Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 936/2019-T
Data da decisão: 2024-06-19  IRC  
Valor do pedido: € 41.969,69
Tema: Migração de processos – Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de outubro. Suspensão da instância. Litispendência. IRC. Realizações de utilidade social.
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SUMÁRIO:

 

  1. Independentemente da motivação ou decisão do recurso interposto pelo Ministério Público, verifica-se, in casu, a repetição de ações com o mesmo objeto, suscetível de configurar uma situação de litispendência (artigo 580.º, n.º 1, do CPC), exceção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (artigos 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea i), ambos do CPC e 89.º, n.º 4, alínea l), do CPTA).

 

DECISÃO ARBITRAL

I.  RELATÓRIO

Em 31 de dezembro de 2019 A…, SA, com o NIPC …  e sede no …, em …, Oeiras, na qualidade de sociedade incorporante por fusão da B…, SA, com o NIPC … (doravante designada por Requerente), veio, ao abrigo do disposto no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de outubro, e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), não pretendendo utilizar a faculdade de designar árbitro e juntando cópia da certidão de desistência da instância na impugnação judicial que correu termos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra - Unidade Orgânica 2, Processo: …/10.4BESNT, emitida automaticamente pelo Sistema de Informação dos Tribunais Administrativos e Fiscais em 20.12.2019, com o Código de acesso …-…-…-….

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exm.º Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT e, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, encargo aceite no prazo aplicável, sem oposição das Partes.

 

 

A. Objeto do pedido:

O pedido de pronúncia arbitral na origem dos presentes autos tem por objeto a apreciação da legalidade das decisões expressas de indeferimento parcial da reclamação graciosa e do subsequente recurso hierárquico apresentados tendo em vista a correção ao lucro tributável considerado na autoliquidação de IRC do exercício de 1999, assim como a anulação parcial da mesma autoliquidação, pela quantia de € 41 969,69.

 

Mais pede a Requerente que, com a procedência do pedido, seja a Requerida condenada na restituição do tributo indevidamente pago e no pagamento das custas de arbitragem, na proporção do respetivo decaimento, tudo com as demais consequências legais.

 

 

B. Síntese da posição das Partes

 

a.  Da Requerente:

A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, a Requerente alega, em síntese:

