Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 333/2023-T
Data da decisão: 2024-06-14  IRC  
Valor do pedido: € 46.033,41
Tema: IRC; “despesas não documentadas”; e “despesas não devidamente documentadas”.
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SUMÁRIO:

 

As despesas não documentadas serão tributadas autonomamente, consoante o sujeito passivo consiga, ou não, “autenticar” a operação contabilizada, provando o seu destinatário e a natureza de despesa, a falta do mais determina que as mesmas sejam consideradas como indevidamente documentadas e como tal tratadas pela AT.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

I - RELATÓRIO

 

  1. A..., lda.,   contribuinte n.º..., sediada na Rua ..., n.º..., ..., Loures, doravante designada por  “Requerente”,  requereu  a constituição de Tribunal Arbitral e deduziu pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º  2, alínea a), 6.º, n.º 1, e 10.º, n.º 1, alínea a),  todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente,  relativamente às liquidações de IRC n.º 2022 ... (exercício de 2018), de juros compensatórios n.º 2022..., e da demonstração de acerto de contas n.º 2022 ... .

 

  1. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante também designada por “Requerida” ou “AT”.

 

  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor  Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) em 8  de maio de 2023 e, de seguida, notificado à AT.

 

  1. Nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 2, no artigo 6.º, n.º 1 e no artigo 11.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, na redação vigente, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro, que, no prazo legal, comunicou a aceitação do encargo.

 

  1. Em 23  de junho de 2023, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados das alíneas a) e c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

  1. O Tribunal Arbitral  foi constituído em 11 de julho de 2023, tendo a Requerida sido notificada para apresentar resposta na mesma data.

 

  1. A Requerida apresentou, em 27 de setembro de 2023, resposta,  na qual  defendeu, nomeadamente,  que:   o valor de 40 471,63 euros  deve ser tributado autonomamente como “despesas não documentadas”, pois as “folhas de obra” não permitem identificar o trabalhador ou prestador de serviços beneficiário dos valores pagos por “caixa” pela Requerente.

 

  1. A reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT realizou-se no dia 2 de fevereiro de 2024, tendo sido inquirida a seguinte testemunha: B... . O Tribunal Arbitral determinou, ainda,  a notificação das partes para apresentarem, querendo, alegações finais  simultâneas, no prazo de 10 dias.

 

  1. A Requerente  e  a Requerida apresentaram as alegações finais escritas em 14 de fevereiro de 2024, tendo reiterado os argumentos esgrimidos nos respetivos articulados iniciais.

 

  1. O prazo para proferir decisão arbitral foi sucessivamente prorrogado, por despachos de 11 de janeiro de 2024, 11 de março de 2024 e 10 de maio de 2024, com os fundamentos neles descritos.

 

Posição da Requerente

 

  1. A Requerente alega que as liquidações de IRC n.º 2022 ... e de juros compensatórios n.º 2022 ...(e demonstração de acerto de contas n.º 2022...), segmento em que tributa autonomamente 46 033,41 euros, a título de “despesas não documentadas” são ilegais, pois padecem do vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto e de direito.

 

  1. Vejamos, em concreto, os fundamentos:

 

 

  1. A Requerente recorre, por vezes, à contratação de mecânicos especializados, quer em regime de contrato de trabalho, quer em regime de contrato de prestação de serviços;

 

  1. O facto de existirem períodos de maior procura de serviços, em volume e/ou em especificidade de alguns dos trabalhos realizados, dificulta a contratação de profissionais dispostos à vinculação através de contrato de trabalho;

 

  1. Circunstância que conduz à necessidade de a Requerente proceder à contratação dos referidos profissionais em regime de prestação de serviços;

 

  1. Defende que, em alguns destes casos, a obtenção de faturas  (ou documento equivalente) emitidas pelos prestadores, referentes aos serviços contratados, se revela tardia ou impossível;

 

  1. No exercício de 2018 suportou gastos com a contratação de serviços “mecânicos especializados”, no montante de 80 943,25 euros, relativamente aos quais não dispõe de fatura  ou documento equivalente;

 

  1. A titulação e lançamento contabilístico de tais gastos é suportado por: i) “folhas de obra”; ii) mapas mensais; e iii) nota de contabilidade;

 

  1. Além do reconhecimento contabilístico do gasto [movimentação das contas gastos (#622118 – trabalhos especializados – mecânicos) e da conta de caixa (#111-Caixa A)], procede, igualmente, à afetação/alocação destes gastos no seu sistema informático de faturação, diretamente aos contratos/trabalhos de clientes finais;

