Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 717/2023-T
Data da decisão: 2024-06-07   Outros 
Valor do pedido: € 39.008,74
Tema: Contribuição sobre o Sector Rodoviário (CSR). Direito de União Europeia. Competência dos tribunais arbitrais. Ineptidão da petição. Legitimidade.
Versão em PDF

SUMÁRIO:

 

I - Não tendo o Tribunal de Justiça, no Despacho Vapo Atlantic (processo C-460/21) colocado em causa a qualificação da CSR como uma imposição indireta para efeitos do artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE, conclui-se que aquele tributo é um desdobramento do ISP e, como tal, um imposto.

II – Assentando o regime jurídico da CSR num princípio de repercussão legal, as entidades adquirentes de combustível e que suportem o encargo do tributo gozam de legitimidade processual para impugnar judicialmente os atos de liquidação, nos termos do artigo 18.º, n.º 1, a) da LGT.

III – O regime jurídico da Contribuição de Serviço Rodoviário, constante da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, é incompatível com o Direito da União, mormente com artigo l.°, n.° 2, da Diretiva 2008/118/CE.

IV – A repercussão de um imposto – legal ou não – é uma questão de facto, sobre a qual não recai qualquer presunção nem em benefício da AT nem em benefício dos contribuintes. Não ficando a repercussão demonstrada, fica prejudicado o direito à restituição do imposto por parte do adquirente de combustível.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

1. A..., LDA, titular do n.º de identificação fiscal ..., com domicílio fiscal na Rua..., n.º ..., ...-... ... (doravante, Requerente), apresentou, em 09-10-2023, pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em matéria Tributária (doravante, RJAT), com as alterações subsequentes, e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, alterada pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, que vincula vários serviços e organismos do Ministério das Finanças e da Administração Pública à jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa.

 

2. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente pede:

(i) a anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado em 13-03-2023 junto do serviço de finanças de Leiria (documento n.º 01);

(ii) a anulação dos atos de liquidação de CSR subjacentes às faturas de aquisição de combustível referentes ao ano de 2019, identificadas sob os documentos n.ºs 02 a 12;

(ii) a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do montante de €39 008, 74 indevidamente suportado pela Requerente, acrescidos de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º, n.º 1 da LGT.

 

3. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT ou Requerida).

 

4. Em 11-10-2023, o pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT.

 

5. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, al. a) e do artigo 11.º, n.º 1, al. a), ambos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitro do Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo devido. Em 25-10-2023, a Requerida apresentou Requerimento, dirigido ao Exmo. Senhor Presidente do CAAD, solicitando a identificação dos atos de liquidação cuja legalidade a Requerente pretende ver apreciada. A necessidade dessa identificação será analisada infra, por ocasião da defesa por exceção apresentada pela Requerida na sua resposta.

 

6. Foram as partes notificadas dessa designação, em 29-11-2023, não tendo manifestado vontade de a recusar (cf. artigo 11, n.º 1, al. b) e c) do RJAT, em conjugação com o disposto nos artigos 6.º e 7 do Código Deontológico do CAAD), pelo que, ao abrigo da al. c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 20-12-2023.

 

7. Nesse dia, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho, notificado na mesma data, ordenando a notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo e solicitar, querendo, a produção de prova adicional (cf. artigo 17.º do RJAT).

 

8. A Requerida apresentou resposta, em 01-02-2023, remetendo o Processo Administrativo. Em 02-03-2024, o Tribunal arbitral proferiu Despacho conferindo 10 (dez) dias à Requerente para se pronunciar sobre a defesa por exceção deduzida pela AT – o que aconteceu, por requerimento com data de 19-03-2024. Considerando o PPA e a Resposta oferecida pela Requerente, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho, em 03-04-2024, dispensando a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, bem como a produção de alegações escritas. Considerou, todavia, necessário que a Requerente esclarecesse o disposto no ponto 48.º do requerimento de resposta às exceções:

3 - No ponto 48.º desse requerimento, lê-se o seguinte: “Não tendo sido alegadas outras exceções a que cumpra responder, além das já referidas, a reclamante impugna toda a restante matéria constante do requerimento de oposição apresentado pela AT, com exceção da matéria alegada nos artigos 224, e 226, reduzindo-se o pedido em conformidade e que deverá passar a ser de 30.111,73 eur (35.800,75 – 5.689,02)”.

 

4 - A fim de que o Tribunal arbitral possa debruçar-se sobre a questão do valor do pedido, e uma vez que aquele segmento contém referências a artigos de peças processuais que o Tribunal não logrou identificar, conferem-se 5 (cinco) dias à Requerente para esclarecer o Tribunal arbitral qual o sentido daquela pronúncia, findos os quais gozará a Requerida de idêntico período (5 dias) para dizer o que tiver por conveniente”.

 

9. Por requerimento com data de 11-04-2024, a Requerente esclareceu tratar-se de um lapso, confirmando que o valor da ação era o constante do PPA, não impugnado pela Requerida.

 

10. Compulsado o PPA e as respostas, a posição das partes é, em síntese, a seguinte:

(a) A Requerente argumenta que o Tribunal arbitral é competente em razão da matéria para ajuizar do pedido arbitral, uma vez que a CSR (Contribuição de Serviço Rodoviário), apesar da designação conferida pelo legislador, constitui um verdadeiro imposto, ao qual falta o caráter sinalagmático, ainda que difuso, das contribuições financeiras.

 

(b) Invoca, ademais, que os fornecedores a quem adquiriu combustível no ano de 2019 incorporaram os valores liquidados a título de ISP/CSR no preço do combustível, repercutindo-os sobre a Requerente. Neste sentido, uma vez que o regime jurídico da CSR é incompatível com o Direito da União, tal como clarificado pelo Despacho Vapo Atlantic, são ilegais os atos de liquidação de CSR. Como é também ilegal o ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa submetido pela Requerente junto do serviço de Finanças de Leiria (documento n.º 01), por às liquidações estar subjacente erro imputável aos serviços, nos termos do disposto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT.

 

(c) Por conseguinte, a Requerente peticiona o reembolso dos montantes indevidamente pagos a título de CSR, bem como a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º, n.º 1 da LGT.

 

(d) A AT apresentou defesa por exceção e defesa por impugnação. Na sua resposta, suscita as exceções dilatórias da incompetência do tribunal em razão da matéria, incompetência do tribunal em razão da causa de pedir, ilegitimidade processual e substantiva da Requerente, falta de interesse em agir, ineptidão da petição inicial, caducidade do direito de ação, falta de pagamento de valores a título de CSR por parte da Requerente e não exigibilidade de juros indemnizatórios.

 

(e) Quanto ao fundo, considera que a Requerente não logrou fazer prova de ter adquirido e pago combustível e suportado o encargo do pagamento da CSR por repercussão. Atento o disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, não incumbe à Requerida fazer a prova da não repercussão, nem é possível presumir a existência de repercussão quando, no caso, estamos perante uma repercussão meramente económica.

 

(f) Defende-se, ainda, argumentando que inexiste qualquer decisão judicial transitada em julgado – do Tribunal de Justiça ou de outro Tribunal – que tenha declarado ou julgado a inconstitucionalidade ou ilegalidade do regime jurídico da CSR, e contestando a apreciação do Tribunal de Justiça de que não estão subjacentes àquele tributo “motivos específicos” para efeitos do preceituado no artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE. Finalmente, louvando-se no acórdão Danfoss (processo C-94/10), do Tribunal de Justiça, a AT relembra que um Estado-membro se pode opor a um pedido de reembolso de um imposto indevido, apresentado pelo adquirente/comprador sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, desde que, à luz do direito desse Estado-membro, seja possível ao adquirente exercer uma ação civil de repetição do indevido e o reembolso dos montantes indevidamente suportados não se mostre, na prática, impossível ou excessivamente difícil.

 

II – Saneamento

11. O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). O processo não enferma de nulidades.

 

  1. Questão da incompetência relativa do tribunal arbitral em razão da matéria

 

12. Na Resposta, a AT arguiu a exceção de incompetência relativa do tribunal arbitral em razão da matéria (pontos 4.º a 17.º). Entende, em síntese, que a CSR é uma contribuição financeira, estando a sua sindicância, por conseguinte, excluída da competência dos tribunais arbitrais tributários, à luz do disposto no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. A Requerente pugnou pela improcedência da exceção de incompetência relativa, alegando que a CSR deve, apesar do nomen iuris, ser qualificada como um imposto, atenta a inexistência de “caráter sinalagmático”, caraterístico das contribuições financeiras.

