Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 847/2023-T
Data da decisão: 2024-06-03   Outros 
Valor do pedido: € 1.946.213,43
Tema: Contribuição de Serviço Rodoviário; Pressupostos processuais; Competência dos tribunais arbitrais para apreciar actos de repercussão; Legitimidade dos repercutidos para suscitar a ilegalidade dos actos de liquidação de impostos especiais de consumo.
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SUMÁRIO:

 

I – A CSR, durante algum tempo legalmente autonomizada do ISP, a partir do qual nasceu e ao qual voltou, constituiu sempre um pseudónimo deste – e, portanto, sempre foi um imposto.

II – Tendo sido formulado pedido de declaração de ilegalidade dos actos de repercussão da CSR e de actos de liquidação desta por parte de Requerente que não é sujeito passivo de ISP, importa aferir preliminarmente a possibilidade de o Tribunal arbitral se pronunciar sobre uns e sobre outros.

III – Por definição, os actos de repercussão são diferentes dos actos de liquidação.

IV – Uma vez que a competência legalmente atribuída aos Tribunais arbitrais se circunscreve, no aqui relevante, à avaliação de actos de liquidação, os actos de repercussão são, qua tale, inarbitráveis.

V – Os únicos factos relevantes para apurar a legitimidade da Requerente para impugnar os actos de liquidação da CSR são os referentes às relações estabelecidas com o(s) sujeito(s) passivo(s) que intervieram nesses actos.

VI – O círculo de potenciais impugnantes dos actos de liquidação de impostos especiais de consumo coincide necessariamente com o círculo dos potenciais credores do reembolso (porque só eles podem invocar um interesse relevante) e está delimitado no artigo 15.º, n.º 2, do CIEC.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I.       RELATÓRIO

 

1.       No dia 22 de Novembro de 2023, na sequência da presunção de indeferimento tácito de um pedido de promoção de revisão oficiosa apresentado em 26 de Abril de 2023 junto da Alfândega do Jardim do Tabaco, A..., S.A., titular do número único de pessoa coletiva..., com sede em ..., ...-... ..., Beja (Requerente), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), 3.º-A, n.º 2, e 10.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

2.       Pretendia que fosse declarada

a ilegalidade dos atos de repercussão da CSR [Contribuição de Serviço Rodoviário] consubstanciados nas faturas referentes à gasolina e ao gasóleo rodoviário adquiridos pela Requerente no decurso do período compreendido entre abril de 2019 e dezembro de 2022, e, bem assim, das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas DIC [Declaração de Introdução no Consumo] submetidas pela respetiva fornecedora de combustível”,

 

no montante total de € 1.946.213,43, acrescidas dos respectivos juros indemnizatórios.

Juntou, entre o mais, uma “Declaração” da B..., S.A., assinada por “C...”, com o seguinte teor:

B..., S.A., pessoa coletiva n.º ..., com sede na Rua ..., ..., ...-... Lisboa, pela presente declara, para os devidos efeitos, que a Contribuição de Serviço Rodoviário por si entregue, na qualidade de sujeito passivo, junto dos cofres do Estado, por referência ao combustível rodoviário fornecido à empresa A..., S.A. (NIF -...), nos anos de 2019 a 2022, foi por si integralmente repercutida na esfera da referida empresa”.

 

3.       Em 4 de Dezembro de 2023, a Requerida apresentou requerimento, dirigido ao Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), nos seguintes termos:

A AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (AT), notificada em 28/11/2023 do pedido de constituição de tribunal arbitral no processo supramencionado, apresentado por A..., S.A. NIPC ..., vem informar, que analisado o pedido não detetou a identificação de qualquer ato tributário. Identificação que, aliás, também não consta da plataforma do Centro de Arbitragem Tributária.

Tendo em conta, que

a) A competência dos tribunais arbitrais, que funcionam no CAAD, abrange exclusivamente a apreciação direta da legalidade de ato(s) de liquidação ou de ato(s) de segundo ou terceiro grau que tenham por objeto a apreciação da legalidade de ato(s) daquele tipo, conforme decorre do n.º 1, do artigo 2.º do RJAT e como se depreende das referências expressas que se fazem na alínea a), do n.º 1, do artigo 10.º do RJAT ao n.º 2 do artigo 102.º do CPPT; e que,

b) Conforme dispõe expressamente a alínea b), do nº 2, do artigo 10º do RJAT, do requerimento em que é formulado o pedido de constituição de tribunal arbitral deve constar a identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral;

c) Sem a identificação, por parte dos interessados, do ato tributário, cuja ilegalidade invoca, o dirigente máximo da AT não pode exercer a faculdade prevista no artigo 13.º do RJAT.

Solicita-se que seja(m) identificado(s) os atos de liquidação cuja legalidade o requerente pretende ver sindicada, entendendo-se que o termo inicial do prazo para o exercício da faculdade prevista no artigo 13º do RJAT só ocorre após a notificação da identificação, em concreto, do(s) ato(s) de liquidação cuja ilegalidade é suscitada”.

4.       Em 19 de Dezembro, a Requerente respondeu a este requerimento da AT – escrevendo, designadamente, que

o objeto da presente ação arbitral comporta:

  1. primordial e autonomamente, os atos de repercussão de CSR ínsitos nas faturas emitidas pela fornecedora do combustível adquirido pela Requerente;

e, bem assim, em face da correlação existente entre os dois tipos de atos acima identificados,

  1. as liquidações de CSR praticadas pela AT com base e na sequência das DIC submetidas pela referida empresa fornecedora de combustível, ou seja, os atos de liquidação de CSR que deram origem aos atos de repercussão contestados (e sem as quais estes não existiriam)”.

 

tendo também junto um novo documento (Doc. 5), com a reprodução das facturas que eram elencadas na listagem que juntara ao PPA como Doc. 4.

5.       Nomeados os árbitros que constituem o presente Tribunal Arbitral em 16 de Janeiro de 2024, e não tendo nem a Requerente, nem a Requerida, suscitado qualquer objecção, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 5 de Fevereiro de 2024.

6.       Tendo o Presidente do CAAD entendido que seria o Tribunal Arbitral a entidade competente para a pronúncia sobre o requerido pela AT, foi o requerimento referido em 3. integrado nos autos. Porém, sendo ele dirigido a entidade alheia ao Tribunal Arbitral Colectivo, entendeu este que a pretensão da Requerida poderia ser-lhe apresentada na sua resposta, razão pela qual, em 6 de Fevereiro de 2024, foi proferido despacho a convidar a AT a, querendo, apresentá-la e solicitar a produção de prova adicional no prazo de 30 dias.

7.       Em 1 de Março de 2024, a AT apresentou resposta – em que, entre o mais, suscitou as excepções adiante apreciadas e, para o caso da sua improcedência, solicitou a intervenção provocada da fornecedora de combustível à Requerente (a B..., SA) – e juntou o processo administrativo (PA).

8.       Em 11 de Março de 2024, foi proferido despacho que, entre o mais, concedia prazo à Requerente para se pronunciar sobre as excepções suscitadas na Resposta da AT.

9.       Em 28 de Março de 2024, a Requerente apresentou a sua resposta às excepções.

10.     Em 26 e 29 de Abril de 2024, foi proferido despacho a, entre o mais, dispensar alegações.

 

 

II.      PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

11.     O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

12.     A Requerente e a Requerida gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, e encontram-se regularmente representadas.

13.     Importa estabelecer preliminarmente – e oficiosamente – se o pedido de pronúncia arbitral (PPA) se contém no âmbito das atribuições do Tribunal Arbitral e se Requerente têm legitimidade, atentas também as excepções invocadas pela AT.

14.     É o que se verá a seguir.

 

 

III.      DIREITO

III.1. Questões a decidir

 

Seguindo o percurso argumentativo das decisões dos processos n.os 296/2023-T e 332/2023, ambas de 1 de Fevereiro de 2024, entende o presente Tribunal que o primeiro núcleo de questões a discutir é o da arbitrabilidade da disputa. Isso supõe estabelecer, em primeiro lugar, uma de duas coisas:

a) ou que a CSR é um imposto;

b) ou que, sendo uma contribuição (como entende a AT), ainda assim está dentro do perímetro de jurisdição atribuída legalmente aos Tribunais Arbitrais do CAAD e está compreendida no âmbito de vinculação que foi fixado para a AT pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março (que “Vincula vários serviços e organismos do Ministério das Finanças e da Administração Pública à jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa”, em cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 4.º do RJAT). Ambas as questões são puramente de Direito.

