SUMÁRIO:
Se a AT logrou ilidir a presunção de veracidade que resulta do artigo 75.º da LGT e demonstrou a existência de indícios sérios de que o sujeito passivo participou num esquema de operações simuladas, negando com esses fundamentos o direito à dedução do IVA nos termos do artigo 19.º, n.º 3 do Código daquele imposto, é ao sujeito passivo que incumbe o ónus da prova de demonstrar a veracidade das operações nos termos do artigo 74.º da LGT, sob pena de não ser dedutível o IVA titulado pelas facturas referentes às operações simuladas.
DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
A) As partes e a constituição do tribunal arbitral
A..., LDA, pessoa colectiva com o número de identificação fiscal..., com sede na Rua do ..., ..., ..., em Sesimbra, apresentou junto do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), pedido de constituição de Tribunal Arbitral singular, ao abrigo das disposições conjugadas nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 1, 5.º, n.º 3, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante RJAT), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação das seguintes liquidações de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), com as devidas consequências legais:
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Liquidação de IVA n.º 2023..., de 23 de Maio de 2023 e respectiva Liquidação de Juros Compensatórios de IVA n.º 2023...;
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Liquidação de IVA n.º 2023..., de 23 de Maio de 2023 e respectiva Liquidação de Juros Compensatórios de IVA n.º 2023...;
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Liquidação de IVA n.º 2023..., de 25 de Maio de 2023 e respectiva Liquidação de Juros Moratórios de IVA n.º 2023...;
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Liquidação de IVA n.º 2023..., de 25 de Maio de 2023.
Peticiona ainda o pagamento de juros indemnizatórios.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado pela Requerente em 09.10.2023 e aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 10.10.2023. Foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 16.10.2023. A Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1, do artigo 6.º do RJAT, foi designada, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, em 29.11.2023, a ora signatária como Árbitro a integrar o Tribunal arbitral singular, o qual se constituiu em 20.12.2023, em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º, do RJAT, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro. Na mesma data foi proferido despacho arbitral para a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentar resposta no prazo legal, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 17.º do RJAT.
Em 01.02.2024, a Requerida AT veio juntar aos autos a sua resposta, que se dá por integralmente reproduzida, e o processo administrativo.
Em 07.02.2024, foi proferido nos autos despacho arbitral, cuja fundamentação se dá por integralmente reproduzida, a dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e a produção de alegações, uma vez que não foi requerida prova testemunhal e dada a evidência da natureza das questões suscitadas pelas partes, que se configuram como questões exclusivamente de direito.
B) Do pedido formulado pela Requerente
A Requerente no presente pedido arbitral pretende a declaração de ilegalidade das liquidações de IVA acima identificadas e a sua anulação, bem assim como a restituição do imposto por si pago, acrescido dos juros indemnizatórios devidos, nos termos previstos nos artigos 43.º e 100.º da LGT, desde a data do pagamento até efectivo reembolso. Alega, em síntese, que os actos tributários em crise enfermam de ilegalidade fundada em erro sobre os pressupostos de facto e em erro na aplicação do Direito.
Segundo a Requerente, a AT, na sequência de uma acção inspectiva, procedeu a correcções em sede de IVA por entender que aquela não tinha direito à dedução do IVA, no montante de € 33.834,24 (trinta e três mil oitocentos e trinta e quatro euros e vinte e quatro cêntimos), relativamente às aquisições de serviços realizados na reabilitação de um imóvel, por violação dos artigos 19.º, n.º 1, e 20.º, n.º 1, alínea a), do Código do IVA.
A Requerente não concorda com o entendimento de que o IVA por si suportado na aquisição de bens e serviços não poderá ser deduzido, invocando três graves erros de que a proposta de correcção padece.
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Em primeiro lugar, apesar de a propriedade do imóvel ser da pessoa identificada pela Inspecção Tributária, as prestações de serviços indicadas estão inseridas num contrato de empreitada, em que a Requerente é empreiteira geral e o dono na obra é o proprietário do imóvel — conforme documento junto pela Requerente no âmbito do procedimento de inspecção tributária.
