Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 741/2023-T
Data da decisão: 2024-06-26  IRS  
Valor do pedido: € 342.912,71
Tema: IRS. Cláusula Geral Antiabuso. Reclamação graciosa. Juros compensatórios.
Versão em PDF

Sumário:

I – A aplicação da cláusula antiabuso depende de uma apreciação casuística, havendo que ponderar a atuação concreta imputável ao sujeito passivo em função das circunstâncias de facto que possam ser tidas como assentes;

II – Nas circunstâncias do caso, o único efeito prático da venda cruzada de ações entre sócios e da ulterior alienação da totalidade das ações, por parte do Requerente à sociedade C..., por preços unitários muito díspares, e sem qualquer explicação lógica, foi apenas o de permitir a redução do imposto a pagar por via da transmissão de participações sociais;

III – Nesse contexto, subsistem factos indiciários suficientes para considerar que o conjunto articulado de operações, não tendo tido um objetivo que se torne justificável no plano da racionalidade económica e da atividade empresarial, teve o único propósito de obstar à tributação em sede de IRS dos rendimentos de capitais, havendo fundamento bastante para a declaração de ineficácia dos negócios jurídicos em aplicação da cláusula geral antiabuso a que se refere o artigo 38.º, n.º 2, da LGT.

IV - Uma reclamação graciosa, enquanto ato de segundo grau, não pode ser objeto de pedido arbitral com base em vícios próprios da decisão de indeferimento, sendo o meio processual próprio para esse efeito a impugnação judicial através do processo judicial tributário, nos termos de artigo 97.º, n.º 1, alínea c), do CPPT.

V – Para efeito da aplicação dos juros compensatórios, nos termos do artigo 35.º da LGT, o retardamento da liquidação por facto imputável ao sujeito passivo ocorre, não apenas quando as declarações de imposto sejam apresentadas fora dos prazos legais, mas também quando a falta seja detetada no âmbito de um procedimento inspetivo.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

Acordam em tribunal arbitral

 

 

I – Relatório

 

1. A..., com o NIF..., e seu cônjuge B..., com o NIF ..., residentes na ..., vêm requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade dos atos de liquidação adicional de IRS e juros compensatórios referentes ao período de tributação de 2018,  no valor total de 342.912,71€, bem como da decisão de deferimento parcial da reclamação graciosa contra eles deduzidos, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto pago acrescido de juros indemnizatórios.

Fundamentam o pedido nos seguintes termos.

Os Requerentes foram alvo de inspeção tributária relativamente ao período de tributação de 2018, em sede de IRS, que culminou com aplicação de cláusula geral anti abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT, que teve por base um conjunto de negócios por si celebrados e de que resultou a liquidação adicional de IRS e de juros compensatórios.

 

Tendo deduzido reclamação graciosa contra os atos de liquidação, a impugnação foi deferida apenas parcialmente no que se refere a um erro de cálculo do imposto, no montante de € 105,44, e dos juros compensatórios, no valor de € 25.256,05.

 

A Requerente alega a ilegalidade da liquidação por vícios de procedimento resultantes da demora injustificada da inspeção tributária e ultrapassagem do seu prazo máximo de duração, em violação do artigo 36.º do RCPITA, e ilegal dupla inspeção externa, em violação do artigo 63.º, n.º 4, da LGT, assim como a caducidade do direito à liquidação, o vício de falta de fundamentação e a violação do disposto no artigo 38.º da LGT por errada interpretação e aplicação da norma aos factos relevantes.

 

Os Requerentes imputam ainda ilegalidades atinentes ao deferimento parcial da reclamação graciosa e consideram que não há lugar à liquidação de juros compensatórios, na medida em que o retardamento do pagamento do imposto não é imputável ao contribuinte, e consideram que a aplicação dos juros sancionatórios, a que se refere o artigo 38.º, n.º 6, da LGT, viola o princípio da não retroatividade em matéria fiscal, bem como os princípios ne bis in idem, da igualdade e da capacidade contributiva.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, impugna toda a matéria de facto alegada na petição inicial que esteja em contradição com os factos assentes no Relatório de Inspeção Tributária e considera que esse Relatório, que serviu de base aos atos de liquidação, se encontra fundamentado de forma clara, suficiente e congruente, permitindo a apreensão das razões de facto e de direito que justificaram a correção.

 

Entende ainda que não se verificam os vícios de procedimento alegados, tendo em conta que as prorrogações ao prazo inicial da inspeção foram adequadas e proporcionais ao objetivo de recolha e análise de informação relevante, e não ocorreu uma duplicação de ações inspetivas externas, uma vez que a primeira ação foi de natureza interna e desenvolveu-se ao abrigo do dever de colaboração do contribuinte sem que este ficasse obrigado a facultar o acesso da inspeção tributária às suas instalações.

 

Alega ainda que também não ocorreu a caducidade do direito à liquidação, na medida a aplicação da cláusula geral antiabuso resulta de um negócio complexo composto por um conjunto sucessivo de atos interligados entre si que tendo o seu início em 2015 só culmina em 2018 com ato de venda das ações à sociedade C..., Lda.

 

Por outro lado, não se verificou qualquer erro de apreensão e aplicação dos factos relevantes para a decisão e a factualidade tida como assente permite considerar preenchidos todos os diferentes pressupostos da cláusula geral antiabuso.

 

A Autoridade Tributária impugna ainda que a reclamação graciosa se encontre ferida de qualquer ilegalidade e acrescenta que, tratando-se de um procedimento de segundo grau, qualquer vício que pudesse afetar o procedimento não se reflete na legalidade do anterior ato de liquidação.

 

Quanto aos juros compensatórios, sustenta-se, na resposta, que a aplicação da cláusula geral antiabuso tem inerente a culpa do contribuinte no planeamento fiscal, mostrando-se justificado, com base na culpa, a aplicação dos juros de natureza sancionatória a que se refere o nº 6 do artigo 38º da LGT. E, por outro lado, não há aplicação retroativa da lei, nem se verificam as inconstitucionalidades invocadas pelos Requerentes, além de que não cabe à Administração o controlo constitucional das normas jurídicas, sendo essa uma função que é assegurada pelo Tribunal Constitucional.

 

Conclui no sentido da improcedência do pedido arbitral.

 

2. No seguimento do processo, foi realizada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, também destinada à prestação de declarações de parte e produção de prova testemunhal, tendo-se determinado, na sequência, a apresentação de alegações escritas facultativas por prazo sucessivo.

 

Em alegações, as partes mantiveram as suas anteriores posições.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 2 de janeiro de 2024.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

4. Consideram-se provados os factos que seguem:

 

  1. Os Requerentes foram alvo de uma ação inspetiva interna em sede de IRS, relativamente ao período de tributação de 2018, com o objetivo de controlo de apuramento de mais-valias, credenciada pelo Despacho DI2019... (documento n.º 2 anexo ao processo administrativo, p. 25/29).
  2. No decurso dessa ação, por ofício da Direção de Finanças de Braga, de 16 de outubro de 2019, foi solicitado ao Requerente A..., ao abrigo do princípio da colaboração, a apresentação de documentos relativos à declaração de rendimentos desse ano (documento n.º 1 anexo ao processo administrativo, p. 308).
  3. Os Requerentes foram alvo de inspeção tributária de natureza externa em sede de IRS, relativamente ao período de tributação de 2018, credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI2021... (documento n.º 1 anexo ao processo administrativo).
  4. O procedimento inspetivo teve início em 21 de junho de 2021 terminando o prazo inicial em 21 de janeiro de 2021, por efeito da suspensão do prazo nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 57.º-A da LGT, e foi objeto de prorrogação por sucessivos prazos de três meses, em 3 de janeiro de 2022 e 6 de abril de 2022, encontrando-se prevista a sua conclusão, por efeito das prorrogações de prazo, para o dia 21 de julho de 2022 (documento n.º 1 anexo ao processo administrativo, pp. 88 e 95).
  5. O primeiro pedido de prorrogação do prazo da ação de inspeção é do seguinte teor:

Relativamente ao procedimento externo de inspeção tributária determinado pela Ordem de Serviço n.º 012021..., venho propor e solicitar a prorrogação do prazo da ação de inspeção por um período adicional de três meses, com fundamento no artigo 36.º n.º 3, alínea a), do RCPITA, e com base nos seguintes factos:

- O procedimento inspetivo iniciou-se em 2021-06-21 através da assinatura da Ordem de Serviço n.º 012021... pelo sujeito passivo, na pessoa de A..., titular do NIF..., pelo que o prazo inicial para conclusão da ação inspetiva terminaria a 2021-12-21.

