Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 710/2023-T
Data da decisão: 2024-06-20   Outros 
Valor do pedido: € 35.800,75
Tema: Contribuição do Serviço Rodoviário. Competência do Tribunal. Imprescindibilidade da identificação do acto de liquidação. Ineptidão da petição.
Versão em PDF

SUMÁRIO

  1. A Contribuição do Serviço Rodoviário é um tributo que contraria a Directiva 2008/118 relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo porque, pré-existindo um imposto sobre os produtos petrolíferos (o ISP), o Estado português apenas poderia fazer incidir novo imposto sobre os mesmos produtos se este tivesse em vista motivos específicos, o que não acontece porque não existe uma relação directa entre a utilização das receitas e as invocadas finalidades de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental.
  2. O tribunal arbitral é competente para conhecer do pedido de pronúncia sobre o indeferimento tácito do pedido de revisão dos actos tributários de liquidação da Contribuição do Serviço Rodoviário, uma vez que este tributo deve ser tratado como imposto para efeitos da Portaria 112-A/20111 de 22.3, por não haver um nexo específico entre o benefício emanado da actividade pública titular da contribuição (a Intraestruturas de Portugal, SA) e os sujeitos passivos (as empresas comercializadoras de combustíveis), desaparecendo, por isso, a natureza de contribuição financeira.
  3. A não identificação dos actos de liquidação da CSR cuja devolução é pedida resulta na ineptidão da petição por ficar por demonstrar a existência desses actos e o efectivo pagamento do tributo, o que impossibilita também a demonstração da repercussão e da verificação da tempestividade do pedido de revisão oficiosa em que assenta o pedido de pronúncia arbitral.

 

DECISÃO ARBITRAL

O árbitro Rui M. Marrana designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, decide o seguinte:

 

Relatório

1.A..., L.da., sociedade por quotas com sede na Rua ..., n.º ..., ... ... – Leiria, com o NIPC: ... veio requerer, ao abrigo do disposto no art. 10.º do DL 10/2011, de 20.1 (Regime da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT) e dos art.os 1.º e 2.º da Portaria 112-A/2011, de 22.3 a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir o respectivo pedido de pronúncia sobre o indeferimento tácito do pedido de Revisão dos actos tributários de liquidação da Contribuição do Serviço Rodoviário (CSR), apresentado em 13 e Março de 2023, incidente sobre as facturas, nos termos do art. 78.º da LGT, respeitantes ao ano de 2019, no valor total de 35.800,75 €.

2.É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por AT ou Requerida.

3.Em 10 de Outubro de 2023 o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT.

4.Ainda antes da constituição do tribunal, a AT apresentou - em 25 de Outubro de 2023 - um requerimento no qual solicitava que a Requerente identificasse os actos de liquidação cuja legalidade pretende ver sindicada, tendo o Ex.mo Presidente do CAAD, nessa data, determinado o envio do mesmo ao tribunal arbitral a constituir, por ser o órgão competente para a sua apreciação.

5.De acordo com o preceituado nos art.os 5.º/3 a), 6.º/2 a) e 11.º/1 a) do RJAT, o Ex.mo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.

6.O Tribunal Arbitral ficou constituído em 20 de Dezembro de 2023.

7.Em 2 de Fevereiro de 2024 a Requerida apresentou Resposta, com defesa por excepção e impugnação, juntando o processo administrativo.

8.Em 9 de Fevereiro de 2024 a AT requereu a junção ao processo da decisão proferida no processo 332/2023-T, na qual se discutiu matéria similar àquela que é objecto dos presentes autos. Por despacho de 20 de Fevereiro foi concedido à Requerente um prazo de dez dias para se pronunciar sobre o teor desse requerimento, tendo esta, em 6 de Março de 2024, juntado requerimento no qual se pronunciou sobre as excepções invocadas na Resposta.

9.Em 8 de Maio de 2024 foi proferido despacho dispensando a reunião prevista no art. 18.º do RJAT, facultando às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem, alegações escritas, sendo, para o efeito, concedido um prazo de 10 dias simultâneos.

10.A Requerente apresentou as suas alegações em 17 de Maio de 2024 e a Requerida em 20 de Maio de 2024.

Posição da Requerente

11.A Requerente adquiriu em 2019 combustíveis necessários à sua actividade comercial (exploração florestal, limpeza de matas, comércio de madeiras e seus derivados em bruto e serradas, serração de madeira e fabrico de artigos de madeira, prestação de serviços de silvicultura e agricultura), cujas facturas junta, as quais incluíam o valor de ISP e CSR, por ter o mesmo sido incluído pelas empresas que introduziram os combustíveis em questão no consumo (e que pagaram à AT esses tributos) e que lhos vieram a fornecer, directa ou indirectamente.

12.Considerando que a liquidação e cobrança da CSR pela AT é ilegal, por ser incompatível com a Directiva 2008/118, tal como foi expressamente afirmado pelo TJUE no seu despacho de 7.2.2022 (proc. C-460/21), a Requerente apresentou em 13 de Março de 2023 um pedido de revisão oficiosa dos actos tributários incidentes sobre as facturas de combustíveis por si adquiridas em 2019, por repercussão sobre si do valor da CSR (no caso, de 111 € por cada 1000 litros de gasóleo, nos termos do art. 4.º/2 da Lei 55/2007 de 31.8, na redacção introduzida pela Lei 82-B/2014 de 31.12, o que equivaleu a 35.800,75 € no período em questão).

13.Tendo terminado o prazo de quatro meses para os Serviços Alfandegários se pronunciarem em 12 de Julho de 2023, por aplicação do disposto no art. 57.º da LGT, o pedido de pronúncia arbitral apresentado em 10 de Outubro de 2023 é tempestivo, por surgir nos 90 dias contados da formação do indeferimento tácito do pedido de revisão dos actos tributários (art. 10.º/1 a) RJAT).