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Em segundo lugar, as actividades registadas pela Requerente incluem claramente os tipos de trabalho de executadas no âmbito deste contrato de empreitada.
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E, em terceiro lugar, tal como consta no contrato de empreitada, os trabalhos executados pela Requerente apenas serão facturados a final, com IVA à taxa de 6%, considerando que a obra se localiza em área de reabilitação urbana.
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Efectivamente, em data anterior à celebração do contrato de empreitada — cf. 1 de Setembro de 2018 —, a Requerente inscreveu-se para a actividade de construção de edifícios (CAE 41200), que abrange a ampliação, reparação, transformação e restauro de edifícios, assim como a montagem de edifícios pré-fabricados.
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Inclusive, foi apresentado projecto de arquitectura na Câmara Municipal de ..., que deu origem ao processo n.º P.../2018 e que foi aprovado em Abril de 2018.
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Na sequência da obtenção de tais elementos, a Requerente celebrou o contrato de empreitada com B..., proprietário do imóvel.
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Ademais, resulta do contrato de empreitada a obrigação contratual de o Dono da Obra suportar os custos da empreitada, mediante facturação a ser emitida pela ora Requerente.
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Com efeito, dúvidas não devem restar de que o imposto suportado pela Requerente no âmbito do contrato de empreitada deve ser dedutível, por estar directamente relacionado com a actividade da Requerente e, concretamente, por estar relacionado com uma prestação de serviços efetuada pela Requerente, que se encontra sujeita e não isenta de IVA.
C) A Resposta da Requerida
A Requerida AT, devidamente notificada para o efeito, apresentou tempestivamente a sua resposta na qual pugna pela manutenção na ordem jurídica dos actos impugnados.
Alega, em síntese, que a posição da Requerente não deve obter provimento, porquanto as correcções realizadas em sede de IVA, respeitam a imposto deduzido indevidamente em 2019, incorrido na aquisição de diversos serviços prestados na reabilitação de um imóvel sito na ..., ...-..., Sintra, artigo matricial ...-U-..., cuja propriedade é detida pelo gerente B... .
Entenderam os SIT que, não tendo os bens e serviços titulados pelas facturas em causa sido adquiridos para a realização de operações tributáveis decorrentes das actividades exercidas pelo sujeito passivo, o IVA suportado não confere direito à dedução, por incumprimento da alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º do CIVA, procedendo à desconsideração do IVA deduzido nos Campos 22 e 24 das DP´s de IVA, nos termos do artigo 87.º do CIVA.
Afigura-se que o contrato de empreitada apresentado pelo sujeito passivo possui um carácter simulado, uma vez que não houve qualquer prestação de serviços de empreitada ou de quaisquer outros serviços por parte da A... .
A veracidade desta operação não pode escudar-se no “Contrato de empreitada de obras de construção civil chave na mão” apresentado pelo sujeito passivo, uma vez que, releva substancialmente para o efeito, a circunstância de “o dono de obra” ser o gerente do “empreiteiro”, acrescendo ainda o facto de que na data constante do contrato apresentado a sócia C... não ter poderes de gerência para assinar o contrato em representação da A..., uma vez que apenas é gerente desde 10-11-2020. Nessa data, 01-09-2017 ou mesmo 01-09-2018, o gerente da A... era B... .
Importa salientar, uma vez mais, que no período de 2019, a A... registou na sua contabilidade facturas de aquisição de projectos de diversas especialidades, serviços de empreitada, serviços de fiscalização de obra, serviços de medição, para a reabilitação de uma moradia unifamiliar pertencente ao sócio gerente e à sócia (actualmente sócia-gerente) da sociedade, que não originaram a emissão de quaisquer facturas por parte da A... .
Não fosse uma operação simulada, a A..., como “empreiteira da obra”, teria emitido as facturas respeitantes aos serviços prestados e liquidado o respectivo imposto, documentos que até à presente data não foram emitidos, nem o IVA liquidado.