Um segundo núcleo de questões é o que se prende com a posição da Requerente no processo arbitral. Assim, passado o anterior nível de análise, importa avaliar:

a) se foi liquidada CSR à Requerente, ou, pelo menos, se adquiriu combustíveis a alguém que a tenha pago; para se aferir da viabilidade de cada um dos dois pedidos formulados pela Requerente a matéria de facto relevante é apenas essa;

b) a legitimidade e interesse da Requerente em relação aos dois pedidos formulados (ou só em relação àquele que seja considerado arbitrável, se algum), uma vez que os requisitos para se conhecer da “ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes à gasolina e ao gasóleo rodoviário adquiridos pela Requerente” (que é o pedido – e o interesse – imediato desta) não são idênticos aos que se colocam para se poder decidir sobre “a ilegalidade (…) das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas DIC submetidas pela respetiva fornecedora de combustível” (que constitui o pedido “consequencial” da Requerente), e,

c) a eventual existência de uma situação de litisconsórcio necessário activo (artigo 316.º do Código de Processo Civil), como pretendido pela AT na defesa do pedido de intervenção provocada que formulou.

Um terceiro núcleo de questões a discutir – caso se ultrapassem as anteriores – é o da regularidade do PPA. Isso implica estabelecer, em primeiro lugar, que:

a) o PPA não era inepto (por não identificação dos actos de liquidação visados) e que

b) o que o PPA visa não é uma pronúncia abstracta – ou a “suspensão” – do regime da CSR (como entende a AT).

Um quarto núcleo de questões, se acaso se resolverem positivamente as anteriores, tem a ver com a regularidade do pedido de revisão oficiosa, pressuposto necessário, desde logo, da tempestividade do pedido arbitral. No caso, isso passaria por estabelecer:

a) a legitimidade da Requerente para solicitar essa “revisão oficiosa” (sendo certo que o estatuto de sujeito passivo da relação tributária – o único para o qual remete a norma do n.º 1 do artigo 78.º da Lei Geral Tributária (LGT) – não é o seu; e sendo certo que há uma norma específica do Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC) – a do n.º 2 do seu artigo 15.º, que a Requerente designa na resposta às excepções como um “regime especial”  – que reserva aos sujeitos passivos da relação tributária a possibilidade de obter o reembolso desses impostos);

b) a tempestividade do pedido de revisão (quer em termos do fundamento invocado – uma vez que os prazos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT são diferentes consoante tais fundamentos –, quer em termos da contagem desses prazos a partir do dies a quo relevante) e,

c) a regularidade do pedido de revisão (na medida em que tem de ser dirigido ao autor do acto – o n.º 1 do artigo 78.º da LGT prevê a “revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou” e o n.º 3 do artigo 15.º do CIEC estipula que o “pedido de reembolso deve ser apresentado na estância aduaneira competente” e, na medida em que a entidade a quem a Requerente endossou tal pedido poderia não ter sido, no caso, a autora dos “antecedentes atos de liquidação repercutidos” e sendo óbvio que tal alfândega não corresponde à do domicílio fiscal da Requerente e nada tem a ver com os “pertinentes atos tributários de repercussão”, na terminologia usada pela Requerente).

Uma quinta questão, a ser abordada só após resolvidas as anteriores a favor da competência do Tribunal, da arbitrabilidade da questão suscitada e da legitimidade, tempestividade e regularidade das pretensões formuladas junto da alfândega do Jardim do Tabaco e, consequentemente – mas não só consequentemente – também junto deste Tribunal, seria a da (i)legalidade da cobrança dos valores da CSR face ao Direito da União ou à Constituição. Sobretudo porque o que está em causa, na materialidade das coisas, é apenas uma (transitória) alteração do nome atribuído a uma parte do ISP, que era integralmente válido antes de o legislador lhe mudar o nome para CSR (e de consignar essa parcela do que era antes o ISP), e continuou a sê-lo depois de o legislador ter deixado de lhe chamar CSR.

Um sexto núcleo de questões seria o da possibilidade de dissociação dos actos de liquidação da CSR e do ISP, sendo certo que só aqueles estavam em causa – o que se poderia designar como a questão da dissociação jurídica e, sendo certo que a não repercussão integral e exacta dos montantes de ISP/CSR poderia ter a ver tanto com uma como com a outra das duas componentes da imposição fiscal única, determinar qual delas (ou qual a percentagem de ambas) é que não teria sido repercutida integralmente – o que se poderia designar como a questão da dissociação económica.

Finalmente, um sétimo núcleo de questões teria a ver com tecnicalidades da decisão a proferir em caso de juízo de desconformidade da CSR e das implicações dessa desconformidade na situação da Requerente (e da sua Fornecedora de Combustível), designadamente:

a) A possibilidade de duplicação dos “reembolsos”, caso a fornecedora de combustível entendesse usar dos mesmos mecanismos (ou de outros) para obter o reembolso dos montantes pagos a título de CSR – que, no seu caso, entregou efectivamente, ao Estado; sendo, então, de novo relevante a questão da intervenção provocada suscitada pela AT;

b) A possibilidade de duplicação dos benefícios através da obtenção de reembolso de montantes de CSR que lhe foram repercutidos, se a Requerente tivesse beneficiado de reembolsos obtidos em sede de ISP – incluindo a CSR – no âmbito do regime de reembolso parcial de imposto para o gasóleo profissional, ao abrigo do artigo 93.º-A do CIEC;

c) A não-homogeneidade da tributação no momento da introdução no consumo e no da sua repercussão (os problemas da ampliação dos volumes com a variação das temperaturas e do possível desfasamento entre sujeitos passivos e repercutidos, miscigenando os volumes de combustíveis que passam de uns para outros);

d) A correspondência a estabelecer entre a tributação por grosso e a repercussão a retalho e entre as entidades que aparecem como responsáveis pela introdução no consumo e as entidades que comercializam os combustíveis já onerados com a CSR;

e) A correspondência a estabelecer entre as facturas identificadas pela Requerente e as declarações de introdução no consumo que originaram a cobrança da CSR;

f) A possibilidade de ter havido também repercussão a jusante e as suas implicações.

 

Prossigamos então, por ordem.

 

 

III.2. A questão da arbitrabilidade

III.2.1. A possibilidade de haver processos arbitrais sobre contribuições e a natureza da CSR

 

Uma vez que a competência dos tribunais arbitrais a constituir no âmbito do CAAD está estabelecida no artigo 2.º do RJAT e abrange (al. a) do seu n.º 1) a “declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”, mas o proémio do n.º 2 da já citada Portaria n.º 112-A/2011 circunscreveu – ao menos literalmente – tal vinculação às “pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida”, tem-se discutido se as pretensões referentes a “contribuições” podem ser objecto de apreciação por tais tribunais[1]. Aliás, uma parte da Resposta da AT é dedicada a defender que “independentemente do nomen iuris ou da natureza jurídica da CSR, a verdade é que não é, por definição, um imposto e, portanto, o CAAD não tem competência para decidir sobre esta matérias”.

Uma variante desta tese[2], inicialmente triunfante na decisão do processo n.º 31/2023-T, prevaleceu, depois, nas decisões dos processos n.os 372/2023-T, 508/2023-T, 520/2023-T, 675/2023-T e 876/2023-T. Tem, porém, uma particularidade: em situações em que as Requerentes não são sujeitos passivos da relação tributária (já não assim quando o são), chega à mesmíssima solução, em termos materiais, das teses que, por caminhos não coincidentes, recusam conhecer de mérito – quer por diagnosticarem falta de legitimidade das Requerentes (decisões dos processos n.os 296/2023-T, 332/2023-T, 375/2023-T, 408/2023-T, 409/2023-T, 438/2023-T, 466/2023-T, 467/2023-T, 490/2023-T, 537/2023-T e 604/2023-T), quer por identificarem ineptidão da petição inicial (decisões dos processos n.os 364/2023-T, 467/2023-T [3]e 537/2023-T[4]). Na verdade, com qualquer desses fundamentos, a AT é absolvida da instância e as custas arbitrais recaem sobre as Requerentes – exactamente como na corrente (certo que mais ampla, por abranger também situações em que os requerentes são os próprios sujeitos passivos da relação tributária) que nega a competência relativa dos Tribunais do CAAD para arbitrar as questões referentes à CSR (invocando o que parece ser uma presunção judicial iuris et de iure de falta de vinculação da AT).