 

  1. O erro quanto aos pressupostos de direito ocorre pelo facto de a Requerida confundir o conceito de “despesas não devidamente documentadas” e  de “despesas não documentadas”;

 

  1. Se a AT teve acesso  aos documentos que suportam a contabilidade, bem como às explicações prestadas pelos funcionários da Requerente, fica patente a natureza, origem, bem como a finalidade dos gastos;

 

  1. A referida circunstância permite concluir que estamos perante despesas documentadas, ainda que não cumpram os requisitos vertidos no artigo 23.º, números 3 e 4, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“CIRC”);

 

  1. A conclusão é reforçada pelo facto de as “folhas de obra” serem elaboradas por terceiros à Requerente, isto é, os prestadores de serviços, beneficiários dos pagamentos em causa;

 

  • Defende, em resumo, que as despesas objeto dos autos: i) estão documentadas (ainda que não devidamente); ii) da respetiva documentação é possível  conhecer-se a natureza, a origem e  a finalidade; e iii) estão identificados, ainda que de forma incompleta, os respetivos beneficiários, pelo que, não podem ser tributadas como “despesas não documentadas”.

 

  1. A liquidação de juros compensatórios é ilegal, pois não é  devido o  montante liquidado,  a título de imposto.

 

  1. Defende que, por último, se o ato tributário de liquidação em crise padece  de erro sobre os pressupostos de facto e de direito, não podendo a ilegalidade ser imputável à Requerente, assiste-lhe o direito à perceção de juros indemnizatórios.

 

Posição da Requerida

 

  1. A Requerida defende que não se verifica o erro sobre os pressupostos de facto e de direito invocado pela Requerente.

 

  1. Observa quanto à questão da qualificação dos gastos inscritos na contabilidade como respeitando a serviços de “mecânicos”, o seguinte:

 

  1. Não é pelo simples facto de existirem documentos elaborados pela Requerente (uma folha A4, com um mapa, ou uma “folha de obra”) que se pode afastar a qualificação como “despesas não documentadas”;

 

  1. O que se constata é que são saídas de meios financeiros da empresa, em dinheiro, no montante de 80 943, 25 euros, não sendo possível apurar quem são os seus beneficiários ou destinatários, pois a Requerente não identifica esses trabalhadores,  não sendo suficiente descrever, no quadro Excel, um alegado nome, uma assinatura ilegível, sem o respetivo NIF;

 

  1. O referido valor, alegadamente pago a trabalhadores, não foi declarado para todos os efeitos legais, tanto para a Segurança Social, como para efeitos de tributação em  Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”). Ou, dito de outro modo, estamos na presença de uma  situação de evasão fiscal que o legislador pretendeu penalizar através de tributação autónoma, incidente sobre os desvios de meios financeiros das empresas a favor de desconhecidos, sobre estas “despesas não documentadas”;

 

  1. Paralelamente, o lançamento destas operações referentes a pagamentos é efetuado na contabilidade da Requerente, debitando a conta do SNC 622118 – Trabalhos Especializados (mecânicos), e creditando a conta 11 – Caixa, estando a Requerente obrigada, quando os pagamentos são superiores a  3 000 euros, a efetuá-los por transferência bancária ou cheque. Não tendo procedido de tal forma, fica impossibilitada  a identificação dos beneficiários;

 

  1. Adicionalmente, a Requerente, não só durante o procedimento de inspeção tributária, como também nos presentes autos, não apresentou qualquer esclarecimento para os gastos, nem identificou os beneficiários ou os fundamentos dos respetivos pagamentos;

 

  1. A junção de “folhas de obra” aos autos não obsta à conclusão de que ficam por identificar os trabalhadores (ou prestadores de serviços) beneficiários dos valores pagos por “caixa”, pois contêm uma mera menção a um ou dois nomes/sobrenomes;

 

  1. A saída de meios financeiros da empresa, titulada pelo referido tipo de documentos elaborados internamente pela Requerente e em que não é possível conhecer o beneficiário corresponde a “despesas não documentadas”;

 

  1. A referida conclusão é reforçada pelo facto de inexistirem recibos de quitação dos pagamentos efetuados pela empresa, assinados pelos prestadores de serviços.

 

  1. Defende que são devidos juros compensatórios, na medida em que se verificou o retardamento da liquidação da tributação autónoma, existindo igualmente nexo de causalidade entre a atuação do contribuinte e a consequência de o sujeito ativo não ter recebido a prestação tributária no momento fixado na lei.