Defende estar-se perante uma operação simulada, em que em termos económicos a A... não obteve qualquer valor acrescentado e em que os documentos apresentados pelo sujeito passivo são uma simples tentativa de justificar a dedução do imposto. Na realidade, a A... não obteve qualquer ganho com a realização desta operação a não ser a mera dedução do IVA.
II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído. É materialmente competente, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.
As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. artigos 4.º e 10.º n.º 2 do RJAT e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março).
O processo não padece de vícios que o invalidem.
Cumpre decidir.
III – DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
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Factos Provados
Tendo em conta a prova documental junta aos autos, cumpre fixar a matéria de facto relevante para a compreensão da decisão, que se fixa como segue.
Como matéria de facto relevante, dá o tribunal por assente os seguintes factos:
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A Requerente é uma sociedade comercial por quotas, tendo sido constituída a 21 de Dezembro de 2001(Doc. 16 junto com o pedido arbitral).
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O capital social da Requerente é de € 6.000,00 (seis mil euros) e é detido pelos sócios C... e “D..., Unipessoal, Lda” (Doc. 16 junto com o pedido arbitral).
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São gerentes da Requerente B..., desde 21.12.2001, e C..., desde 18.11.2010 (Doc. 16 junto com o pedido arbitral).
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A Requerente tem como objecto social «Indústria da construção civil, empreitadas de obras públicas e particulares, concepção, edificação e exploração de empreendimentos turísticos e imobiliários, a compra e venda de prédios rústicos e urbanos e a revenda dos adquiridos para esse fim» (Doc. 16 junto com o pedido arbitral).
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A Requerente encontra-se inscrita para as seguintes actividades (PA, p. 2):
- Turismo no Espaço Rural (CAE 55202), desde 01.03.2020;
- Construção de Edifícios (Residenciais e Não Residenciais) (CAE 41200), desde 01.01.2018;
- Arrendamento de Bens Imobiliários (CAE 68200), desde 13.12.2018;
- Compra e Venda de Bens Imobiliários (CAE 68100), desde 01.03.2020.
f) Em sede de IVA, está enquadrada no regime de periodicidade trimestral, sendo um sujeito passivo misto com afectação real de todos os bens.
g) A Requerente foi alvo de Procedimento da Inspecção Tributária e Aduaneira (RCPITA), com início em 15.02.2023, determinado pela Ordem de Serviço OI2023..., emitida pelo Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Setúbal, em 09.01.2023, relativamente ao ano de 2019 (PA e Doc. 15 junto com o pedido arbitral), tendo aí exercido o direito de audição prévia (Doc. 15, junto com o pedido arbitral).
h) Na sequência da acção inspectiva, a Requerida procedeu a correcções em sede de IVA, referentes ao ano de 2019, no montante de € 33.834,24, com o seguinte fundamento:
«V.2.1. Dedução indevida de imposto
No período de 2019, verificou-se que o sujeito passivo declarou a aquisição de projetos de diversas especialidades, serviços de empreitadas para reabilitação de uma moradia unifamiliar, serviços de fiscalização de obra, serviços de medição, os quais deram origem à emissão de várias facturas (…).
Os gastos respeitantes a estas faturas encontram-se registados a débito das contas SNC 6217 – “Subcontratos IVA devido pelo adquirente”, 62211 – “Trabalhos Especializados c/IVA Dedutível” e 62217 – “Trabalhos Especializados IVA devido pelo adquirente”, por contrapartida das respetivas contas de fornecedores (…).
(…)
Em todos os casos, quer tenha cabido à A... a autoliquidação do imposto, quer tenha o emitente das faturas liquidado o respetivo IVA, o sujeito passivo procedeu à dedução do IVA, registado nas contas SNC2432142 – “IVA Dedutível – Existencia IVA dev.p/adqu T.Nor”, 2432312 – IVA Dedutível – Out.Bens e Serviços Tx.Nor.” e 2432372 - “IVA Dedutível – O.Bens/ser IVA dev.p/adq T.Nor” (…).