 

13. O âmbito da jurisdição arbitral tributária conhece as limitações impostas por lei e por Regulamento. Com efeito, segundo a al. a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação de pretensões de declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de retenção na fonte e de pagamento por conta. Por sua vez, o artigo 4.º do mesmo regime faz depender a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais a portaria dos membros do Governo responsáveis, onde se estabeleça, designadamente, “o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos”. Em cumprimento desta delegação legislativa, a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, definiu o objeto da vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD como abrangendo “as pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida”.

 

14. A referência aos “impostos” que se encontra no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, pode ser interpretada de duas formas.

 

15. Para uma linha jurisprudencial, a designação relevante para efeitos de definição de competência é a designação adotada pelo legislador, e não aquela que o intérprete ou aplicador do direito possam reputar mais adequada. Pretende-se, com esta posição, obstar a que a jurisdição dos tribunais arbitrais se veja dependente da incerteza inerente às diversas perspetivas doutrinais sobre a destrinça entre taxa, imposto e contribuição financeira (cf. acórdão do CAAD de 29-05-2023, processo n.º 31/2023-T; e já antes, com idêntico entendimento, os acórdãos do CAAD de 22-07-2022, processo n.º 788/2021-T, e de 16-10-2018, processo n.º 115/2018-T). Ao passo que, num outro entendimento jurisprudencial, a aferição da jurisdição dos tribunais arbitrais já dependerá do entendimento que o intérprete alcance através da qualificação dos tributos em função das suas caraterísticas e do seu regime jurídico (cf., por exemplo, acórdão do CAAD 05-01-2023, processo n.º 304/2022-T; e acórdão do CAAD de 15-01-2024, processo n.º 375/2023-T). Sobre esta questão, o Tribunal arbitral entende que, havendo jurisprudência que aponte para uma determinada classificação, não pode o intérprete e aplicador do direito deixar de daí retirar as devidas conclusões em matéria de jurisdição.

 

16. A Constituição refere-se abertamente a três modalidades de tributos – impostos, taxas e contribuições financeiras (artigo 165, n.º 1, al. i) da CRP). Para cada um destes tributos, em razão do tipo de ablação patrimonial que representam para o contribuinte, prevê a Constituição um acervo de regras formais, orgânicas e materiais distinto, embora com semelhanças no plano dos tributos bilaterais (taxas e as contribuições financeiras).

 

17. A divisão tripartida dos tributos afirmou-se com a revisão constitucional de 1997, por oposição à summa divisio, até aí vigente, entre impostos e taxas. Com a inclusão de um segundo tipo de tributos bilaterais (as contribuições financeiras) o teste da bilateralidade, segundo qual os tributos rigorosamente bilaterais seriam taxas e os tributos não rigorosamente bilaterais seriam impostos, deixou de ser determinante no processo de qualificação. Se antes da revisão de 1997 o processo de qualificação não era simples, uma vez que uma plêiade de tributos merecia uma qualificação distinta daquela para que remeteria o seu nomen iuris (princípio da irrelevância do nomen iuris), o contencioso constitucional da qualificação dos tributos tornou-se, a partir dessa data, ainda mais complexo, atenta a proliferação de tributos híbridos, a meio-caminho entre taxas e impostos.

 

18. Assim, o imposto é uma prestação pecuniária e coativa, com estrutura unilateral. Cada um é chamado a contribuir para os encargos da comunidade independentemente de receber algo em troca, na medida da sua força económica ou da sua capacidade de pagar (princípio da capacidade contributiva). Os impostos pretendem arrecadar receitas para custear as despesas públicas gerais do Estado (artigo 5, n.º 1 da LGT). Coerentemente, visto que os impostos agridem o património do particular de forma mais intensa do que outros tributos, a Constituição sujeita-os a um regime formal e orgânico bastante rigoroso (reserva de lei integral), colocando sob a alçada do legislador parlamentar todo o regime jurídico de cada um dos impostos. 

 

19. Já as contribuições financeiras são prestações pecuniárias coativas, assentes numa estrutura bilateral ou sinalagmática, exigidas como contrapartida de uma prestação administrativa de que presumivelmente os respetivos sujeitos passivos, por integrarem um determinado grupo homogéneo, beneficiaram ou causaram.

 

20. A constitucionalização das contribuições financeiras, promovida pela revisão de 1997, visou abarcar uma categoria de tributos que, embora não possuíssem uma estrutura unilateral, não compartilhavam da bilateralidade rigorosa das taxas. Todavia, a circunstância de o legislador de revisão ter optado por subordinar as contribuições financeiras a um regime formal e orgânico semelhante ao das taxas é suficientemente revelador de que a estrutura e a finalidade das contribuições financeiras se aproximam mais dos tributos bilaterais do que dos tributos unilaterais.

 

21. Como se esclarece no acórdão n.º 344/19, do Tribunal Constitucional, a propósito da “taxa” SIRCA:

 

A criação de tributos dirigidos à compensação de prestações presumidas e admissibilidade de um quadro amplo de incidência das taxas torna mais diluída a fronteira entre as diferentes categorias de tributos e muito mais delicada a respetiva qualificação. Se atendermos à «natureza» que assume a prestação do ente público, a linha de fronteira entre as diferentes categorias de tributos públicos pode demarcar-se do seguinte modo: se o pressuposto de facto gerador do tributo é alheio a qualquer prestação administrativa ou se traduz numa prestação meramente eventual, estamos perante um imposto; se o facto gerador do tributo consubstancia uma prestação administrativa presumivelmente provocada ou aproveitada por um grupo em que o sujeito passivo se integra, estamos perante uma contribuição; se o facto gerador do tributo é constituído por uma prestação administrativa de que o sujeito passivo seja efetivo causador ou beneficiário, ou por um facto que, de acordo com as regras da experiência, constitui um indicador seguro da existência daquela prestação, estamos perante uma taxa”.

 

22. A “prova do algodão” entre imposto e contribuição financeira é dada, portanto, pela identificação expressa ou implícita de uma prestação administrativa – ainda que grupal ou presumida, no caso das contribuições financeiras. Em termos coadjuvantes, a jurisprudência constitucional reconhece igualmente a importância do critério finalístico, admitindo que a consignação da receita do tributo – por oposição ao financiamento das despesas públicas gerais – pode constituir uma orientação relevante no esclarecimento da sua natureza. Como se lê no acórdão n.º 268/2021, do Tribunal Constitucional, a propósito da Contribuição sobre o setor bancário:

 

A distinção entre as três categorias tributárias parte da consideração simultânea de um critério finalístico a par de um critério estrutural ou do pressuposto e da finalidade do tributo (...). Em linha com a conclusão que antecede, tem sido sublinhada pela jurisprudência do Tribunal a importância de atender, ainda, ao elemento teleológico do tributo (critério finalístico), na medida em que este pode constituir um indicador determinante no esclarecimento da sua natureza (...). Nesta perspetiva, a consignação de receitas à entidade pública competente para financiar as prestações subjacentes aos tributos que as geram constitui, por regra, «uma qualidade reveladora da natureza comutativa destes tributos, por tal consignação significar que a receita não pode ser desviada para o financiamento de despesas públicas gerais» (Acórdãos nºs 539/2015, 320/2016, 7/2019, 255/2020). Todavia, o Tribunal Constitucional reconhece que a consignação da receita do tributo não constitui, por si só, um elemento determinante na qualificação de um tributo – não é uma condição nem necessária nem suficiente (v. Acórdãos n.ºs 344/2019 e 255/2020)”.