Contudo. por força da suspensão do prazo do procedimento de inspeção durante o mês de agosto, conforme disposto no n.º 3 do artigo 57.º-A da Lei Geral Tributária (LGT), o mesmo termina a 2022-01-21;

- O sujeito passivo apresenta uma situação tributária de especial complexidade resultante, designadamente, da realização de operações de alienação de participações sociais;

- Em resultado dos atos inspetivos já realizados, foram apurados negócios jurídicos, essencial ou principalmente, dirigidos por meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas à eliminação de incidência do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) que seria devido sem a utilização desses meios, o que se considera que constitui fundamento para proceder à aplicação da disposição legal anti abuso, prevista no n.º 2 do artigo 38º da Lei Geral Tributária (LCT);

- Neste sentido, foi elaborado projeto de relatório, o qual, em 24-11-2021, foi remetido, à DSPCIT, com conhecimento ao gabinete da Senhora Diretora-Geral da AT (GabDG), para que proceda à análise do seu teor e elabore nota técnica sobre a verificação ou não dos pressupostos da CGAA, de acordo com as instruções da E-News 01/2019, de 1 de abril, sob a epígrafe “Tramitação da Cláusula Geral Antiabuso”, e ainda dentro da Fase de Instrução.

Atendendo aos factos descritos, solicita-se a prorrogação da ação de inspeção por um período adicional de três meses, sendo previsível a sua conclusão até 2022-04-21.

Braga, 3 de janeiro de 2022 (documento n.º 1 anexo ao processo administrativo, p. 88).

  1. O segundo pedido de prorrogação do prazo da ação de inspeção é do seguinte teor:

Relativamente ao procedimento externo de inspeção tributária determinado pela Ordem de Serviço n.º 012021..., venho propor e solicitar a prorrogação do prazo da ação de inspeção por um período adicional de três meses, com fundamento no artigo 36.º n.º 3, alínea a), do RCPITA, e com base nos seguintes factos:

- O procedimento inspetivo iniciou-se em 2021-06-21 através da assinatura da Ordem de Serviço n.º 012021... pelo sujeito passivo, na pessoa de A..., titular do NIF..., pelo que o prazo inicial para conclusão da ação inspetiva terminaria a 2021-12-21.

Contudo, por força da suspensão do prazo do procedimento de inspeção durante o mês de agosto, conforme disposto no n.º 3 do artigo 57.º-A da Lei Geral Tributária (LGT), o mesmo termina a 2022-01-21;

- O sujeito passivo apresenta uma situação tributária de especial complexidade resultante, designadamente, da realização de operações de alienação de participações sociais;

- Em resultado dos atos inspetivos já realizados, foram apurados negócios jurídicos, essencial ou principalmente, dirigidos por meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas à eliminação de incidência do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) que seria devido sem a utilização desses meios, o que se considera que constitui fundamento para proceder à aplicação da disposição legal anti abuso, prevista no n.º 2 do artigo 38.º da Lei Geral Tributária (LCT);

- Neste sentido, foi elaborado projeto de relatório, o qual, em 24-11-2021, foi remetido, à DSPCIT, com conhecimento ao gabinete da Senhora Diretora-Geral da AT (GabDG), para que proceda à análise do seu teor e elabore nota técnica sobre a verificação ou não dos pressupostos da CGAA, de acordo com as instruções da E-News 01/2019, de 1 de abril, sob a epígrafe “Tramitação da Cláusula Geral Antiabuso”, e ainda dentro da Fase de Instrução.

- A referida nota técnica foi emitida pela DSPCIT em 2022-03-14, iniciando-se a fase B – Projeto de Relatório de Inspeção Tributária por um segundo período inicial de três meses, das referidas instruções E-News.

Atendendo aos factos descritos, solicita-se a prorrogação da ação de inspeção por um período adicional de três meses, sendo previsível a sua conclusão até 2022-07-21.

Braga, 6 de abril de 2022 (documento n.º 1 anexo ao processo administrativo, p 95).

  1. Os Requerentes foram notificados da primeira prorrogação do prazo da ação inspetiva pelo ofício n.º..., de 3 de janeiro de 2022 (documento n.º 1 anexo ao processo administrativo, p. 89).
  2. Os Requerentes foram notificados da segunda prorrogação do prazo da ação inspetiva pelo ofício n.º..., de 11 de abril de 2022 (documento n.º 1 anexo ao processo administrativo, p. 96).
  3. Os Requerentes foram notificados do projeto de relatório de inspeção tributária para o exercício do direito de audição, por ofício datado de 30 de maio de 2022, e exerceram esse direito por requerimento entrado em 30 de junho de 2022 (documento n.º 1 anexo ao processo administrativo, pp. 97 e 129-143).
  4. O Relatório final de Inspeção Tributária consta do documento n.º 2 anexo ao processo administrativo, que aqui se dá como reproduzido, e é datado de 15 de julho de 2022.
  5. As conclusões do relatório final de inspeção tributária são do seguinte teor:

 

III - 2.1. Correções propostas em IRS

Do exposto e fundamentado ao longo do presente relatório, a correção proposta aos sujeitos passivos A... e B..., assenta na desconsideração dos negócios jurídicos decorrentes da compra e venda simultâneas das ações da F... a D... e mulher, E... .

A alienação direta das ações da ... à sociedade  C..., Lda. é enquadrável na categoria G do IRS, mais-valias, tal como definidas no artigo 10.º do CIRS.

De acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem, designadamente, de alienação onerosa de partes sociais e de outros valores mobiliários.

No que respeita ao momento da tributação, o n.º 3 do artigo 10.º do CIRS, estabelece como regra geral, que os ganhos se consideram obtidos «no momento da prática dos atos previstos no n.º 1». O momento relevante é o da alienação do ativo.

Quanto ao ganho sujeito a imposto, o n.º 4 do referido artigo 10.º do CIRS, define que relativamente -aos factos tributários previstos na alínea b), resulta da diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição.

O valor dos rendimentos considerados mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano.

O valor de aquisição a título oneroso de participações sociais e de outros valores mobiliários não cotados em bolsa de valores corresponde: em princípio, ao custo documentalmente provado, alínea b) do artigo 48.º do CIRS.

O CIRS prevê no n.º 1 do artigo 50.º a correção monetária das mais-valias e menos-valias relativas à alienação de partes sociais, através da aplicação do coeficiente de desvalorização monetária aprovados por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, desde que tenham decorrido mais de 24 meses entre a data da aquisição e a data da alienação.

Quanto ao valor de realização, a regra geral é o valor da contraprestação efetivamente recebida, como resulta da f) do n.º 1 do artigo 44.º do CIRS.

Considerando o exposto, a menos-valia corrigida obtida pelos sujeitos passivos A... e B..., resultante da alienação das 292.250 ações da F..., ascende a 405.650,00 Euros, correspondente ao resultado da diferença entre o valor de realização, 1.461.250,00 Euros, e o valor de aquisição atualizado, 1.866.900,00 Euros.

No quadro seguinte são apresentados os cálculos para efeitos de apuramento da menos-valia obtida decorrente da alienação das ações referidas:

 

Quadro XX — Cálculo da mais-valia

(Valores em Euros)

ALIENAÇÃO ONEROSA DE PARTES SOCIAIS E OUTROS VALORES MOBILIÁRIOS (art.º 10.º, n.º 1, al.b), do CIRS

 

NIF da entidade emitente

Nº ações

Realização

Aquisição

 

 

Ano

Mês

Dia

Valor unitário

Valor Global

Ano

Mês

Dia

Valor unitário

Valor Global

Coeficiente

Valor da Aquisição Atualizado

...