14.Trata-se, por outro lado, de um verdadeiro imposto - e já não de uma mera taxa ou contribuição, pois inexiste qualquer contraprestação - pelo que o tribunal arbitral é competente para apreciar o pedido, nos termos dos art. 1.º e 2.º da Portaria 112-A/2011 de 22.3 e do art. 4.º/1 do RJAT, tal como vem reconhecendo maioritariamente a jurisprudência do CAAD (por todos v. decisões nos processos 629/2021-T, 305/2022-T, 665/2022-T e 24/2023-T).

15.Assim, cabia à AT recusar as liquidações e cobranças de CSR por invocação do art. 1º da Directiva 2008/118 já que não se mostram reunidos os motivos específicos previstos no n.º 2 deste normativo comunitário (não sendo suficientes, para o efeito, meros objectivos orçamentais, tendentes à obtenção de receita, como é o caso da CSR), tal como vem sendo afirmado na jurisprudência do CAAD (por todos v. proc. 304/2022-T) e do STA (ac. 12.12.2001 proc. 026487).

16.Não o fazendo haverá erro imputável aos serviços, verificando-se, assim, os fundamentos e pressupostos para a anulação dessas liquidações.

17.A ilegalidade das liquidações e o indeferimento tácito do pedido de revisão justificam a anulação dos mesmos, impondo o reembolso dos montantes pagos e dos correspondentes juros indemnizatórios, nos termos do art. 42.º/3 LGT.

Posição da Requerida

18.A AT defende-se por excepção e por impugnação.

19.Em matéria de excepção a AT começa por arguir a incompetência do tribunal em razão da matéria.

20.Essa incompetência decorrerá de duas circunstâncias: desde logo do facto de a CSR não configurar um imposto (sendo, assim excluída da arbitragem voluntária) e, por outro lado, por o pedido suscitar uma questão referente à apreciação da legalidade de todo o regime jurídico da CSR (extravasando a competência dos tribunais arbitrais que se circunscreve a um mero contencioso de anulação).

21.Quanto à natureza da CSR, a Requerida, contrariando a argumentação da Requerente, lembra que a sua vinculação à jurisdição dos Tribunais arbitrais ocorre nos termos da Portaria 112-A/2011, de 22.3, sendo que no objecto desta vinculação definido pelo art. 2.º se refere a apreciação das pretensões relativas a impostos. Apenas impostos, portanto, deixando de fora outras contribuições ou tributos, como é o caso da CSR.

22.Sobre a incompetência a da Instância arbitral no que concerne à impugnação de contribuições financeiras, cita, a título exemplificativo, diversas decisões arbitrais (de 04-09-2019, 14-10-2019, 08-112019, 07-02-2020, 12-07-2021 e 01-10-2021, no âmbito dos processos 182/2019-T, 138/2019-T, 123/2019-T, 248/2019-T, 714/2020-T e 585/2020-T).

23.Quanto ao entendimento específico de a CSR não configurar um imposto, a AT justifica-o no facto de o legislador não ter enquadrado a CSR nesse conceito, tal como é referido no art. 4.º da LGT. Cita a propósito alguma jurisprudência do CAAD nos proc.os 305/2022-T, 508/2023-T e 372/2023-T, salientando a posição do Conselheiro Lopes de Sousa no proc. 31/2023-T que encontra no regime definido na Portaria 112-A/2011 um intuito claramente restritivo, o que imporá uma leitura no mesmo sentido.

24.Nestes termos (encontrando-se a CSR excluída da arbitragem tributária por força do disposto nos art.os 2.º e 3.º do RJAT e art. 2.º da Portaria 112-A/2011, pelas quais a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais se reporta apenas à apreciação de pretensões relativas a impostos, não abrangendo os tributos que devam ser qualificados como contribuição, não se encontra verificada a arbitrabilidade do thema decidendum), não são os tribunais arbitrais do CAAD materialmente competentes para conhecer do mérito do pedido em apreço, o que prejudica o conhecimento do mérito da causa.

25.Além disso, como se referiu anteriormente, a AT entende que a incompetência material do tribunal em razão da matéria decorre também do facto de o pedido de pronúncia arbitral visar a não aplicação da CSR, o que supõe a apreciação genérica da sua legalidade, extravasando a competência da instância arbitral enquanto contencioso de mera anulação,

26.Tal como tem sido reconhecido em diversos processos (212/2020-T, 707/2019-T, 131/2019-T e 117/2021-T).

27.A incompetência do tribunal arbitral configurará uma excepção dilatória nos termos dos art.os 576.º/1 e 577.º a) do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ao presente processo por via do art. 29.º/1 e) do RJAT, por força do que o tribunal deverá absolver a Requerida da instância.

28.A AT invoca, despois, a ilegitimidade da Requerente.

29.Essa ilegitimidade decorrerá, desde logo, do facto de a repercussão da CSR não configurar uma repercussão legal, mas apenas uma repercussão meramente económica ou de facto, que depende da decisão dos sujeitos passivos, de, no âmbito das suas relações comerciais (ao abrigo do direito civil) procederem, ou não, à transferência, parcial ou total, da carga fiscal para outrem (os seus clientes), tendo em conta a política de definição dos preços de venda e as consequências para a sua actividade dessa alteração do preço.

30.Assim, as facturas não corporizam actos de repercussão, antes titulando actos de compra e venda de combustíveis, sendo que o valor pago a título de CSR pelo sujeito passivo de ISP/CSR, pode, ou não, ter sido repercutido, no preço pago pelo adquirente ou adquirentes dos combustíveis.