  1. Em 31 de maio de 2000, a Requerente entregou a declaração modelo 22 de IRC referente ao exercício de 1999, tendo procedido à autoliquidação de imposto pela quantia global de 1 488 671 412$00 (€ 7 425 461,70), que então pagou.
  2. Verificando ter havido erro nos valores inscritos no Quadro 07 (Apuramento do lucro tributável), a acrescer – campo 209 e a deduzir – campo 237, de cuja correção resultaria a alteração do lucro tributável e a restituição do imposto pago em excesso, apresentou, em 29 de maio de 2002, reclamação graciosa da autoliquidação de IRC do exercício de 1999.
  3. As correções pretendidas resultavam dos seguintes factos:
  1. No campo 209 (Realizações de utilidade social não dedutíveis) foi declarado um valor de 109 250 864$00 (€ 544 941,01);
  2. Em 1999, a Requerente suportou custos com contratos de seguros de doença, que totalizaram 131 604659$00 (€ 656 441,27);
  3. No mesmo exercício, suportou contribuições elegíveis para o fundo de pensões no montante de 392 397 000$00 (€ 1 957 267,98);
  4. A totalidade dos custos, no montante de 524 003 659$00 (€ 2 613 719,25), é de considerar como realizações de utilidade social enquadráveis no número 2 do artigo 40.º do CIRC.
  1. A AT deferiu parcialmente a reclamação, aceitando apenas as correções ao campo 209 do Quadro 07 da declaração modelo 22 de IRC do exercício de 1999, das quais decorreu um acréscimo ao lucro tributável da quantia de 8 221 135$00 (€ 41 006,85), e não as correções ao valor declarado no campo 237, referentes às contribuições elegíveis para o fundo de pensões da entidade, efetuadas no exercício de 1999, no valor de 392 397 000$00 (€ 1 957 267,98), devidamente certificadas pela entidade gestora do fundo.
  2. A Requerente interpôs recurso hierárquico da decisão proferida na reclamação graciosa, também indeferido de acordo com a notificação de 24 de agosto de 2010, tendo deduzido a correspondente impugnação judicial (processo n.º …/10.4BESNT a que se refere a certidão de desistência da instância com cópia em anexo ao PPA).
  3. As decisões de indeferimento parcial da reclamação graciosa e de indeferimento do recurso hierárquico fundaram-se no argumento de que as contribuições elegíveis para fundos de pensões excediam o limite de 15% da massa salarial, previsto no n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRC; no entanto, por via da correção aceite pela Requerida, os custos que excediam aquele limite, foram integralmente acrescidos e sujeitos a tributação.
  4. A Requerida aceita que a Requerente teve custos nos termos do n.º 2 do artigo 38.º, do Código do IRC, na redação à data dos factos, de 524 003 659$00 (€ 2 613 719,23), assim como aceita que o procedimento contabilístico adotado está de acordo com a Diretriz Contabilística 19 e que o montante de contribuições para fundos de pensões constitui o valor financeiro (entradas de cash) das contribuições efetuadas, segundo o critério de caixa acolhido pelo legislador fiscal.
  5. Mas não aceita a dedução do ajustamento decorrente da Diretriz Contabilística 19, da quantia de 169 488 000$00 (€ 845 402,58), que traduz a diferença entre os custos refletidos no resultado líquido do exercício, no valor de 222 209 000$00 (€ 1 111 985,40) e o montante das contribuições efetuadas e elegíveis para o fundo de pensões em 1999, de 392 397 000$00 (€ 1 957 267,98).
  6. Esta diferença, de 169 488 000$00 (€ 845 402,58), deve ser considerada no cálculo do valor a inscrever no campo 237 e terá reflexos no valor do lucro tributável apurado e no montante final do imposto a pagar.
  7. De acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 38.º, do Código do IRC, na redação em vigor à data dos factos, para efeitos do cálculo do limite de 15% da massa salarial a que se refere o n.º 2 do mesmo artigo, não são considerados os valores dos encargos com pensionistas já existentes na empresa à data da celebração do contrato de seguro ou em esquemas complementares de segurança social previstos na respetiva legislação.
  8. Como decorre da Diretriz contabilística 19, esses valores, desde que certificados por seguradoras ou outras entidades competentes, são aceites fiscalmente como custos, pois o que releva para esse efeito são as contribuições efetivas para o fundo de pensões e não as importâncias que integrem a demonstração dos resultados.
  9. Ora, no caso dos autos, o objeto do pedido de revisão da autoliquidação do IRC do exercício de 1999 tem em conta o facto de as contribuições elegíveis para o fundo de pensões deixarem de concorrer para o resultado líquido do exercício.
  10. Com efeito, o valor dos custos das realizações de utilidade social registados pela Requerente em 1999, que excede o limite estabelecido pelo n.º 2 do artigo 38.º, do Código do IRC, já foi integralmente tributado, por via da sua inclusão no campo 209 da declaração modelo 22.
  11. Assim, ao tributar o excesso sobre o limite de 15% da massa salarial, no valor de 117 741 999$00 (€ 585 947,86) e impor o mesmo limite sobre o valor das contribuições para o fundo de pensões, a AT está a tributar duas vezes a mesma realidade, o que configura duplicação de coleta.
  12. A Requerente concorda com a Requerida no sentido de que deve ser acrescido o saldo da conta 644180 (prémios para pensões), mas considera que, na sequência da correção já efetuada pela AT ao campo 209, a esse valor deve ser abatido o valor das contribuições efetivamente pagas para o fundo de pensões, o que se traduzirá numa diminuição do lucro tributável em 22 508 000$00 (€ 112 269,43) e do imposto devido em 41 969,69, cuja anulação e reembolso se pretende, tudo com as demais consequências legais.