12.250

2018

03

14

5.00

61.250,00

1999

12

27

5,00

81.250,00

1.44

88.200,00

...

280.000

2018

03

14

5.00

1.400.00,00

2004

4

15

5,25

1.470.000,00

1.21

1.778.700,00

SOMA

1.461.250,00

 

1.531.250,00

 

1.866.900,00

 

 

A sociedade F... não reúne os requisitos previstos no anexo ao decreto-lei n.º 372/2007, de 6 de novembro, pelo que o saldo apurado não beneficia da redução para 50% estabelecida no n.º 3 do artigo 43.º do CIRS, para as transmissões onerosas de partes sociais de pequenas empresas não cotadas no mercado regulamentado ou não regulamentado da bolsa de valores.

Os sujeitos passivos declararam no anexo C da declaração de IRS do ano de 2018, quadro 9, linha 9007, a alienação das 292.250 ações da F... em que fizeram menção de que estas entraram no seu património individual à data de 2005-07-27, correspondente à aquisição realizada a D... e mulher, E..., ao valor por ação de 35,00 Euros, pelo montante global de 10.228.750,00 Euros, conforme quadro a seguir:

 

Quadro XXI – Anexo G da declaração de IRS do ano de 2018, quadro 9, linha 9007

 

(Valores em Euros)

ALIENAÇÃO ONEROSA DE PARTES SOCIAIS E OUTROS VALORES MOBILIÁRIOS (art.º 10.º, n.º 1, al.b), do CIRS) – Linha 9007

NIF da entidade emitente

Nº ações

Realização

Aquisição

 

 

Ano

Mês

Dia

Valor unitário

Valor Global

Ano

Mês

Dia

Valor unitário

Valor Global

Coeficiente

Valor da Aquisição Atualizado

...

292.250

2018

03

14

5.00

2.622.500,00

2005

07

27

35

10.228.750,00

1,19

12.172.212,50

SOMA

2.622.500,00

 

10.228.750,00

 

12.172.212,50

 

 

De que resultou o apuramento de uma menos-valia no valor de 9.549.712,50 Euros.

Assim e considerando que os sujeitos passivos exerceram a opção pelo englobamento do saldo das mais e menos-valias previsto no n.º 8 do artigo 72.º do CIRS, propõe-se uma correção ao valor da menos-valia declarada no montante de 9.144.062,50 Euros (9.549.712,50 Euros - 405.650,00 Euros).

  1. Na sequência, os Requerentes foram notificados da liquidação adicional de IRS, com imposto a pagar de € 203.881,53 e juros compensatórios de € 145.261,21, no valor total de € 349.142,74, e da demonstração de juros por aplicação da cláusula geral antiabuso no valor de € 120.005,16 (doc. n.º 1 junto ao pedido arbitral).
  2. Os Requerentes deduziram reclamação graciosa contra os atos de liquidação, por requerimento entrado em 15 de março de 2023 (documento n.º 3 anexo ao processo administrativo, pp. 3-44).
  3. Os Requerentes foram notificados do projeto de decisão da reclamação graciosa, para o exercício do direito de audição, por despacho do chefe de divisão da Unidade dos Grandes Contribuintes, de 31 de julho de 2023 (documento n.º 5 anexo ao processo administrativo, p. 3).
  4. Os Requerentes exerceram o direito de audição por requerimento entrado em 30 de agosto de 2013 (documento n.º 5 anexo ao processo administrativo, pp. 4-9).
  5. A reclamação graciosa foi deferida parcialmente por despacho do Diretor do Serviço Central, de 8 de setembro de 2023, praticado ao abrigo de delegação de competências, e notificado aos Requerentes por ofício datado de 11 de setembro seguinte (documento n.º 6 anexo ao processo administrativo, pp. 11 e 47).
  6. O deferimento parcial da reclamação graciosa refere-se a um erro de cálculo, constante da liquidação 2022 ..., quanto ao valor base do imposto sobre que incide a liquidação de juros compensatórios, que era de € 197.546,06, e não € 197.651,50, correspondendo a uma diferença de € 105,44, e a um erro de cálculo por excesso de juros compensatórios, constante da mesma liquidação, no montante de € 25.256,05 (cfr. informação n.º 198-AIR3/2023, pontos 236/237, que integra o documento n.º 6 anexo ao processo administrativo).
  7. A reclamação graciosa foi indeferida, quanto aos invocados vícios procedimentais, caducidade do direito à liquidação, ilegalidade e inconstitucionalidade dos juros compensatórios, e vício de violação por erro nos pressupostos de facto e de direito na aplicação da cláusula geral antiabuso, com base na informação n.º 198-AIR3/2023, que consta do documento n.º 6 anexo ao processo administrativo, e que aqui se dá como reproduzida.
  8. A... é casado com B... sob o regime de comunhão de adquiridos desde 8 de setembro de 1979.
  9. Em 28 de dezembro de 1999, foi constituída a sociedade anónima G..., SA, tendo por objeto a compra e venda de imóveis, com o capital social de € 250.000,00, representado por 50.000 ações com o valor nominal unitário de € 5.00.
  10. O capital social era detido pelos seguintes acionistas: A..., 12.250 ações representativas de 24,5% do capital social; D..., 12.250 ações representativas de 24,6% do capital social; B..., 12.250 ações representativas de 24/5% do capital social; E..., 12.250 ações representativas de 24,5% do capital social; e sociedade H... SA, 1.000 ações, representativas de 2% do capital social.
  11. Em 20 de dezembro de 2002, foi realizado um aumento de capital da sociedade G... SA, no valor de € 10.970.00, integralmente subscrito pela acionista H... SA.
  12. O capital social de € 11.220,000 passou a estar representado por 2.244.000 ações com o valor nominal de € 5,00, assim distribuído: A..., 12.250 ações, representativas de 0,55% do capital social; D..., 12.250 ações, representativas de 0,55% do capital social; B..., 12.250 ações representativas de 0,55% do capital social; E..., 12.250 ações, representativas de 0,55% do capital social; sociedade H..., SA, 2.195.000 ações, representativas de 97,82% do capital social.
  13. Na referida data de 20 de dezembro de 2002, a sociedade G..., SA passou a designar-se F..., SA.
  14. Em 15 de abril de 2004, A... e D... compraram à sociedade H... SA 220.000 ações da sociedade F..., ao preço unitário de 5,25 Euros.
  15. Na mesma data, B... e E... compraram à sociedade H... SA 280.000 ações da sociedade F..., ao preço unitário de 5,25 Euros.
  16. As aquisições referidas nas antecedentes alíneas Y) e Z) resultaram da deliberação do Conselho de Administração da sociedade H..., SA, de 15 de abril de 2004, pela qual foi aprovada a alienação de 1.000.000 ações, representativas de 44,56% do capital social da sociedade F... .
  17. Em 15 de abril de 2004, o capital social da sociedade F... ficou assim distribuído: A..., 232.250 ações, representativas de 10,35% do capital social; D..., 232.250 ações, representativas de 10,35% do capital social; B..., 292.250 ações, representativas de 13,02% do capital social; E..., 292.250 ações representativas de 13,02% do capital social; sociedade H..., SA, 1.195.000 ações, representativas de 53,25% do capital social.
  18. Em 27 de julho de 2005,  B..., casada com A... em regime de comunhão de adquiridos, alienou a D... 292.250 ações nominativas da sociedade F..., ao preço unitário de € 35,00, pelo montante global de € 10.22.8.750,00 (documento n.º 1 anexo ao processo administrativo, pp. 36-38).
  19. Na mesma data,  E..., casada com D... em regime da comunhão geral de bens, vendeu 292.250 ações da sociedade F..., pelo valor unitário de € 35,00, a A..., no valor global de € 10.228.750,00 (documento n.º 1 anexo ao processo administrativo, pp. 36-38).
  20. Na sequência dessas operações, A... e D... passaram a deter, cada um, 524.500 ações da sociedade F... .
  21. Em 5 de maio de 2006, A... e B... entregaram a declaração de rendimentos de IRS, referente ao ano de 2005, declarando no “anexo G1 - mais-valias não tributadas” a alienação de ações a D... a que se refere antecedente alínea Y), inscrevendo como valor de realização o montante de € 10.228.750,00 e como valor de aquisição o montante de € 1.461.250,00.
  22. Em 14 de março de 2018, A... e B... alienaram à sociedade C..., Lda. 524.500 ações nominativas da sociedade F..., ao preço unitário de € 5,00, no valor global de € 2.622.500,00 (documento n.º 1 anexo ao processo administrativo, pp. 366-367).