 

23. Com base nestes critérios, o Tribunal Constitucional qualificou como contribuições financeiras tributos tão variados como as taxas de regulação e supervisão económica (acórdão n.º 365/2008), a taxa pela utilização do espectro radioelétrico (acórdão n.º 152/2013), as penalizações pela emissão de carbono (acórdão n.º 80/2014), a Contribuição extraordinária sobre o setor energético (acórdão n.º 7/2019), a taxa de segurança alimentar mais (acórdão n.º 539/2015) ou a contribuição sobre o setor bancário (acórdão n.º 268/2021). Foram ainda qualificadas como contribuições financeiras a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica (cf. acórdão do STA de 10.05.2023, processo n.º 0191/20.4BEVIS), assim como a taxa de promoção e de coordenação do Instituto da Vinha e do Vinho (cf. acórdão do STA de 26.09.2018, processo n.º 0299/13.2BEVIS 01007/17), ou a taxa anual devida pelo exercício da atividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações eletrónicas (acórdão do TCA de 29.09.2022, Processo n.º 21/13.3 BELRS);

 

24. Uma vez denotada a estrutura bilateral ou pelo menos comutativa do tributo, as eventuais inconsistências ou incoerências do seu regime jurídico – designadamente o facto de terem como sujeito passivo pessoas que não são presumíveis beneficiários ou causadores da prestação administrativa – deverão ser tratadas no âmbito do princípio da igualdade material, tomado como critério de equivalência, ferindo de inconstitucionalidade material as normas do regime jurídico do tributo que o contrariem (cf., neste sentido, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 344/2019, sobre a taxa SIRCA, e n.º 101/2023, sobre a Contribuição extraordinária do setor energético).

 

25. Ora, a Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (artigo 1.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto) e constitui “a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis” (artigo 3.º, n.º 1). Por financiamento da rede rodoviária entende-se “a respetiva conceção, projeto, conservação, exploração, requalificação e alargamento” (artigo 3.º, n.º 2).

 

26. A incidência objetiva do tributo coincide com a do ISP, ou seja, o tributo incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos (ISP) e dele não isentos (artigo 4.º, n.º 1). E o mesmo sucede com a incidência subjetiva, uma vez que os sujeitos passivos do tributo coincidem com os sujeitos passivos do ISP (artigo 5.º, n.º 1). Além disso, é aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC), na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações (artigo 5.º, n.º 1). Finalmente, o produto da CSR constitui receita própria da concessionária da rede rodoviária nacional, a EP – Estradas de Portugal, E. P. E, que, entretanto, passou a denominar-se Infraestruturas de Portugal, S.A (artigo 6.º).

 

27. Não obstante a operação “cosmética” que o legislador ensaia na Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, ao identificar como facto tributário a utilização da rede rodoviária nacional, consignando a receita do tributo à respetiva concessionária, a Infraestruturas de Portugal, a CSR aproxima-se de um simples desdobramento do ISP, partilhando com este a incidência objetiva e subjetiva, bem como os aspetos da liquidação e cobrança (cf. Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2.º ed., reimpressão, Almedina, 2021, p. 384, nota n.º 8).[1]

 

28. Esta conclusão é corroborada pelo Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, o qual, em razão dos princípios da interpretação conforme e do primado do Direito da União Europeia, se projeta como elemento determinante na qualificação do tributo. Efetivamente, segundo a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a qualificação de uma tributação, um imposto, uma taxa ou um direito, à luz do Direito da União Europeia, compete ao Tribunal de Justiça, em função das caraterísticas objetivas de imposição, independentemente da qualificação que lhe é dada pelo direito nacional (cf. acórdãos Istituto di Ricovero e Cura a Carattere Scientifico (IRCCS) — Fondazione Santa Lucia, processo C-189/15, §29; e Test Claimants in the FII Group Litigation, processo C-446/04, §107, entre outros).

 

29. É certo que, no processo arbitral que motivou o pedido de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça (Processo n.º 564/2020-T), o Tribunal nacional qualificou a CSR como um imposto, formulando as questões prejudiciais com base nesse pressuposto. Parece-nos, todavia, que na decisão em que culminou esse pedido de reenvio – o Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21 – o Tribunal de Justiça não colocou em causa essa qualificação, precisamente por considerar que, pela sua estrutura e regime jurídico, a CSR preenchia as caraterísticas de uma imposição indireta, concretamente, de um imposto indireto sobre os produtos petrolíferos. Por outras palavras, foi o legislador português que, não obstante apelidar o tributo como “contribuição”, definiu a respetiva incidência subjetiva, objetiva, liquidação e cobrança em termos análogos às do ISP. Em condições que levaram o Tribunal de Justiça a assumir que a CSR teria uma finalidade exclusivamente orçamental para efeitos do artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE, e que poderia entravar as trocas comerciais pondo em causa o efeito útil da harmonização levada a cabo pela Diretiva no domínio do imposto sobre produtos petrolíferos (Despacho Vapo Atlantic, §26).

 

30. Assim, se o Tribunal de Justiça tratou a CSR como um desdobramento do ISP, não pode o intérprete e aplicador português deixar de fazer o mesmo, procurando uma interpretação e aplicação uniformes do Direito da União.

 

31. Termos que se julga improcedente a exceção de incompetência relativa do tribunal arbitral em razão da matéria.

 

  1. Exceção da incompetência do tribunal arbitral em razão da causa de pedir

 

32. A AT suscita, na sua resposta, a incompetência do tribunal arbitral em razão da causa de pedir, exceção dilatória cuja procedência acarreta a absolvição da ré da instância (artigo 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, a) do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, e) do RJAT). Sustenta que o pedido formulado pela Requerente, que passa pela declaração de ilegalidade de “todo” o regime da CSR (pontos 18.º a 28.º da Resposta), extravasa o âmbito da jurisdição arbitral tributária prevista no artigo 2.º do RJAT, que assenta num contencioso de mera anulação. Este não consente “o escrutínio sobre a integridade de normas emanadas no exercício da função político-administrativa do Estado” (ponto 21.º), “não sendo da competência do tribunal arbitral (...) a fiscalização da legalidade de normas em abstrato, sem enquadramento processual impugnatório de ato concreto de liquidação”. Uma interpretação do artigo 2.º do RJAT que permita a apreciação dos pedidos formulados pela Requerente seria, no entender da AT, inconstitucional, porquanto vedada pela letra e pelo espírito da lei (ponto 23.º da Resposta).

 

33. A Requerente contra-argumenta referindo que o objeto do pedido não é a apreciação da legalidade do regime jurídico da CSR, mas antes a apreciação da legalidade do ato de liquidação que com base nele foi praticado (pontos 5-6 da pronúncia sobre as exceções).

 

34. Entende o Tribunal arbitral que a exceção dilatória invocada pela AT não procede. Vejamos.

 

35. A Requerente não pede a declaração de ilegalidade do regime jurídico onde está consagrada a CSR (Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto). Pede, na verdade, a anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa e, bem assim, a anulação dos atos de liquidação de CSR inerentes às faturas juntas com o PPA. Faz assentar, porém, a anulação das liquidações num vício de ilegalidade abstrata, por oposição à ilegalidade concreta, porquanto o que está em causa é a ilegalidade do tributo (por desconformidade do ato legislativo que o criou com a CRP ou por incompatibilidade com o Direito da União Europeia), e não a ilegalidade do ato que faz aplicação da lei ao caso concreto (cf. acórdão do STA de 20-03-2019, processo n.º 0558/15.0BEMDL 0176/18).

 

36. O controlo incidental ou concreto da constitucionalidade das normas assenta, precisamente, na destrinça entre questão principal e questão de constitucionalidade. Como se lê no artigo 204.º da CRP, pedra angular do modelo de fiscalização concreta português, “nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas contrárias à Constituição”.

 

37. In casu, mesmo que a inconstitucionalidade ou a incompatibilidade com o DUE seja o catalisador da impugnação, o feito submetido a julgamento não é a inconstitucionalidade da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, nem tão-pouco a sua incompatibilidade com o Direito da União, mas a ilegalidade dos atos de liquidação de CSR (artigo 99.º do CPPT).

 

38. A idiossincrasia do modelo português de fiscalização concreta é a de que todos os juízes, em todos os tribunais, têm não só o poder-dever de verificar a conformidade constitucional das normas legais aplicáveis (poder-dever de exame), mas também de recusar a sua aplicação caso concluam pela sua inconstitucionalidade (poder-dever de rejeição). Não podendo, então, o juiz, nos termos do artigo 204.º CRP da Constituição, aplicar normas inconstitucionais, ele fica obrigado a decidir, seja a pedido das partes seja oficiosamente, a referida questão de constitucionalidade, isto é, tem de decidir previamente se a norma em causa é ou não inconstitucional.