 

  1. Propugna, por último, que não existindo  qualquer “erro imputável aos serviços” na liquidação do tributo, não deve ser reconhecido o direito a juros indemnizatórios.

 

19. Questões a Apreciar

 

  1. Se a liquidação de IRC n.º 2022..., no segmento em que tributa autonomamente como “despesas não documentadas”, o montante de 40 471,63 euros, é  ilegal por erro nos pressupostos de facto e de direito;

 

  1. Se a liquidação de juros compensatórios (5561,79 euros) é ilegal, na medida em não é devido o montante  liquidado adicionalmente,  a título de imposto;

 

  1. Se a Requerente tem direito ao reembolso de imposto indevidamente pago;

 

  1. Se a Requerida deve ser condenada no pagamento de juros indemnizatórios, perante a existência de “erro imputável aos serviços”.

 

 

II – FUNDAMENTAÇÃO

 

MATÉRIA DE FACTO

 

20. Factos com relevância para a apreciação da causa que se consideram provados

 

20.1 A Requerente é uma sociedade comercial por quotas, com sede em território português, que se dedica ao comércio de peças de veículos automóveis e sua  importação, manutenção e reparação de peças, acessórios e de partes de veículos automóveis pesados, montagem e substituição de vidros e para-brisas dos mesmos.

(PA)

 

20.2 A Requerente foi notificada, no dia 11 de maio de 2022, do início de um procedimento de inspeção tributária de natureza externa, respeitante ao exercício de 2018, com fonte na Ordem de Serviço n.º OI2022... .

(PA)

 

20.3 O âmbito da Ordem de Serviço n.º OI2022... foi alterado de parcial (IRC e IVA) para geral, tendo a Requerente sido pessoalmente notificada em 14 de setembro de 2022.

(PA)

 

20.4 No dia 26 de outubro de 2022 foi a Requerente notificada do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária, no qual se concluiu que se encontravam em falta os seguintes montantes de imposto: (i) 40 471,63 euros, a título de tributação autónoma – “despesas não documentadas “; e (ii) 114 860,89 euros, a título de retenções na fonte de IRS.

(PA)

 

20.5 O projeto de Relatório de Inspeção Tributária, notificado a 26 de outubro de 2022, continha, nomeadamente, a seguinte fundamentação:

 

V.1.1 — Tributação Autónoma

(…)

No que concerne à conta 622118-Trabalhos Especializados Mecânicos, está registado na contabilidade do sujeito passivo o valor total de € 80 943,25, que  de acordo com o descritivo dos lançamentos mensais são relativos a pagamento a mecânicos (obras) e pagos a dinheiro, uma vez que essa conta é lançada em contrapartida a crédito conta 111-CaixaA. Os documentos suporte a esses lançamentos são meras folhas A4, onde consta um quadro em Excel com o primeiro nome de cada beneficiário/mecânico (sem nome completo ou NIF) e o valor da quantia eventualmente paga a cada um deles (anexo 2). Ora, o documento normal de suporte das aquisições de bens ou prestações de serviço deveria ser a fatura ou documento equivalente, nos termos do artigo 36.º do CIVA. A inexistência de documento externo destinado o comprovar uma operação para a qual ele deveria existir afeta necessariamente, e em princípio, o valor probatório do contabilidade e essa falta não pode ser suprida pela apresentação de um documento interno.

Um documento de origem interna só pode substituir um documento de origem externa quando sejam reunidas provas adicionais que confirmem a autenticidade dos movimentos nele refletidos. Assim, a falta de documento externo pode ser suprida por outros meios de prova que demonstrem de forma inequívoca a justeza do lançamento efetuado. O que não acontece neste caso, o sujeito passivo não apresentou qualquer esclarecimento acerca desses gastos, nem a identificação dos beneficiários ou os fundamentos dos respetivos pagamentos a mecânicos (obras). Além disso,  a empresa estava obrigada por lei, nos termos do art.º 63-E da LGT (quando os montantes forem iguais ou superiores a € 3000,00), a pagar através de transferência bancária ou cheque, mas efetuou os pagamentos por dinheiro, impossibilitando a identificação dos beneficiários efetivos das verbas.