31.De facto, a mera venda do combustível não dá obrigatoriamente lugar a uma repercussão. E mesmo que esta se verifique (total ou parcialmente), os clientes do sujeito passivo de ISP/CSR, enquanto operadores económicos que desenvolvem uma actividade comercial/empresarial e que utilizam os combustíveis como factores de produção no circuito económico (de uma cadeia de comercialização de bens ou prestação de serviços), procuram, também eles, repercutir nos preços praticados todos gastos em que incorrem, por forma a concretizarem o objectivo lucrativo da sua actividade económica.

32.Esse será, o caso da Requerente que terá naturalmente procurado repercutir nos consumidores finais dos serviços por si praticados o encargo suportado em sede de CSR.

33.Por isso mesmo, as facturas apresentadas não corporizam actos de repercussão de CSR, nem atestam que tal tributo tenha sido efectivamente suportado pela Requerente enquanto consumidor final, não tendo, por isso esta legitimidade para requerer a anulação das liquidações e a devolução da CSR.

34.É certo que a parte final do art. 18.º/4 a) da Lei Geral Tributária (LGT) reconhece o direito de reclamar, recorrer, impugnar ou apresentar pedido de pronúncia arbitral, nos termos das leis tributárias, a quem, embora não sendo sujeito passivo do imposto, suporte por repercussão legal o encargo tributário.

35.Todavia, só a efectiva repercussão legal do imposto  legitima o pressuposto processual positivo do interesse em agir, que se transfere do repercutente para o repercutido. 

36.Diversamente, havendo repercussão meramente económica ou de facto, o repercutido não tem qualquer direito que possa exercer, directamente, contra o sujeito activo da relação jurídica tributária, sendo que os meios de que dispõe, designadamente, para solicitar o reembolso de quantias indevidamente pagas, devem ser exercidos contra o sujeito passivo da concreta relação jurídico-tributária (ac. STA 28.10.2020, proc. 0581/17.0BEALM), tal como vem reconhecendo a jurisprudência do CAAD (cf. proc. 408/2023-T e 375/2023-T).

37.Acresce que, no âmbito dos impostos especiais de consumo (IEC) as disposições especiais previstas no respectivo código prevalecem sobre as normas gerais previstas na LGT e no CPPT. Ora, nos termos do art. 15.º do Código do Impostos Especiais sobre o Consumo (CIEC) apenas podem solicitar o reembolso do imposto pago, os sujeitos passivos referidos no art. 4.º/1 e 2 a) que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo imposto.

38.Nesse mesmo sentido, aliás, o art. 78.º/1 LGT dispõe que  a revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser efectuada por iniciativa do sujeito passivo […], ou, por iniciativa da administração tributária - o que corrobora o estabelecido no CIEC quanto ao titular do direito de revisão do acto tributário.

39.Não se encontrando tal direito incluído na esfera jurídica do repercutido económico ou de facto, não pode, portanto, a entidade em quem alegadamente teria sido repercutido o imposto apresentar pedido de revisão ou de reembolso por erro.

40.A admitir-se a condenação da AT à restituição dos montantes a qualquer interveniente na cadeia de comercialização dos combustíveis (como é o caso da Requerente) por alegadamente os ter suportado, a título de CSR, tornaria possível que o reembolso de uma única liquidação desse tributo pudesse ser exigido por tantos quantos os integrantes nessa cadeia.

41.A Requerida não é o sujeito passivo de CSR porque não introduziu no consumo os produtos petrolíferos em causa, não sendo, por isso, parte da relação tributária subjacente às liquidações contestadas.

42.Também não demonstra ter efectuado qualquer pagamento a título de CSR já que as cópias das facturas juntas ao processo e a respectiva listagem não fazem disso qualquer prova, pois limitam-se a referir o valor de IVA associado a cada venda sem qualquer tipo de informação relevante para a identificação das DIC e respectivas liquidações de ISP/CSR a montante.

43.Ora, a haver repercussão, esta seria meramente económica – tal como de referiu anteriormente – pelo que a Requerente não beneficiaria de qualquer presunção probatória, cabendo-lhe, portanto, a prova de tais factos (o que é aliás referido no despacho do TJUE de 7.2.2022 no proc. C-420/21, que é invocado como base da pretendida ilegalidade da CSR) – cf. proc. 408/2023-T e 375/2023-T.

44.Não fazendo prova de tais factos a Requerente não pode considerar-se sujeito passivo de CSR pelo que não tem legitimidade para a acção arbitral tributária em questão, nos termos do art. 18.º/3 e 4 a) da LGT, sempre carecendo de legitimidade substantiva - o que consubstancia uma excepção peremptória, nos termos e para o efeito do disposto nos artigos 576.º/1 e 3 e 579.º do CPC, aplicáveis ex vi do art. 29.º/1 e) do RJAT, devendo a Requerida ser absolvida do pedido.

45.A AT invoca ainda uma terceira excepção: a ineptidão da petição, por falta de objecto.

46.Isso resulta de não estarem identificados os actos tributários objecto do pedido, conforme determina o art. 10.º/2 b) do RJAT – questão que, aliás, havia referido logo no requerimento apresentado ainda antes da constituição do tribunal (cf. supra § 4) – sendo que, se não dispunha da documentação necessária para o efeito, cabia-lhe especificar suficientemente os actos em causa e solicitar essa documentação, sob pena de indeferimento da petição (art. 429.º, 146.º/2 b) do CPT).

47.A Requerente limita-se a afirmar que a B... e a C... lhe forneceu combustível e que terão sido estas entidades que, na qualidade de operadora económica e sujeito passivo de CSR, terão procedido à introdução no consumo dos produtos petrolíferos, cujas declarações deram origem aos actos de liquidação conjunta de ISP, CSR, sem, no entanto, identificar quaisquer liquidações de CSR praticadas pela administração tributária e aduaneira nem as Declarações de Introdução no Consumo (DIC) alegadamente submetidas pelas suas fornecedoras de combustíveis.

