Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 89/2024-T
Data da decisão: 2024-05-29  IRC  
Valor do pedido: € 99.092,70
Tema: Liberdade de circulação de capitais; IRC; fundos de investimento; dividendos pagos a não residentes; retenção na fonte.
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SUMÁRIO:

 

1. A liberdade de circulação de capitais é estabelecida pelo artigo 63.º do TFUE como uma liberdade fundamental do mercado interno, dotada de relevância constitucional no âmbito do Direito da União Europeia, gozando d primazia normativa sobre o direito interno, cabendo aos poderes públicos legislativos e administrativos a tomada das medidas internas de transposição, execução e aplicação, consoante os casos, do direito primário e secundário relevante, de forma a assegurar a efetividade da livre circulação de capitais.

 

2. As normas do n.º 1, parte final, e n.º 3 do artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, interpretadas conjugadamente, ao estabelecerem um tratamento fiscal mais favorável para os organismos de investimento coletivo (OIC) que operem em Portugal de acordo com a legislação portuguesa, em relação aos organismos equiparáveis que tenham sido constituídos de acordo com a legislação de outro Estado-Membro da União Europeia ou de um Estado Terceiro, violam os princípios da liberdade de circulação de capitais e da não discriminação, consagrados nos artigos 63.º e 18º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).

 

3. Tendo o Tribunal de Justiça da União Europeia decidido que o artigo 63.° do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe à legislação nacional que determina que os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção, mesmo incidindo sobre estes outras formas de tributação, têm os tribunais nacionais de invalidar as liquidações correspondentes.

 

 

ACÓRDÃO ARBITRAL

Os árbitros Carlos Alberto Fernandes Cadilha (Presidente), Jónatas Eduardo Mendes Machado e Manuel Lopes da Silva Faustino (vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

1RELATÓRIO

 

1. A..., sociedade de Direito francês, com sede em..., Rue ..., ..., ..., França, titular dos Números únicos de Identificação de Pessoa Coletiva portuguesa ... e francês ... (“Requerente”), na qualidade de entidade gestora do Fundo de Investimento B... (“Fundo”), titular do Número único de Identificação de Pessoa Coletiva francês FR..., veio, em 22.01.2024, ao abrigo do disposto nos artigos 95.º, n.os 1 e 2, alíneas a) e d), da Lei Geral Tributária (“LGT”), 99.º, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), 137.º, n.os 1 e 2, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“CIRC”), e 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), 10.º, n.os 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral com vista à apreciação da legalidade e emissão de pronúncia tendente às respetivas anulações, dos atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.º..., n.º ..., e n.º ..., efetuando retenções na fonte nos valores de 62.447,06€, 27.322,30€ e 9.323,36€, referentes ao período compreendido entre 11.05.2021 e 23.12.2022, no montante total de 99.092,70€, e, bem assim, da decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada contra aqueles atos tributários.

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 24.01.2024, e automaticamente notificado à Requerida.

 

3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os três árbitros do tribunal arbitral coletivo, no dia 23.01.2024.

 

4. As partes foram devidamente notificadas dessa nomeação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do art. 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos art.s 6.º e 7.º do Código Deontológico e, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 02.04.2024.

 

5. Na sua Resposta, apresentada em 08.05.2024, a AT, suscitou exceção dilatória de ilegitimidade processual ativa e impugnou as razões da Requerente, sustentando dever o presente pedido de pronúncia arbitral ser julgado improcedente, com todas as devidas e legais consequências.

 

6. Tendo a Requerente respondido à exceção a 21.05.2022, nos termos do artigo 113.º, n.º 2, do CPPT, e por não ter sido solicitada pela Requerente e o presente Tribunal não a ter considerado útil, prescindiu-se da apresentação de alegações e da reunião a que se refere o art.18.º do RJAT, tendo sido emitido o correspondente Despacho em 22.05.2024.

 

1.1Dos factos alegados pela Requerente

 

7. A Requerente, sociedade de Direito francês, dedica-se à gestão do Fundo, que reveste a forma jurídica de fundo de investimento coletivo, e tem sede e residência fiscal em França, sendo a entidade responsável pela custódia dos valores mobiliários a instituição de crédito C..., sociedade de Direito francês, com sede em Paris, França. Nos anos de 2021 e 2022, o Fundo manteve investimentos em diversos países, entre os quais Portugal, detendo participações diretas na sociedade comercial portuguesa, D.... SGPS, ISIN: PT...; Ações 1.460.750, 709.670 e 582.710.

