2019, de rendimentos vencidos em anos anteriores, mas negue essa mesma imputação aos gastos associados à mesma operação.

Em suma, mesmo considerando que no caso houve violação do princípio da especialização de exercícios, o que não resulta inequívoco, como assinalámos, este não resultou de omissões voluntárias e intencionais da Requerente, resultantes de estratégias deliberadas, com vista a manipular resultados ou operar a sua transferência entre exercícios, por forma a contornar as finalidades visadas por lei com a consagração do princípio da especialização dos exercícios.

Não sendo este um princípio absoluto, haverá que ponderar os interesses em jogo, convocando-se os princípios da justiça e da capacidade contributiva da contribuinte, revelando-se em consequência de tal ponderação, desproporcionada a não aceitação dos gastos incorridos, in casu.

Pelo que deve o pedido ser considerado procedente, na medida em que a fixação obsessiva no espartilho dos exercícios fiscais ofende o princípio da capacidade contributiva e redunda numa liquidação violadora dos princípios da justiça e da razoabilidade.

 

VI. PEDIDO DE REEMBOLSO DAS QUANTIAS PAGAS E JUROS INDEMNIZATÓRIOS

A Requerente formula pedido de restituição da quantia paga indevidamente, incluindo o reconhecimento do direito ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT).

Vejamos.

De acordo com o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

Ora “nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

Por tudo o que vem exposto e em conclusão, tem de proceder o pedido arbitral, determinando‑se a anulação do atos tributário impugnado com a consequente devolução do imposto pago indevidamente, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios, e demais consequências legais daí decorrentes.

 

VII. DECISÃO

Nestes termos, decide este Tribunal Arbitral coletivo o seguinte:

  1. Julgar procedente o Pedido de Pronúncia Arbitral e anular o ato tributário impugnado;
  2. Condenar a AT a restituir ao Requerente o valor de imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do título VI desta Decisão;
  3. Condenar a Requerida nas custas processuais.

 

VIII. VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º e 306.º, do Código do Processo Civil (CPC) e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1 alíneas a) e e), do RJAT, e 3.º, n.ºs 2 e 3, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixar ao processo o valor de € 78.758,00 (setenta e oito mil, setecentos e cinquenta e oito euros), atendendo ao valor económico aferido pelo montante da liquidação de imposto impugnada.

 

IX. CUSTAS

Nos termos dos artigos 12.º e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigos 2.º e 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas, em € 2.448,00 (dois mil quatrocentos e quarenta e oito euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

Notifique-se.

 

Lisboa, 13 de junho de 2024

 

 

 

 

Os Árbitros

 

 

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(Carla Castelo Trindade - Presidente)

 

 

 

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(Alexandra Iglésias – Adjunta e Relatora)

 

 

 

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(Gustavo Gramaxo Rozeira - Adjunto)

 

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.

 

 

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.