 

39. Aliás, num modelo como o português, que não conhece a figura da ação direta de constitucionalidade, entendida como o direito dos cidadãos de pedirem ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade de normas, a possibilidade de os particulares, nos feitos submetidos a julgamento, suscitarem a questão de constitucionalidade é imprescindível para assegurar o direito fundamental de acesso à justiça constitucional e a uma tutela jurisdicional efetiva em matéria constitucional. Por essa razão, não poderia o RJAT – agora sim, sob pena de inconstitucionalidade – deixar de consagrar a figura do recurso de constitucionalidade quando, na decisão arbitral, se recuse a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade ou se aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada no processo (artigo 24.º, n.º 1 do RJAT).

 

40. Idêntico raciocínio é aplicável, mutatis mutandis, à incompatibilidade com o Direito da União. Também aqui, por força do princípio do efeito direto, conjugado com o princípio do primado, estão todos os tribunais nacionais, nos feitos submetidos a julgamento, sob o dever de desaplicar as normas de direito interno incompatíveis com o Direito da União. Não podendo um tal dever ficar na dependência de regras internas que atribuam aos tribunais superiores competência exclusiva para afastar a aplicação dessas normas. Foi esse o dito do Tribunal de Justiça no acórdão Simmenthal, processo C-106/77: “[Q]ualquer juiz nacional tem o dever de, no âmbito das suas competências, aplicar integralmente o direito comunitário e proteger os direitos que este confere aos particulares, considerando inaplicável qualquer disposição eventualmente contrária ao direito interno, quer seja esta anterior ou posterior à norma comunitária” (§21).

 

41. A sustentar o seu argumento, a AT invoca os acórdãos do STA (ponto 25.º da Resposta), proferidos no âmbito dos processos n.ºs 01390/17 e 0637/15. Mas também aqui sem acerto. Com efeito, o que estava em causa no primeiro daqueles arestos era uma ação popular administrativa na forma de providência cautelar de suspensão de eficácia do disposto na norma do artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos, na redação introduzida pelo artigo 217.º da Lei n.º 42/2016, de 29 de dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2017. Já no segundo, o STA limitou-se a declarar a incompetência absoluta para a apreciação da legalidade de atos emitidos no exercício da função político-legislativa (artigo 4.º, n.º 2, a) do ETAF), ajuizando que o ato em causa – um decreto-lei – apesar da sua natureza individual e concreta, não continha um ato administrativo sob a forma legislativa que o Tribunal pudesse apreciar. O que, facilmente se percebe, nada tem que ver com um pedido de ilegalidade de um ato de liquidação de um imposto, que não é um ato da função político-legislativa, mas um ato caraterístico da função administrativa.

 

42. Termos em que julga improcedente a exceção de incompetência do tribunal arbitral em razão da causa de pedir.

 

  1. Questão da ineptidão do pedido de pronúncia arbitral

 

43. A Requerida alega, nos pontos 49.º a 119.º da sua defesa, a ineptidão da petição inicial, com a consequente nulidade de todo o processo, ao abrigo dos artigos 98.º, n.º 1, b) do CPPT e 186.º, n.º 1, 576, n.ºs 1 e 2 e 577.º, al. b) do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, al. c) e e) do RJAT, respetivamente.

 

44. Acrescenta que o PPA não cumpre os pressupostos vertidos no artigo 10.º, n.º 2 do RJAT porquanto não identifica “o ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral”. Destarte, apesar de identificar as faturas de aquisição dos combustíveis, a Requerente não identifica as declarações de introdução no consumo que deram origem às liquidações de CSR por parte da AT.

 

A AT não tem forma de suprir esta omissão, atenta a impossibilidade de estabelecer qualquer correspondência entre os atos de liquidação de CSR e as faturas de aquisição de combustível apresentadas pela Requerente (ponto 67.º). Isto acontece porque raramente a entidade que vende o combustível ao consumidor final coincide com o sujeito passivo que introduziu os combustíveis no mercado (pontos 97.º e 104.º). In casu, apenas a Repsol Portuguesa, S.A é sujeito passivo de ISP, logo, de CSR. É, além disso, comum que sujeitos passivos de ISP/CSR declarem a introdução no mercado de produtos petrolíferos que são propriedade de outros operadores económicos (ponto 86.º). Não há, em síntese, “qualquer possibilidade, relativamente às transações posteriores à introdução no consumo e liquidação, de identificar o registo de liquidação correspondente, uma vez que as vendas dos produtos declarados para consumo (e consequente repercussão económica das imposições) são destinadas a uma multiplicidade de destinos/clientes e não são coincidentes no tempo em relação ao facto gerador do imposto” (ponto 110.º).

 

45. A Requerente, na resposta às exceções arguidas pela Requerida, argumenta não haver dúvidas de que as faturas juntas com o PPA levam implícita a repercussão de CSR, liquidada pela AT ao operador responsável pela introdução do combustível no mercado. Em qualquer caso, só a AT dispõe da documentação relativa aos atos tributários de liquidação da CSR junto dos operadores que introduziram os produtos no consumo (pontos 21-31 da Resposta às exceções), incumbindo-lhe fazer uso dos seus poderes inquisitórios para diligenciar no sentido da obtenção desses documentos. Outro entendimento consubstanciaria uma situação de “prova diabólica”, com prejuízo para a Requerente (pontos 39-43 da Resposta às exceções).

 

Vejamos:

 

46. O RJAT não contém regime próprio em matéria de exceções e nulidades processuais, aplicando-se, nesta matéria, a título subsidiário, o disposto no CPPT, no CPTA e no CPC, como decorre do previsto no artigo 29.º, n.º 1, a), c) e e) do RJAT.

 

47. A ineptidão da petição inicial é uma exceção dilatória cuja verificação conduz à abstenção de conhecimento do mérito da causa e à absolvição do réu da instância (artigo 278, n.º 1, al. b) do CPC). Trata-se de uma exceção de conhecimento oficioso, conforme preceituado no artigo 196.º do CPC e também no artigo 89.º, n.ºs 2 e 4, al. b), do CPTA e no artigo 98.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do CPPT.

 

48. Do artigo 186.º, n.º 1 do CPC consta uma lista fechada de situações geradoras de ineptidão da petição inicial: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis. De acordo com o n.º 3 do mesmo dispositivo, ainda que os factos essenciais alegados sejam insuficientes, se a ré contestar, decorrendo da contestação que interpretou convenientemente a petição inicial e os pedidos, impugnando expressamente o que foi alegado pelo Autor e, em consequência, requerendo a sua absolvição daqueles, não procede a arguição de ineptidão da petição inicial que eventualmente seja arguida.

 

49. Ora, a exceção relacionada com a ineptidão da petição inicial não procede, porquanto não se verifica nenhuma das situações elencadas no artigo 186.º do CPC. Nem, aliás, a Requerida identifica, na sua resposta, qual das situações elencadas naquele normativo é geradora da nulidade de todo o processo.

 

50. Quanto à questão da identificação dos atos de liquidação impugnados, a que alude a al. b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, importa referir que, não sendo a Requerente o sujeito passivo do imposto, nem o direto responsável pela sua liquidação, mas apenas a entidade que alegadamente suporta o encargo por efeito da repercussão, não lhe compete o ónus de identificação e de comprovação dos atos de liquidação repercutidos.

 

51. Sendo antes sobre a Autoridade Tributária que impendia o ónus de realizar, no âmbito do procedimento de revisão oficiosa, as diligências que permitiriam verificar a existência dos atos de liquidação do imposto (cfr. acórdão do CAAD de 14-05-2024 relativo ao Processo n.º 790/2023-T, §15-16). A eventual dificuldade que a AT possa ter na identificação das liquidações a que ela própria procedeu junto dos fornecedores de combustíveis é um problema de organização dos seus serviços, que não pode ser imputado nem trazer desvantagem à Requerente. A Requerente fez tudo quanto poderia ter feito, juntando os documentos que tinha à sua disposição. Exigir à Requerente a identificação dos atos de liquidação numa situação com este recorte, em que o repercutido não tem meios para proceder a essa identificação nem ela se assume como imprescindível para a apurar da legalidade da liquidação de CSR, constituiria uma interpretação dos normativos sob apreciação em desalinho com o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado nos artigos 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4 da CRP (cfr. acórdão do CAAD de 13-11-2023 relativo ao Processo n.º 410/2023-T).