 

8. O Fundo não é sujeito a tributação em sede de “imposto sobre o rendimento das sociedades” no Estado da residência, sendo uma entidade equiparada a um OIC residente em qualquer Estado-membro da União Europeia, nos termos da Diretiva 2011/61/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 08.07.2011, e, por maioria de razão, uma entidade equiparada a um OIC residente em Portugal – cfr. Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro, a qual transpôs para o ordenamento jurídico português a referida Diretiva.

 

9. Por força da detenção de participações sociais diretas na sociedade comercial portuguesa acima identificada, o Fundo auferiu, no período compreendido entre 11 de maio de 2021 e 23 de dezembro de 2022, dividendos no montante total bruto de 396.370,87€ a que corresponderam retenções na fonte no valor total de 99.092,70€, sendo os dividendos auferidos pelo Fundo no montante líquido total de 297.278,15.

 

10. Por referência a tais rendimentos de capitais, o E... emitiu, na qualidade de substituto tributário, as respetivas guias de retenção na fonte, tendo informado a Autoridade Tributária das importâncias retidas, da tipologia de rendimentos a que se referem e da circunstância de tais rendimentos terem sido pagos a um beneficiário não residente, tendo os montantes plasmados nas guias de retenção na fonte sido oportunamente entregues aos cofres do Estado.

 

11. As retenções na fonte relativas aos dividendos de fonte portuguesa não deram lugar a qualquer crédito de imposto, parcial ou total, no Estado de residência do Fundo, não geraram qualquer crédito de imposto na esfera jurídica dos participantes, inexistindo qualquer mecanismo suscetível de transferir o encargo para estes últimos, tendo o encargo do imposto sido integralmente suportado pelo Fundo, não tendo sido objeto de neutralização. 

 

12. A 20.06.2023, a Requerente apresentou reclamação graciosa, pedindo a anulação dos mencionados atos tributários e a restituição do imposto ilegalmente retido na fonte, a qual está pendente de decisão desde o dia 21.06.2023, nos termos conjugados dos artigos 106.º do CPPT e 57.º, n.º 1, da LGT, considera a mesma que a presunção de indeferimento tácito formou-se a 23.10.2023.

 

1.2Argumentos das partes

13. O Requerente sustenta a ilegalidade das liquidações acima mencionadas com os argumentos de facto e de direito que a seguir se sintetizam:

  1. Atendendo a que, nos termos dos artigos 57.º, n.º 3, da LGT e 20.º, n.º 1, do CPPT, a contagem de prazos no procedimento tributário é contínua e efetuada nos termos do artigo 279.º do Código Civil (“CC”), a presunção de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada pela Requerente teve lugar a 23.10.2023, terminando prazo destinado à apresentação do presente pedido de pronúncia arbitral no dia 22.01.2024;
  2. A não aplicação do benefício fiscal do artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”) à Requerente, por ser o Fundo um OIC não residente em território nacional, consubstancia uma discriminação injustificada entre OIC residentes e não residentes em Portugal proibida pelo artigo 63.º do TFUE, visto que um OIC residente, nas mesmas condições, estaria exonerado de tributação sobre tais rendimentos.

14. A AT sustenta a manutenção do ato impugnado com base nos fundamentos sinteticamente elencados:

 