Nos termos do estatuído no artigo 23.º-A, n.º 1, al. b, do CIRC só são dedutíveis para efeitos fiscais os encargos devidamente documentados, ou seja, sob  a forma estatuída na lei. Sabendo que os documentos se suporte a esses lançamentos são despesas não comprovadamente documentadas, por isso não seriam aceites como custos fiscais, o sujeito passivo corretamente acresceu a totalidade do valor em causa ao Lucro Tributável (campo 752, do quadro 07,da Modelo 22), no entanto, essas despesas por não serem tituladas por documento idóneo, do qual deveriam constar as identidades da entidade pagadora e da entidade adquirente e a designação da respetiva operação são consideradas despesas não documentadas. Como tal, devem ser tributadas autonomamente, à taxa de 50%, nos termos do artigo 88.º, n.º 1, do CIRC.

(PA)

20.6 A Requerente exerceu o direito de audição prévia, no qual dissentiu, nomeadamente, quanto à tributação autónoma, por “despesas não documentadas”.

(PA)

 

20.7 O Relatório final de Inspeção Tributária manteve a correção quanto à tributação autónoma de “despesas não documentadas”.

(PA)

 

20.8  A Requerente foi, assim, notificada da liquidação de IRC n.º 2022..., da liquidação de juros compensatórios n.º  2022..., e da demonstração de acerto de contas n.º 2022..., das quais resultaram um montante a pagar de  46 033, 41 euros. 

(Documento junto pela Requerente, sob o n.º 1, com o pedido de pronúncia arbitral)

 

20.9 A Requerente procedeu ao pagamento, no dia 31 de janeiro de 2023, do valor constante da demonstração de acerto de contas (46 033,41 euros).

(Requerimento apresentado pela Requerente, sob o n.º 6, em 2 de junho de 2023)

 

20.10 O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado no dia 5 de maio de 2023.

(Sistema informático do CAAD).

 

21.Factos não provados

 

21.1 A Requerente contratou os prestadores de serviços de mecânica inscritos nas “folhas de obra”/”resumos mensais”.

 

Não existem quaisquer outros factos não provados com relevância para decisão.

 

 

22. Fundamentação dos factos provados e não provados

 

O Tribunal Arbitral, quanto à matéria de facto, não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (artigo 123.º, n.º 2,  do  Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito (artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, nos quais se descreve a fonte utilizada para que se os dê como assentes.

O facto não provado emerge da circunstância de não terem sido juntos quaisquer documentos que permitissem dar como assente as prestações de serviços de mecânica automóvel, pois não há quaisquer e-mails a solicitar os serviços, registo do trabalho através de documento que permita evidenciar a autenticidade da ligação entre os pretensos prestadores e a Requerente.

O depoimento da testemunha revelou-se contraditório, pois, se por um lado defendeu que não acompanha a gestão administrativa da Requerente, por outro,  referiu inicialmente que não sabia se a impugnante tinha trabalhadores ao serviço com caraterísticas profissionais adequadas para os serviços que presta no domínio das “caixas de velocidade” e, em ato contínuo, referiu que tinha um, que quando questionado se não existia recurso ao trabalho suplementar disse que tinha isenção de horário de trabalho e que nem sempre estava nas instalações da  Requerente.

Não se deram como provadas, nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

23.MATÉRIA DE DIREITO

 

23.1 Questão da ilegalidade por erro nos pressupostos de facto e de direito

 

A questão central dos autos consiste na qualificação do valor  pago (80 943,25 euros), que a Requerente inscreveu na sua contabilidade como “mecânicos”. Se para a Requerente estamos perante “despesas não devidamente documentadas”, já para a Requerida são “despesas não documentadas”.

O legislador consagrou, no artigo 88º.º do CIRC, uma lista de tributações autónomas relativas a encargos suportados pelos sujeitos passivos que não estão diretamente conexos com a tributação do rendimento sujeito àquele imposto. Efetivamente, pretendeu, nomeadamente, tributar alguns encargos suportados ou despesas efetuadas pelas empresas que manifestem uma duvidosa “empresarialidade” ou tenham uma natureza remuneratória.

Uma das modalidades (de tributação autónoma) é a das “despesas não documentadas”, objeto de tributação à taxa de 50%, ancorada no combate à fraude e evasão fiscais, obviando à erosão da base tributável.

O antecedente normativo da tributação das “despesas não documentadas” encontra-se nas “despesas confidenciais ou não documentadas”, previsto na ordem jurídica através do Decreto-Lei  n.º 192/90, de 9 de junho (artigo 4.º).

A referida modalidade de tributação foi introduzida no CIRC, através da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro (artigo 69.º-A) e na qual se consagrou a tributação das referidas despesas à taxa de 50%.