 

A Requerente junta 13 documentos, entre os quais a sobredita certidão judicial eletrónica do requerimento apresentado para a extinção da instância judicial no processo n.º …/10.4BESNT e a cópia carimbada da petição de impugnação judicial.

 

  b. Da Requerida:

Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º do RJAT, a AT apresentou resposta, juntando cópia da contestação apresentada no processo n.º …/10.4BESNT, e informando que os elementos juntos pela Requerente ao PPA reproduzem o processo administrativo oportunamente remetido àquele processo de impugnação judicial e ainda não devolvidos.

 

Defendendo por exceção e por impugnação a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, a AT fundamenta a sua resposta com os seguintes argumentos:

 

  1. Por exceção:

Invoca a Requerida a exceção de litispendência, pois, não obstante a Requerente ter feito juntar cópia da certidão de desistência da instância, o processo de impugnação judicial n.º …/10.4BESNT ainda se encontra ativo no Sistema de Informação dos Tribunais Administrativos e Fiscais (SITAF), o que significa não ter sido proferida sentença de homologação da desistência, com a consequente extinção da instância, conforme o documento que junta (extrato informático da ficha de registo do processo de impugnação identificado, pendente de julgamento).

 

Por impugnação:

A AT refere, como questão prévia, que o pedido de constituição do tribunal arbitral não cumpre o requisito a que se refere o n.º 2 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de outubro, face à divergência de valores indicados no PPA (€ 41 969,69) e no processo de impugnação judicial n.º …/10.4BESNT (41 797,90).

 

Quanto ao seu entendimento sobre a questão controvertida, remetendo para as informações que sustentam os despachos de deferimento parcial da reclamação graciosa e de indeferimento do recurso hierárquico juntos pela Requerente, vem a AT defender o seguinte:

 