Na sua resposta às excepções, a Requerente defendeu, invocando doutrina vária, a “necessária inclusão deste tributo na categoria das contribuições especiais, sujeitas, por lei, ao regime dos impostos, e, nessa medida, totalmente arbitrável nos termos do RJAT e respetiva portaria de vinculação” até porque “a CSR é exigida com o duplo propósito de remunerar a entidade responsável pela gestão da rede rodoviária nacional, imputando aos – repercutindo nos – utilizadores dessa rede os respetivos custos”.

Concluía que “a CSR consubstancia uma prestação devida pelo grupo de presumíveis utilizadores da rede rodoviária nacional (identificados por via do seu consumo de combustível) na medida em que essa utilização dê origem a presumíveis maiores despesas de gestão da respetiva rede rodoviária, preenchendo, também por esta via, o conceito de contribuição especial”.

Entende o presente Tribunal, com a jurisprudência do CAAD já citada, que a CSR era um imposto (mal) disfarçado de contribuição. Como se escreveu no Sumário da decisão do processo n.º 629/2021-T, “Uma parcela de um imposto especial de consumo não deixa de ser um imposto especial de consumo por o legislador lhe atribuir uma narrativa (de resto oscilante entre a compensação de custos e a contrapartida de benefícios) e lhe providenciar uma consignação orgânica (mormente se a entidade que dela beneficia deixa de ter como função única providenciar a suposta contrapartida que justificaria a alteração de género)”.

Nessa decisão, os argumentos usados para caracterizar a CSR como imposto foram essencialmente os seguintes (negritos no original, *notas suprimidas):

- histórico:

A Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto (“Regula o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E. P. E.”) criou a CSR por desdobramento do ISP – que é, indiscutivelmente, um imposto especial de consumo. Como se escrevia no artigo 7.º dessa lei, sob a epígrafe “Fixação das taxas do ISP”,

“As taxas do ISP são estabelecidas por portaria conjunta nos termos do Código dos Impostos Especiais de Consumo, por forma a garantir a neutralidade fiscal e o não agravamento do preço de venda dos combustíveis em consequência da criação da contribuição de serviço rodoviário”.

“(…) a única diferença entre os € 525,1 milhões que o ISP perdeu e os € 525,1 milhões que a CSR ganhou em 2008 residiu na alteração da sua designação e na sua afectação. Enquanto imposto especial de consumo louvava-se na cobertura de um custo: os custos ambientais que o preço dos combustíveis não internalizavam (uma externalidade). A partir do momento em que uma parte – arbitrária – da receita gerada pelo ISP passou a ter a designação de CSR, passou (parece – mas contra o já referido pelo legislador*) a louvar-se no benefício proporcionado aos causadores do custo”.

 

- conceptual:

Procurando identificar os critérios de distinção das taxas, das contribuições financeiras*, das contribuições especiais e dos impostos”, a A. [Suzana Tavares da Silva, As Taxas e a Coerência do Sistema Tributário, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2013] recorre, para a delimitação dos contornos das contribuições financeiras, aos critérios desenvolvidos pelo Tribunal Constitucional Alemão:

1) incidir sobre um grupo homogéneo; 2) manter uma proximidade com a obrigação tributária e as suas finalidades; 3) corresponder a uma relação encargo/benefício capaz de demonstrar que as receitas geradas são fruídas pelos membros do grupo” (p. 91).”

(…)

a CSR apresenta diferenças muito significativas em relação ao comum das contribuições financeiras, sejam elas contribuições para a segurança social, quotas para associações públicas, “taxas” de regulação ou as “grandes contribuições” que foram surgindo a título transitório e se vão mantendo (Contribuição sobre o Sector Bancário, Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético - CESE, Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica, …).

Em primeiro lugar, nessas contribuições para a segurança social, quotas para associações públicas, “taxas de regulação” e “contribuições”, o sujeito passivo é o contribuinte (na CESE há mesmo uma proibição da sua repercussão), enquanto que na CSR um e outro são diferentes: o sujeito passivo (quem tem de entregar o imposto ao Fisco) é o introdutor dos produtos no mercado e o contribuinte (quem tem de suportar a exacção fiscal) é o adquirente dos combustíveis (incluindo, como a já citada jurisprudência arbitral evidencia, adquirentes de combustíveis que nada têm a ver com a utilização das estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal).

Em segundo lugar, o nexo grupal – que faria das contribuições financeiras uma espécie de taxas colectivas – não se estabelece com os sujeitos passivos da CSR, mas sim com terceiros não participantes na relação tributária. (…)

Em terceiro lugar, enquanto nas contribuições para a segurança social, quotas para associações públicas, “taxas de regulação” e “contribuições” é a pertença ao grupo que permite de imediato a identificação do devedor – sendo a indução de um custo ou a obtenção de um benefício presumida a partir dessa inclusão nele – na CSR não há nenhum grupo prévio a que se possa imputar o pagamento: é porque se paga a CSR que se supõe que se integra o grupo. (…)

Em quarto lugar, o princípio da equivalência – a que se recorre para conferir unidade de sentido às contribuições financeiras*, equiparando-se o pagamento feito à repartição, tendencialmente idêntica (ou, pelo menos, com base em características dadas e estáveis), dos custos especificamente gerados pelo grupo homogéneo (ou dos benefícios auferidos pelo grupo homogéneo, como nas “taxas” das autoridades reguladoras, ou, forçando mais ou menos a nota, nas tais “grandes contribuições”) – assume na CSR uma ligação a um índice variável: o do consumo dos “grandes combustíveis rodoviários”*. Com a agravante de o presumido benefício não ter uma relação directa com esse índice variável: por um lado, as vias da Rede Rodoviária Nacional (que foram concessionadas, em 2007, à EP - Estradas de Portugal, E.P.E.) não são a totalidade das estradas nacionais (além das auto-estradas concessionadas, e da rede municipal – urbana e rural –, o Plano Rodoviário Nacional prevê a transferência para as autarquias das estradas que não estejam nele incluídas). Noutras palavras: a utilidade proporcionada pela circulação nas estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal não é segmentável da que é proporcionada pelas demais; por outro lado, uma fracção crescente dos utilizadores dessa sub-parcela das vias de circulação automóvel – a rede rodoviária nacional – não fica sujeita a essa “contribuição”: o dos utilizadores dela com veículos eléctricos ou velocípedes. (…)

Em quinto lugar, e não obstante – como já referido – não ser bom critério determinar a natureza de um tributo a partir da sua consignação material ou orgânica*, certo é que a EP - Estradas de Portugal, E.P.E. só gastava o dinheiro em estradas (e no mais necessário a poder fazê-lo, incluindo as suas despesas correntes), mas, com a fusão, em 2015, com a Rede Ferroviária Nacional - REFER E.P.E. para dar origem à Infraestruturas de Portugal, isso deixou de ser assim”.

 

E, em termos de índices da natureza da CSR[5],

- doutrinal:

“- na recolha de Casalta Nabais Estudos sobre a Tributação dos Transportes e do Petróleo, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 42-43, refere-se, a propósito da CSR (e de outras figuras aí referidas), “estarmos perante tributos que, atenta a sua estrutura unilateral, se configuram como efectivos impostos, muito embora dada a titularidade activa das correspondentes relações tributárias (e o destino da sua receita), tenham clara natureza parafiscal”. Como o A. escreve em Direito Fiscal, 11.ª ed, Almedina, Coimbra, 2021, pp. 53-54, “o critério para a distinção entre os tipos de tributos [reporta-se] exclusivamente à estrutura da relação tributária, ao tipo de relação que se estabelece entre os respetivos sujeito ativo e passivo, e não à titularidade activa dessa relação (…) É, pois, a estrutura bilateral da relação jurídica, em que assentam tanto as taxas como as contribuições financeiras, que revela a natureza comutativa destes tributos, os quais, porque concretizam uma efectiva troca de utilidades económicas, têm por base […] uma legitimidade económica. / O que vale também relativamente à titularidade da receita dos tributos. De facto, esta titularidade, até porque esta para além da relação tributária integrando [-se …] numa relação financeira a constituir-se a jusante da relação tributária, nada pode dizer sobre o tipo de tributo” (destaques aditados).