 

Improcede, portanto, a exceção de ineptidão da petição inicial (e a fortiori o

 

  1. Questão da caducidade do direito de ação 

 

52. A AT invoca, seguidamente, vários argumentos relacionados com a tempestividade do pedido de revisão oficiosa, que foi objeto de indeferimento tácito e cuja anulação se peticiona (pontos 120.º a 133.º).

 

Argumenta, em primeiro lugar, que não logrando a Requerente a identificação dos atos de liquidação impugnados, não é possível apurar da tempestividade do pedido de revisão oficiosa recebido em 15-03-2023 e, consequentemente, a tempestividade do PPA ora apreciado (ponto 131.º).

 

Depois, ainda que superado este obstáculo, é entendimento da AT que o pedido de revisão é intempestivo, não sendo aplicável o prazo de quatro anos previsto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT, uma vez que inexiste in casu “erro imputável aos serviços”. Ao proceder às liquidações de CSR impugnadas, a AT manteve-se fiel ao princípio da legalidade da administração, estando-lhe vedado atuar de forma diversa daquela através da qual atuou (ponto 128.º da Resposta).

 

Alega, finalmente, que o artigo 15.º do CIEC, onde estão previstas regras gerais de reembolso em caso de erro na liquidação, expedição ou exportação dos produtos sujeitos a imposto, é lex specialis relativamente ao artigo 78.º da LGT. De acordo com aquele normativo, só os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução do consumo dos produtos em território nacional têm, no prazo de três anos a contar da liquidação do imposto, legitimidade para apresentar o pedido de reembolso.

 

53. A Requerente respondeu argumentando que o prazo aplicável é o prazo de 4 anos constante do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, uma vez que a AT, ao liquidar a CSR, não cumpriu diligentemente os seus deveres de boa administração, incorrendo em “erro imputável aos serviços” (ponto 44 da resposta às exceções).

 

54. É entendimento do Tribunal Arbitral que também esta exceção, relacionada com a caducidade do direito de ação, deve ser julgada improcedente.

 

O artigo 15.º do CIEC contém um conjunto de disposições comuns às várias modalidades de reembolso previstas no Código, seja o reembolso por erro (artigo 16.º), o reembolso na expedição (artigo 17.º), o reembolso na exportação (artigo 18.º), reembolso na retirada do mercado (artigo 19.º) e outros casos de reembolso (artigo 20.º). Dispõe o seguinte:

 

Artigo 15.º

Regras gerais do reembolso

1 - Constituem fundamento para o reembolso do imposto pago, desde que devidamente comprovados, o erro na liquidação, a expedição ou exportação dos produtos sujeitos a imposto, bem como a retirada dos mesmos do mercado, nos termos e nas condições previstas no presente Código.

2 - Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo imposto.

3 - O pedido de reembolso deve ser apresentado na estância aduaneira competente no prazo de três anos a contar da data da liquidação do imposto, sem prejuízo do disposto na alínea a) do artigo 17.º e na alínea a) do artigo 18.º.

4 - O reembolso só pode ser efectuado desde que o montante a reembolsar seja igual ou superior a (euro) 25.

 

55. Ora, como se lê no acórdão do CAAD de 14-05-2024 referente ao Processo n.º 790/2023-T, o regime especial previsto nos artigos 15.º e seguintes do CIEC vale para o reembolso com fundamento em erro na liquidação ou em caso de expedição ou exportação. Ora, no presente processo o que está em causa não é um pedido de reembolso tout court, mas uma declaração de ilegalidade de atos de liquidação de um imposto, à qual se pode seguir, verificados os demais pressupostos, o reembolso do imposto pago indevidamente.

 

56. Resulta do n.º 1 do artigo 78.º da LGT que a revisão do ato tributário prevista naquele dispositivo constitui um meio de correção de erros na liquidação de tributos levado a cabo pela própria administração tributária (a revisão é da competência de quem praticou o ato tributário), e que pode partir da iniciativa do sujeito passivo, no prazo da reclamação administrativa (reclamação graciosa) e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou da iniciativa da administração, no prazo de 4 anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.

 

É entendimento pacífico da jurisprudência do STA que, para efeitos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT e em face da teleologia que subjaz ao instituto da revisão, este não abrange apenas os pedidos de revisão oficiosa da iniciativa da administração tributária, mas também a revisão do ato de liquidação requerida pelo sujeito passivo e como tal abrangida pelo prazo alargado de 4 anos. A revisão é, portanto, um afloramento do dever de revogação de atos tributários ilegais, que encontra arrimo nos princípios da legalidade, da justiça, da igualdade e da imparcialidade, que são princípios fundamentais da atividade administrativa (cf. artigo 266.º, n.º 2 CRP e artigo 55.º da LGT). E «face a tais princípios, não se vê como possa a Administração demitir-se legalmente de tomar a iniciativa de revisão do acto quando demandada para o fazer através de pedido dos interessados já que tem o dever legal de decidir os pedidos destes» (acórdão do STA, 11.05.2005, processo n.º 0319/05).

 

Neste sentido, tal como este Tribunal arbitral a compreende, a revisão do ato tributário prevista no n.º 1 do artigo 78.º da LGT é um modo de reação complementar aos meios administrativos e contenciosos gerais e especiais, que tem o seu campo primordial de aplicação naquelas situações em que já não é possível a impugnação do ato tributário, ou seja, em todos os casos em que o contribuinte, não logrou lançar mão, por sua iniciativa, dos processos impugnatórios previstos na lei (cf. decisão arbitral do CAAD de 24.06.2021, processo n.º 500/2020-T). Como se lê no acórdão do STA de 08.06.2022, processo n.º 0174/19.7BEPDL, “[e]m função do respetivo, integral, conteúdo normativo, o art. 78.º da LGT consubstancia, no âmbito da proteção dum Estado de Direito, um depósito de garantias, acrescidas, de defesa e reposição da legalidade, concedidas aos sujeitos de relações jurídico-tributárias”.

 

Os mecanismos de reembolso previstos nos artigos 15.º e ss. do CIEC não constituem lex specialis que afaste a aplicação do artigo 78.º da LGT ao caso sub judice. O procedimento de revisão oficiosa assume-se, tanto pela sua localização sistemática (na LGT), como pelo substrato teleológico que lhe preside, como uma garantia dos contribuintes que acresce às previstas no CIEC ou noutra legislação especial.

 

57. Esta modalidade de revisão do ato tributário só é possível nas situações em que haja “erro imputável aos serviços”, aqui compreendido não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como, também, o erro de direito, do qual tenha resultado, para o contribuinte, uma liquidação de imposto superior ao devido. Essa imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação afetada pelo erro (cf., entre outras, a decisão arbitral do CAAD de 24.03.2022, processo n.º 615/2021-T, e, entre outros, os acórdãos do STA de 12.02.2001, recurso n.º 26233, de 11.05.2005, recurso n.º 0319/05, de 26.04.2007, recurso n.º 39/07, de 14.03.2012, recurso n.º 01007/11 e de 18.11.2015, recurso n.º 1509/13).

 

Como se lê no acórdão do STA de 12.02.2001, recuperado recentemente no acórdão do STA de 03.06.2020, «havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efetuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte (...)» (cf. acórdão do STA de 03.06.2020, processo n.º 018/10).

 

E não valerá a pena invocar que, ao contrário dos tribunais – que têm, nos termos do artigo 204.º da CRP, acesso direto à Constituição – não tem a Administração Tributária o poder-dever de desaplicar normas inconstitucionais e, por maioria de razão, normas contrárias ao direito da União. Com efeito, desde a prolação do acórdão Fratelli Costanzo, pelo Tribunal de Justiça, existe jurisprudência constante no sentido de que o princípio do primado – e o seu corolário prático, o princípio do efeito direto – estende à administração pública o dever de desaplicar as disposições de direito nacional contrárias a uma norma de direito da União que goze de efeito direto (acórdão Fratelli Costanzo, processo 103/88, em particular, § 31).