HH) A sociedade C..., Lda. foi representada, na operação de transmissão de ações, pelos sócios-gerentes B... e I... (documento n.º 1 anexo ao processo administrativo, pp. 366-367).

II)      Em 26 de junho de 2019, A... e B... entregaram a declaração de rendimentos de IRS referente ao ano de 2018, em que fizeram constar no “anexo G - Mais-valias e outros incrementos patrimoniais” a alienação realizada à sociedade C..., Lda.

KK)  No referido anexo G é feita referência à alienação de 292.250 ações da sociedade F..., em 14 de março de 2018, ao preço unitário de € 5,00, e à aquisição do mesmo número de ações, em 27 de julho de 2005, ao preço unitário de € 35,00.

JJ)  Na liquidação de imposto do ano de 2018 resultou uma menos-valia declarada no montante de € 9.549.712,50.

LL) Em 23 de junho de 2005, A... e B... foram designados para o Conselho de Administração da sociedade F..., com o cargo de vogais, para o quadriénio de 2005-2008.

MM)   Em 14 de maio de 2010, A... e B... foram designados para o Conselho de Administração da sociedade F..., com o cargo de vogais, para o quadriénio de 2009-2012.

  1. Em 17 de outubro de 2013, A... e B... foram designados para o Conselho de Administração da sociedade F..., com o cargo de vogais, para o quadriénio de 2013-2016.

OO)  Os Requerentes apresentaram o Pedido de Pronúncia Arbitral em 18 de outubro de 2023.

 

Factos não provados

 

            O Tribunal não considerou provado que a alienação realizada, em 27 de julho de 2005, pela Requerente B... ao sócio D... de 292.250 ações da sociedade F..., ao preço unitário de € 35,00, e a alienação realizada, na mesma data, por E... ao sócio A... do mesmo número ações da sociedade F..., pelo valor unitário de € 35,00, e a subsequente venda, em 14 de março de 2018, pelos Requerentes à sociedade C... do total de 524.500 ações da sociedade F..., ao preço unitário de € 5,00, tenha tido uma qualquer finalidade patrimonial, económica ou financeira para a sociedade F..., ou se encontrasse justificada por constrangimentos de ordem jurídica entre cônjuges ou pela conveniência de concentrar as participações sociais que A... detinha na F... na sociedade familiar C..., Lda.

 

            Também não se encontra demonstrado que a criação da sociedade C..., Lda. tivesse sido determinada essencialmente por razões empresariais e económicas ou de gestão de participações sociais, de modo a justificar a transmissão para essa entidade das participações sociais que os Requerentes detinham noutras empresas.

 

            Não se encontram suficientemente concretizados, no articulado inicial e na prova documental ou testemunhal produzida, os factos atinentes à aquisição de terrenos no F..., às dificuldades burocráticas colocadas pela Câmara Municipal de Lisboa para a implementação dos investimentos a realizar e à permuta dos terrenos do F... com lotes localizados na ... .   

 

Não existe outra factualidade alegada que não tenha sido considerada provada e que seja relevante para a composição da lide processual.

 

Motivação da matéria de facto

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição inicial e no processo administrativo junto pela Autoridade com a resposta.

 

Os factos das alíneas S) a BB), da alínea EE) e JJ) a OO) da matéria de facto constam do Relatório de Inspeção Tributária elaborado no âmbito da ação inspetiva externa, datado de 15 de julho de 2022, que integra o documento n.º 2 anexo ao processo administrativo. Por outro lado, os Requerentes não questionaram os factos descritos no Relatório de Inspeção Tributária, pelo que as informações dele constantes tem força probatória (artigo 76.º, n.º 1, da LGT e acórdão do TCA Sul de 26 de junho de 2014, Processo n.º 07148/13).

 

Em declarações de parte, a Requerente B..., cônjuge de A..., declarou que era sócia e administradora da sociedade F..., mas não tinha qualquer intervenção ativa, sendo os sócios A... e  D...que geriam a empresa e tomavam as decisões. Foi o seu cônjuge que comunicou à declarante, a certa altura, que teria de vender as ações que ela detinha ao sócio D..., enquanto a esposa deste venderia as suas ações ao sócio A... . 

 

A testemunha J..., sobrinha de A... e B... e que iniciou a sua atividade profissional em 2002, na sociedade H..., reiterou que a tia B... não participava nas decisões da empresa F... e dedicava-se às lides domésticas. Referiu ainda que houve um desentendimento entre os sócios A... e B... na sequência de terrenos no F... e da permuta desses terrenos por dois lotes da ... e que o Requerente A... constituiu a sociedade C..., Lda. para adquirir as participações sociais que detinha em diversas sociedades.

 

 

Cláusula geral antiabuso

 

6. Em debate está, em primeira linha, a questão de saber se os negócios jurídicos decorrentes da vendas simultâneas das ações da F... por B... a D... e por E... , pelo preço unitário de € 35,00, e a ulterior alienação do total das ações que o Requerente A... detinha na F... à sociedade C..., Lda., pelo preço unitário de € 5,00, com a consequente vantagem fiscal relativamente ao apuramento de menos-valias, preenche os pressupostos da aplicação da cláusula geral antiabuso a que se refere o artigo 38.º, n.º 2, da LGT.

 

A referida disposição do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, na redação vigente à data dos factos, declara como “ineficazes, no âmbito tributário, os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”. E, nesse caso, determina que a tributação se efetue de acordo com as normas que seriam aplicáveis se esses meios não tivessem sido utilizados, não se produzindo as vantagens fiscais que se pretendia obter.

 

Segundo assinala Sérgio Vasques, a cláusula geral antiabuso consagrada na LGT é composta de três elementos essenciais. “Em primeiro lugar exige-se a prática de ato ou negócio artificioso ou fraudulento e que exprima abuso das formas jurídicas, no sentido de estarmos perante esquemas negociais que ocultem os seus verdadeiros propósitos e aos quais seja dada uma utilização manifestamente anómala face à prática jurídica comum. Em segundo lugar, exige-se o objetivo único ou principal de através desses esquemas negociais obter uma vantagem fiscal, qualquer que seja a sua natureza, com a marginalização evidente de objetivos económicos reais. Em terceiro lugar, exige-se que da lei resulte com clareza a intenção de tributar os bens em causa, nos mesmos termos em que estes seriam tributados se tivesse o contribuinte recorrido às formas jurídicas e práticas negociais mais comuns” (Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2018, pág. 369).

 

O sentido geral da norma é, nestes termos, o de permitir a desqualificação para efeitos fiscais de um qualquer ato ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte com o único ou principal objetivo de obtenção de uma vantagem fiscal, que possa consubstanciar uma fraude à lei fiscal. O efeito jurídico que resulta do funcionamento da cláusula antiabuso é o de considerar os atos como praticados de acordo com o padrão normal do comércio jurídico para obter o mesmo resultado económico, determinando-se a obrigação tributária em função dos atos equivalentes que pudessem ser praticados.

 

Resulta de todas as precedentes considerações, que a cláusula geral antiabuso se destina a eliminar as vantagens fiscais ilegítimas obtidas na esfera jurídica pelo contribuinte através de atos ou negócios abusivos praticados com o intuito de obviar ao pagamento do imposto que seria devido caso se tivesse recorrido às formas negociais comuns.  