A nomenclatura de “despesas confidenciais” foi mantida até à Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, na medida em que nesta foi eliminada a referência a “despesas confidenciais”, constando somente no CIRC, a partir de então, as “despesas não documentadas”.

O artigo 88.º, n.º 1, do CIRC tinha, em 2018,  a seguinte redação:

 

As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50%, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º.

 

O conceito de “despesas não documentadas” é distinto de “despesas não devidamente documentadas”. Se no primeiro a doutrina[1] sustenta que se subsumem no conceito: “[a]quelas (…) que carecem de qualquer documento justificativo ou em que os documentos existentes são de tal modo deficientes que não permitem conhecer quer a natureza da despesa, quer o respetivo beneficiário”, no segundo,  as despesas têm um suporte documental, contudo, não cumpre com os requisitos legalmente previstos para a documentação do gasto.

As “despesas não documentadas”, não só não são dedutíveis como gastos ao lucro tributável,  impondo-se o acréscimo ao resultado líquido do período,  como também são objeto de tributação autónoma.

Quanto à prova: é à AT que  cabe o ónus da prova  dos pressupostos da sua atuação (matéria que permita subsumir o exfluxo financeiro, no caso sub iudice, a “despesas não documentadas”),  artigo 74.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária (“LGT”); pelo contrário, deverá o sujeito passivo demonstrar  a natureza da despesa e o seu destinatário, com vista a afastar a pretensão tributária da AT.

Já nas “despesas não devidamente documentadas” é o sujeito passivo, titular do interesse na dedução dos gastos, que deve provar a bondade do lançamento contabilístico e a ilegalidade da correção fiscal efetuada pela AT com fonte na insuficiência da documentação. Ou, dito de outro modo, que o gasto foi suportado pelo sujeito passivo para garantir a obtenção de rendimentos.

A jurisprudência[2] observa que:

 

“[a]s despesas não documentadas serão tributadas autonomamente, consoante o sujeito passivo consiga, ou não, “autenticar” a operação contabilizada, provando o seu destinatário e a natureza de despesa, a falta do mais determina que as mesmas sejam consideradas como indevidamente documentadas e como tal tratadas pela AT”.

 

Já quanto à teleologia da  tributação autónoma objeto dos autos “despesas não documentadas” observa a jurisprudência[3]:

 

No entanto, o artigo 81.º do mesmo Código, considerando a redação anterior à Lei n.º 64/2008, estabelecia taxas de tributação autónoma, visando designadamente, por um lado, na situação prevista nos n.ºs 1 e 2, as despesas não documentadas, que são tributadas à taxa de 50 % (sem prejuízo da sua não consideração como custo nos termos do artigo 23.º), e, por outro lado, nas situações previstas nos n.ºs 3 e 4, os encargos dedutíveis como custos, que eram tributados a 5%, em geral, e a 15% quando se tratasse de despesas relativas a viaturas ligeiras ou mistas cujo custo de aquisição seja superior a € 40 000, quando suportados por sujeitos passivos que apresentem prejuízos fiscais nos dois exercícios anteriores.

No caso dos n.ºs 1 e 2, estamos perante despesas que são incluídas na contabilidade da empresa, e podem ter sido relevantes para a formação do rendimento, mas não estão documentadas e não podem ser consideradas como custos, e que, por isso, são penalizadas com uma tributação de 50%. A lógica fiscal do regime assenta na existência de um presumível prejuízo para a Fazenda Pública, por não ser possível comprovar, por falta de documentação, se houve lugar ao pagamento do IVA ou de outros tributos que fossem devidos em relação às transações efetuadas, ou se foram declarados para efeitos de incidência do imposto sobre o rendimento os proventos que terceiros tenham vindo a auferir através das relações comerciais mantidas com o sujeito passivo do imposto. (nosso sublinhado) Para além disso, a tributação autónoma, não incidindo diretamente sobre um lucro, terá ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de ilicitude penal ou de menor transparência fiscal.

 

Na ratio da concreta tributação autónoma – despesas não documentadas – está, portanto, a reprovação fiscal pela circunstância de, nomeadamente, não ser possível aferir se os montantes pecuniários foram declarados para efeitos de incidência de imposto sobre o rendimento dos sujeitos que deles beneficiaram.

Podemos então formular algumas conclusões: (i) as “despesas não documentadas”[c]arecem de qualquer documento justificativo ou em que os documentos existentes são de tal modo deficientes que não permitem conhecer quer a natureza da despesa, quer o respetivo beneficiário; (ii) não são consideradas um custo fiscal e, paralelamente, estão sujeitas a tributação autónoma; (iii) e, teleologicamente, têm por fonte a reprovação fiscal pela circunstância de, nomeadamente, não ser possível aferir se os montantes pecuniários foram declarados para efeitos de incidência de imposto sobre o rendimento dos sujeitos que deles beneficiaram.