Da análise efetuada, verificou-se que os serviços prestados que sustentam o IVA deduzido foram realizados no imóvel sito na Avenida ... ..., em Sintra, correspondente ao artigo matricial ...-U-... (ver anexo 3).
Tal como referido no ponto IV.1.2 do presente relatório, a A... não é proprietária deste imóvel, sendo os seus titulares os gerentes da sociedade. No entanto, reconheceu na conta SNC 3614 – Sintra ... o montante de € 191.507,65, conforme balancete analítico de encerramento de 2019.
De acordo com o parágrafo 6 da NCRF 18,“Inventários: são ativos:
a) Detidos para venda no decurso ordinário da atividade empresarial;
b) No processo de produção para tal venda; ou
c) Na forma de materiais ou consumíveis a serem aplicados no processo de produção ou na prestação de serviços.”
Ora, não sendo o imóvel propriedade da sociedade, não reúne as condições para ser reconhecido como inventário nas suas demonstrações financeiras, encontrando-se incorretamente refletido na contabilidade mediante o registo do ativo na conta SNC 3614 – “Produtos e trabalhos em curso – Sintra ...”.
Apesar de este imóvel se encontrar erradamente reconhecido no ativo da sociedade, em sede de IRC, os gastos referentes às obras de reabilitação nele efetuadas não influenciaram o apuramento do lucro tributável, por se encontrarem “anulados” pelo reconhecimento da variação dos inventários de produção.
No entanto, tendo a sociedade deduzido IVA no montante € 33.834,24 referente a estes gastos, importa desde já fazer o enquadramento face ao Código do IVA.
No que se refere ao exercício do direito à dedução, estabelece o n.º 1 do artigo 19.º do Código do IVA, que os sujeitos passivos deduzem, nos termos dos artigos seguintes, o “imposto devido ou pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos”.
Dispõe a alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA, que só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização de transmissões de bens ou prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas (operações tributáveis), exceto as exclusões ao direito à dedução previstas no artigo 21.º do Código do IVA.
Dos princípios gerais subjacentes ao exercício do direito à dedução do IVA suportado pelos sujeitos passivos de imposto resulta, que para ser dedutível o IVA suportados nas aquisições de bens e serviços, aquelas devem ter uma relação direta e imediata com as operações a jusante que conferem o direito a dedução.
Com a redação da alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA, o legislador pretendeu que o imposto que onerou a aquisição de determinados bens e serviços, seja dedutível, apenas, quando forem utilizados na realização de operações tributáveis decorrentes da sua atividade, ficando, desta forma, assegurada, a neutralidade do imposto.
No caso em concreto, atendendo às atividades em que a A... se encontra registada para exercer, os serviços titulados pelas faturas atrás indicadas não foram utilizados na realização de operações tributáveis decorrentes da sua atividade, uma vez que os mesmos foram utilizados na reabilitação de um imóvel cuja propriedade pertence ao gerente da sociedade.
Ora, conforme exposto, o imposto suportado na aquisição de serviços realizados na reabilitação do imóvel em causa, não confere direito à dedução nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA.»
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Procedendo á emissão das seguintes liquidações (Docs 1 a 7, juntos com o pedido arbitral):
- Liquidação de IVA n.º 2023..., de 23 de Maio de 2023 e respectiva Liquidação de Juros Compensatórios de IVA n.º 2023...;
- Liquidação de IVA n.º 2023..., de 23 de Maio de 2023 e respectiva Liquidação de Juros Compensatórios de IVA n.º 2023...;
- Liquidação de IVA n.º 2023..., de 25 de Maio de 2023 e respectiva Liquidação de Juros Moratórios de IVA n.º 2023...;
- Liquidação de IVA n.º 2023..., de 25 de Maio de 2023.
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De que resultou um montante total a pagar de € 10.692,67.
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As facturas desconsideradas pela AT para efeitos de dedução de IVA são relativas a serviços prestados no imóvel sito na Avenida ... ..., em Sintra, correspondente ao artigo matricial ...-U-..., propriedade do gerente da A..., B... .