  1. O Requerente não logrou demonstrar ser o sujeito passivo da relação jurídico-tributária de direito substantivo, porquanto não demonstrou ser o titular dos rendimentos objeto de tributação nem o destinatário direto e imediato dos atos tributários impugnados, não cabendo agora ao Tribunal Arbitral invalidá-los com fundamento em diferentes motivações;
  2. Como manifestação no plano adjetivo do princípio da indisponibilidade dos créditos fiscais, em processo judicial tributário inexiste o ónus da impugnação especificada, não podendo assim o Tribunal Arbitral deixar de seguir as regras gerais de direito probatório material com vista ao estabelecimento dos factos, provados e não provados, relevantes para a decisão da causa;
  3. A tributação dos OIC constituídos segundo a legislação nacional e a dos não residentes não são comparáveis, porque a dos residentes não se faz a nível de retenção na fonte de IRC, como a dos não residentes, mas faz-se por outras vias, designadamente Imposto do Selo (verba 29 da Tabela Geral do Imposto do Selo) e tributação autónoma (artigos 22.º, n.º 8, do Estatuto dos Benefícios Fiscais e 88.º, n.º 11, do CIRC), tributações estas que não são aplicáveis aos OIC não residentes;
  4. Resulta da alínea a) do n.º 1 do art.º 65.º do TFUE, que é permitido que os Estados-Membros apliquem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido, tendo em conta a sua soberania fiscal, desde que, verificado o n.º 3 da mencionada disposição legal;
  5. Atendendo a que é o Estado de residência que dispõe de toda a informação necessária para aferir um correto enquadramento contributivo e da sua capacidade contributiva global, a situação de um residente é, com certeza, distinta da de um não residente;
  6. Paralela à opção legislativa de aliviar os sujeitos passivos residentes da tributação em IRC foi criada uma taxa em sede de Imposto do Selo incidente sobre o ativo global líquido dos OIC. 25, tendo sido aditada, à TGIS, a Verba 29, de que resulta uma tributação, por cada trimestre, à taxa de 0,0025% do valor líquido global dos OIC aplicado em instrumentos do mercado monetário e depósitos, e à taxa 0,0125%, sobre o valor líquido global dos restantes OIC, sendo que, neste caso, a base tributável pode incluir dividendos distribuídos;
  7. Esta reforma na tributação veio apenas a incidir sobre os OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, dela ficando excluídos os OIC constituídos e que operem ao abrigo de uma legislação estrangeira;
  8. Está também prevista a tributação autónoma à taxa de 23%, nos termos do n.º 11 do artigo 88.º, do Código do IRC e do n.º 8 do artigo 22.º do EBF, dos dividendos pagos a OIC com sede em Portugal, quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período;
  9. Não parece estarmos em presença de situações objetivamente comparáveis, porquanto a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º, do EBF, possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pela requerente.
  10. O imposto retido ao Requerente poderá eventualmente dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional tanto na esfera da Requerente, como na esfera dos investidores;
  11. A Requerente não esclareceu/provou, apenas alegou, se, no caso concreto, existiu ou não um crédito de imposto por dupla tributação internacional na esfera da própria Requerente ou dos investidores;
  12. Não pode afirmar-se que se esteja perante situações objetivamente comparáveis, porquanto, a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pela Requerente;
  13. Para avaliar se da legislação nacional resulta um tratamento discriminatório dos fundos de investimento de outros Estados, contrário ao TFUE por constituir uma restrição à liberdade de circulação de capitais, a análise não pode cingir-se à consideração estrita das regras de retenção na fonte, havendo que atender à carga fiscal a que estão sujeitos os OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF relativamente aos dividendos e às correspondentes ações, pois, só com esta visão global pode concluir-se com um mínimo de segurança que os fundos estrangeiros que investem em ações de sociedades residentes em Portugal são colocados numa situação mais desfavorável;
  14. Considerando-se que, à luz do disposto no artigo 348.º do Código Civil, segundo o qual àquele que invocar direito estrangeiro compete fazer prova da sua existência e conteúdo, o Requerente não fez prova da discriminação proibida, pelo que só se pode defender a improcedência do pedido, por falta de prova da impossibilidade de neutralização da discriminação contestada.

 

1.3. Saneamento  

 

15. Relativamente à exceção dilatória invocada pela AT, de ilegitimidade processual ativa da Requerente, importa ter presente que, nos termos do artigo 9.º, n.º 1, do CPTA aplicável por força do artigo 29.º, n.º1, alínea c) do RJAT, o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida. No caso, o Fundo, tendo residência fiscal em França, recebe dividendos de sociedades com sede e residência fiscal em Portugal através da interposição da substituição tributária da entidade pagadora (i.e. E...), e da atividade da Requerente (i.e. A...), na sua qualidade de sociedade gestora do Fundo, que supre a falta de personalidade jurídica deste último, em cuja conta depositou os dividendos distribuídos, subtraídos do imposto retido na fonte.