  1. Está em causa o tratamento fiscal das contribuições efetuadas pela Requerente para o Fundo de Pensões que, em aplicação da Diretriz Contabilística n.º 19, deixaram de concorrer para a formação do lucro tributável.
  2. De acordo com o artigo 38.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CIRC, na redação à data dos factos, são dedutíveis os gastos do período de tributação, até ao limite de 15 % das despesas com o pessoal escrituradas a título de remunerações, as contribuições para fundos de pensões e equiparáveis, sendo o limite elevado para 25% se os trabalhadores não tiverem direito a pensões da Segurança Social.
  3. A dedutibilidade fiscal dos custos relativos ao acréscimo das responsabilidades por pensões de reforma e de sobrevivência que devam ser reconhecidos em resultados transitados, depende da entrega efetiva aos fundos daquelas importâncias.
  4. Assim, ao contrário da regra geral de reconhecimento das componentes negativas do lucro tributável que se pauta pelo princípio da especialização dos exercícios, assente num critério de competência económica, é exigida a correspondência com contribuições efetivas, segundo o princípio da competência financeira.
  5. A Requerente sustenta que teve custos nos termos do n.º 2 do artigo 38.º, do CIRC no montante de € 2 613 719,23, referentes a contribuições para fundos de pensões, mas não considerou o ajustamento da diferença entre os custos decorrentes da aplicação da Diretriz Contabilística n.º 19 refletidos no resultado líquido apurado, no montante de € 1 111 865,40 (222 909 000$00) e o montante das contribuições efetuadas e elegíveis para o fundo de pensões em 1999, no montante de € 1 957 267,98 (392 397 000$00).
  6. Conclui a Requerente que a diferença entre o montante efetivo de contribuições para o fundo de pensões em 1999 e os custos decorrentes da aplicação da Diretriz Contabilística n.º 19 refletidos no resultado líquido apurado deverá ser acrescida no campo 237 (à data dos factos) da declaração modelo 22 e efetuada a sua dedução ao valor do lucro tributável apurado, acrescendo ao lucro tributável os custos que não relevam para efeitos fiscais, mas que tiveram impacto direto nesse mesmo resultado.
  7. A Requerente pretende que seja considerado o valor de € 1 957 267,98 como dedução relativa a contribuições para fundo de pensões; porém, após análise dos meios probatórios oferecidos, na decisão do recurso hierárquico concluiu-se que este valor ultrapassa o limite de 15% (€ 1 518 484,44) previsto, à data, no nº 2 do artigo 38.º do CIRC.
  8. Por outro lado, a diferença entre o montante de 222 909 000$00 (€ 1 111 865,40) e o saldo da conta 644180, de 369 889 000$00 (€ 1 844 998,55), corresponde à provisão inscrita na conta 291001 - Provisão para benefícios de reforma pelo valor de 146 980 000$00 (€ 733 133,15) que, não respeitando a uma contribuição efetiva, terá de ser acrescido no quadro 7 da declaração Modelo 22, pois o limite de 15% da massa salarial previsto no n.º 2 do artigo 38.º, já foi totalmente preenchido.
  9. Como se alcança do exposto, existe convergência quanto ao montante dos custos contabilizados na conta 644180 - Prémios para pensões, a acrescer ao lucro tributável, de € 1 844 998,55 (369 889 000$00); a discordância incide exclusivamente no montante das contribuições a deduzir que, do ponto de vista da Requerente, em resultado da aplicação do limite de 15% previsto no número 2 do artigo 38.º do CIRC, deve ser de € 1 957 267,98, ao passo que, nos termos da posição da AT, expresso na apreciação do recurso hierárquico, deve ser de € 1 518 484,44.
  10. A divergência entre o regime contabilístico e fiscal decorrente das regras da DC n.º 19 e o regime fiscal implicava que os sujeitos passivos de IRC tivessem de efetuar correções ao resultado líquido do exercício sempre que não existisse coincidência entre o valor das contribuições ou entregas realizadas para os fundos de pensões e o valor do acréscimo de responsabilidades por benefícios de reforma contabilizadas como custos.
  11. Assim, quando o valor das contribuições efetuadas, determinado de acordo com os limites percentuais fixados no artigo 38.º, números 2 e 3 do Código do IRC, fossem superiores às quantias contabilizadas como custos, deveria ser deduzida a respetiva diferença na determinação do lucro tributável e, ao invés, se o limite das contribuições fosse inferior às quantias contabilizadas como custos, deveria ser acrescida a diferença.
  12. Não obstante a concordância quanto ao montante dos custos contabilizados na conta 644180 – Prémios para pensões, a acrescer ao lucro tributável, de € 1 844 998,55 (369 889 000$00), não assiste razão à Requerente quando sustenta que o montante a deduzir, em resultado da aplicação do limite de 15% previsto no número 2 do artigo 38.º, do CIRC, deve ser de € 1 957 267,98, sendo o mesmo de € 1 518 484,44, como melhor resulta da Informação n.º …/10, de 02/07/2010, da Direção de Serviços do IRC, no recurso hierárquico.

 

*

Notificada a Requerente para responder à matéria de exceção invocada pela AT, veio esta, por requerimento de 18 de junho de 2020, defender a não existência litispendência entre os presentes autos e o processo de impugnação judicial, porquanto, para efeitos de cometimento do processo para a arbitragem, ao abrigo do regime especial estabelecido no Decreto-Lei n.º 81/2018, basta que tenham sido cumpridos os pressupostos previstos no seu artigo 11.º, como acontece no caso concreto, designadamente que (i) o processo se encontrasse pendente de decisão em primeira instância no tribunal tributário e (ii) que a apresentação do pedido arbitral fosse precedida de pedido de desistência da instância, demonstrável através de certidão judicial eletrónica do requerimento apresentado para a extinção da instância judicial.

 

Considera a Requerente que não era pressuposto do cometimento dos processos à arbitragem, ao abrigo do regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de outubro, a existência, à data da submissão do pedido arbitral, de sentença homologatória do pedido de desistência, bastando a formulação do referido pedido de desistência, pois o objetivo desse regime é precisamente agilizar a resolução de pendências nos tribunais administrativos e fiscais e que a exigência de sentença homologatória da desistência, fugindo totalmente ao controlo dos contribuintes, desvirtua em absoluto a faculdade que lhes é conferida ao abrigo do citado Decreto-Lei.