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A Requerente pagou o acima referido imposto (Docs 25 a 31, juntos com o pedido arbitral).
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Em 09.10.2023, a Requerente apresentou o presente pedido arbitral.
B) Factos não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
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Fundamentação dos factos provados
A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral Singular e a sua convicção ficou formada tendo por base a prova documental apresentada pela Requerente, que aqui se dá por reproduzida e com base nas peças processuais apresentadas pelas Partes.
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607º do CPC. Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
Ainda relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596º e n.º 2 a 4 do artigo 607º, ambos do Código Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e) do n.º do artigo 29º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123º Código do Procedimento e do Processo Tributário (CPPT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas Partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para esta Decisão Arbitral, os factos acima elencados.
IV – DECISÃO DA MATÉRIA DE DIREITO
Fixada a matéria de facto, importa conhecer da questão de direito suscitada pela Requerente.
A questão de fundo a apreciar, consiste em saber se o IVA das facturas emitidas à Requerente no período de tributação referente a 2019, por serviços prestados no imóvel sito na Avenida ..., ..., em Sintra, correspondente ao artigo matricial ...-U-..., propriedade do gerente da A..., B..., deverá ou não ser passível de dedução, tendo em consideração a alegação da AT de que os bens e serviços titulados pelas facturas em causa não foram adquiridos para a realização de operações tributáveis decorrentes das actividades exercidas pelo sujeito passivo.
Ora, sendo o IVA um imposto de matriz comunitária, impõe-se tecer algumas considerações prévias relativamente à natureza e amplitude do direito à dedução, considerando nesta análise as regras que regem este imposto de acordo com o Direito da União Europeia, com a respectiva transposição a nível interno e com a interpretação administrativa e judicial que sobre as mesmas tem vindo a ser levada acabo, especialmente pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), no que acompanhamos o vertido na decisão do CAAD proferida no processo 389/2022-T, que reza assim:
«A este respeito importará analisar a questão da dedutibilidade do IVA, tendo em conta a interpretação do disposto nos artigos 168.º da Directiva IVA (DIVA) e os artigos 19.º n.º 3 do Código do IVA, concedendo especial atenção ao entendimento do TJUE sobre a dedução do IVA que resulte de operação simulada.
Conforme temos vindo a entender em sede de anteriores decisões arbitrais proferidas no CAAD[1], o direito à dedução faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado, exercendo-se imediatamente em relação à totalidade do IVA que incidiu sobre as operações a montante.[2]
Nesta acepção do princípio da neutralidade, o regime instituído pela DIVA permite aos sujeitos passivos deduzir o IVA que tenha onerado as aquisições de bens e serviços destinados à actividade tributada. Note-se, que o TJUE refere-se ao princípio da neutralidade do IVA ainda numa outra acepção, de acordo com a qual o sistema do IVA não deve interferir com as decisões económicas, nem com a formação dos preços ao longo do circuito económico.
Por conseguinte, o mecanismo do direito à dedução permite ao sujeito passivo expurgar do seu encargo o IVA suportado a montante retirando o efeito cumulativo e a tributação em cascata que caracterizavam sistemas anteriores de tributação do consumo.
Assim, o direito à dedução assenta no designado método da dedução do imposto, método do crédito de imposto, método subtractivo indirecto ou ainda método das facturas.»
Ora, na senda do vertido no acórdão do CAAD proferido no proc. 334/2022-T, «[d]e acordo com este método, e em conformidade com o disposto no artigo 19.º do Código do IVA, através de uma operação aritmética de subtracção, ao imposto apurado nas vendas e prestações de serviços (outputs) e identificável nas respectivas facturas, deduz-se o imposto suportado nas compras e outros gastos (inputs). Como determina o 2.º parágrafo, do n.º 2 do artigo 1.º da DIVA “Em cada operação, o IVA, calculado sobre o preço do bem ou serviço à taxa aplicável ao referido bem ou serviço, é exigível, com prévia dedução do montante do imposto que tenha incidido directamente sobre o custo dos diversos elementos constitutivos do preço”.