48.Não tendo procedido à identificação dos actos nem solicitado no momento adequado a documentação que os comprovasse (sendo certo que a mera indicação de facturas de aquisição não permite a esta identificar as correspondentes liquidações que terão sido efectuadas pelos sujeitos passivos de ISP), o pedido arbitral é inepto.

49.Além disso, a Requerente não justificou nem provou que a fornecedora repercutiu sobre si a totalidade ou parte do CSR alegadamente pago.

50.Não identificando o acto ou actos tributários objecto do pedido arbitral, a Requerente compromete irremediavelmente a finalidade do pedido, já que deixa de ser possível sindicar a respectiva legalidade.

51.A petição é, assim, inepta por não identificar o acto tributário, violando o requisito do art. 10.º/2 b) do RJAT, o que determina a nulidade de todo o processo, e, obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância, nos termos dos art.os 186.º/1, 576.º/1 e 2, 577.º b) e 278.º/1 b), do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º do RJAT, devendo, consequentemente, determinar-se a nulidade de todo o processo e a absolvição da Requerida da instância

52.A Requerida prossegue invocando, depois, a caducidade do direito de acção, a qual decorrerá da falta de indicação dos actos de liquidação, o que impede a aferição da tempestividade do pedido de revisão oficiosa das liquidações, já que o prazo de 4 anos previsto no art. 78.º/1 da LGT conta-se a partir do termo do prazo de pagamento do imposto, tendo por referência a data do acto de liquidação.

53.Ora a tempestividade da apresentação do pedido arbitral decorre da tempestividade do pedido de revisão, o que, face à não identificação dos actos tributários, é impossível.

54.De qualquer forma, tudo leva a crer que, o pedido de revisão oficiosa e, consequentemente, o pedido arbitral, são intempestivos, por se referirem a aquisições ocorridas durante o ano de 2019, o que implica que em 14.3.2023 se encontrava amplamente ultrapassado o prazo da reclamação graciosa de cento e vinte dias a contar do termo do prazo do pagamento do ISP/ CSR, previsto no artigo 78.º/1 da LGT.

55.Será por isso que a Requerente fundamenta os pedidos de revisão oficiosa em erro dos serviços a estes imputável, de modo a fazer valer-se do prazo de quatro anos previsto no artigo 78.º/1 da LGT. No entanto, estando a Requerida vinculada ao princípio da legalidade e efectuado toda e qualquer liquidação em estrita observância dos normativos legais em vigor e aplicáveis à data dos factos, não existe qualquer erro imputável aos serviços.

56.E, ainda que assim se não entendesse, aplicando-se o prazo de caducidade de quatro anos previsto no artigo 78.º/1, 2ª parte, da LGT, teria sempre de se considerar verificada a  caducidade, pelo menos, relativamente a todas as situações relacionadas com as  aquisições de combustíveis efectuadas após 14.03.2019.

57.Por outro lado, ainda, os pedidos de reembolso apresentados nas alfândegas devem ser apreciados à luz do disposto nos art.os 15.º a 20.º do CIEC, pelo que - a acrescer ao facto de a Requerente não ser um sujeito passivo de ISP/CSR e ao facto de não lograr provar o pagamento dos respectivos valores - em 14.3.2023 já teria largamente terminado o prazo de três anos para requerer o reembolso do valor pago por alegada repercussão económica de CSR durante o ano de 2019.

58.Donde, à impossibilidade de verificação da tempestividade do pedido de revisão oficiosa e de reembolso por alegado pagamento de valores a título de alegada repercussão económica da CSR – e, consequentemente, da tempestividade do pedido arbitral – acresce a caducidade do direito de acção da Requerente, o que consubstancia uma excepção peremptória, devendo, nessa medida, a Requerida ser absolvida do pedido (cf. art.os 576.º/3 e 579.º do CPC, ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT).

59.A Requerida refere-se ainda à falta de pagamento dos valores a título de CSR por parte da Requerente, dado esta não ter provado qualquer repercussão do pagamento do imposto referido, não se sabendo também, nem havendo como saber, se a Requerente abasteceu efectivamente, com gasóleo rodoviário, adquirido aos indicados fornecedores, para utilizar no âmbito e para o exercício da sua actividade comercial, nem que quantidades de combustível adquiriu, e que foram introduzidas e, consequentemente, consumidas, nem qual o valor efectivamente pago pela Requerente pela aquisição de gasóleo rodoviário durante o ano de 2019, já que esta não fornece qualquer informação a esse respeito, nomeadamente como e a que título efectuou o alegado pagamento, quando é que alegadamente o fez, de que conta bancária terão sido retirados os alegados montantes em causa e a que entidade terão sido entregues  onde e em que quantidades adquiriu a gasolina e o gasóleo rodoviário e onde/quais as viaturas em que foram introduzidos e, consequentemente, consumidos.

60.Note-se que não se sabe, nem tem como se saber, qual o valor efectivamente pago pela Requerente pela alegada aquisição de 17.558,58 litros de gasóleo no período em questão, pois não comprova qualquer informação a esse respeito, nomeadamente como e a que título efectuou o alegado pagamento, quando é que e como alegadamente o fez.

61.Não tendo a Requerente feito prova de que efectivamente ocorreu repercussão económica nem de que, nessa sequência, efectuou o pagamento e, consequentemente, suportou o valor da CSR (cabendo-lhe produzir essa prova nos termos do art. 74.º/1 da LGT) estamos perante uma excepção peremptória, nos termos e para o efeito do disposto no art. 576.º/1 e 3 do CPC, aplicável ao presente processo por via do artigo 29.º/1 e) do RJAT, devendo a Requerida ser absolvida do pedido.