(…)

Filipe de Vasconcelos Fernandes, ob. cit., p. 116, sublinha que “o nexo bilateral que subjaz ao respetivo facto tributário [tem] caráter derivado, já que resulta de uma presunção de benefício ou utilidade na esfera dos sujeitos passivos, por pertencerem ou integrarem, num determinado intervalo de tempo, um grupo, tendencialmente homogéneo de interesses”, e desdobra este, na página seguinte, numa “homogeneidade de interesses” – que, segundo informa, na literatura alemã por vezes se designa por “homogeneidade de grupo” – e numa “responsabilidade de grupo (…) que se deve ao facto de os sujeitos passivos deste tipo de tributo partilharem um ónus ou responsabilidade de custeamento ou suporte da atividade pública que não pode atribuir-se isoladamente, mas apenas em face daquela que é a respetiva inserção no grupo a que efetivamente pertencem”.

E,

- jurisprudencial:

apenas DUAS das 19 decisões do CAAD que a Requerente invoca (na sua Resposta às excepções) para afirmar que tais tribunais arbitrais têm aceite a sua jurisdição sobre a CSR o poderiam substanciar (as dos processos n.os 483/2014-T e 147/2015-T8, que autonomizaram o seu tratamento), sendo as demais resultantes da consideração indiferenciada da CSR com o imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos (ISP).

O mesmo se diga para a jurisprudência dos Tribunais superiores, ainda que estes não tenham de cuidar da delimitação da sua competência em função da natureza do tributo, e se não conheçam decisões suas sobre a CSR.

Também não é indiferente que o Tribunal de Contas, a pp. 90 do seu Parecer sobre a Conta Geral do Estado de 2008 (https://erario.tcontas.pt/pt/actos/parecer-cge/2008/pcge2008-v1.pdf ), tenha considerado o seguinte:

Face ao conteúdo normativo das disposições legais aplicáveis aos vários aspectos de que se reveste a problemática da contribuição de serviço rodoviário e tendo em conta os artigos 103.º, 105.º e 106.º da Constituição, a Lei de enquadramento orçamental e a legislação fiscal aplicável, o Tribunal de Contas considera que a contribuição de serviço rodoviário tem as características de um verdadeiro imposto ou, pelo menos, que dada a sua natureza não pode deixar de ser tratada como imposto pelo que, sendo considerada como receita do Estado, não pode deixar de estar inscrita no Orçamento do Estado, única forma de o Governo obter autorização anual para a sua cobrança”.

 

No mesmo sentido pode ver-se, por exemplo, a argumentação da decisão do processo n.º 644/2022-T (que, neste ponto, foi parcialmente reproduzida na decisão do processo n.º 467/2023-T):

Afigura-se a este tribunal que a CSR, não obstante um nomen iuris que pareceria integrá-la na categoria das “contribuições financeiras a favor de entidades públicas” (art. 165º, 1, i) da CRP), preenche todos os requisitos de conteúdo pecuniário, carácter coactivo, unilateralidade, definitividade, ausência de cariz sancionatório, tendo como credor o Estado ou outros entes públicos, e a afectação à realização de fins públicos – que definem um imposto.

Essa qualificação não se modifica pela circunstância de surgirem algumas correspectividades como a da obtenção de receitas para financiamento da utilização de vias públicas – pois as contribuições que assentam no especial desgaste de bens públicos são impostos, como estabelece o art. 4º, 3 da LGT.

Falta à CSR o carácter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou colectiva que é necessária à contribuição financeira. O seu regime não determina, para o sujeito activo respectivo, qualquer dever de prestar específico, qualquer contraprestação exigível pelo contribuinte, o que significa que tem o carácter unilateral de um verdadeiro imposto (quando muito, alguma “paracomutatividade”, referente à compensação de prestações de que os sujeitos passivos são presumíveis causadores ou beneficiários – mas não a correspectividade bilateral estrita de uma taxa, sem uma contrapartida aproveitada ou provocada individualmente pelo sujeito passivo, como sucede numa taxa).

Basta percebermos que, enquanto a CSR é estabelecida a favor da Infraestruturas de Portugal (inicialmente, Estradas de Portugal), sendo esta a entidade titular da correspondente receita, os sujeitos passivos da contribuição são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários, e, portanto, não são os destinatários da actividade da Infraestruturas de Portugal.

Na sua concepção, a CSR incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e dele não isentos, e é devida pelos sujeitos passivos do ISP, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo.

Trata-se, assim, de um imposto de receita consignada (a consignação, desacompanhada de qualquer comutatividade, não subverte a sua natureza), e esta conclusão reforça-se com a posição veiculada pelo Tribunal de Contas na Conta Geral do Estado de 2008

(…)

Lembremos, por fim, que a CSR nasceu, com a Lei nº 55/2007, de 31 de Agosto, como um mero desdobramento do ISP, e, sobre este último, nem o nomen iuris permite dúvidas sobre a respectiva natureza”.

 

Evidentemente, sendo a CSR um imposto, a questão da competência do presente Tribunal deixa de ser controvertida, e fica prejudicada a indagação de saber se as questões relativas às contribuições se incluem no âmbito da jurisdição dos Tribunais arbitrais do CAAD – e, ou, no da vinculação da AT à sua jurisdição.

 

 

III.3. A questão da posição da Requerente no processo arbitral

 

Como se viu, a Requerente solicitou ao Tribunal duas coisas: que fosse declarada a ilegalidade

- “dos actos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes à gasolina e ao gasóleo rodoviário adquiridos pela Requerente no decurso do período compreendido entre abril de 2019 e dezembro de 2022” e,

- “das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas DIC submetidas pela respetiva fornecedora de combustível”.

 

A arbitrabilidade do litígio tanto pode resultar do primeiro pedido, como do segundo, como de ambos. A jurisprudência arbitral sobre CSR que tinha sido desencadeada pelos sujeitos passivos, ie, pelos intervenientes na relação jurídico-tributária, não abordou a questão de saber se;

  1. é possível em geral aos tribunais arbitrais apreciarem “a ilegalidade dos actos de repercussão” e se, sendo isso possível em geral,

b) também é possível apreciar “a ilegalidade dos atos de repercussão da CSR” (como se referia no pedido da Requerente).

Ambas as questões foram, porém, objecto de tratamento nas decisões proferidas nos processos n.os 408/2023-T e 375/2023-T, ambas de Janeiro de 2024, nas dos processos n.os 296/2023-T, 332/2023-T e 467/2023-T, de Fevereiro de 2024 e na do processo n.º 364/2023-T, de Março desse ano.

Vejamos então, começando por estabelecer os factos necessários a decidir dessas possibilidades.

 

III.4. Factos provados

 

  1. A Requerente é uma sociedade de direito português, com sede e direcção efectiva em Portugal, que actua, entre outras, na área da indústria mineira.
  2. Entre Abril de 2019 e Dezembro de 2022, a Requerente adquiriu à B..., S.A. [fornecedora de combustível e sujeito passivo de ISP e CSR], gasolina e gasóleo rodoviário, sobre os quais incidiu CSR, nos montantes correspondentes à seguinte listagem de facturas (Doc. n.º 4 junto com o PPA):

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  1. Em 26 de Abril de 2023, a Requerente dirigiu um pedido de revisão oficiosa à Alfândega do Jardim do Tabaco (Docs. 1 e 2 juntos com o PPA).

 

 

III.5. Fundamentação dos factos provados

 

A listagem reproduzida em III.4.a) consolidava as facturas que a Requerente juntou aos autos, e não foi posta em causa pela AT na estrita dimensão do que se deu como provado: que a Requerente adquiriu, à referida fornecedora de combustíveis, gasolina e gasóleo rodoviário, sobre os quais tinha incidido CSR no momento da introdução no consumo.

A promoção de um procedimento de revisão oficiosa prévia foi corroborada documentalmente e não foi posta em causa pela AT.

III.6. A possibilidade de os tribunais arbitrais sindicarem actos de repercussão

 

Como a própria Requerente começou por referir em 19 de Dezembro de 2023, na sua Resposta ao Requerimento da AT (de 4 de Dezembro), e reiterou no PPA,

emergem no âmbito da CSR, necessariamente, duas tipologias distintas de atos tributários:

  1. os atos de liquidação de CSR, emitidos pela AT com base nas DIC apresentadas pela fornecedora de combustível (…)
  2. os atos de repercussão da CSR liquidada (…)”.

 

Ligando ambos, na sua resposta às excepções, a Requerente invocou que

 

em matéria de CSR a relação estabelecida entre cada uma da Requerente e o respetivo fornecedor de combustível não se traduz apenas numa relação privada entre empresas, à qual a administração tributária é estranha, mas, igualmente, como vem sendo apontado pela doutrina e pela jurisprudência, numa relação jurídico-tributária de repercussão legal, onde se inclui, obviamente, a AT (Requerida)”.