 

16. Tendo tido conhecimento do montante total de imposto indevidamente suportado pelo Fundo no período em referência, no montante, 99.092,70€ - sendo que que não tinha como saber da divergência entre os montantes plasmados nas guias de retenção na fonte referentes ao ano de 2022 e os montantes alegadamente constantes das declarações Modelo 30 daquele período – a Requerente veio peticionar  a sua anulação na qualidade de sociedade gestora que o representa legalmente – a quem distribuiu os dividendos percebidos e deduzidos da importância retida – pelo que, em plena sintonia com o princípio da primazia da substância sobre a forma, se apresenta dotada de legitimidade processual ativa por ser sujeito passivo da relação jurídica tributária controvertida e, por maioria de razão, titular de interesse legalmente protegido. 

 

17. A Requerente, ao assumir as vestes de sociedade gestora, atua em representação do Fundo não residente – beneficiário efetivo dos rendimentos de fonte portuguesa distribuídos –, agindo em seu nome e por sua conta, sendo que, de acordo com o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º da CRP), a isso não obsta o facto, alegado pela AT, de nenhum dos substitutos tributários (os E... e F..., S.A) ter requerido a atribuição de NIF, ao abrigo dos   artigos 11.º, n.os 1 e 2, e 12.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 14/2013, de 28.01, sob pena de violação grave, intolerável e arbitrária do seu direito a uma proteção jurídica sem lacunas.

 

18. Com estes fundamentos, o presente tribunal julga improcedente a exceção invocada pela AT. Para além de se considerar que o pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT, entende o presente tribunal que as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas.

 

19. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT). 

 

20. O processo não padece de nulidades podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.

 

2FUNDAMENTAÇÃO

2.1Factos dados como provados

 

21. Com base nos documentos trazidos aos autos são dados como provados os seguintes factos relevantes para a decisão do caso sub judice:

  1. A Requerente é uma sociedade de Direito francês que se dedica à gestão do Fundo; (Documento n.º 3)
  2. O Fundo reveste a forma jurídica de fundo de investimento coletivo (“Fonds Commun de Placement”); (Documento n.º 3)
  3. A entidade responsável pela custódia dos valores mobiliários é a instituição de crédito C..., sociedade de Direito francês, com sede em ..., ..., ..., Paris, França, titular dos Números únicos de Identificação de Pessoa Coletiva português ... e francês ...;  (Documento n.º 3)
  4. Nos anos de 2021 e 2022, o Fundo manteve investimentos em diversos países, entre os quais Portugal, detendo participações diretas na sociedade comercial portuguesa D... SGPS, ISIN: PT...; Ações 1.460.750, 709.670, 582.710; (Documento n.º 4)
  5. O Fundo auferiu, no período compreendido entre 11.05.2021 e 23.12.2022, dividendos no montante total bruto de 396.370,87€ a que corresponderam retenções na fonte no valor total de 99.092,70€; (Documento 1)
  6. O Fundo não dispõe de sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território nacional, sendo residente para efeitos fiscais em França, aí se encontrando sujeito à lei fiscal francesa; (Documento n.º 5)
  7. O Fundo não é sujeito a tributação em sede de “imposto sobre o rendimento das sociedades” no Estado da residência; (Documento n.º 6).
  8. A E... emitiu as guias de retenção na fonte, e prestou as devidas informações sobre as importâncias retidas, a tipologia de rendimentos a que se referem e a circunstância de tais rendimentos terem sido pagos a um beneficiário não residente (Documento n.º 7)
  9. Os montantes plasmados nas guias de retenção na fonte foram entregues pelo E... aos cofres do Estado (Documento n.º 7)
  10. O encargo do imposto foi integralmente suportado pelo Fundo, não tendo sido objeto de neutralização (Documento n.º 6)
  11. A 20.06.2023, a Requerente apresentou reclamação graciosa (Documento n.º 8)

 

 

 

2.2Factos não provados

 

22. Com relevo para a decisão do caso, não existem factos dados como não provados.

 

2.3Motivação

 

23. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

24. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

2.4Questão decidenda

 

 

25. A questão decidenda no âmbito dos presentes autos consiste em aferir da conformidade com os princípios da não discriminação e da livre circulação de capitais ínsitos, respetivamente, nos artigos 18.º e 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”) e, consequentemente, com o primado do Direito da União Europeia, reconhecido pelo artigo 8.º, n.º 4, da CRP, dos atos de liquidação de imposto por retenção na fonte acima identificados, praticados aquando da distribuição de dividendos ao Fundo[1]. Para a decisão da mesma seguiremos de perto a argumentação desenvolvida pela jurisprudência do TJUE e que tem sido acolhida por um número considerável de decisões arbitrais do CAAD[2]

 

26. Nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 1, do CIRC, as pessoas coletivas e outras entidades com sede ou direção efetiva em território português, o IRC incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território. Daqui decorre que os rendimentos por si obtidos em território português, como é o caso de dividendos distribuídos por entidades localizadas em território português, são sujeitos a tributação em sede de IRC. Neste caso, embora a perceção dos rendimentos seja sujeita a retenção na fonte, esta assume a natureza de pagamento por conta do imposto devido a final, nos termos do artigo 94.º, n.º 3, do CIRC.