62.Respondendo, depois, por impugnação, a AT insiste no facto de a Requerente não fazer prova de que pagou e suportou integralmente o encargo do pagamento da CSR por repercussão (quando esse ónus recaía sobre si, nos termos do art. 74.º da LGT, não ocorrendo qualquer inversão desse ónus, como parece pretender a Requerente)

63.Alega a Requerente que, durante o ano de 2019, adquiriu 322.529,30 litros de gasóleo rodoviário, à B... e à C..., e que aquelas fornecedoras de combustíveis repercutiram nas respectivas facturas a CSR correspondente a cada um desses consumos, tendo (a Requerente), por conseguinte, suportado, na íntegra, a CSR, com a aquisição do referido combustível, no montante total de 35.800,75 €.

64.Sucede que a Requerente não faz prova do que alega, designadamente sobre o facto de ter adquirido e pago combustível e, consequentemente, ter suportado o encargo do pagamento da CSR por repercussão.

65.Essa prova nem sequer é admissível a posteriori, nem tem sentido a pretensão de que a regra geral prevista no art. 342.º/1 do Código Civil (CC), imponha à AT fazer a prova da não repercussão, no sentido aliás, aliás, do que vem sendo afirmado pela jurisprudência quando, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, explica que a maior complexidade da prova de factos negativos necessitará de ter como resultado uma menor exigência probatória por parte do magistrado, mas não uma inversão do ónus da prova (cf. ac. do STA de 17.12.2008, proc. 0327/08),

66.Sendo que a inversão do ónus da prova (art. 344.º CC) apenas ocorre quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, ou convenção válida nesse sentido, e, de um modo geral, sempre que a lei o determine ou quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado - situações que não se verificam no caso em concreto.

67.Não sendo provado o pagamento não pode exigir-se a sua devolução (e menos ainda o pagamento de juros indemnizatórios).

68.A Requerida questiona ainda que do Despacho de 7.2.2022 do TJUE (proc. C-460/21) resulte inequívoca a ilegalidade da CSR, não havendo também jurisprudência nacional nesse sentido, agindo a AT no estrito cumprimento dos normativos europeus e nacionais.

69.Assim, ao contrário do afirmado pela Requerente, entende a AT que existiu e existia à data dos factos, um vínculo intrínseco entre o destino da CSR e o motivo específico que levou à sua criação, nomeadamente a diminuição da sinistralidade rodoviária (e não apenas um fim orçamental).

70.É, aliás, a própria jurisprudência do TJUE (ac. 20.10.2011, proc. C-94/10) que admite que um Estado-Membro se possa opor a um pedido de reembolso de um imposto indevido, apresentado pelo comprador sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais.

71.A concluir, a AT. insiste que os documentos apresentados, não sustentam os factos invocados no pedido arbitral,  nomeadamente que o valor pago pelo combustível que a Requerente adquiriu, tem incluído parte ou a totalidade da CSR paga pelo sujeito passivo de ISP/CSR, e  questiona a assunção automática dessa inclusão pela Requerente.

72.Assim, ao limitar-se a aplicar à quantidade de litros fornecidos e constantes das facturas do seu fornecedor, a taxa de CSR que se encontrava em vigor às datas das mesmas, a Requerente esquece que nos termos do art. 91.º do CIEC, a unidade tributável dos produtos petrolíferos e energéticos (e consequentemente da CSR) é de 1000 l convertidos para a temperatura de referência de 15°C, o que supõe a certificação da medição da temperatura na descarga do combustível adquirido (temperatura ambiente), sem o que será impossível determinar a unidade tributável para efeitos de determinação da CSR e consequentemente, saber qual a eventual parte da CSR incluída no preço pago pelo combustível adquirido.

73.Por outro lado, ainda, a Requerente, enquanto empresa que se dedica, entre outras, à actividade de transporte rodoviário de mercadorias (CAE principal), solicitou, nessa qualidade, o reembolso parcial de imposto para o gasóleo profissional ao abrigo do art. 93º-A do CIEC, tendo-lhe sido concedido esse benefício. De facto, durante o ano de 2019, foi transferido para a Requerente o valor total de  € 5.689,02 a título de reembolso de CSR, ao abrigo do regime de reembolso parcial de imposto para o gasóleo profissional (art. 93º-A do CIEC).

Posição da Requerente relativamente às excepções

74.Respondendo à excepção da incompetência do tribunal, a Requerente remete para as considerações produzidas no pedido arbitral.

75.Relativamente à excepção da ineptidão do pedido por falta de objecto, a Requerente considera que as facturas juntas têm implícito o pagamento da CSR que foi repercutido sobre si, já que se trata de compras efectuadas na vigência da Lei 55/2007 de 31.8, não sendo possível a identificação específica dos actos de liquidação.

76.Sobre a sua pretendida ilegitimidade, a Requerente assume ter sido repercutida da CSR não tendo simultaneamente repercutido esses valores sobre o preço final dos seus produtos e serviços.

77.Recusa ainda que o mero risco de duplicação nos reembolsos – cujo controlo sempre caberia à AT – permita à Requerida escusar-se à devolução, sob pena de enriquecimento ilícito.

78.Finalmente, em relação à caducidade do direito de acção a Requerente, remete para o alegado na petição e para o decidido no ac. STA de 14.3.2012, no proc. 01007/11.

79.Recorda que, tal como é afirmado na doutrina, os produtos petrolíferos estão voltados para a repercussão sobre o consumidor final, cabendo à AT prestar as informações necessárias que permitam conferir os elementos essenciais do processo.