 

Seja isso assim ou não – e já se verá que desinteressa discuti-lo em sede arbitral – o certo é que, como os Colectivos que decidiram os processos n.os 296/2023-T, 332/2023-T, 409/2023-T, 466/2023-T e 490/2023-T – o presente Tribunal arbitral entende que não tem competências para apreciar directamente – e sem mais – actos de repercussão. Ainda que se possam integrar numa relação tributária complexa, tais actos ocorrem a jusante dos actos de liquidação e a competência que o legislador atribuiu aos tribunais arbitrais esgota-se – no que ao caso importa [6]– na sindicância dos actos de liquidação. Isso decorre directamente das normas legais, mas corresponde também ao ensinamento da doutrina: Alberto Xavier[7], distinguindo a substituição tributária da repercussão, escrevia que nesta temos “um devedor de imposto, que é do mesmo passo contribuinte, e um terceiro que não desempenha qualquer papel na obrigação tributária”.

Para Leite de Campos/Benjamim Rodrigues/Lopes de Sousa[8], entre o terceiro repercutido

e o sujeito activo não existe vínculo jurídico, no sentido de que o repercutido não é devedor do sujeito activo. A sua obrigação não nasce da realização do facto tributário, mas sim da realização de um facto ao qual a lei liga o direito de o sujeito passivo de repercutir e a correlativa obrigação do repercutido de reembolsar o sujeito passivo quando este exerça o seu direito. Daqui decorre, nomeadamente, que as relações entre o sujeito passivo e o repercutido inadimplente se regem pelo Direito privado”.

Sendo isso assim em tese geral, face ao elenco das competências dos tribunais arbitrais constituídos no âmbito do CAAD, e que constam dos artigos 2.º a 4.º do RJAT, nem sequer é preciso discutir a natureza jurídica desses actos de repercussão porque, qualquer que seja, não estão contemplados na única potencial norma atributiva de competência a este Tribunal: a da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT: “A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”.

Quer dizer que este Tribunal se declara liminarmente incompetente para apreciar o primeiro pedido da Requerente (declarar a ilegalidade dos actos de repercussão da CSR consubstanciados nas facturas referentes à gasolina e ao gasóleo rodoviário adquiridos pela Requerente).

Tal não impede que, por via do seu segundo pedido (o de que o Tribunal declare a ilegalidade das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela AT com base nas DIC submetidas pela respectiva fornecedora de combustível), a Requerente possa ainda obter uma pronúncia de mérito da jurisdição arbitral. Isso, porém, depende de outra indagação:

 

III.7. A possibilidade de os tribunais arbitrais sindicarem actos de liquidação (inerentemente ligados a actos de repercussão) por solicitação dos repercutidos

 

Numa passagem do seu manual[9], Sérgio Vasques afirma que “Se o repercutido estará à margem da relação tributária, não estará por isso à margem do direito.”, referindo que a LGT lhe reconhece o direito “à reclamação, recurso, impugnação ou pronúncia arbitral[10].

Qualquer que seja a posição a adoptar em tese geral – e, salvo disposição legal em contrário, não há razões para pôr em causa a possibilidade de os contribuintes de facto serem admitidos a invocarem perante os Tribunais a ilegalidade dos impostos que efectivamente pagaram –, tem de se ter em conta o quadro legislativo, e este foi invocado pela AT na sua Resposta para pôr em causa a possibilidade de a repercutida poder vir pedir a revisão de liquidações que lhe eram alheias[11]. Fê-lo a coberto do argumento da ineptidão do PPA por não incluir “a identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido arbitral”, como expressamente exigido na alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT; mas fê-lo igualmente com base numa alegada restrição legal do círculo de sujeitos que podem solicitar o reembolso da CSR, fazendo a equiparação desses pedidos de reembolso a pedidos de revisão (negrito e sublinhado no original):

apenas os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento dos respetivos ISP/CSR possuem legitimidade para solicitar o reembolso do valor pago”.

 

 

 

Isto porque, defendeu,

no âmbito dos impostos especiais sobre o consumo, encontra-se previsto no CIEC um regime específico, e, conforme referem Sérgio Vasques e Tânia Carvalhais Pereira: “O reembolso por erro corresponde, materialmente, à revisão do ato tributário, com fundamento em erro dos serviços, previsto no artigo 78º da LGT, aqui com um prazo mais curto de 3 anos” (In “Os Impostos Especiais de Consumo”, Editora Almedina, 2016, a págs. 364).

De facto, o n.º 1 do artigo 5.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto (diploma que criou a CSR), determina a aplicação do CIEC (e da LGT e do Código de Procedimento e Processo Tributário - CPPT) à “liquidação, cobrança e pagamento” da CSR, pelo que sempre teria de se aplicar o disposto no n.º 2 do artigo 15.º do CIEC, o qual estabelece que “apenas podem solicitar o reembolso do imposto pago, os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respetivo imposto”.

Acrescentando a Requerida que

Prevê o CIEC normativos legais que se fundamentam no regime próprio dos impostos especiais de consumo, designadamente, por se tratarem de impostos monofásicos, que incidem apenas na fase da declaração para consumo, o que, regra geral, ocorre uma única vez”.

 

Em todo o caso, concluía (invocando o Acórdão do TJUE de 20 de Outubro de 2011, proferido no âmbito do processo C-94/10),

ainda que a repercussão económica viesse a ser provada no âmbito do presente processo, entende o TJUE que um Estado-Membro se pode opor a um pedido de reembolso de um imposto indevido, apresentado pelo comprador sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais, desde que, nos termos do direito interno, esse comprador possa exercer uma ação civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo e que o reembolso do imposto indevido, por parte deste último, não seja, na prática, impossível ou excessivamente difícil”.

 

O Tribunal entendeu ser incompetente para se pronunciar sobre a declaração de ilegalidade da repercussão (o primeiro pedido da Requerente) –, porque esta é subsequente e exterior ao acto tributário, decorrendo de uma relação de direito privado e porque não cabe no âmbito dos actos da AT que o legislador lhe permitiu sindicar –, mas entende que tem obviamente competência para se pronunciar sobre o segundo pedido da Requerente – a declaração de ilegalidade do acto tributário. Ser competente, porém, apenas preenche o pressuposto processual referente ao Tribunal, não o que é respeitante à Requerente. A questão é: pode ela suscitar a revisão das liquidações de CSR em que não teve intervenção – e que, aliás, não consegue identificar – ainda que apenas na medida em que tais liquidações contendam com os pagamentos por ela feitos? Rectius: pode ela, supondo que todo o iter procedimental que desembocou no PPA cumpre os requisitos (o que ainda teria de se apurar) – pode a Requerente, perguntava-se, suscitar a revisão das liquidações conjuntas (e acumuladas) de ISP e CSR no segmento estrito que invoca dizer-lhe respeito?

A questão está em saber se, portanto, no quadro processual que ficou descrito nos Factos Provados, pode este Tribunal declarar a ilegalidade das “liquidações de CSR praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas DIC submetidas pela respetiva fornecedora de combustível”, ainda que delimitando o âmbito da ilegalidade de tais liquidações pela correspondência aos “atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes à gasolina e ao gasóleo rodoviário adquiridos pela Requerente no decurso do período compreendido entre abril de 2019 e dezembro de 2022” – uma vez que, em tudo o que as exceda, não foi formulada qualquer pretensão arbitral.

Na decisão pioneira proferida no processo n.º 408/2023, escreveu-se:

Infere-se do articulado da Requerente que esta legitima a sua intervenção processual do facto singelo de lhe ter sido repercutida a CSR pelas empresas distribuidoras de combustíveis, caracterizando-se no artigo 29.º do ppa como um “consumidor” de combustíveis, sobre o qual “recai, nos termos da lei, o encargo daquele tributo.

Contudo, importa, antes de mais, salientar que a repercussão económica não é, por si só, atributo de legitimidade processual, pois o artigo 9.º do CPPT requer a demonstração de um interesse legalmente protegido, i.e., que mereça a tutela do direito substantivo. Além de que a Requerente não tem a qualidade de “consumidor” de combustíveis, no sentido de consumidor final sobre o qual recai ou deve recair o encargo do tributo, na lógica da repercussão económica que subjaz nomeadamente aos Impostos Especiais de Consumo (“IEC”)

 

Por outro lado, na decisão do processo n.º 364/2023-T escreveu-se que seria muito difícil

 “sanar a contradição entre o pedido e a causa de pedir:

• o pedido, formalmente, é a anulação das liquidações e do indeferimento tácito da revisão dessas liquidações – e é-o formalmente, porque é assim que está inicialmente formulado o pedido de pronúncia.