 

58. Assim, havendo erro imputável aos serviços, o prazo para apresentar o pedido de revisão oficiosa é de 4 anos após a liquidação, e não de 120 dias, como sustenta a AT (ponto 126.º da Resposta). O pedido de revisão oficiosa foi recebido pela AT em 15-03-2023 (cf. Documento n.º 01 junto com o PPA), tendo por objeto atos de liquidação de CSR relativos a faturas emitidas pela aquisição de combustível no ano de 2019. Logo, o pedido foi apresentado tempestivamente, isto é, antes de decorridos quatro anos desde a data da liquidação, que é o prazo que releva à luz do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, em face da ocorrência de “erro imputável aos serviços”.

 

O indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa formou-se em 16-07-2023, ou seja, quatro meses após a AT ficar constituída no dever de decidir (artigo 57.º, n.º 1 da LGT). Por conseguinte, o PPA, apresentado em 09-10-2023, é também tempestivo. 

 

59. Pelo que, pelas razões expostas, improcede a exceção relacionada com a caducidade do direito de ação.

 

  1. Questão da ilegitimidade da Requerente

 

60. A AT pugna, nos pontos 29.º a 43.º da sua defesa por exceção, pela ilegitimidade processual ativa da Requerente, o que, nos termos dos artigos 576.º, n.º 1 e 2 e 577.º, a) CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, e) RJAT, consubstancia uma exceção dilatória, que, se verificada, implica a absolvição da Requerida da instância.

 

Segundo a AT, atento o regime especial previsto nos artigos 15.º e 16.º do CIEC, só o sujeito passivo que declarou os produtos para consumo e a quem foi liquidado o imposto tem legitimidade para requerer a revisão oficiosa e, consequentemente, para apresentar o pedido de pronúncia arbitral. Ora, o sujeito passivo da CSR é o sujeito passivo do ISP, aplicando-se as mesmas regras em termos de liquidação e cobrança (artigo 5.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto). 

 

Por outra banda, a AT alega que a Requerente carece de legitimidade à luz do disposto no artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT, porquanto no caso concreto não estará em causa uma situação de repercussão legal, mas de mera repercussão económica. Sendo irrelevante a nova redação do artigo 2.º do CIEC, introduzida pela Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro, que passou a prever um princípio de repercussão legal do imposto”.

 

61. A Requerente respondeu que a sua legitimidade advém da conjugação dos artigos 28.º, 78.º e 65.º da LGT e do artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1 do RJAT. O artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT admite que da repercussão do imposto possa resultar um interesse legalmente protegido.  

 

Vejamos.

 

62. A legitimidade é a qualidade de ser parte ativa ou passiva num procedimento ou processo tributários. Trata-se de um requisito que é condição para a apreciação da questão de fundo e não de uma condição de procedência do pedido. Razão pela qual, nesta fase, se atende à configuração da relação jurídica tal como alegada pelo autor, sem cuidar de saber se o direito invocado efetivamente existe na sua esfera jurídica [Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado e comentado, vol. I, 2006, p. 120 (anotação ao art. 9.º)].

 

63. A lei tributária parte de um conceito amplo de legitimidade, que não coincide plenamente com a qualidade de sujeito ativo ou passivo na relação jurídica tributária, abrangendo a AT, os contribuintes, os substitutos, os responsáveis, outros obrigados tributários e “quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (artigo 9.º, n.º 1 do CPPT). Neste sentido, estão abrangidos tantos quantos possam dizer-se afetados pelo que venha a ser decidido no procedimento ou processo tributários, ou seja, que nele tenham um interesse económico a defender (Rui Duarte Morais, Manual de procedimento e processo tributário, Almedina, 2012, p. 58). Por outro lado, o artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT, embora privando quem suporte o imposto por repercussão legal da qualidade de sujeito passivo da relação jurídica tributária, estende ao repercutido legal as garantias dos contribuintes, concretamente o direito de reclamação, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral.

 

64. Entende o Tribunal arbitral que, seja pela via do artigo 9.º, n.º 1 do CPPT, seja pela via do artigo 18.º, n.º 1, a) da LGT, a Requerente tem legitimidade processual para apresentar a presente ação.

 

É certo que o CIEC não continha, até à entrada em vigor da Lei n.º 24-E/2022, 30 de dezembro, uma norma semelhante à do artigo 37.º do CIVA, ou seja, uma norma que previsse expressamente o dever de incluir no preço a pagar pelos bens e serviços a importância de imposto liquidada pela AT ao sujeito passivo. Todavia, entende o Tribunal arbitral que a referência à “repercussão legal” inscrita no artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT terá de abranger todos aqueles casos em que a lei, direta ou indiretamente, faz assentar o regime jurídico do tributo num princípio de repercussão legal do imposto, ou seja, em que a lei pretende que a ablação patrimonial do imposto seja suportada, não pelo sujeito passivo, mas pelo titular da manifestação de capacidade contributiva que dá causa ao imposto.

 

É o que sucede com a CSR, que, como dispõe o artigo 3.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, constitui “a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo de combustíveis”. A manifestação de capacidade contributiva que dá causa à CSR não é a introdução dos combustíveis no mercado, mas o próprio consumo de combustíveis por parte dos utilizadores da rede rodoviária nacional. A nova redação do artigo 2.º do CIEC, introduzida pelo artigo 6.º da Lei n.º 24-E/2022, 30 de dezembro, limita-se a reconhecer abertamente aquilo que já resultava do regime jurídico dos IEC na versão anterior, ou seja, que o ISP e a entretanto extinta CSR assentam num princípio da repercussão legal.[2]

 

O alcance subjetivo do artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT encontra igualmente reconhecimento na doutrina jus tributária. Neste sentido, Jorge Lopes de Sousa escreveu, ainda antes da alteração legislativa de que resultou a atual redação do artigo 2.º do CIEC:

 

Nos casos de repercussão legal do imposto, apesar de aquele que suporta o encargo do imposto não ser sujeito passivo, é-lhe assegurado o do direito de reclamação, recurso e impugnação [art. 18º, nº 4, da LGT]. São casos de repercussão legal os do IVA e dos impostos especiais de consumo, pois, em face dos respetivos regimes legais, a lei exige o pagamentos dos tributos aos intervenientes no processo de comercialização dos bens ou serviços, visando fazer com que eles venham a ser pagos pelos consumidores finais, que são os titulares da capacidade contributiva que se pretende Tributar” [Jorge Lopes de Sousa, CPPT, anotado e comentado, vol. I, 2006, p. 106 (anotação ao art. 9.º)].

 

Também Sérgio Vasques pugna pela indistinção, para efeitos da aplicação do n.º 2 do artigo 54.º da LGT (“As garantias dos contribuintes previstas no presente capítulo aplicam-se também à autoliquidação, retenção na fonte ou repercussão legal a terceiros da dívida tributária, na parte não incompatível com a natureza destas figuras”), entre a repercussão obrigatória prevista para o IVA e a repercussão facultativa que vale para os impostos especiais sobre o consumo:

 

“O artigo 54.º, n.º 2 da LGT acrescenta ainda que as garantias dos contribuintes se aplicam também à autoliquidação, retenção na fonte ou repercussão legal a terceiros da dívida tributária, “na parte não incompatível com a natureza destas figuras”. A. Lima Guerreiro (2001), 254, observa a propósito que as normas de procedimento da LGT se aplicam à repercussão obrigatória que podemos dizer existir no contexto do IVA em virtude da obrigação geral da menção em factura, e a uma repercussão facultativa, que mais frequentemente encontramos na área dos impostos especiais sobre o consumo, taxas e contribuições. E, bem vistas as coisas, faltam razões para distinguir entre uma e outra modalidades de repercussão, quando está em jogo facultar defender o repercutido contra a exigência de tributo superior ao devido (...)” [Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2021, p. 402, nota n.º 35].