 

A aplicação da cláusula antiabuso depende, por outro lado, de uma apreciação casuística, havendo que ponderar a atuação concreta imputável ao sujeito passivo em função das circunstâncias de facto que possam ser tidos como assentes (cfr. acórdão do TCA Sul de 15 de fevereiro de 2011, Processo n.º 04255/10, e acórdão arbitral proferido no Processo n.º 377/2014).

 

No caso vertente, a vantagem fiscal ilícita que justificou a aplicação da disposição antiabuso traduziu-se na redução da tributação que seria devida na sequência de um conjunto sucessivo de operações societárias que se encontram assim descritas.

 

Em 28 de dezembro de 1999, foi constituída a sociedade anónima G..., SA, com o capital social de € 250.000,00, representado por 50.000 ações com o valor nominal unitário de € 5.00.

 

Os acionistas A... e cônjuge B..., bem como os acionistas D... e cônjuge E... detinham, cada um, 12.250 ações, correspondente à proporção individual de 24,50% do capital social e ao total de 98%, e a sociedade H... SA detinha 1.000 ações, representativas de 2% do capital social.

 

Em 20 de dezembro de 2002, foi realizado um aumento de capital da sociedade G..., no valor de € 10.970.00, integralmente subscrito pela acionista H..., pelo que esta sociedade passou a deter 2.195.000 ações, representativas de 97,82% do capital social, enquanto os restantes acionistas mantiveram-se na posse de 12.250 ações, cada um, representativas de 0,55% do capital social, sendo o valor nominal das ações de € 5,00.

 

Nessa mesma data, a sociedade G... passou a designar-se F..., SA.

 

Em 15 de abril de 2004, A... e D... compraram, cada um, à sociedade H... 220.000 ações da F..., e B... e E... compraram, cada uma, à mesma sociedade 280.000 ações da F..., ao preço unitário de € 5,25.

 

Dessas operações resultou que os acionistas A... e D... passaram a deter, individualmente, 232.250 ações da F... (12.250 ações + 220.000 ações) e as acionistas B... e E... passaram a deter, individualmente, 292.250 ações do capital social da F... (12.250 ações + 280.000 ações), e a sociedade H... passou a deter 1195.000 ações, representativas de 53,25% do capital social da mesma sociedade.

 

 Em 27 de julho de 2005, B... alienou a D... 292.250 ações da sociedade F..., ao preço unitário de € 35,00, e, na mesma data, E...vendeu 292.250 ações da sociedade F..., ao mesmo valor unitário, a A... .

 

O que significou que os acionistas A... e D... passaram a ser titulares, cada um, de 524.500 ações da sociedade F... .

 

Em 14 de março de 2018, A... e B... alienaram à sociedade C..., Lda. 524.500 ações da sociedade F..., ao preço unitário de € 5,00.

 

A sociedade C..., Lda. foi criada pelo Requerente A... com o objetivo de adquirir as participações sociais que este detinha noutras empresas, e na operação de transmissão de ações a sociedade adquirente foi representada pelos sócios-gerentes B... e A... .

 

Importa ainda reter que B..., embora tivesse pertencido ao Conselho de Administração da sociedade F... e fosse sócia gerente da sociedade C..., Lda., não tinha qualquer função ativa na direção dessas empresas e limitava-se a adoptar os procedimentos que fossem indicados pelo cônjuge A... .

 

7. A referência a atos ou negócios jurídicos que podem ser tidos como ineficazes por aplicação da cláusula antiabuso deve ser entendida em sentido amplo, abrangendo quaisquer esquemas negociais que possam considerar-se finalisticamente relacionados e que, por ausência de racionalidade económica, devam ser tidos como visando obviar ao pagamento do imposto que normalmente seria devido. Ademais, as formas negociais que tenham sido utilizadas devem ser aferidas em termos objetivos, a partir da substância económica das transações segundo um padrão de razoabilidade económica e comercial.

 

Não podendo perder-se de vista o sentido geral da Diretiva Antielisião Fiscal (UE) 2016/1164 do Conselho, de 12 de julho de 2016, que sugere que uma montagem (ou série de montagens) será considerada como não genuína na medida em que não coloque em prática um propósito comercial válido baseado em razões que reflitam a realidade económica.

 

No caso, as operações de modificação do capital social levadas a efeito e, em especial, a venda cruzada de ações do cônjuge de A... ao sócio D... e do cônjuge de D... ao sócio A..., ao preço unitário de € 35,00 (quando o valor nominal das ações era de € 5,00), não revela um objetivo suficientemente definido e justificado do ponto de vista financeiro, nem encontra uma explicação bastante na alegada pretensão de concentração do capital social num dos membros do casal, quando as participações sociais já se encontravam na titularidade do casal em razão do regime de bens do casamento, seja o regime de comunhão de adquiridos, aplicável ao Requerente A...,  seja o regime de comunhão geral, aplicável ao sócio D... (artigos 1724.º e 1731.º do Código Civil).

 

Por outro lado, a ulterior venda da totalidade das ações que o Requerente A... detinha na F... à sociedade C... pelo preço unitário de € 5,00 (muito inferior ao preço unitário acordado na venda cruzada de ações), é evidentemente demonstrativo da intenção de obter uma vantagem fiscal no apuramento de menos-valias, na medida em que os Requerentes puderam inscrever na declaração de rendimentos um valor de aquisição, relativamente à operação de 27 de julho de 2005, de € 10.228.750,00 (não atualizado), e um valor de realização, relativamente à operação de 14 de março de 2018, de € 2.622.500,00.

 

Acresce que não se encontra demonstrado que a sociedade C..., que havia sido constituída pelo Requerente A... e de que este era sócio gerente, tenha uma qualquer atividade económica relevante ou de gestão de participações sociais, tendo sido criada, como referiu a testemunha em audiência, para adquirir as ações que o Requerente detinha noutras empresas, sem que tenha sido efetuada qualquer prova da vantagem que a criação de uma empresa, meramente depositária das participações sociais do Requerente, possa vir a ter do ponto de vista empresarial ou operacional. 

 

Como é de concluir, o único efeito prático da venda cruzada de ações entre sócios e da ulterior alienação da totalidade das ações, por parte do Requerente A..., à sociedade C... por preços unitários muito díspares, e sem qualquer explicação lógica, foi apenas o de permitir a redução do imposto a pagar por via da transmissão de participações sociais.

 

Assistiu-se, nestes termos, a uma série de transações por passos (“step transaction”) com um efeito consequencial de obter uma vantagem fiscal que não seria alcançada, total ou parcialmente, sem utilização desses meios.

 

Subsistem, em todo este contexto, factos indiciários suficientes para considerar que o conjunto articulado de operações, não tendo tido um objetivo que se torne justificável no plano da racionalidade económica e da atividade empresarial, teve o único propósito de obstar à tributação em sede de IRS dos rendimentos de capitais, havendo fundamento bastante para a declaração de ineficácia dos negócios jurídicos em aplicação da cláusula geral antiabuso a que se refere o artigo 38.º, n.º 2, da LGT.

 

Nestes termos, o pedido arbitral mostra-se ser improcedente no tocante ao alegado erro de interpretação e aplicação da cláusula geral antiabuso aos factos relevantes.

 

Vícios procedimentais

 

    Demora injustificada do procedimento inspetivo e ilegal dupla inspeção externa

 

8. Os Requerentes começam por invocar os vícios de procedimento resultantes da ultrapassagem do prazo máximo de duração da ação de inspeção tributária, em violação do artigo 36.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA), e da duplicação da inspeção externa, em violação do artigo 63.º, n.º 4, da LGT.