Tal como previsto na DIVA, o Código do IVA determina, como regra geral, a dedutibilidade do imposto devido ou pago pelo sujeito passivo nas aquisições de bens e serviços feitas a outros sujeitos passivos.
As situações expressas de exclusão do direito à dedução são excepcionais e reportam-se a casos específicos enunciados pelo legislador nacional em termos taxativos, de acordo com o estatuído na DIVA, em função do tipo de despesas em causa.
As regras do exercício do direito à dedução do imposto contemplam requisitos objectivos, mais ligados ao tipo de despesas, subjectivos, relativos ao sujeito passivo, e temporais, atinentes ao período em que é possível exercer o direito à dedução do IVA, os quais se devem verificar em simultâneo para se exercer o direito à dedução.
Como requisitos objectivos do exercício do direito à dedução do IVA temos, nomeadamente, o facto de o imposto suportado dever constar de factura passada na forma legal (ou seja, deverá obedecer, nos seus requisitos, aos termos gerais previstos no atual artigo 36.º, n.º 5, e artigo 40.º do Código do IVA), de se tratar de IVA português, e de a despesa, por si, conferir o direito à dedução do imposto (isto é, não se deve tratar de uma despesa excluída do direito à dedução, nos termos do disposto no artigo 21.º do Código do IVA).
Como requisitos subjectivos do exercício do direito à dedução do imposto determina-se, nomeadamente, que os bens e serviços deverão estar directamente relacionados com o desenvolvimento de uma actividade económica. Com efeito, de acordo com a DIVA, no artigo 168.º (transposto, em parte, pelo artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do Código do IVA), o sujeito passivo pode deduzir o IVA suportado no Estado membro em que se encontra estabelecido, nas transmissões de bens e prestações de serviços, assim como operações assimiladas nas aquisições intracomunitárias de bens e nas importações ali localizadas, desde que “os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas (…)”. (…)
As disposições previstas no artigo 19.º n.ºs 3 e 4, do Código do IVA visam precisamente consagrar o impedimento do direito à dedução que resulte de operações fraudulentas. Desde logo, tendo presente que só confere direito à dedução o IVA que tenha onerado aquisições de bens e serviços destinados ao exercício da actividade tributada realizada pelo sujeito passivo, pelo que o n.º 3 do artigo 19.º do Código do IVA explicita que “não poderá deduzir-se imposto que resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da factura ou documento equivalente”. Este preceito legal, em face da sua formulação aplica-se quer em situações de simulação absoluta, de que constituem paradigma no âmbito do IVA as designadas “facturas falsas”, quer em situações de simulação relativa, de que uma das variantes poderá constituir a simulação do valor da operação.»
Ora, conforme resulta da matéria de facto dada como provada, verifica-se que, no caso em apreço, a Requerente foi submetida a uma inspecção tributária na qual foi considerado que está em causa a dedução de imposto relativamente a um bem que não estava, nem está, em nome da sociedade e que, pelo contrário, é propriedade do seu gerente. Aliás, não sendo o imóvel propriedade da sociedade, não reúne as condições para ser reconhecido como inventário nas suas demonstrações financeiras, encontrando-se incorrectamente reflectido na contabilidade mediante o registo do activo na conta SNC 3614 – “Produtos e trabalhos em curso – Sintra ...”.
Por outro lado, não se pode considerar o mesmo afecto à sua actividade produtiva. A Requerente invoca a existência de um Contrato de Empreitada de Obras de Construção Civil Chave na Mão, celebrado em 01.09.2017, conforme consta do documento 18 junto com o pedido arbitral (afirmando a Requerente tratar-se de lapso, pois o mesmo terá sido celebrado em 2018), e em que esta figura como empreiteira geral e o dono da obra como proprietário do imóvel acima referido.
Os serviços contratados para ser realizados no referido imóvel terão sido facturados à Requerente pelos respectivos fornecedores, em 2019, tendo esta deduzido o respectivo IVA até ao terceiro trimestre de 2023, no montante de € 33.834,24.