• a causa de pedir é a repercussão de um tributo tido por inválido, por desconformidade desse tributo com o Direito da União, para efeitos de reembolso do que foi repercutido – isto, relativamente a um tributo cuja liquidação não se provou, por se assentar na ideia errada de que vigorava para esse tributo um regime de repercussão legal, e de que, de um tal regime, decorria que a repercussão pudesse ser presumida, seja no seu quid, seja no seu quantum, permitindo inferir, da ilegalidade das liquidações, a ilegalidade das repercussões, fosse qual fosse o nexo entre liquidações e repercussões”.

 

Num comentário de divulgação das primeiras decisões arbitrais sobre pedidos de anulação da CSR por repercutidos[12] escreveu-se (p. 10):

o parque automóvel português é composto por 6,5 milhões de veículos ligeiros, a que acrescem 500 mil veículos pesados, num total de cerca de 7 milhões de veículos em circulação.

Se, por hipótese, admitirmos que cada automobilista fará, relativamente à CSR, um “pedido de revisão do ato de liquidação” e considerando que podem ser revistos os atos de liquidação relativos aos últimos quatro anos, temos que este contencioso poderá somar 28 milhões de processos!”.

 

Numa publicação anterior da mesma fonte[13] tinha-se escrito:

Com efeito, tem sido pacífico na doutrina e na jurisprudência que os IECs [Impostos Especiais de Consumo] implicam casos de repercussão legal. Sustenta-se, nesse sentido, que os impostos especiais de consumo procuram onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente e da saúde pública e que, por essa razão, deverá ser o verdadeiro titular da capacidade contributiva a ser onerado com o encargo do imposto”.

 

A confirmar-se a natureza “pacífica” de tal entendimento – o que não é relevante apurar para os presentes autos – tal permitiria considerar legítima a determinação legislativa do artigo 6.º da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro (“Altera o Código dos Impostos Especiais de Consumo, a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, e o Decreto-Lei n.º 91/2015, de 29 de maio, transpondo as Diretivas (UE) 2019/2235, 2020/1151 e 2020/262”) ao atribuir natureza interpretativa à “redação conferida pela presente lei ao artigo 2.º do Código dos IEC”. Isto porque, dada a proibição constitucional da retroactividade de disposições fiscais que abranjam os elementos essenciais dos impostos (artigo 103.º da Constituição), só nesse caso é que tal alteração (a introdução do inciso “sendo repercutidos nos mesmos” – sendo os “mesmos” os “contribuintes” onerados segundo o “princípio da equivalência”, “na medida dos custos que (…) provocam, designadamente nos domínios do ambiente e da saúde pública”) seria verdadeiramente interpretativa e, portanto, constitucionalmente legítima.

Ora, como também se referiu, qualquer que seja, em tese geral, a possibilidade de o repercutido invocar a ilegalidade das liquidações que originam a repercussão, no âmbito dos impostos especiais de consumo há uma norma que o veda e que o legislador manteve incólume ao longo das 25 alterações que, em 24 anos, introduziu no CIEC: a do n.º 2 do artigo 15.º (epigrafado “Regras gerais do reembolso”), assim redigida:

 

Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo imposto”.

 

Por sua vez, as disposições relevantes desse artigo 4.º (epigrafado “Incidência subjectiva”), para as quais tal norma remete, têm a seguinte redacção:

1 - São sujeitos passivos de impostos especiais de consumo:

a) O depositário autorizado, o destinatário registado e o destinatário certificado;

(…)

2 - São também sujeitos passivos, sem prejuízo de outros especialmente determinados no presente Código:

  1. A pessoa que declare os produtos ou por conta da qual estes sejam declarados, no momento e em caso de importação”.

 

Desde a redacção inicial destas normas, dada pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de Junho, também a única alteração substancial registada foi o aditamento (pela Lei n.º 24-D/2022, de 30 de Dezembro) do “destinatário certificado” entre os sujeitos passivos identificados à cabeça da norma sobre “Incidência subjectiva”. Quer dizer que nenhum legislador – nem mesmo o que entendeu atribuir natureza interpretativa à alusão à tipicidade da repercussão dos impostos especiais de consumo – considerou necessário, para o que ora importa, alargar o círculo dos “sujeitos passivos” para lá do “destinatário certificado[14].

Ou seja: só os sujeitos passivos aí identificados – e só quando preencham requisitos adicionais – podem suscitar questões sobre, como se escreve no n.º 1 desse artigo 15.º, “o erro na liquidação”. Só eles, portanto, podem ser titulares de um interesse tutelado pela lei – designadamente para accionarem a revisão oficiosa.

 

O mesmo se escreveu na decisão do processo n.º 364/2023-T:

 

é o art. 9.º, 1 e 4 do CPPT, aplicável ex vi art. 29.º, 1 do RJAT, que define a legitimidade activa no processo arbitral tributário, e lá não se prevê que essa legitimidade se possa perder por efeito de uma repercussão que propiciasse a identificação de um interesse, concorrente ou exclusivo, na esfera de um “repercutido” que não seja o sujeito passivo.

(…)

A conjugação do art. 9º, 1 e 4 do CPPT com o art. 18º, 3 da LGT dissipa quaisquer dúvidas sobre a ilegitimidade processual da Requerente: têm essa legitimidade os contribuintes, e contribuinte é o “sujeito passivo” na relação tributária, a pessoa singular ou colectiva, património ou organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável.

Não sendo a Requerente sujeito passivo do ISP, de acordo com a norma de incidência subjectiva constante do art. 4.º, 1, a), do CIEC, não é responsável pelo pagamento da CSR, por força do disposto nos arts. 4.º, 1, e 5.º, 1, da Lei n.º 55/2007 – não sendo consequentemente, na qualidade de contribuinte directo, titular da relação jurídica tributária, e parte legítima no processo (art. 9º, 1 do CPTA).

(…)

Querendo isto dizer, muito pragmaticamente, que só os sujeitos passivos aí identificados, e só quando preencham requisitos adicionais, podem suscitar questões sobre erros na liquidação”.

 

O argumento que a Requerente esgrimiu supervenientemente (na resposta às excepções) contra este beco sem saída da sua tese foi o de que tal norma não era aplicável ao caso da CSR. E isto porque, referiu,

 

o regime especial consagrado nos sobreditos artigos 15.º e 16.º do CIEC não é aplicável à CSR, pela simples, mas definitiva, razão de que a remissão para o CIEC opera, exclusivamente, quanto às matérias de liquidação, cobrança e pagamento da CSR, deixando-se de fora – i.e., sujeitando ao respetivo regime geral – todas as restantes matérias, entre as quais as atinentes aos meios e prazos de reação para contestar este tributo

 

Entende este Tribunal, pelo contrário, que a interpretação literal dessa remissão é manifestamente insustentável. Desde logo porque, como é indistintamente feita para o CIEC, para o CPPT e para a LGT, levando a sério a pretensão da Requerente de que às “restantes matérias, entre as quais as atinentes aos meios e prazos de reação para contestar este tributo” o CIEC se não aplicaria, então ser-lhe-iam igualmente inaplicáveis o CPPT e a LGT. É claro que não será necessário fazer notar que a pretensão da Requerente começa justamente por se fundar na invocação do procedimento de revisão oficiosa geral (da LGT) para poder preencher os requisitos do recurso à jurisdição arbitral[15].

 

 

Sobre a possibilidade de certos interessados serem impedidos de contestar a legalidade de certos tributos (em geral ou numa específica jurisdição) já o TJUE referiu[16] que

 

na ausência de regulamentação comunitária em matéria de repetição de impostos nacionais indevidamente cobrados, cabe à ordem jurídica interna dos Estados-Membros designar os órgãos jurisdicionais competentes e regular as modalidades processuais dos recursos judiciais destinados a assegurar a protecção dos direitos de que os cidadãos gozam com base no direito comunitário.

38. Por razões de segurança jurídica, os Estados-Membros estão, em princípio, autorizados a limitar, a nível nacional, o reembolso de impostos indevidamente cobrados. Contudo, estas limitações devem respeitar o princípio da equivalência, nos termos do qual as disposições nacionais devem aplicar-se de maneira idêntica às situações puramente nacionais e às situações reguladas pelo direito comunitário, e o princípio da eficácia, que impõe que o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária não se torne praticamente impossível ou excessivamente difícil”.