 

No que se refere ao primeiro desses vícios, alegam que a segunda inspeção externa começou em 21 de junho de 2021, foi prorrogada por 3 meses em 5 de janeiro de 2022 e 14 de abril de 2022, com conclusão prevista para 21 de julho de 2022, depois de decorrido o prazo de 12 meses após o início do procedimento. E acrescentam que, mesmo que o prazo inicial de 6 meses e as suas prorrogações tenham natureza meramente ordenadora, no caso não subsiste uma motivação concreta para a prorrogação que seja subsumível  a alguma das circunstâncias descritas no artigo 36.º, n.º 3, da LGT, concluindo que as prorrogações indevidas do procedimento inspetivo  e a ultrapassagem do prazo de 12 meses violam o disposto no artigo 36.º do RCPITA e o seu corolário de reserva de lei e tipicidade, implicando a anulação dos atos de liquidação.

 

O referido artigo 36.º do RCPITA, sob a epígrafe “Início e prazo do procedimento de inspeção”, na parte que mais interessa considerar, tem a seguinte redação:

 

1 - O procedimento de inspeção tributária pode iniciar-se até ao termo do prazo de caducidade do direito de liquidação dos tributos ou do procedimento sancionatório, sem prejuízo do direito de exame de documentos relativos a situações tributárias já abrangidas por aquele prazo, que os sujeitos passivos e demais obrigados tributários tenham a obrigação de conservar.

2 - O procedimento de inspeção é contínuo e deve ser concluído no prazo máximo de seis meses a contar da notificação do seu início.

3 - O prazo referido no número anterior poderá, no caso de procedimento geral ou polivalente, ser ampliado por mais dois períodos de três meses, nas seguintes circunstâncias:

  1. Situações tributárias de especial complexidade resultante, nomeadamente, do volume de operações, da dispersão geográfica ou da integração em grupos económicos nacionais ou internacionais das entidades inspecionadas;

                […]

4 - A prorrogação da ação de inspeção é notificada à entidade inspecionada com a indicação da data previsível do termo do procedimento.

 

Entretanto, o artigo 57.º-A da LGT, aditado pela Lei n.º 7/2021, de 26 de fevereiro, no seu n.º 3, determina que “[S]ão suspensos os prazos relativos ao procedimento de inspeção tributária durante o mês de agosto, para efeitos do artigo 36.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira. Norma essa que se encontrava já em vigor à data em que teve início a ação de inspeção tributária.​

 

Como resulta da matéria de facto dada como assente, o procedimento inspetivo teve início em 21 de junho de 2021 e foi objeto de prorrogação por sucessivos períodos de três meses, em 3 de janeiro de 2022 e 6 de abril de 2022. O prazo inicial, que terminava em 21 de dezembro de 2021, por efeito da suspensão do prazo a que se refere citado o artigo 57.º-A, n.º 3, da LGT, prolongou-se até 21 de janeiro de 2022, e, consequentemente, com as duas prorrogações de prazo por três meses, o termo previsto para a conclusão do procedimento inspetivo passou a recair em 21 de julho de 2022 (alínea D).

 

O relatório final de inspeção tributária é datado de 15 de julho de 2022, pelo que a ação inspetiva se considera concluída dentro do prazo legalmente previsto (alínea J).

 

Acresce que a ampliação do prazo para a conclusão do procedimento inspetivo encontra-se justificada pela especial complexidade da situação tributária do contribuinte, resultante da realização de operações de alienação de participações sociais, e da necessidade de solicitar à Direção de Serviços de Planeamento e Coordenação da Inspeção Tributária (DSPCIT) a elaboração de uma nota técnica sobre a verificação dos pressupostos da Cláusula Geral Antiabuso, e, no caso da segunda prorrogação, para que se tornasse possível a preparação do projeto de Relatório de Inspeção Tributária após a receção da referida nota técnica que apenas foi emitida em 14 de março de 2022 (alíneas E) e F).

 

Por outro lado, os Requerentes foram notificados das prorrogações do prazo do procedimento inspetivo, e, no ofício pelo qual foi notificada a primeira prorrogação, os serviços inspetivos comunicaram que o prazo inicial apenas terminava em 21 de janeiro de 2022, por efeito da suspensão do prazo a que se refere o artigo 57.º-A, n.º 3, da LGT, pelo que os Requerentes não podiam sequer invocar o desconhecimento de que o termo prazo prorrogado apenas ocorria em 21 de julho de 2022 (alíneas G) e H).

 

Não se verifica, por conseguinte, o alegado vício de procedimento com base na violação do artigo 36.º do RCPITA, sendo inconsequente a invocação dos princípios de reserva de lei e da tipicidade e a pretendida anulação dos atos de liquidação com esse fundamento.

 

9. Os Requerentes invocam uma ilegal dupla ação de inspeção externa, em violação do disposto no artigo 63.º, n.º 4, da LGT, por considerarem que a primeira inspeção realizada ainda em 2019, qualificada como interna, não pode ser entendida como tal, porquanto a Administração não se limitou a analisar os elementos e informações que detinha em seu poder, mas solicitou ao contribuinte, ao abrigo do princípio de colaboração, a entrega de outros documentos e, nesse caso, a inspeção não preenche os requisitos do artigo 13.º, alínea a), do RCPITA, que caracteriza uma inspeção como interna quando os atos de inspeção se efetuem exclusivamente nos serviços da administração.

 

É esta a questão que cabe agora analisar.

 

O RCPITA distingue, nos artigos 12.º, 13.º e 14.º, entre os diversos tipos de procedimento inspetivo, consoante os fins e o lugar do procedimento e o seu âmbito e extensão, explicitando no artigo 15.º, n.º 1, que os fins e a extensão do procedimento de inspeção podem ser alterados durante a sua execução mediante despacho fundamentado da entidade que o tiver ordenado.

 

No que se refere ao lugar do procedimento de inspeção, o artigo 13.º do RCPITA, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 36/2016, de 1 de julho, dispõe nos seguintes termos:

 

Quanto ao lugar da realização, o procedimento pode classificar-se em:

a) Interno, quando os atos de inspeção se efetuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos por esta detidos ou obtidos no âmbito do referido procedimento;

b) Externo, quando os atos de inspeção se efetuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.

 

Na redação originária, o procedimento era classificado como interno “quando os atos de inspeção se efetuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos”. A nova versão da alínea a) resultante do Decreto-Lei n.º 36/2016 aditou o inciso “por esta detidos ou obtidos no âmbito do referido procedimento”.

 

E como resulta do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 36/2016, com essa alteração pretendeu-se clarificar que “o procedimento de inspeção interno compreende a análise formal e de coerência dos documentos detidos pela Autoridade Tributária ou Aduaneira ou obtidos no âmbito do referido procedimento”.

 

Torna-se claro, com a nova formulação, que o legislador pretendeu incluir no procedimento interno, não apenas a análise de documentos que se encontrem na disponibilidade da Administração, mas também a análise daqueles que tenham sido obtidos no decurso do procedimento inspetivo.

 

O que distingue, por conseguinte, o procedimento interno do procedimento externo é apenas a circunstância de, neste último caso, os atos de inspeção se realizarem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.

 

No caso vertente, a Autoridade Tributária desencadeou em relação aos Requerentes uma ação inspetiva interna em sede de IRS, relativamente ao período de tributação de 2018, e, no decurso do procedimento, solicitou ao sujeito passivo, ao abrigo do princípio da colaboração, a apresentação de documentos relativos à declaração de rendimentos desse ano (alíneas A) e B) da matéria de facto). Por outro lado, nos termos do disposto no artigo 59.º, n.º 1, da LGT, os órgãos da administração tributária e os contribuintes estão sujeitos a um dever de colaboração recíproco.

 

Como resulta com evidência do já anteriormente exposto, não é o facto de o contribuinte ter entregue documentos que lhe foram solicitados pela Administração que converte um procedimento interno num procedimento de natureza externa, visto que, em qualquer caso, estamos perante documentos obtidos no âmbito do procedimento, sem que implicasse a realização de qualquer ato de inspeção no exterior. A diligência realizada pela Administração enquadra-se, por conseguinte, no âmbito de um procedimento interno, pelo que não verificou uma duplicação de procedimentos externos, nem foi violado o disposto nos artigos 63.º, n.º 4, da LGT e 13.º do RCPITA.