 

65. Independentemente da leitura que se faça do artigo 18.º, n.º 4, a) da LGT, a legitimidade processual da Requerente resulta, também, do artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT e do conceito amplo de legitimidade que aí se sufraga (Bruno Botelho Antunes, “Impugnação judicial em retenções na fonte – uma nova perspetiva sobre o interesse processual”, Fiscalidade, n.º 37, 2009, pp. 101-112). Ou seja, mesmo que se entenda que o regime jurídico da CSR não assenta num princípio de repercussão legal, há que reconhecer que o adquirente de combustível pode alegar a titularidade de um interesse legalmente protegido para efeitos do artigo 9.º, n.º 1 do CPPT, intervindo no processo tributário nessa qualidade (cfr., neste sentido, a decisão do CAAD de 13-11-2023, processo n.º 410/2023-T, a decisão do CAAD de 08-11-2023, Processo n.º 294/2023-T).

 

66. A Autoridade Tributária refere ainda que a Requerente, não sendo sujeito passivo do imposto, carece não apenas de ilegitimidade processual, mas também de ilegitimidade substantiva, que constitui uma exceção perentória e conduz à absolvição do pedido (pontos 134.º a 144.º da Resposta).

 

Porém, não lhe assiste razão. A legitimidade ativa é uma condição processual para obter a apreciação do mérito da pretensão. Daí que não se exija uma verificação da efetiva titularidade da relação jurídica material invocada, mas tão-só a alegação de factos que suportem tal legitimidade, ou seja, que suportem a suscetibilidade de o autor vir a ser afetado pelo que venha a ser decidido no processo [cfr. Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado e comentado, vol. I, 2006, p. 120 (anotação ao art. 9.º)]. Já a chamada a legitimidade substancial ou substantiva tem que ver com a efetividade da relação material, interessando já ao mérito da causa e, nesse sentido, constitui um requisito da procedência do pedido e não uma condição para a apreciação do mérito. Neste sentido, a legitimidade substantiva só pode ser analisada em função dos factos que sejam dados como provados ou não provados, ou seja, aquando da apreciação do mérito do pedido, não consubstanciando, em coerência, uma exceção perentória.

 

67. O que vem de dizer-se é extensível à alegada inexistência de prova de efetiva repercussão da CSR por efeito da aquisição de combustíveis, a que a Requerida se refere nos artigos 145.º a 155.º da resposta. Essa é matéria de prova que terá de ser analisada no âmbito da decisão arbitral e que não integra, em si, uma qualquer exceção perentória. A questão dos juros indemnizatórios será analisada infra, em caso de procedência total ou parcial do pedido arbitral.

 

  1. Falta de interesse em agir

 

68. A Autoridade Tributária invoca, nos pontos 44.º a 48.º da sua defesa, a falta de interesse em agir por parte da Requerente, na medida em que não se encontra provado que tenham procedido ao pagamento dos valores referentes à CSR, não podendo obter, por isso, qualquer proveito ou utilidade do prosseguimento da ação.

 

69. Como se explicou, a propósito de alegação em tudo idêntica, no acórdão do CAAD de 14-05-2024, referente ao Processo n.º 790/2023-T:

 

«(...) O interesse em agir tem sido entendido como um pressuposto processual autónomo, distinto da legitimidade activa, e que se traduz na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer seguir a acção, e assume especial relevo nas chamadas acções de simples apreciação quando se verifica um estado de incerteza sobre a existência ou inexistência do direito a apreciar. O autor poderá ser titular de uma situação jurídica substantiva (direito de propriedade, direito de crédito), que lhe confere, à partida, a legitimidade para a fazer valer em juízo, mas, simultaneamente, poderá não estar carecido de tutela judicial, por esse seu direito não ter sido negado ou, de algum modo, posto em causa por um acto de uma autoridade pública ou por iniciativa de um particular. É nesse sentido que a ausência do interesse em agir poderá ser considerada como circunstância que obsta ao prosseguimento do processo, determinando a absolvição da instância.

 

É claro que não é a mera alegação da parte, ainda na fase dos articulados, de que não foi feita prova da repercussão que pode conduzir, por si, à falta de interesse em agir. É ao tribunal arbitral que cabe fixar a matéria de facto, com base na instrução do processo, e caso, eventualmente, venha a considerar como não provado que a Requerente suportou o pagamento da CSR por repercussão, a questão que se coloca tem a ver com a procedência ou a improcedência do pedido, e, por conseguinte, com a matéria de fundo, e não, evidentemente, com os pressupostos processuais da acção.

(...)»

 

70. Não se antecipando razões para divergir deste entendimento, reitera-se a fundamentação transcrita no ponto anterior, julgando-se improcedente a exceção invocada pela AT.

 

III – Matéria de facto

 

  1. Factos provados

71. Consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à atividade de comércio, transformação, importação e exportação de madeiras.
  2. No período compreendido entre março de 2019 e dezembro de 2019, a Requerente adquiriu aos fornecedores de combustível descritos no mapa constante do Documento n.º 2 um total de 351 430, 07 litros de gasóleo (cf. as faturas que constam dos documentos n.ºs 03 a 12 juntos com o PPA).
  3. De entre os fornecedores de combustível da Requerente, só a Repsol Portuguesa, S.A é sujeito passivo de ISP/CSR.
  4. Em 13-03-2023, a Requerente apresentou, perante o serviço de finanças de Leiria, um pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação da Contribuição de Serviço Rodoviário, referente ao período de março de 2019 a dezembro de 2019, referente à aquisição de 351 430, 07 litros de gasóleo, invocando que o encargo tributário foi repercutido na sua esfera jurídica pelos fornecedores.
  5. O pedido de revisão oficiosa foi recebido em 15-03-2023.
  6. A Autoridade Tributária e Aduaneira não emitiu decisão quanto ao pedido de revisão oficiosa no prazo legalmente cominado para o efeito, considerando-se o pedido tacitamente indeferido em 16-07-2023.
  7. O pedido arbitral deu entrada em 09-10-2023.

 

  1. Factos não provados

 

72. Não sendo os fornecedores de combustível da Requerente, à exceção da Repsol Portuguesa, S.A, sujeitos passivos de ISP/CSR, não ficou provado que tenham apresentado à AT as declarações de introdução no consumo (DIC) nos períodos a que se reportam as faturas juntas com o PPA, nem ficou demonstrado que tenham sido emitidas quaisquer liquidações de CSR relativamente às vendas que efetuaram. Tão-pouco se considera provado que o valor da CSR tenha sido repercutido sobre a Requerente, pelas razões seguidamente enunciadas.

 

  1. Fundamentação da decisão da matéria de facto

 

73. Os factos dos pontos A, B, D, E, F e G resultam da prova documental junta aos autos, mormente dos documentos n.ºs 01 a 12. O facto do ponto C foi alegado pela Requerida (ponto 84.º da Resposta), não contraditado pela Requerente.

 

74. A repercussão de um imposto não se presume mesmo quando seja legalmente exigida a incorporação do imposto no preço de venda dos bens (repercussão legal), ou mesmo que, habitualmente, no domínio do comércio, o imposto seja parcial ou totalmente repercutido. Neste sentido, para o Tribunal de Justiça, a repercussão tributária – legal ou não – é uma questão de facto, que depende de fatores inerentes a cada transação comercial e será mais ou menos provável consoante as caraterísticas do mercado, mormente a sua elasticidade ou inelasticidade (Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, §44; Weber’s Wine, processo C-147/01, §96).

 

75. Ora, no caso das faturas emitidas por fornecedores que não são sujeitos passivos de CSR, desconhece-se a quem terão adquirido o combustível que forneceram à Requerente e se terão suportado CSR nessa aquisição (cf., neste sentido, Processo n.º 410/2023-T, acórdão do CAAD com data de 13-11-2023). Nestas condições, e quanto àquelas entidades, o Tribunal não considera provado que o valor da CSR tenha sido repercutido na Requerente. Acresce, quanto à Repsol Portuguesa, S.A, que a Requerente não juntou ao processo quaisquer documentos (ou outros meios de prova) que permitam ao Tribunal arbitral formar a convicção de que, no presente caso, a entidade que introduziu o combustível no consumo e o alienou à Requerente terá efetivamente repercutido sobre esta os montantes que lhe foram liquidados a título de CSR. Sem esses meios de prova – que estariam à disposição da Requerente, como ocorreu noutros processos – não logrou o Tribunal formar uma convicção suficientemente sólida e segura no sentido da repercussão.