Entende a AT que o referido contrato de empreitada se trata de um negócio simulado, porquanto não encontra tradução na vida real, designadamente a nível de facturação. Datando o contrato de 2017 (ou 2018), as primeiras e únicas facturas emitidas pela Requerente ao dono da obra datam de 27 de Dezembro de 2022, ou seja de cerca de 4 anos após a celebração do mesmo, contrariando o estipulado na clausula 7ª do contrato:
Não constavam do sistema e-fatura quaisquer outras facturas emitidas pela Requerente ao dono da obra, pelo menos até à data de apresentação da resposta pela Requerida, ou seja, em 01.02.2024, encontrando-se por facturar cerca de metade do valor da empreitada.
Temos então de reconhecer razão à AT quando afirma que
«- A alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do CIVA, determina que o imposto é devido e torna-se exigível no momento da realização das prestações de serviços, sem prejuízo do disposto nos números seguintes daquele artigo.
- E o n.º 3 daquele artigo refere que nas prestações de serviços de carácter continuado, resultantes de contratos que dêem lugar a pagamentos sucessivos, considera-se que as prestações de serviços são realizadas no termo do período a que se refere cada pagamento, sendo o imposto devido e exigível pelo respectivo montante.
- Por sua vez, segundo o n.º 1 do artigo 36º do CIVA a fatura deve ser emitida o mais tardar no 5º dia útil seguinte ao do momento em que o imposto é devido, nos termos do referido artigo 7º.
- No caso sob apreço, contrariamente ao alegado pela Requerente, o n.º 3 do artigo 7º do CIVA consigna que nas prestações de serviços de carácter continuado, estas consideram-se realizadas no termo do período a que se refere cada pagamento, sendo o imposto devido e exigível pelo mesmo montante, e a partir dessa data as faturas deveriam ser emitidas, o mais tardar, no 5º dia útil seguinte a tal momento, o que não foi feito.
- Em absoluto incumprimento da exigibilidade do imposto, constante das normas do CIVA e em incumprimento das condições acordadas no contrato de empreitada celebrado, quer ao nível da periodicidade de facturação quer ao nível da periodicidade dos pagamentos estipulados, ao definir, que com base em autos de medição aprovados pelo dono da obra, seria efetuada a respectiva fatura mensal.»
Também não se compreende e contraria o que é normal e habitual, que o projecto e a fiscalização da obra sejam facturados ao empreiteiro e não ao dono da obra.
Ora, neste âmbito, e citando a decisão proferida no processo 00030/05.6BEPNF, da 2.ª Secção do Contencioso Tributário, pelo TCA-Norte, “(…) quando a administração tributária desconsidera as facturas que reputa de falsas, aplicam-se as regras do ónus da prova do artigo 74.º da Lei Geral Tributária, competindo à administração tributária fazer prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua actuação, ou seja, de que existem indícios sérios de que a operação constante das facturas não corresponde à realidade.
Assim, e tomando como modelo o procedimento de liquidação da iniciativa da administração tributária, esta terá o ónus de demonstrar a ocorrência dos factos de que deriva o direito à liquidação (os factos-pressupostos da existência, qualificação e quantificação do facto tributário). E o sujeito passivo terá o ónus de demonstrar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito.
Já antes, o acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 2003-05-07 (Processo n.º 01026/02, disponível a redacção integral in www.dgsi.pt, seguindo o entendimento do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 2002-04-17, processo n.º 026635, também ali disponível), firmou jurisprudência no sentido de que recai sobre o contribuinte a prova da existência dos factos tributários que alegou como pressuposto do direito à dedução do imposto sobre o valor acrescentado.
A razão de ser deste entendimento é a seguinte: ao contrário do que sucede em regra, em que a administração tributária afirma a ocorrência do facto de que deriva o direito à tributação, neste caso é o sujeito passivo que afirma o facto tributário de que deriva o direito à dedução e a administração tributária que põe em causa a sua ocorrência.