 

Caducidade do direito à liquidação

 

10. Alegam ainda os Requerentes que a aplicação da norma antiabuso, a que se refere o artigo 63.º do CPPT, na redação anterior à Lei 64-B/2011, de 30 de dezembro de 2012, estava dependente da abertura de procedimento próprio a efetuar no prazo de 3 anos a contar do início do ano civil seguinte “ao da realização do negócio jurídico objeto das disposições anti abuso”. E, no presente caso, o negócio anómalo e abusivo que originou a aplicação da cláusula geral antiabuso foi celebrado em 27 de julho de 2005, traduzindo-se na venda cruzada de ações da sociedade F..., pelo que, segundo a lei então vigente, a Autoridade Tributária teria de abrir um procedimento próprio, no prazo de 3 anos, isto é, até ao final de 2008. Assim sendo, o direito à liquidação com base na CGAA caducou em 1 de janeiro de 2009.

É esta a questão que cabe agora analisar.

 

No artigo 63.º, n.º 3, do CPPT, na redação da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, estabelecia-se um prazo de três anos a contar do início do ano civil seguinte ao da “realização do negócio jurídico objeto das disposições antiabuso” para a abertura do procedimento próprio destinado à aplicação de disposição antiabuso. A atual redação resultante da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, deixou de fazer referência a esse prazo.

 

No entanto, a referida disposição do artigo 63.º, n.º 3, do CPPT não poderia deixar de ser entendida em conjugação com o artigo 38.º, n.º 2, da LGT, e mesmo na redação então vigente, este preceito declarava como ineficazes, no âmbito tributário, “os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos”. Como se deixou já anteriormente exposto, a referência a atos ou negócios jurídicos que podem ser tidos como ineficazes por aplicação da cláusula antiabuso deve ser entendida em sentido amplo, abrangendo quaisquer esquemas negociais que possam considerar-se finalisticamente dirigidos a obviar ao pagamento do imposto que normalmente seria devido.

 

 

Neste sentido, a referência a ato ou negócio jurídico objeto da aplicação das disposições antiabuso, constante do artigo 63.º, n.º 3, do CPPT, na redação da Lei n.º 64-A/2008, não pode ser entendida como um único ato ou negócio jurídico, mas como o conjunto de atos ou negócios jurídicos que articuladamente permitiram obter de modo artificioso uma vantagem fiscal.

 

E nesse mesmo sentido, o artigo 38.º da LGT, na redação introduzida pela Lei n.º 32/2019, de 3 de maio, que reforça o combate às práticas de elisão fiscal, identifica como negócios jurídicos passíveis de serem desconsiderados para efeitos tributários, as “construções ou séries de construções” que sejam realizadas com abuso das formas jurídicas ou não sejam consideradas genuínas (n.º 2), e que poderão ser constituídas “por mais do que uma etapa ou parte” (n.º 3, alínea b)).

 

No caso, a venda cruzada de ações do cônjuge de A... ao sócio D... e do cônjuge de D... ao sócio A..., ao preço unitário de € 35,00, ocorrida em 27 de julho de 2005, só se revela como um negócio fraudulento ou abusivo quando enquadrado com a ulterior venda, em 14 de março de 2018, da totalidade das ações que o Requerente A... detinha na F... à sociedade C... pelo preço unitário de € 5,00, sendo esse conjunto complexo de negócios que permitiu obter uma vantagem fiscal no apuramento de menos-valias. Isso sem ignorar que se não se encontra demonstrado que a sociedade C..., que havia sido constituída pelo Requerente A... e de que este era sócio gerente, tenha uma qualquer atividade económica relevante ou de gestão de participações sociais, que não fosse a própria aquisição das ações que o Requerente detinha noutras empresas. 

 

Em todo este contexto, não pode considerar-se verificada a caducidade do direito à liquidação, porquanto o esquema negocial adotado pelo contribuinte com o propósito de obter um ganho fiscal, a que se torna aplicável a cláusula geral antiabuso a que se refere o artigo 38.º, n.º 2, da LGT, apenas se concluiu em 2018 com a alienação das ações à sociedade C... .

 

Falta de fundamentação

 

11. Os Requerentes invocam ainda o vício de falta de fundamentação, com base no disposto no artigo 77.º da LGT e 63.º, n.º 3, do CPPT, por considerarem que a fundamentação do Relatório de Inspeção Tributária é contraditória e insuficiente na vertente quantitativa da liquidação do imposto devido, por não identificar, em substância, o negócio abusivo que originou a aplicação da cláusula geral antiabuso, e ainda por não ser possível compreender o teor exato do relatório pela sua extensão e quanto ao enquadramento factual dos negócios relacionados com a sociedade F... .

Como é entendimento jurisprudencial corrente, a fundamentação do ato tributário é um conceito relativo que varia conforme o tipo de ato e as circunstâncias do caso concreto, sendo que a fundamentação é suficiente quando permite a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do ato para proferir a decisão, isto é, quando aquele possa conhecer as razões por que o autor do ato decidiu num certo sentido e não de forma diferente.

 

No caso vertente, o Relatório de Inspeção Tributária contém as conclusões da ação inspetiva, que constitui o documento n.º 2 anexo ao processo administrativo, em que pormenoriza a evolução da estrutura societária da sociedade G... (depois designada F...) e a composição da sua administração (ponto III – 1.1.2.), descreve os factos em que assenta a aplicação da cláusula geral antiabuso (ponto III – 1.1.7.), efetua o enquadramento da cláusula geral antiabuso mediante a subsunção da factualidade descrita nos diversos requisitos que constam do artigo 38.º, n.º 2, da LGT (ponto III – 1.1.2.) e analisa os critérios a que se refere o artigo 63.º, n.º 3, do CPPT para efeito da fundamentação da decisão de aplicação da disposição antiabuso (ponto III – 1.3.1.). O relatório conclui com as correções propostas em IRS em consequência da aplicação da cláusula geral antiabuso (ponto III – 1.4).

 

Por sua vez, o procedimento inspetivo, que consta do documento n.º 1 anexo ao processo administrativo, inclui os diversos trâmites procedimentais e a documentação atinentes aos negócios jurídicos realizados, a que se faz referência detalhada na matéria de facto constante do ponto 4. da presente decisão.

 

O relatório não é um documento extenso ou prolixo ou de difícil compreensão, e qualquer interessado pode compreender, com rigor, quais foram os factos que conduziram à aplicação da cláusula geral antiabuso e quais as razões de ordem jurídica que permitiram enquadrar os factos descritos na disposição antiabuso.

 

Havendo de concluir-se que o Relatório não enferma de vício de falta de fundamentação, e a eventual existência de qualquer erro ou lapso material no apuramento da matéria tributável não pode caracterizar, em si, um vício de falta de fundamentação.

 

Nestes termos, julga-se improcedente o alegado vício de forma.

 

Ilegalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa

 

12. Os Requerentes imputam diversas ilegalidades ao próprio de indeferimento expresso parcial da reclamação graciosa deduzida contra o ato de liquidação.

 

A reclamação graciosa, constituindo uma garantia procedimental do contribuinte, corresponde a um procedimento de segundo grau, visando a reapreciação da legalidade do ato impugnado, permitindo que a Administração possa ainda tomar uma posição definitiva sobre a questão antes de o interessado poder suscitar um litígio judicial.

 

No entanto, o objeto do processo do pedido de pronúncia arbitral ou de impugnação judicial referente a um ato de liquidação de tributos, ainda que apresentado na sequência de uma reclamação graciosa, é esse próprio ato tributário de liquidação, e não a decisão da Administração Tributária que tenha incidido sobre a impugnação administrativa, pelo que os vícios que lhe poderão imputados são os atinentes à própria legalidade do ato de liquidação (acórdão do STA de 18 de maio de 2011, Processo n.º 0156/11).