 

IV – Fundamentação de direito

 

  1. Da ilegalidade das liquidações: a questão da violação do Direito da União

76. A questão que vem colocada é a de saber se a Contribuição de Serviço Rodoviário, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que constitui um imposto incidente sobre os combustíveis rodoviários também sujeitos ao Imposto sobre Produtos Petrolíferos, e que se encontra enquadrada pela Diretiva n.º 2008/118/CE, tem um “motivo específico” na aceção do artigo 1.º, n.º 2, dessa Diretiva.

 

77. Na processo de reenvio prejudicial que originou o Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, o Tribunal de Justiça foi chamado a responder à seguinte questão: “O artigo 1.°, n.º 2, da Diretiva [2008/118], e designadamente a exigência de “motivos específicos”, deve ser interpretado no sentido de que a finalidade de um imposto é meramente orçamental quando a sua criação é feita com o objetivo de financiar empresa pública concessionária da rede nacional de estradas, por ocasião da renovação da sua concessão, e à qual a receita do imposto fica genericamente afetada, e a sua estrutura não atesta a intenção de desmotivar um qualquer consumo?”.

 

78. Entendeu o Tribunal de Justiça que a resposta à questão prejudicial poderia ser claramente deduzida da jurisprudência ou não suscitava qualquer dúvida razoável, pelo que estariam verificados os pressupostos para que pudesse pronunciar-se através de Despacho fundamentado, nos termos do artigo 99.º do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça. O que aconteceu, em termos que o Tribunal arbitral sintetiza da seguinte forma (§§ 20-36):

 

a)    A Diretiva 2008/118/CE não se opõe a que os Estados-membros estabeleçam outras imposições indiretas para além do imposto especial sobre o consumo mínimo. Mister é que tais imposições, no sentido de não entravar as trocas comerciais, sejam cobradas por “motivos específicos” e sejam conformes com as normas fiscais da União aplicáveis ao imposto especial de consumo e ao imposto sobre o valor acrescentado no que diz respeito à determinação da base tributável, à liquidação, à exigibilidade e ao controlo do imposto (artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva).

b)    O facto de um imposto ter uma finalidade orçamental não obsta a que possa ter uma finalidade específica na aceção da Diretiva. Mas a existência de um motivo ou finalidade específicos pressupõe que se possa estabelecer, a partir do regime jurídico do tributo, uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa.

c)    A alocação da receita do tributo ao financiamento de atribuições administrativas, em particular a adjudicação da receita da CSR ao financiamento da concessionária da rede rodoviária nacional, constitui um elemento relevante, ainda que insuficiente, para que se logre identificar um motivo específico.

d)    Para que se considere que a imposição indireta prossegue efetivamente uma finalidade específica, mormente de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental, é necessário que o produto desse imposto seja obrigatoriamente utilizado para reduzir os custos sociais e ambientais associados à utilização da rede rodoviária nacional. O que não acontece com a CSR, cuja receita se destina, mais amplamente, a assegurar o financiamento da atividade de conceção, projeto, construção, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional. Acresce que a estrutura da CSR, nomeadamente a matéria coletável ou a taxa de tributação, não espelha, em termos suficientemente precisos, o propósito de reduzir a sinistralidade, dissuadir os sujeitos passivos do tributo de utilizarem a rede rodoviária nacional ou incentivar a adoção de comportamentos menos nocivos para o ambiente.

e)    A CSR tem uma finalidade puramente orçamental, na aceção da Diretiva 2008/118/CE.

 

79. É certo que, em sede de reenvio prejudicial de interpretação, o Tribunal de Justiça se limita a esclarecer o modo como devem ser interpretadas as disposições de Direito da União (originário ou derivado) pertinentes para a resolução do caso concreto, não se debruçando sobre a questão principal do processo, que é reduto de competência do órgão jurisdicional nacional.

 

80. Contudo, no Despacho analisado, o Tribunal de Justiça afirma claramente que as finalidades específicas apontadas pela AT – a redução da sinistralidade e a sustentabilidade ambiental – não se mostram suficientemente respaldadas na estrutura do tributo, em termos de matéria coletável ou da taxa de tributação aplicável. Esta asserção não é infirmada pelo que eventualmente resulte do clausulado do contrato de concessão da rede rodoviária nacional, ao contrário do que sugere a Requerida. O Tribunal de Justiça é muito claro no sentido de que não se prova uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa só porque a entidade a quem está legalmente alocada a respetiva receita assumiu compromissos no âmbito da redução da sinistralidade ou da proteção do ambiente. Não tendo sido alegados elementos que permitam chegar a outra conclusão, entende o Tribunal arbitral que a CSR é uma imposição indireta que não prossegue um motivo específico na aceção da Diretiva 2008/118/CE.

 

81. O Tribunal de Justiça tem declarado reiteradamente que os Estados-membros estão, em princípio, obrigados a restituir os impostos cobrados por um Estado-membro em violação do Direito da União. Esta obrigação conhece apenas uma exceção, reiterada no Despacho Vapo Atlantic: um Estado-membro só se pode opor ao reembolso de um imposto indevidamente cobrado à luz do direito da UE quando as autoridades nacionais provarem que o imposto foi suportado na íntegra por pessoa diferente do sujeito passivo e que o reembolso do imposto implicaria um enriquecimento sem causa deste último (Despacho Vapo Atlantic, §39-42; acórdão Weber’s Wine, processo C-147/01, §93-94).

 

82. Como se adiantou supra, a repercussão tributária – legal, ou não – é uma questão de facto, que depende de fatores inerentes a cada transação comercial e será mais ou menos provável consoante as caraterísticas do mercado, mormente a sua elasticidade ou inelasticidade (Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, §44; Weber’s Wine, processo C-147/01, §96).

 

83. Mesmo quando se prove a ocorrência de repercussão, a restituição do imposto ao sujeito passivo não consubstancia necessariamente um enriquecimento sem causa, porquanto o sujeito passivo pode sofrer prejuízos associados à diminuição das suas vendas, por comparação com produtos sucedâneos não sujeitos a idêntica imposição. A circunstância de a lei prever a repercussão não dispensa a AT ou o particular (consoante os casos) de demonstrar que essa repercussão ocorreu, cabendo a decisão ao órgão jurisdicional nacional decidir, a partir da livre apreciação dos elementos de prova que lhe tenham sido submetidos (Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, §44).

 

84. Acontece que, no presente caso, e pelas razões expostas supra, o Tribunal arbitral não deu como provada a repercussão da CSR sobre a Requerente. Na ausência de prova bastante de que tenha havido lugar à repercussão, não tem a Requerente direito à restituição do imposto, pelo que o pedido arbitral se mostra improcedente.

 

  1. Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios

85. Face à improcedência do pedido principal, fica necessariamente prejudicado o conhecimento do pedido acessório de reembolso do imposto pago e de pagamento de juros indemnizatórios.

 

V- Decisão

O Tribunal Arbitral decide:

a)    Julgar improcedentes as exceções dilatórias e perentórias invocadas;

b)    Julgar improcedente o pedido arbitral e manter na ordem jurídica os atos de liquidação impugnados, bem como a decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa;

d)    Julgar prejudicado o conhecimento do pedido acessório de reembolso do imposto pago e de pagamento de juros indemnizatórios.

 

Valor da causa: € 39 008, 74 nos termos do disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Custas: Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 1 836,00, a cargo da Requerente.

 

Notifique-se.

 

CAAD, 07 de junho de 2024

 

 

O Árbitro

 

(Marta Vicente)

 



[1] Cf., igualmente, os acórdãos do CAAD de 13-11-2023, processo n.º 410/2023-T; de 03-08-2022, processo n.º 629/2021-T; de 16-01-2023, processo n.º 305/2022-T; de 09-02-2024, processo n.º 490/2023-T; de 01-02-2024, processo n.º 332/2023-T; de 14-05-2024, processo n.º 790/2023-T, entre outros.

[2] O artigo 2.º do CIEC tem agora a seguinte redação: “Os impostos especiais de consumo obedecem ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam, designadamente nos domínios do ambiente e da saúde pública, sendo repercutidos nos mesmos, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”. Conclusão para que já antes apontava o artigo 93.º-A do CIEC, que se refere abertamente ao “imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos suportado pelas empresas de transporte de mercadorias e de transporte coletivo de passageiros”.