 

Caso assim não se entenda, vem a Requerente, a título subsidiário, solicitar a suspensão da presente instância até que seja homologado o pedido de desistência da instância apresentado pela Requerente junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra em 20 de dezembro de 2019.

 

Mais confirma a Requerente o valor económico do pedido, face ao requerimento apresentado nos referidos autos de impugnação judicial em 14 de dezembro de 2010, no qual solicitou a correção do valor da ação, de € 41 797,90 para € 41 969,69.

 

 

Pelo Despacho Arbitral de 22 de junho de 2020, foi decidido dispensar a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, relegando a apreciação da matéria de exceção para a decisão final. Mais foi determinado que o processo prosseguisse com alegações escritas no prazo simultâneo de 20 (vinte) dias, designando-se o dia 11 de setembro de 2020 como data previsível para prolação da decisão arbitral e advertindo-se a Requerente para oportuno pagamento da taxa arbitral subsequente.

 

Ambas as Partes apresentaram alegações escritas no prazo designando, sustentando as posições defendidas nos respetivos articulados.

 

No que respeita à matéria de exceção, conclui a Requerida que o pedido, a título subsidiário, de suspensão da presente instância até que seja homologado o pedido de desistência da instância apresentado pela Requerente no processo de impugnação judicial, em 20 de dezembro de 2019, não tem fundamento legal, não se verificando os requisitos constantes do artigo 272.º, n.º 1, do CPC.

 

Por Despacho Arbitral de 1 de setembro de 2020, foi determinada a suspensão da instância, com os fundamento de que (i) nem à data do pedido de pronúncia arbitral (31 de dezembro de 2019), da constituição do presente tribunal arbitral (18 de março de 2020), da Resposta da AT (5 de junho de 2020) ou das suas alegações escritas (23 de julho de 2020), tinha sido proferida qualquer decisão no processo de impugnação judicial pendente no TAF de Sintra, de homologação de desistência da instância, nos termos do n.º 3 do artigo 290.º, do CPC, ou do seu prosseguimento, para que o tribunal arbitral pudesse apreciar se se verificava, ou não, uma situação de litispendência entre ambas as ações, (ii) “se […] o contribuinte tivesse apresentado duas impugnações judiciais, mas veio a desistir de uma delas antes de a litispendência ter sido apreciada, deixa de subsistir uma situação de litispendência[1] e que (iii) qualquer decisão a proferir no referido  processo de impugnação judicial, terá influência na decisão do processo arbitral, configurando verdadeira causa prejudicial para efeitos do n.º 1 do artigo 272.º, do CPC, solicitando-se às Partes que, ao abrigo do dever de cooperação (artigo 16.º, alínea f), do RJAT), comunicassem ao tribunal arbitral o trânsito em julgado de qualquer decisão que viesse a ser proferida no processo de impugnação judicial identificado.

 

Pelo Despacho Arbitral de 21 de maio de 2024, foram as Partes notificadas para que, no prazo de dez dias, e ao abrigo do dever de cooperação (artigo 16.º, alínea f), do RJAT), informassem o tribunal arbitral da fase em que se encontrava o processo de impugnação judicial já identificado.

 

Nos termos do requerimento apresentado pela Requerente em 27 de maio de 2024, foi prestada a informação de que o processo judicial antes identificado, no qual apresentou pedido de desistência da instância, corre termos junto do Tribunal Central Administrativo Sul para apreciação do recurso apresentado pelo Ministério Público, mantendo-se pendente de decisão.

 

Em face da informação prestada pela Requerente, foram as Partes notificadas, pelo Despacho Arbitral de 6 de junho de 2024, de que, deixando de se justificar a suspensão da ação arbitral, deveria a mesma prosseguir os seus termos para decisão final, dentro do prazo a que se refere o n.º 1 do artigo 21.º, do RJAT.