 

Nesse sentido, uma reclamação graciosa, enquanto ato de segundo grau, apenas poderá ser objeto de arbitragem tributária, na medida em que comporte a ilegalidade dos atos de liquidação, e não por vícios próprios do ato de indeferimento da reclamação graciosa, sendo os vícios próprios não cabem no âmbito material da arbitragem tributária, tal como se encontra definida no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT (cfr. Serena Cabrita Neto/Carla Castelo Trindade, Contencioso Tributário, vol. II, Coimbra, 2017, pág. 434). 

 

Assim se compreende que as decisões de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas possam ser objeto impugnação judicial através do processo judicial tributário, nos termos de artigo 97.º, n.º 1, alínea c), do CPPT, permitindo-se que, através desse meio processual, haja lugar à impugnação da decisão da reclamação graciosa com base em vícios próprios (neste sentido, acórdão do STA de 2 de abril de 2009, Processo n.º 0125/09).

   

Não há, por conseguinte, que tomar conhecimento das ilegalidades imputadas ao indeferimento expresso da reclamação graciosa.

 

Juros compensatórios

 

13. Os Requerentes pretendem ainda a anulação da liquidação de juros compensatórios, alegando que atuaram de boa-fé e na convicção de que não efetuaram quaisquer negócios com abuso de formas jurídicas, pelo que o retardamento do pagamento do imposto não se ficou a dever a uma atuação culposa que seja imputável ao contribuinte.

 

Consideram ainda que a aplicação de juros sancionatórios no ato de liquidação, a que se refere o artigo 38.º, n.º 6, da LGT, violam o princípio da não retroatividade em matéria fiscal, bem como os princípios constitucionais ne bis in idem, da igualdade e da capacidade contributiva.

 

Analisando a primeira das questões suscitadas, importa ter presente o artigo 35.º da LGT, que, sob a epígrafe “Juros compensatórios”, na parte relevante, é do seguinte teor:

 

1 - São devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária.

2 - São também devidos juros compensatórios quando o sujeito passivo, por facto a si imputável, tenha recebido reembolso superior ao devido.

3 - Os juros compensatórios contam-se dia a dia desde o termo do prazo de apresentação da declaração, do termo do prazo de entrega do imposto a pagar antecipadamente ou retido ou a reter, até ao suprimento, correção ou detecção da falta que motivou o retardamento da liquidação.

4 - Para efeitos do número anterior, em caso de inspeção, a falta considera-se suprida ou corrigida a partir do auto de notícia.

5 - Se a causa dos juros compensatórios for o recebimento de reembolso indevido, estes contam-se a partir deste até à data do suprimento ou correção da falta que o motivou.

6 - Para efeitos do presente artigo, considera-se haver sempre retardamento da liquidação quando as declarações de imposto forem apresentadas fora dos prazos legais.

 7 - Os juros compensatórios só são devidos pelo prazo máximo de 180 dias no caso de erro do sujeito passivo evidenciado na declaração ou, em caso de falta apurada em ação de fiscalização, até aos 90 dias posteriores à sua conclusão. 

8 - Os juros compensatórios integram-se na própria dívida do imposto, com a qual são conjuntamente liquidados.

9 - A liquidação deve sempre evidenciar claramente o montante principal da prestação e os juros compensatórios, explicando com clareza o respetivo cálculo e distinguindo-os de outras prestações devidas.

[…].

 

Como resulta, desde logo, do n.º 1 agora transcrito, há lugar ao pagamento de juros compensatórios quando se verifique o retardamento da liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido por facto imputável ao sujeito passivo, assumindo uma função essencialmente ressarcitória que se destina a compensar o Estado pelo atraso na liquidação quando seja culpa do contribuinte.

 

Assim se explica que os juros compensatórios, como prevê o n.º 7, apenas sejam contados pelo prazo máximo de 180 dias no caso de erro na declaração do sujeito passivo ou até aos 90 dias posteriores à conclusão de ação de fiscalização, quando a falta seja apurada no âmbito de um procedimento inspetivo, pois o atraso na liquidação não pode continuar a ser imputado a partir daí ao contribuinte, resultando antes da inércia da Administração (cfr. Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2915, pág. 423).

 

Por outro lado, o artigo 35.º da LGT evidencia que o retardamento da liquidação é imputável ao sujeito passivo, não apenas quando as declarações de imposto forem apresentadas fora dos prazos legais (n.º 6), mas também quando a falta seja detetada no âmbito de um procedimento inspetivo, caso em que os juros compensatórios contam-se desde o termo do prazo de apresentação da declaração até ao suprimento, correção ou deteção da falta que motivou o retardamento da liquidação, considerando-se a falta suprida ou corrigida, em caso de inspeção, a partir do auto de notícia (n.ºs 3 e 4).

 

No caso em análise, a correção tributária que originou a liquidação adicional de imposto resultou da declaração de ineficácia dos negócios jurídicos realizados pelos Requerentes, que visavam a redução do imposto a pagar, na sequência do procedimento inspetivo que se destinou a apurar a factualidade relevante relativamente ao apuramento de menos-valias, pelo que não pode deixar de entender-se que o retardamento da liquidação é imputável ao contribuinte, na medida em que foram esses negócios jurídicos declarados ineficazes que permitiram evitar a tributação normalmente devida com base na declaração de rendimentos referente a 2018.

 

Sendo o retardamento da liquidação imputável ao contribuinte há lugar ao pagamento de juros compensatórios.

 

14. Os Requerentes entendem ainda que a aplicação do disposto no n.º 6 do artigo 38.º da LGT, quanto a juros sancionatórios, na liquidação impugnada, violam o princípio da não retroatividade em matéria fiscal, bem como os princípios ne bis in idem, da igualdade e da capacidade contributiva.

 

Como é sabido, o controlo difuso da constitucionalidade pelos tribunais é normativo, incidindo sobre uma norma ou interpretação normativa que tenha sido aplicada em decisão judicial ou em ato administrativo, competindo à parte suscitar de modo processualmente adequado a questão de constitucionalidade que se pretende ver apreciada (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).

 

A suscitação processualmente adequada da questão implica a precisa delimitação do seu objeto, mediante a especificação da norma, segmento normativo ou a dimensão normativa que se entende ser inconstitucional (acórdãos n.ºs 450/06, 21/06, 578/07, 131/08), não bastando a imputação da inconstitucionalidade aos próprios atos jurídicos que são objeto de impugnação judicial.

 

O sistema de fiscalização da constitucionalidade previsto no artigo 277.º da Constituição incide sobre as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados, enquanto os atos administrativos, não dispondo de conteúdo normativo, encontram-se subtraídos ao controlo direto de constitucionalidade, cabendo aos particulares sindicar os mesmos atos através do contencioso de anulação, cumprindo o pressuposto de legitimidade, ou seja, o ónus de suscitação de modo processualmente adequado da questão de constitucionalidade (cfr. Carlos Blanco de Morais, Justiça Constitucional, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, págs. 512 e 515).

 

Tendo-se limitado os Requerentes a imputar os vícios de inconstitucionalidade à correção tributária no concernente aos juros compensatórios, e não à norma ou interpretação normativa que entendem terem sido aplicadas em violação da Lei Fundamental, não há que tomar conhecimento de qualquer dessas questões.

 

 

Reembolso do imposto e juros indemnizatórios

 

15. Sendo de julgar improcedente o pedido arbitral, fica prejudicado o conhecimento dos pedidos acessórios de condenação no reembolso das quantias pagas e no pagamento de juros indemnizatórios.

 

III – Decisão

Termos em que se decide:

  1. Julgar improcedente o pedido arbitral e manter os atos de liquidação de IRS e juros compensatórios impugnados, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra eles deduzida;
  2. Não tomar da questão de inconstitucionalidade suscitada;
  3. Julgar prejudicado o conhecimento dos pedidos acessórios de condenação no reembolso das quantias pagas e no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 342.912,71, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 5.814,00, que fica a cargo dos Requerentes.

 

Notifique.

 

Lisboa, 26 de junho de 2024,

  

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

 

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

 

Vasco Guimarães

 

A Árbitro vogal

 

Clotilde Celorico Palma