Feita aquela prova pela AT, passa a recair sobre o sujeito passivo o ónus da prova da veracidade da transacção - cfr. entre outros, Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte de 24-01-2008, processo n.º 01834/04 Viseu, de 24-01-2008, processo n.º 2887/04 Viseu, de 27-01-2011, processo n.º 455/05.7BEPNF e de 18-03-2011, processo n.º 456/05BEPNF.[3]
De notar que a administração tributária não precisa de demonstrar a falsidade das facturas, bastando-lhe evidenciar a consistência daquele juízo (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27-10-2004, processo n.º 810/04), invocando factos que traduzem uma probabilidade elevada de as operações referidas nas facturas serem simuladas, probabilidade elevada capaz de abalar a presunção legal de veracidade das declarações dos contribuintes e dos dados constantes da sua contabilidade - artigo 75.º da Lei Geral Tributária.
No mesmo sentido de que a AT não precisa de demonstrar a falsidade das faturas, bastando-lhe invocar factos que traduzem uma probabilidade elevada de as operações referidas nas faturas serem simuladas, probabilidade essa capaz de abalar a presunção legal de veracidade das declarações dos contribuintes e dos dados constantes da sua contabilidade, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, proferido em 11.04.2014, no processo n.º 00142/08.4BEBRG.
À AT compete tão só “reunir e demonstrar factos que, interpenetrados e apreciados com recurso às regras da experiência, permitam concluir que às faturas visadas não correspondem operações reais, efectivas” (Acórdão TCA-Norte de 01-03-2007 - Proc. 00027/00).
Nesse pressuposto, nos presentes autos, incumbia à Requerente demonstrar o preenchimento dos requisitos subjectivos para que pudesse haver lugar à dedução do IVA pago com as facturas dos serviços efectuados em imóvel de que não é proprietária e que não se encontra afecto à sua actividade, o que esta não logrou fazer.
Estão, assim, reunidos indícios suficientes que traduzem uma probabilidade séria e elevada de se estar perante uma pratica abusiva, com o objectivo de obtenção de uma vantagem fiscal, traduzida na dedução de imposto superior ao imposto liquidado, cimentada em relações especiais entre a Requerente e os seus gerentes, como alega a Requerida.
Pelo que se entende que deve improceder o presente pedido arbitral, considerando-se legais as liquidações em crise, mantendo-se as mesmas na ordem jurídica.
V – DECISÃO
Termos em que se decide:
-
Julgar improcedente o pedido arbitral formulado;
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Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.
VI - VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 10.692,67 (dez mil, seiscentos e noventa e dois euros e sessenta e sete cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VII - CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918,00 (novecentos e dezoito euros), nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, uma vez que o pedido foi improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 20 de Junho de 2024
O Árbitro,
Cristina Aragão Seia
[1] Vide, a título de exemplo, CAAD processo n.º 767/2016 – T ou o processo n.º 307/2017-T, entre outros.
[2] Vide, entre outros, Acórdão de 22 de Dezembro de 2010, Dankowski, C-438/09, n.ºs 22 e 23.
[3] No mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, processo n.º 2283/11.1BELRS, de 15 de Dezembro de 2021 – Publicado DR de 15-12-2021, com o seguinte sumário:
“I - Sobre a administração tributária recai o ónus de provar que reúne os pressupostos legais que a habilitam a proceder às correcções de IVA, nos termos do artigo 74.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (LGT), cabendo-lhe demonstrar a factualidade que abala a presunção de veracidade das declarações do contribuinte, prevista no artigo 75.º, n.º 1 da LGT.
II - Cumprido este ónus probatório, recai sobre o contribuinte o ónus da prova dos factos que alegou como fundamento do seu direito a deduzir o imposto nos termos do disposto no artigo 19.º, n.º 3 do CIVA, ou seja, o ónus de demonstrar que as transacções tituladas pelas faturas apresentadas são verdadeiras e reais e, por conseguinte, tem direito a proceder à dedução do respetivo imposto”.