 

 27. No caso de o  beneficiário não dispor de sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em Portugal, como sucede com o Fundo, os rendimentos por si auferidos são considerados obtidos em território nacional, ficando sujeitos a tributação em sede IRC, nos termos do artigo 4.º, n.os 2 e 3, alínea c), subalínea 3), do CIRC, que se refere a “[o]utros rendimentos de aplicação de capitais”. Neste caso, a tributação ocorre por via de retenção na fonte com carácter definitivo e aquando da respetiva data de vencimento, nos termos do artigo 94.º, n.os 1, alínea c), 3, alínea b), do CIRC.

 

28. Diferentemente do que sucede com as entidades não residentes, a retenção efetuada às entidades residentes é posteriormente relevada na liquidação de IRC referente ao exercício no qual haja sido efetuada, através de uma dedução à coleta, diminuindo o imposto a pagar a final e sendo passível de reembolso quando o seu valor exceda o da dívida total de imposto, nos termos dos artigos 90.º, n.º 2, alínea e), e 104.º, n.os 2 e 3, do CIRC. Nos termos do artigo 87.º, n.º 4, do CIRC, a tributação liberatória das entidades não residentes e sem estabelecimento estável em Portugal é, em princípio, efetuada à taxa de 25%, enquanto as entidades residentes, sofrendo uma retenção na fonte não-liberatória à taxa de 25%, à luz do artigo 94.º, n.º 4, do CIRC, são tributadas à taxa geral de 21% prevista no artigo 87.º, n.º 1, do CIRC.

 

29. Sucede, porém, que a tributação de OIC não residentes acaba por ser mais gravosa do que a tributação de OIC residentes em território nacional, na medida em que, no que concerne os OIC que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, residentes em Portugal,  o artigo 22.º, n.º 3, do EBF, dispõe que para o apuramento do lucro tributável não são considerados, entre outos, os rendimentos de capital referidos no artigo 5.º do CIRS, abrangendo, no caso das sociedades anónimas, dividendos distribuídos (cfr. 5.º, n.os 1 e 2, alínea h), do CIRS,) sendo que, nos termos do artigo 22.º, n.º 10, do EBF, os rendimentos obtidos por OIC residentes em território português não estão sujeitos a retenção na fonte em sede de IRC, resultando da interpretação conjunta dos artigos 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF e 5.º, n.os 1 e 2, alínea h), do CIRS, não serem os dividendos auferidos por OIC residentes sujeitos a tributação em sede de IRC.

 

30. É clara, portanto, a existência de uma diferença entre o tratamento fiscal dos dividendos auferidos por OIC não residentes e sem estabelecimento estável em Portugal, que sujeitos a a taxas liberatórias de retenção na fonte e o tratamento conferido a OIC residentes em posição análoga, que beneficiam de exclusão de tributação em sede de IRC relativamente aos mesmos rendimentos de capitais, diferença essa que se traduz, no caso concreto do Fundo, de o mesmo se encontrar sujeito a retenção na fonte nos termos gerais – contrariamente aos OIC residentes em território nacional –, e não estar desonerado de tributação a final pela perceção de dividendos, nos termos do artigo 22.º, n.os 1 e 3, do EBF, não dispondo da possibilidade de obviar à tributação dos dividendos por si auferidos, na medida em que, não sendo residente em território nacional, constituiu-se e opera ao abrigo da legislação francesa.