 

Daqui resulta que, na lógica do Direito da União, nada impede que o legislador nacional limite (e não apenas na jurisdição arbitral, embora por maioria de razão nesta, dada a sua competência por atribuição), os modos e as condições de, e os interessados na, obtenção da declaração de ilegalidade dos actos de liquidação por razões ligadas à prevalência do Direito da União – designadamente excluindo a possibilidade de quem quer que seja que não tenha tido intervenção neles suscitar a avaliação dessa desconformidade[17].

Diga-se, mas apenas como obiter dictum, que tal opção legislativa, que tem de se admitir justificada face à impraticabilidade de se gerir um sistema, digamos, “aberto” (como o que resultaria dos números indicados acima), foi aliás, no que diz respeito à contrariedade de tais liquidações com o Direito da União, considerada justificável no despacho do TJUE no Processo n.º C-94/10, desde que o “comprador possa exercer uma acção civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo e que o reembolso do imposto indevido, por parte deste último, não seja, na prática, impossível ou excessivamente difícil”.

Se essa condição está ou não preenchida no caso não cabe, evidentemente, a este Tribunal apurar: tal perquisição só poderia ocorrer aquando da aferição da conformidade do sistema legal de recuperação de montantes pagos a título de CSR com o Direito da União (na fase da decisão sobre o fundo), e o Tribunal já concluiu que a Requerente não está em condições de o poder levá-lo a confrontar-se com tal questão (como o poderiam fazer os sujeitos passivos da relação tributária).

 

 

III.8. Conclusão sobre a legitimidade da Requerente e sobre as demais questões enunciadas

 

Concluindo-se que o presente Tribunal Arbitral é incompetente para se pronunciar sobre o primeiro pedido da Requerente (porque não pode pronunciar-se sobre actos subsequentes aos, e autónomos dos, actos de liquidação), e resultando da lei que a Requerente é parte ilegítima para suscitar o segundo (questionar os actos de liquidação da CSR que pudessem ter alguma ligação com os ditos actos de repercussão), conclui-se que a Requerida terá de ser absolvida da instância, ficando prejudicados todos os passos seguintes no iter cognoscitivo acima delineado, incluindo as questões de constitucionalidade e o pedido de reenvio prejudicial suscitado pela Requerente na sua “réplica” (que só poderiam ser abordadas depois de se estabelecer a competência do Tribunal e a legitimidade da Requerente).

Não se opinando sobre o mérito, ficam igualmente prejudicados os pedidos de “restituição” e de pagamento de juros indemnizatórios.

 

 

IV.      DECISÃO

 

Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se:

a) Considerar o presente Tribunal Arbitral incompetente para se pronunciar sobre o pedido de declaração dos “actos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes à gasolina e ao gasóleo rodoviário adquiridos pela Requerente no decurso do período compreendido entre abril de 2019 e dezembro de 2022”;

b) Considerar a Requerente parte ilegítima para suscitar a declaração de “ilegalidade (…) das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela Administração Tributária e Aduaneira com base nas DIC submetidas pela respetiva fornecedora de combustível”;

c) Em consequência, absolver a AT da instância, condenando a Requerente nas custas, nos termos abaixo fixados.

 

 

V.        VALOR DO PROCESSO

 

Competindo ao Tribunal fixar o valor da causa (artigo 306.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT) e devendo ele, correspondendo à utilidade económica do pedido, equivaler à importância cuja anulação se pretende (alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, ex vi da alínea a) do artigo 6.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária - RCPAT), fixa-se o valor do processo em € 1.946.213,43 (um milhão, novecentos e quarenta e seis mil, duzentos e treze euros e quarenta e três cêntimos).

 

VI.      CUSTAS

 

Custas a cargo da Requerente, no montante de € 25.398,00 (vinte e cinco mil, trezentos e noventa e oito euros), nos termos da Tabela I do RCPAT e do disposto no seu artigo 4.º, n.º 5, e nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, dado que o presente pedido foi julgado inteiramente improcedente.

 

 

 

Lisboa, 3 de Junho de 2024

 

O árbitro presidente e relator

 

 

Victor Calvete

 

O árbitro adjunto

 

Tomás Cantista Tavares

 

A árbitro adjunta

 

Sílvia Oliveira

(vencida conforme declaração anexa)

 

 

 

 

 

A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 excepto em transcrições que o sigam.

 

 

 

Declaração de Voto

 

Votei vencida quanto ao sentido decisório desta decisão arbitral porquanto entendo que não deveriam proceder as excepções que foram consideradas procedentes.

  1. Questão da incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria

Desde logo, e quanto à questão da competência do Tribunal Arbitral refira-se, em síntese, seguindo a posição adoptada no âmbito do processo n.º 410/2023-T (cujo Colectivo integrei) que, “a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no artigo 2.º, n.º 1, do [RJAT]. Numa segunda linha, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é também limitada pelos termos em que Administração Tributária se vinculou àquela jurisdição, concretizados na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pois o artigo 4.º do RJAT estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos. Em face desta segunda limitação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos desta vinculação, pois, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele artigo 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este tribunal arbitral”.

Nestes termos, a vinculação reporta-se a qualquer das pretensões mencionadas no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT que respeitem a impostos (com a exclusão de outros tributos) e a impostos que sejam geridos pela Autoridade Tributária.

Por outro lado, e no que diz respeito à natureza da CSR, sendo esta uma contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis, e constituindo uma fonte de financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da IP no que respeita à respetiva conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento (ainda que a exigência da contribuição não prejudique a eventual aplicação de portagens em vias específicas ou o recurso da entidade concessionária a outras formas de financiamento), à luz do seu regime jurídico dificilmente se poderia concluir que a mesma constitui uma contribuição financeira, antes se qualificando como um imposto. E, a somar a este entendimento, o TJUE no seu Despacho de 07 de Fevereiro de 2022 , no âmbito do processo C-460/21 (Vapo Atlantic), para além de não colocar em causa essa qualificação, assumiu, para efeitos do artigo 1 da Diretiva 2008/118, um conceito funcional ou autónomo de imposto indireto. Tal conceito abrange quaisquer “imposições” indiretas que, pelas suas caraterísticas estruturais e teleológicas, não tenham um “motivo específico” na aceção da Diretiva 2008/118 do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008 e possam, por conseguinte, privar o imposto especial de consumo harmonizado (no caso português, o ISP) de “todo o efeito útil” (par. 26 do acima mencionado).

Portanto, mesmo que, à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional português, a CSR houvesse de ser qualificada como uma contribuição financeira, nem por isso deixaria de ser um imposto indireto na aceção da Diretiva acima referida, sob pena de os Estados-membros poderem, em função da maior ou menor criatividade constitucional em termos de tributos públicos, frustrar os propósitos de harmonização e de neutralidade no plano dos impostos indiretos sobre o consumo.

No caso em análise, tendo em consideração que a Requerente peticiona a declaração de “ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes à gasolina e ao gasóleo rodoviário adquiridos (…) no decurso do período compreendido entre abril de 2019 e dezembro de 2022, e, bem assim, das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas DIC (…) submetidas pela respetiva fornecedora de combustível” (B..., S.A.), teria considerado totalmente improcedente a alegada excepção da incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria (suscitada pela Requerida) no que diz respeito ao pedido apresentado pela Requerente (e não só quanto à possibilidade do Tribunal Arbitral declarar a ilegalidade das liquidações de CSR praticadas pela AT com base nas DIC submetidas) porquanto, o que está aqui em causa é a desconformidade dos actos de liquidação da CSR (consubstanciados nos actos de repercussão na esfera da Requerente) face ao disposto na Diretiva 2008/118, de 16 de Dezembro e, como de seguida se abordará, é o repercutido que pode arguir esses vícios/essa ilegalidade, desde que consumada a efectiva repercussão.

 

2.Questão da ilegitimidade da Requerente

Neste âmbito, refira-se que também não consideraria procedente a excepção da ilegitimidade (processual e substantiva) da Requerente atentos os argumentos que, em síntese, a seguir apresento (seguido uma vez mais a posição assumida no âmbito do processo n.º 410/2023-T).