 

Em resposta ao Despacho Arbitral anterior, veio a Requerente, em 19 de junho de 2024, apresentar novo requerimento em que especifica os fundamentos do recurso apresentado pelo Ministério Público junto do Tribunal Central Administrativo Sul da sentença proferida no processo de impugnação judicial pendente, informa que à data da suspensão da instância já o referido recurso jurisdicional havia sido interposto e remete para o teor do Despacho Arbitral de 1 de setembro de 2020, no qual se faz referência ao trânsito em julgado de qualquer decisão que viesse a ser proferida no processo de impugnação judicial n.º …/10.4BESNT.

 

 

II. SANEAMENTO

  1. O Tribunal Arbitral Singular foi regularmente constituído em 18 de março de 2020, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro;
  2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março;
  3. O processo não padece de vícios que o invalidem;
  4. Em sede de Resposta, veio a AT invocar a exceção dilatória da litispendência por, não obstante a Requerida ter oportunamente apresentado pedido de desistência da instância nos termos do artigo 11.º, do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de outubro, o processo de impugnação judicial em que se discute a legalidade da autoliquidação de IRC objeto dos presentes autos ainda se encontrar ativo no Sistema de Informação dos Tribunais Administrativos e Fiscais (SITAF), exceção que cumpre apreciar.

 

 

III. APRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE EXCEÇÃO

Em defesa da sua posição, a Requerida socorre-se, designadamente, da decisão proferida no processo arbitral n.º 417/2019-T, por Acórdão de 21 de novembro de 2019, da qual transcreve o trecho seguinte:

“(…)

«A questão que vem colocada, preliminarmente, é pois a de saber se se encontram verificados os requisitos da migração de processos para a jurisdição arbitral, e, na hipótese afirmativa, se ocorre a excepção dilatória que obste a que o tribunal arbitral conheça do mérito da causa.

 

4. O Decreto-Lei n.º 81/2018 pretendeu implementar medidas de carácter extraordinário para a recuperação de pendências nos tribunais administrativos e fiscais, e, entre elas, a possibilidade dos sujeitos passivos submeterem as suas pretensões impugnatórias aos tribunais arbitrais em matéria tributária, com dispensa de pagamento de custas processuais, relativamente a processos tributários pendentes que tenham dado entrada nos tribunais tributários até 31 de dezembro de 2016.

 

Esse objectivo foi concretizado através do artigo 11.º desse diploma, que, sob a epígrafe “Cometimento de processos tributários pendentes para a arbitragem”, prescreve o seguinte:

 

1- Os sujeitos passivos podem, até 31 de dezembro de 2019, submeter aos tribunais arbitrais tributários, dentro das respetivas competências, as pretensões que tenham formulado em processos de impugnação judicial que se encontrem pendentes de decisão em primeira instância nos tribunais tributários, e que nestes tenham dado entrada até 31 de dezembro de 2016, com dispensa de pagamento de custas processuais.

2- As pretensões a submeter aos tribunais arbitrais devem coincidir com o pedido e a causa de pedir do processo a extinguir, apenas se admitindo a redução do pedido.

3- O pedido de constituição de tribunal arbitral, a submeter ao Centro de Arbitragem Administrativa, é necessariamente acompanhado de certidão judicial eletrónica do requerimento apresentado para a extinção da instância judicial nos termos do presente artigo.

 

O preceito pressupõe que a migração de processos para a arbitragem tributária seja precedida de pedido de desistência da instância. É esse pedido que origina a extinção da instância, e, por sua vez, é essa consequência processual que justifica a remissão do processo para apreciação do tribunal arbitral.

 

Nesse enquadramento, o pedido de desistência da instância não pode deixar de entendido por integração com regras gerais dos artigos 290.º e 291.º do CPC, que regulam os termos em que se processam a confissão, desistência ou transação, sendo que cabe ao juiz examinar o termo ou o documento pelo qual se pretende desistir da instância de modo a verificar se, pelo objecto e qualidade das pessoas que nele intervieram a desistência. é válida.