 

31. Esta diferença, baseada unicamente na residência, afigura-se mais do que problemática à luz do artigo 63.º do TFUE, que consagra a liberdade de circulação de capitais, proibindo todas as restrições aos seus movimentos entre Estados-Membros no quadro das liberdades fundamentais do mercado interno[3]. O âmbito normativo desta liberdade fundamental abrange qualquer transferência de capital, onerosa ou não, de um Estado para outro, incluindo a associada a contratos de mútuo, investimentos de carteira, constituição de sucursais e filiais, operações sobre títulos transacionados no mercado de capitais, o pagamento de juros e a perceção de dividendos, visto que a mesma pressupõe a participação em sociedades e esta se subsume ao âmbito de livre circulação de capitais[4].

 

32. No caso, existe claramente um elemento transfronteiriço, na medida em que o Fundo tem residência fiscal em França e recebe dividendos de sociedades com sede e residência fiscal em Portugal. Recebe-os, é certo, através da interposição da substituição tributária da entidade pagadora, a Requerente, na sua qualidade de sociedade gestora do Fundo – que supre a falta de personalidade jurídica do mesmo –, em cuja conta depositou os dividendos distribuídos subtraídos do imposto retido na fonte.

 

33. Tendo tido conhecimento do montante total de imposto indevidamente suportado pelo Fundo no período em referência, no montante, 99.092,70€, a Requerente veio peticionar  a sua anulação na qualidade de sociedade gestora que o representa legalmente – a quem distribuiu os dividendos percebidos e deduzidos da importância retida – pelo que, em plena sintonia com o princípio da primazia da substância sobre a forma, se apresenta dotada de legitimidade processual ativa por ser sujeito passivo da relação tributária e, por maioria de razão, titular de interesse legalmente protegido, deste modo improcedendo a exceção dilatória arguida pela Requerida.

 

34. O objetivo primordial das liberdades fundamentais do mercado interno consiste precisamente na substituição de mercados nacionais fechados por um único mercado interno europeu aberto. Por este motivo, as restrições às liberdades fundamentais incluem as discriminações no seu exercício. Trata-se aqui do tratamento jurídico distinto de duas situações objetivamente comparáveis suscetível de colocar o destinatário numa situação de desvantagem que tem como efeito onerar e desincentivar a livre circulação dos capitais, frustrando por essa via a construção do mercado interno e a realização dos seus objetivos.  

 

35. Nos termos do disposto no artigo 65.º do TFUE, os Estados-Membros podem estabelecer uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido. No entanto, a partir do momento em que um Estado-membro sujeita ao imposto sobre o rendimento não só os acionistas residentes, mas também os acionistas não residentes relativamente aos dividendos que recebam de uma sociedade residente, a situação dos referidos acionistas não residentes torna-se objetivamente comparável à dos acionistas residentes. No caso em apreço, ao receberem rendimentos de capitais de uma sociedade portuguesa, um OIC residente e um OIC não residente em território nacional – como é o caso do Fundo – encontram-se numa situação objetivamente comparável porque apresentam uma conexão comum com o sistema fiscal português, não sendo relevante para o efeito a diferente nacionalidade e origem. 

 

36. O sistema fiscal português (cfr. artigos 87.º, n.º 4 e 94.º, n.os 1, alínea c), 3, alínea b) e 6, do CIRC e 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF) reserva ao OIC residente e ao não residente um tratamento fiscal diferenciado, na medida em que se uma sociedade residente em Portugal distribuir dividendos a um OIC residente, esses rendimentos não são sujeitos a retenção na fonte, nem a qualquer outro tipo de tributação direta pelo Estado português. O inverso ocorre na situação transfronteiriça de distribuição de dividendos a um OIC residente, pois que esses rendimentos estão sujeitos a tributação em sede de IRC mediante retenção na fonte em Portugal. Isso traduz-se, na prática, na elevação de uma barreira ou fronteira de limitação da circulação de capitais precisamente onde o mercado interno exige que nenhuma seja erguida.

 

37. Um rendimento auferido por um não residente não pode ser tratado de forma menos favorável pelo Estado da fonte do que quando esse mesmo rendimento é auferido por um residente. O Estado da fonte terá de conceder o tratamento nacional ao não residente. O tratamento fiscal concedido em Portugal aos rendimentos de capitais auferidos por OIC residentes, por oposição aos OIC residentes noutros Estados-membros da União Europeia, favorece os primeiros e desencoraja o investimento por parte dos segundos, configurando uma restrição à liberdade de circulação de capitais do artigo 63.º do TFUE. A situação do Fundo constitui um exemplo claro de discriminação por parte do Estado português entre OIC residentes e OIC não residentes em território nacional.