Como se refere no despacho do TJUE de 07-02-2022, processo n.º C-460/21, “(…) a proteção dos direitos garantidos na matéria pela ordem jurídica da União exclui, em princípio, o reembolso dos impostos, direitos e taxas cobrados em violação do direito da União quando seja provado que o sujeito passivo responsável pelo pagamento desses direitos os repercutiu efetivamente noutras pessoas (…) 42 Por conseguinte, um Estado-Membro só se pode opor ao reembolso de um imposto indevidamente cobrado à luz do direito da União quando as autoridades nacionais provarem que o imposto foi suportado na íntegra por uma pessoa diferente do sujeito passivo e quando o reembolso do imposto conduzisse, para este sujeito passivo, a um enriquecimento sem causa (…) 43 (…) a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos” (sublinhado nosso).

Como decorre desta jurisprudência, há uma obrigação de a Administração Tributária reembolsar os tributos cobrados em violação do Direito de União a quem efectivamente os suportou, pelo que no caso de tributos susceptíveis de repercussão, a titularidade do direito ao reembolso dependerá de ela ter sido ou não concretizada. Assim, não se coloca a questão da plúrima possibilidade de reembolso pela Autoridade Tributária e Aduaneira, pois, no caso de ter havido repercussão, apenas o repercutido tem direito ao reembolso.

No caso em apreço, resulta dos documentos anexados ao processo pela Requerente que ocorreu a efectiva repercussão da CSR cobrada pela B... S.A. à Requerente (nas vendas efectuadas no período em análise), pelo que apenas a Requerente é titular do direito ao reembolso repercutido nas vendas de combustível que adquiriu.

 

 

Com efeito, é corolário desta jurisprudência do TJUE que, no caso de ter havido repercussão, apenas o repercutido tem legitimidade para impugnar os actos que a concretizem ou os que a antecedam, pois apenas o repercutido é afectado na sua esfera jurídica pelo acto lesivo e só terá legitimidade na medida em que não tenha repercutido integralmente o tributo que suportou nessa qualidade. É essencialmente este o regime que no artigo 132.º do CPPT se prevê para os casos de impugnação em caso de substituição com retenção na fonte, que deve considera-se aplicável, por analogia, a todos os casos de substituição.

Assim, no caso em análise, entendo que tendo sido demonstrada a efectiva repercussão do tributo (face à documentação anexada ao processo pela Requerente), é o repercutido quem tem legitimidade para impugnar os actos que afectaram a sua esfera jurídica, no exercício do direito de impugnação de todos os actos lesivos que lhe é constitucionalmente garantido (artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP). Essa legitimidade é assegurada, a nível do direito ordinário, tanto a nível procedimental como processual, pelos artigos 18.º, n.º 4, alínea a), 54.º, n.º 2, 65.º e 95.º, n.º 1, da LGT, conjugados com os n.ºs 1 e 4 do artigo 9.º do CPPT, aplicáveis aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, na medida em que reconhecem legitimidade procedimental e processual a quem for titular de um interesse legalmente protegido.

Pelo exposto, teria considerado improcedente a alegada excepção da ilegitimidade da Requerente.

Em consequência, teriam de ser avaliadas as restantes excepções suscitadas pela Requerida e, se improcedentes, avaliado o mérito do pedido arbitral.

 

 

 

 

Sílvia Oliveira

 



[1] Na fórmula usada na decisão do processo n.º 629/2021-T, “Isso não releva do âmbito de competência do tribunal, releva do âmbito de sujeição a ele de um dos intervenientes processuais”, invocando em nota a “decisão do caso n.º 146/2019-T (com um voto de vencido) que acaba por reconduzir a primeira [“competência – delimitada legislativamente”] a incompetência absoluta e a segunda [“vinculação – delimitada pela portaria dentro da liberdade de opção atribuída por lei”] a incompetência relativa”.

 

[2] Em todas as decisões elencadas a seguir renunciou-se expressamente a estabelecer a natureza da CSR em homenagem à liberdade de vinculação que o legislador atribuiu ao autor da portaria de vinculação, por se ter entendido que, como se escreveu vg na decisão n.º 508/2023-T, outra solução implicaria “impor indagações com esse nível de dificuldade, incerteza de resultados e morosidade para definição da competência dos tribunais arbitrais”. Nesse sentido, escreveu-se aí o seguinte (negrito aditado): “aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos” (destaque aditado).

 

[3] Esta decisão assenta numa dupla fundamentação: ilegitimidade e ineptidão da petição inicial e, por isso, surge em duplicado na listagem.

 

[4] No decisório só se invoca a ilegitimidade da Requerente, mas no Sumário, a mais desta, faz-se referência à ineptidão da Petição inicial, razão pela qual também surge em duplicado na listagem.

[5] Escreveu-se então: “Ainda que a qualificação jurídica de um tributo como imposto ou não-imposto tenha de depender das suas características intrínsecas (…), não são indiferentes os índices que – sendo externos a essa qualificação – foram invocados pela Requerente e pela Requerida. Assim, para começar, a jurisprudência do CAAD (e dos tribunais estaduais que a examinaram) não é indiferente”.

[6] Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do RJAT, os tribunais arbitrais constituídos no CAAD também são competentes para “A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais”.

 

[7] Manual de Direito Fiscal I, Reimpressão, s/ed., Lisboa, 1981, p. 409.

[8] Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4.ª ed, encontro da escrita, Lisboa, 2012, p. 187. Tenha-se em conta que, embora os AA. admitissem que essa “primeira impressão” desse lugar a “uma nova noção de sujeito passivo” (p. 188), acabavam por concluir (p. 189) que “A repercussão efectua-se fora do âmbito da obrigação tributária.” e (p. 190), que “a repercussão é estranha à relação jurídico tributária”. No mesmo sentido – ainda que aparentemente por referência ao IVA, Nina Aguiar, in Códigos Anotados e Comentados - Justiça Tributária - LGT.CPPT.RGIT.RCPITA.RAT.LPFA, Lexit, 2018, p. 45: “aquele que suporta o imposto”, “Não é (…) sujeito de qualquer relação jurídica tributária”.

[9] Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, p. 401.

 

[10] Dispõe o n.º 4 do artigo 18.º do RJAT que “Não é sujeito passivo quem: a) Suporte o encargo do imposto por repercussão legal, sem prejuízo do direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias; (…)”.

 

[11] O Tribunal não fez uma indagação de Direito Comparado, mas como resulta do n.º 58 da decisão que o TJUE proferiu, em 2 de Outubro de 2003, no processo C-147/01 (Weber's Wine World Handels-GmbH et al. v. Abgabenberufungskommission Wien), essa é uma solução que não é específica do Direito nacional: “na medida em que tenha efectivamente havido repercussão, foram os consumidores que suportaram o encargo do imposto sobre as bebidas alcoólicas. Ora, nem a ordem jurídica do Land de Viena nem a da República da Áustria oferecem, em geral, aos consumidores a possibilidade de invocarem, no quadro de um procedimento de tributação, a ilegalidade de um imposto assim repercutido”.

[12]A Contribuição de Serviço Rodoviário: enquadramento e desenvolvimentos recentes”, edição de Março de 2023 da Newsletter do Tax Litigation Team encabeçado por Rogério Fernandes Ferreira, disponível em

https://www.rfflawyers.com/xms/files/KnowHow/Newsletters/2023/03_Marco/A_Contribuicao_de_Servico_Rodoviario_enquadramento_e_desenvolvimentos_recentes_-marco_2023.pdf

 

[13]A contribuição de serviço rodoviário e a legitimidade processual dos consumidores finais”, edição de Agosto de 2022 da Newsletter do Tax Litigation Team encabeçado por Rogério Fernandes Ferreira, disponível em https://www.rfflawyers.com/pt/know-how/newsletters/a-contribuicao-de-servico-rodoviario-e-a-legitimidade-processual-dos-consumidores-finais/4579/ A passagem foi reproduzida no comentário referido na nota anterior.

[14] O que foi reiterado na decisão do processo n.º 364/2023-T.

[15] Como a Requerente escreveu na resposta às excepções (negrito aditado),

a matéria relativa aos meios de reação aplicáveis à CSR não integra a norma remissiva constante do artigo 5.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, sempre se terá de concluir, liminarmente e sem necessidade de ulteriores desenvolvimentos, pela improcedência do primeiro – e principal – argumento invocado pela Requerida, bem como, em consequência, de todas as considerações tecidas nesse domínio a propósito do âmbito subjetivo de aplicação do regime especial recortado pelos referidos artigos 15.º e 16.º do CIEC”.

 

Recorde-se que a redacção da “norma remissiva” (a do n.º 1) do dito artigo 5.º é a seguinte:

A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações”.

[16] Nos n.os 37 e 38 da decisão citada na nota 11.

 

[17] Como se referiu supra, nota 11, é o que acontece na Áustria.