Alegações

80.Nas alegações a Requerente considerou suficientemente documentada a repercussão da CSR, considerou evidente a natureza de imposto desta e remeteu para as peças anteriormente juntas.

81.Também a Requerida manteve tudo o que havia referido na Resposta, insistindo que a jurisprudência do CAA vem convergindo no reconhecimento da incompetência deste tribunal arbitral (proc.os 31/2023-T, 372/2023-T,  508/2023-T, 520/2023-T, 675/2023-T, 876/2023-T).

82.Sublinha ainda que, mesmo considerando a competência do tribunal arbitral para a apreciação da ilegalidade dos actos de liquidação de ISP/CSR, nunca poderia o tribunal arbitral pronunciar-se sobre actos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos dos actos de liquidação de ISP/CSR, que não são actos de tributários nem correspondem a uma repercussão legal, mas a uma repercussão meramente económica (conforme o decidido nos processos 296/2023-T, 332/2023-T, 375/2023-T, 408/2023-T, 438/2023-T, 466/2023-T, 467/2923-T, 490/2023-T e 633/2023-T).

83.Também sobre a ilegitimidade processual e substantiva da Requerente, a Requerida acrescenta ao anteriormente afirmado que esse entendimento vem sendo acolhido na jurisprudência do CAAD (proc.os 296/2023-T, 332/2023-T, 375/2023-T, 408/2023-T, 438/2023-T, 466/2023-T, 467/2023-T, 490/2023-T, 537/2023-T, 604/2023-T,  633/2023-T e 681/2023-T).

84.Lembra ainda que, em matéria de ineptidão da petição inicial, foram produzidas novas decisões (364/2023-T e 467/2023-T).

85.Por impugnação, a Requerida insiste também na falta de prova do pagamento de CSR e de repercussão (referindo ainda as decisões recentes nos proc.os 359/2023-T, 363/2023-T e 790/2023-T).

 

Saneamento

86.O tribunal foi regularmente constituído e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e encontram-se regularmente representadas (v. art.os 4.º e 10.º/2 do RJAT e art. 1.º da Portaria 112-A/2011, de 22.3).

87.Não foram identificadas nulidades ou questões que obstem ao conhecimento do mérito, remetendo-se o tratamento das excepções para a análise da matéria de Direito.

 

Matéria de facto

Factos provados

88.Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes:

  1. A Requerente é uma sociedade comercial portuguesa que se dedica à exploração florestal, limpeza de matas, comércio de madeiras e seus derivados em bruto e serradas, serração de madeira e fabrico de artigos de madeira, prestação de serviços de silvicultura e agricultura.
  2. Durante o ano de 2019 a Requerente adquiriu à B... e à C... 17.568.58 litros de gasóleo.
  3. A Requerente não é operadora económica detentora do estatuto IEC de destinatário registado, concedido ao abrigo e nos termos do regime previsto no CIEC, aprovado pelo DL 73/2010, de 21.6.
  4. Alegando ter sido integralmente repercutido sobre si o montante de 35.800,75 €, de CSR, através das facturas emitidas pela B... e C..., a Requerente apresentou em 13.3.2023 um pedido de revisão oficiosa, com vista à anulação das referidas liquidações de CSR, e dos consequentes actos de repercussão consubstanciados nas facturas emitidas por essas fornecedoras de combustíveis.
  5. Esse pedido foi tacitamente indeferido.
  6. Em 10 de Outubro de 2023 a Requerente apresentou no CAAD o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo.

Factos não provados

89.Com relevância para a questão a decidir, ficou por provar (dado o standard de prova estabelecido pelo TJUE no seu despacho de 7.2.2022 no proc. C-460/21, nomeadamente vedando presunções):

  1. Quem, em todo o período de referência, foram efectivos os sujeitos passivos da CSR correspondente ao combustível adquirido pela Requerente.
  2. Quais os valores de CSR liquidados a esses sujeitos passivos, com base nas DIC por eles apresentadas, e os valores de CSR por eles pagos ao Estado.
  3. Que a CSR tenha sido repercutida total ou parcialmente por esses sujeitos passivos sobre a Requerente.
  4. Quais os efeitos económicos de tais repercussões.

Fundamentação da apreciação matéria de facto

90.Os factos elencados supra foram dados como provados, ou não-provados, com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, e nos documentos juntos ao PPA, ao processo administrativo e a requerimentos oportunamente deferidos.

91.Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º/2 do CPPT e art.os 596º/1 e 607º/3 e 4 do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º/1 a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. art.os 13.º do CPPT, 99.º da LGT, 90.º do CPTA e art.os 5.º/2 e 411.º do CPC).

92.Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16.º e) do RJAT e art. 607.º/4 do CPC, aplicável ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT).

93.Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do art. 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607.º/5 do CPC ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT).

94.Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade que se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

95.O tribunal considera que as facturas dos fornecedores de combustível, apresentadas pela Requerente não identificam os originais sujeitos passivos de ISP e de CSR, não podendo aquelas substituir-se a documentos que possam comprovar a liquidação conjunta destes tributos pelos sujeitos passivos: as Declarações de Introdução no Consumo, ou o Documento Administrativo Único/Declaração Aduaneira de Importação ou documentos que, ao menos, permitissem identificar, com um mínimo de certeza, quem foram esses sujeitos passivos originários.