 

A possibilidade de migração de processos não pode ser entendida como um mero direito potestativo do sujeito processual que este possa accionar independentemente de qualquer tipo de controlo jurisdicional. Basta notar que o cometimento de processos para a arbitragem está dependente de certos requisitos processuais. Torna-se necessário que o pedido seja formulado até 31 de dezembro de 2019, e, por outro lado, apenas abrange pretensões deduzidas no âmbito de processos de impugnação judicial para as quais os tribunais arbitrais tributários disponham de competência, e se trate de processos que se encontrem pendentes de decisão em primeira instância nos tribunais tributários e tenham dado entrada até 31 de dezembro de 2016.

 

E são esses requisitos que cabe ao juiz estadual verificar para efeitos de homologar a desistência e declarar a extinção da instância.

 

Certo é que o n.º 3 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 81/2018 apenas exige que o pedido arbitral seja instruído com certidão judicial electrónica do requerimento de extinção da instância judicial. Mas esse é um mero requisito formal da apresentação do pedido arbitral que não contende com o regime processual próprio da desistência da instância. E, de todo o modo, é ao juiz que cabe declarar a extinção da instância e o processo não pode ser remetido a um outro tribunal antes de se encontrar findo naquele em que havia sido inicialmente instaurado.

 

  1. Em qualquer caso, não pode deixar de reconhecer-se que se verifica, no caso, a excepção dilatória de litispendência. A litispendência, tal como o caso julgado, pressupõe a repetição de uma causa e tem por objectivo “evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior” (artigo 580.º, n.º 2, do CPC). A litispendência opera quando uma causa se repete estando a anterior ainda em curso, ao passo que, no caso julgado, a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário e que, por isso, transitou em julgado (artigo 580.º, n.º 1, do CPC).»”.

 

Não obstante a remissão da AT para o Acórdão Arbitral citado, a situação factual dos presentes autos era, então, diversa da que tinha estado na origem daquela Decisão Arbitral, porquanto, naquele caso, como ali se escreveu, “(…) o pedido arbitral foi aceite em 21 de junho de 2019 e, a essa data, havia já sido proferida sentença pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que, entretanto, foi objecto de recurso para o Tribunal Central Administrativo do Sul. Não tendo a sentença transitado em julgado, por se encontrar ainda pendente de recurso jurisdicional, não pode invocar-se a excepção de caso julgado, mas há lugar a litispendência visto que o pedido arbitral foi apresentado quando uma acção idêntica se encontra ainda em curso nos tribunais estaduais tributários.”, enquanto, na situação em análise, como acima se referiu, “nem à data do pedido de pronúncia arbitral (31 de dezembro de 2019), da constituição do presente tribunal arbitral (18 de março de 2020), da Resposta da AT (5 de junho de 2020) ou das suas alegações escritas (23 de julho de 2020), tinha sido proferida qualquer decisão no processo de impugnação judicial pendente no TAF de Sintra, de homologação de desistência da instância, nos termos do n.º 3 do artigo 290.º, do CPC, ou do seu prosseguimento, para que o tribunal arbitral possa apreciar se se verifica, ou não, uma situação de litispendência entre ambas as ações”.

 

A diversidade de situações fácticas entre os casos em confronto no processo n.º 417/2019-T e nos presentes autos, sem que o Tribunal Arbitral tivesse conhecimento da interposição de qualquer recurso de sentença nele proferida, motivou a suspensão da instância na presente ação arbitral, por se ter considerado que a falta de sentença de homologação da desistência da instância ou de prosseguimento do processo de impugnação judicial no Tribunal estadual em que inicialmente havia sido instaurado configurava uma verdadeira causa prejudicial para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 272.º, do CPC, impeditiva da apreciação da exceção invocada pela Requerida.