A Requerente defende, no caso sub iudice, que os  80 943,25 euros constituem  valores de prestações de serviços realizadas por mecânicos, tendo o seu valor sido pago a dinheiro e, concomitantemente, as “folhas de obra” (documento em Excel com um nome próprio e, por vezes, um apelido, sem número de contribuinte) permitem constatar que estamos perante despesas “não devidamente documentadas”.

Sucede que, tendo a Requerente junto aos autos “folhas de obra” que não permitem identificar o destinatário do fluxo financeiro, pois os nomes, não só não estão completos, como também não há referência ao NIF de cada um dos beneficiários, não pode o Tribunal Arbitral considerar que estamos perante “despesas não devidamente documentadas”. E não se argumente em sentido contrário com o facto de existir um “documento interno”, as folhas Excel, pois não existem  quaisquer evidências de que os fluxos financeiros serviram para efetuar os pagamentos que a Requerente alega, destaca-se que não há, nomeadamente,  quaisquer e-mails a solicitar os serviços de mecânica ou  documentos com a identificação completa do prestador de serviços (ainda que somente tenham a identificação civil), que permitam, como sustenta a jurisprudência, “autenticar” a operação contabilizada, “[p]rovando o seu destinatário e a natureza de despesa”.

A prova testemunhal não permitiu concluir em sentido diverso do vertido no parágrafo anterior.

Em resumo, a Requerente não conseguiu “autenticar” quem são os destinatários das despesas,  prova essa necessária para que, como observa a jurisprudência, não se considerasse estarmos perante “despesas não documentadas.”

As despesas foram contabilizadas sem um suporte documental que permita, sem margem para dúvidas, identificar o destinatário. Assim, é imperativo concluir que estamos perante “despesas não documentadas” e, como tal, a liquidação de IRC (tributação autónoma) e a (liquidação) de  juros compensatórios mantêm-se na ordem jurídica.

 

23.2 Questão da restituição do imposto que a Requerente considera indevidamente pago e da condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios

 

A  Requerente pediu ainda a restituição do imposto e a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto, até ao reembolso integral da quantia devida.

Ora, tendo em consideração que se julgou improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, em virtude de não se imputar qualquer ilegalidade à liquidação de IRC no segmento impugnado, não se pode considerar que ocorreu um qualquer erro imputável aos serviços que justifique a plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido praticado o ato de liquidação nos termos anteriormente referidos. Assim sendo, a liquidação da tributação autónoma “despesas não documentadas” é legal,  não ocorrendo  erro imputável à AT, pois não foi pago qualquer montante de imposto (e de juros compensatórios) que deva ser reembolsado, não assistindo igualmente à Requerente o direito ao recebimento de quaisquer juros indemnizatórios.

 

III – DECISÃO

 

Termos em que se decide:

 

  1. Julgar improcedente o pedido de anulação da liquidação de IRC n.º 2022..., segmento da tributação autónoma “despesas não documentadas”, mantendo-se, por isso, a mesma na ordem jurídica;

 

  1. Julgar improcedente o pedido de anulação da liquidação de juros compensatórios n.º 2022... e demonstração de acerto de contas mantendo-se, por isso, as mesmas na ordem jurídica;

 

  1. Julgar improcedente o pedido de restituição de imposto, com as legais consequências;

 

  1. Julgar improcedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios;

 

  1. Condenar a Requerente no pagamento integral de custas arbitrais.

 

VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em  46 033,41 euros, nos termos do artigo 97.º - A do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

CUSTAS

 

Custas no montante de 2142  euros, em conformidade com o RCPAT e a Tabela I a este anexa e com os artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT, e 527.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, a cargo da Requerente.

 

Notifique.

 

Lisboa, 14 de junho de 2024

 

 

 

O árbitro,

                                                                                               

 

Francisco Nicolau Domingos

 

 

 



[1] HELENA MARTINS, Lições de Fiscalidade (Coord. João Ricardo Catarino e Vasco Branco Guimarães), Vol. 1, 7.ª edição, Almedina, 2020, p. 405.

 

[2] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 31 de março de 2022, proferido no processo n.º 00010/12.5BECBR.

[3]Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/2011, de 12 de janeiro,  proferido no processo n.º 204/2010.