 

Matéria de Direito

96.Reconhece este tribunal que a CSR é um tributo que contraria a Directiva 2008/118 relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo porque, pré-existindo um imposto sobre os produtos petrolíferos (o ISP) o Estado português apenas poderia fazer incidir novo imposto sobre os mesmos produtos se este tivesse em vista motivos específicos (art. 1.º/1 a) e 2 da referida directiva), o que não acontece já que a mera afectação do produto desse tributo ao financiamento da concessionária da rede rodoviária nacional não é suficiente, mesmo se associada à redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental. Isto porque não existe uma relação directa entre a utilização das receitas e essas finalidades, já que o produto da CSR não se destina exclusivamente ao financiamento de operações que supostamente concorrem para a realização desses dois objectivos, não sendo evidente uma real vontade de desencorajar a utilização quer da rede quer dos principais combustíveis rodoviários, pelo que subsiste uma finalidade puramente orçamental.

97.As directivas, como é sabido, são actos através dos quais os órgãos competentes da União impõem aos Estados-membros a transposição do respectivo regime, ou seja, a adopção de actos subsequentes que adeqúem a sua ordem jurídica às regras por elas fixadas.

98.Por não se dirigirem aos particulares, entende-se genericamente que não podem ser invocadas por estes como tendo criado direitos na respectiva esfera jurídica (não têm, portanto, efeito directo).

99.A jurisprudência europeia reconheceu, todavia, uma excepção (ac. 17.12.70 SACE, proc. 33/70): tratando-se de disposições precisas e incondicionais de directivas, a não transposição destas (ou a transposição incorrecta) no prazo por elas estabelecido, permite aos particulares invocá-las contra entes públicos (efeito directo vertical), já que, caso contrário, esses entes estaria a retirar vantagem de um incumprimento das obrigações gerais face ao Direito da União, privando esses mesmos particulares de direitos que teriam sido constituídos na sua esfera jurídica se a transposição tivesse ocorrido nos termos previstos.

100.Essa será a situação em apreço: a proibição constante do art. 1.º da Directiva 2008/118 pode ser invocada pela Requerente para arguir a ilegalidade dos actos de liquidação de CSR que a contrariam, por não se verificarem os necessários motivos específicos.

101.Isso mesmo foi reconhecido explicitamente pelo TJUE – a quem cabe determinar em exclusivo a interpretação do Direito da União (art. 267.º TFUE) – no Despacho de 2.2.2022 (Vapo Atlantic SA c. Autoridade Tributária, proc. C-460/21), nos termos que sumariamente são referidos no § 96.

102.Ora, o Direito da União aplica-se na ordem interna portuguesa nos termos por ele definidos (art. 8.º/4 CRP), sendo que esses termos determinam a sua prevalência sobre o Direito nacional, por força do princípio do primado (ac. 15.07.1964 Costa c. ENEL, proc. 6/64 e  Declaração sobre o primado do direito comunitário, anexa ao TFUE).

103.Neste enquadramento, dúvidas não subsistirão quanto à ilegalidade genérica dos actos de liquidação da CSR.

104.Não obstante, no caso em apreço são arguidas pela AT diversas excepções. A saber: a incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria (por não se tratar de um imposto mas de mera contribuição), a ilegitimidade da Requerente (por não ser o sujeito passivo da CSR mas mero repercutido eventual), a ineptidão da petição inicial (por falta de objecto, dada a não identificação dos actos tributários cuja nulidade é arguida) e a caducidade do direito de acção (por não ser possível efectuar contagem dos prazos dado não haver identificação – e consequentemente data – dos actos de liquidação).

105.Relativamente à pretendida incompetência do tribunal arbitral reconhece-se que a Portaria de vinculação à jurisdição arbitral (Port.ª 112-A/2011 de 22.3) estabelece duas limitações: as pretensões relativas a impostos de entre aquelas que se enquadram na competência genérica dos tribunais arbitrais e a impostos cuja administração esteja acometida à AT. Conclui-se, portanto, que essa vinculação se reporta a qualquer das pretensões mencionadas no art. 2.º/1 do RJAT que respeitem a impostos, com exclusão de outros actos tributários.

106.As contribuições financeiras são tributos com uma estrutura paracomutativa, dirigidas à compensação de prestações presumivelmente provocadas ou aproveitadas pelos contribuintes, distinguindo-se das taxas que são tributos com rigorosamente comutativos e que se dirigem à compensação de prestações efectivas (Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2015, Coimbra, p. 287). Não há dúvidas que se distingam dos impostos.

107.No caso da CSR, esta visa financiar a rede rodoviária nacional (sendo, para esse efeito, afectada à Infraestruturas de Portugal SA, que assume esse encargo), sendo devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre produtos petrolíferos (ISP), aplicando-se o CIEC à sua liquidação, cobrança e pagamento (nos termos do art. 5.º/1 da Lei 55/2007 de 31.8).

108.Dificilmente pode considerar-se a CSR como uma contribuição financeira, já que não tem como pressuposto uma prestação a favor de um grupo de sujeitos passivos por parte de uma pessoa colectiva. Ela é estabelecida a favor da Infraestrururas de Portugal, SA, mas os sujeitos passivos (as empresas comercializadoras de combustíveis) não são os destinatários da actividade dessa empresa (que consiste na concepção, projecto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas – cf. art. 3.º/2 da Lei 55/2007).

109.Inexistindo um nexo específico entre o benefício emanado da actividade pública titular da contribuição (a Intraestruturas de Portugal, SA) e os sujeitos passivos (as empresas comercializadoras de combustíveis), desaparece essa natureza de contribuição financeira, devendo, por isso, ser assumida como um imposto, para efeitos do art. 2.º/1 do RJAT. 

110.Segue-se, nesta questão a orientação maioritária do CAAD, que reconhece na CSR um verdadeiro imposto e, por isso integrando a competência arbitral (por todos, v. proc. 465/2023-T).

111.A AT, ainda sobre a pretendida incompetência do tribunal arbitral, entende que este não poderá conhecer do pedido, por este pretender discutir a legalidade do regime da CSR no seu todo e a sua desconformidade com o Direito da União.