 

Porém, a notícia dada pela Requerente em 27 de maio de 2024, de que aquele processo de impugnação judicial corre termos junto do Tribunal Central Administrativo Sul para apreciação do recurso apresentado pelo Ministério Público, no uso da legitimidade e competência que lhe é atribuída pelos artigos 9.º, n.º 4, 14.º e 280.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, é indiciadora de ter sido proferida decisão em 1.ª instância, mantendo-se, no entanto, a pendência simultânea da instância judicial e da ação arbitral, idênticas quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (cfr. o artigo 581.º, do Código de Processo Civil).

 

Não pode o Tribunal Arbitral antecipar a decisão do recurso interposto pelo Digno Representante do Ministério Público para o Tribunal Central Administrativo Sul; contudo, não assumindo o Ministério Público a posição de parte no processo tributário (exceto se em representação de ausentes, incertos e incapazes – artigo 14.º, n.º 1, segmento final, do CPPT), a sentença recorrida não terá incidido sobre o mérito da causa[2], como, aliás, a Requerente veio confirmar no requerimento de 19 de junho de 2024, apenas neste dando conhecimento dos fundamentos do recurso e da sua pendência à data da suspensão da presente ação arbitral.

 

Melhor conhecidos, agora, quer a fundamentação do recurso interposto pelo Ministério Público, quer a sua pendência à data da suspensão da presente ação arbitral, será de considerar que a respetiva decisão poderá não obstar, necessariamente, ao prosseguimento da impugnação judicial, com a consequente não homologação da desistência da instância[3].

 

De qualquer modo, independentemente da motivação ou decisão do recurso interposto pelo Ministério Público, haverá que reconhecer que, in casu, se verifica a repetição de ações quanto os mesmos sujeitos e objeto, suscetível de configurar uma situação de litispendência (artigo 580.º, n.º 1, do CPC), exceção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (artigos 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea i), ambos do CPC e 89.º, n.º 4, alínea l), do CPTA), subsidiariamente aplicáveis ao processo arbitral tributário, ex vi artigo 29.º, n.º 1, do RJAT.

 

 

 

 

IV. DECISÃO

Com base nos fundamentos acima enunciados, decide-se extinguir a presente ação arbitral.

 

 

VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 41 969,69 (quarenta e um mil, novecentos e sessenta e nove euros e sessenta e nove cêntimos), indicado pela Requerente.

CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de 2 142,00 (dois mil cento e quarenta e dois euros), a cargo da Requerente.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 19 de junho de 2024.

O Árbitro,

 

Mariana Vargas

 

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.



[1] SOUSA, Jorge Lopes de “Código de Procedimento e de Processo Tributário”, Vol. II, 6.ª Edição, 2011, pág. 318. Cfr. ainda o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12.11.2009, processo n.º 0433/09: “1 – Tendo sido deduzida impugnação judicial, cuja decisão ainda não transitou em julgado e entretanto, o contribuinte deduziu, por mera cautela e dever de patrocínio do seu mandatário, no mesmo Tribunal nova impugnação judicial, na qual veio desistir da instância, desistência esta que foi homologada por decisão transitada em julgado, esta decisão constitui, assim, facto jurídico superveniente, que deve ser considerado na decisão agora a proferir” (…).

[2] Cfr. Jorge Lopes de Sousa, “Código de Procedimento e de Processo Tributário” Vol. IV, 6.ª Edição, 2011, Áreas Editora, pág. 415: “Relativamente à defesa da legalidade e promoção do interesse público fora do âmbito dos interesses da Fazenda Pública, é o Ministério Público e não o representante daquela que tem legitimidade para interpor recurso jurisdicional.”.

[3] É conhecida a posição do Ministério Público, publicada na “Revista do Ministério Público”, 163, Julho/Setembro 2020 [pp. 229-249], sob o título de « A inconstitucionalidade da norma do DL 81/2018 que prevê a “migração” dos processos dos tribunais tributários para a arbitragem tributária”, disponível em https://rmp.smmp.pt/wp-content/uploads/2020/10/Pages-from-RMP_163_NET_Carlos_Ferreira.pdf, sufragada pelo Acórdão do Tribunal Central Administrativo, de 16.05.2024, no processo n.º  553/07.2BESNT.