112.Este reparo assenta num evidente equívoco já que, conforme se referiu supra, a efectiva desconformidade da CSR com a Directiva 2008/118 integra a competência do tribunal arbitral, por afectar a validade das liquidações desse tributo, da mesma maneira que essa validade poderia ser afectada por desconformidade com normas de direito interno, dado o regime de vigência do Direito da União.

113.Improcede, portanto, a excepção de incompetência do tribunal.

114.Relativamente às outras excepções invocadas pela Requerida (ilegitimidade da Requerente, ineptidão da petição e caducidade do direito de acção), abordá-las-emos conjugadamente a partir de um elemento que, da análise do processo e da jurisprudência (nem sempre convergente) que vem surgindo na matéria, nos parece determinante: a imprescindibilidade da identificação dos actos tributários impugnados.

115.Essa identificação, conforme se referiu supra (§ 95) não resulta das facturas dos fornecedores de combustível, apresentadas pela Requerente, já que nenhuma referência nelas  surge sobre originais sujeitos passivos de ISP e de CSR (os quais constarão das Declarações de Introdução no Consumo, ou do Documento Administrativo Único/Declaração Aduaneira de Importação ou eventualmente de outros documentos que lograssem tal identificação com um mínimo de certeza).

116.Ora essa identificação é imprescindível já que a pretendida devolução dos montantes pagos em sede de CSR se funda na nulidade do acto de liquidação (que fundamenta o pedido de revisão oficiosa). E se dificilmente pode ser apreciado o vício do acto sem se demonstrar a sua existência, impossível será conferir da sua repercussão efectiva.

117.Assim, defende a Requerente que tendo as compras das mercadorias ocorrido na vigência da Lei 55/2207, a sujeição à CSR seria obrigatória, o que, genericamente se poderia aceitar.

118.Todavia, o que está em questão, mais do que saber se os combustíveis em causa foram ou não presumivelmente sujeitos a CSR, será saber, também, quem terá suportado esse encargo originaria e efectivamente, pois só a partir daí será possível atestar da sua existência e, além disso, conferir se foi efectivamente pago e repercutido na Requerente. 

119.É que, não havendo repercussão legal da CSR, esse efeito não poderá presumir-se, carecendo de prova, a qual depende - novamente - da identificação dos actos tributários de liquidação originários.

120.Chegamos, assim, à ilegitimidade da Requerente, que, não sendo sujeito passivo, mas mero repercutido (eventual) de facto, terá de demonstrar essa repercussão. E a prova desta repercussão só poderá fazer-se a partir do acto tributário da liquidação da CRS. Não sendo o mesmo identificado, impossível se torna a demonstração da repercussão.

121.Atente-se ao facto de que não se afasta a possibilidade de uma eventual repercussão, mas também se não dispensa a sua demonstração, a qual depende - como se referiu - da identificação do acto tributário original de liquidação.

122.Neste ponto, releva o argumento da AT quando salienta o risco de o pedido de devolução de CSR poder ser feito por todos os intervenientes no processo de comercialização dos combustíveis.

123.Esse risco só é controlável na medida em que, sendo identificado o acto ou actos tributários originais de liquidação, possa ser conferida a efectiva repercussão do imposto, a qual determinará o titular do direito à sua devolução, com exclusão dos demais (na medida em que tenham repercutido, a montante e não tenham sido repercutidos, a jusante, se surgirem no referido processo).

124.Neste ponto, será excessivo pretender que seja a AT a identificar os actos tributários em causa por força de um dever genérico de colaboração. Esse dever não pode equivaler (como parece pretender a Requerente) a uma verdadeira inversão do ónus da prova. E, por outro lado, nada impede que o consumidor obtenha dos seus fornecedores cópia das declarações de introdução ao consumo (DIC), ou, que estes efectuem essa mesma diligência, caso não tenham sido eles a fazer tal declaração.

125.Atente-se, finalmente, a que a referida imprescindibilidade da identificação do acto tributário se justifica ainda enquanto elemento essencial para a conferência dos prazos relevantes.

126.De facto, a contagem do prazo para o pedido de revisão oficiosa (e subsequentemente para a apresentação do pedido arbitral), dependem da identificação do acto tributário. Sem este será impossível fazer-se a necessária conferência. Trata-se, mais uma vez, de um elemento de prova cuja produção que compete ao interessado.

127.Nestes termos, entende o tribunal que, a imprescindibilidade da identificação do acto tributário cuja declaração de nulidade é requerida faz com que a inexistência dessa identificação torne a petição inepta por falta de objecto (art. 186.º e 576.º/2 do CPC ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT) - para além de conduzir simultaneamente à ilegitimidade da Requerente, tornando ainda impossível conferir da tempestividade do exercício do direito de revisão do acto e do pedido arbitral (art. 576º/2 e 3 e 577.º a)  ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT).

128.A procedência das excepções impede o conhecimento da demais matéria da presente acção arbitral.

 

Decisão

Em face do supra exposto, decide-se

  1. Considerar totalmente improcedente o pedido por procedência das excepções de ineptidão da petição, ilegitimidade da parte e caducidade do direito de acção, com as consequências legais;
  2. Condenar a Requerente no pagamento integral das custas do presente processo.

 

Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em 35.800,75 € (trinta e cinco mil e oitocentos euros e setenta e cinco cêntimos) nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º/1 a) e b), do RJAT, e do art. 3.º/2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

Custas

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de 1.836 € (mil oitocentos e trinta e seis euros), a pagar pela Requerente, nos termos dos art.os 12.º/2, e 22.º/4 do RJAT, e art. 4.º/5 do RCPAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 20 de Junho de 2024

 

 

O Árbitro

 

 

Rui M. Marrana

Texto elaborado em computador.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990