 

38. Com efeito, auferindo o Fundo rendimentos de capitais de fonte portuguesa, o mesmo encontrava-se numa situação objetivamente comparável à de um OIC residente em Portugal, pelo que devia ter sido tratado de modo idêntico e gozado do benefício fiscal previsto no artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF, em termos equivalentes aos conferidos aos OIC constituídos ao abrigo da legislação portuguesa. Não tendo tal sucedido, o regime derivado do artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF traduz-se num tratamento fiscal manifestamente discriminatório dos OIC não residentes em Portugal, consubstanciando uma restrição injustificada à liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE.

 

39. É certo que o artigo 65.º, n.º1, alíneas a) e b), do TFUE, admite a possibilidade de restrições à liberdade de circulação de capitais mediante a aplicação por parte dos Estados-Membros de disposições de direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou lugar em que o seu capital é investido, por um lado, e, por outro, a tomada de todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos em matéria fiscal[5]. No entanto, como já se disse, a situação pela qual uma sociedade portuguesa distribui dividendos a um OIC residente em Portugal é objetiva e inequivocamente comparável à situação em que o OIC é residente em França[6].

 

40. Além disso, não se verifica qualquer nexo direto entre a exclusão de tributação sobre os rendimentos de capitais auferidos por um OIC residente e a sua residência em Portugal, pelo que o tratamento discriminatório em referência não pode ser justificado pela necessidade de preservação da coerência do sistema fiscal português. Acresce que a hipotética situação tributária dos detentores de unidades de participação dos OIC residentes em território nacional é irrelevante, já que a exoneração de tributação destes OIC é absolutamente independente da possível tributação dos detentores de unidades de participação, não tendo sequer em consideração a situação fiscal destes últimos, que poderão nem ser, eles mesmos, residentes para efeitos fiscais em território nacional.

 

41. Tão pouco pode a restrição em causa ser justificada com base no combate à evasão fiscal, na medida em que esse fundamento não justifica, por si só, uma restrição fiscal à liberdade de circulação de capitais caso a sua invocação não estela relacionada com um objetivo específico de luta contra expedientes puramente artificiais, desprovidos de realidade económica, cujo objetivo seja claramente elisivo.

 

42. É o Estado português que, no exercício da sua jurisdição fiscal, opta deliberadamente por diferenciar entre fundos residentes e fundos não residentes, isentando os primeiros da retenção de imposto sobre a distribuição de dividendos e sujeitando à mesma os segundos, colocando-os numa situação comparável, e em seguida tratando-os de forma diferente. Não se vê em que medida é que a diferenciação em causa possa prevenir a evasão fiscal, nada existindo na mesma que se refira à prevenção de montagens ou construções meramente artificiais, desprovidas de genuína substância económica.

 

43. O critério da indispensabilidade aponta para a justificação da diferenciação fiscal em causa apenas quando não existam meios alternativos menos restritivos – de limitação e diferenciação –, à disposição do Estado-Membro em presença, adequados à salvaguarda do sistema fiscal. Além do mais, a perda de receita fiscal pelo Estado português que ocorreria com a dispensa de retenção na fonte e concomitante exoneração de tributação também não pode considerar-se uma razão justificativa para o tratamento diferenciado em presença dado que os objetivos de natureza puramente económica não podem justificar entraves ostensivos ou dissimulados às liberdades fundamentais do mercado interno[7].

 

44. Um tratamento fiscal desfavorável contrário a uma liberdade fundamental não pode ser considerado compatível com o direito da União devido à eventual existência de outros benefícios. Se os Estados Membros utilizarem a sua liberdade de sujeitar a imposto os rendimentos gerados no seu território, são obrigados a respeitar o princípio da igualdade de tratamento e as liberdades de circulação garantidas pelo direito primário da União[8].

 

45. Sempre seria possível isentar de retenção (ou diminuir o respetivo montante) tanto os fundos residentes em Portugal como os fundos residentes noutros Estados-Membros e, simultaneamente, dar um tratamento fiscal em geral idêntico aos investidores residentes em Portugal pelos dividendos recebidos de sociedades residentes em Portugal ou noutros Estados-Membros, seguindo as orientações definidas pela jurisprudência do TJUE em sede de dupla tributação económica. A existência de alternativas menos restritivas de relativamente fácil concretização legislativa constitui evidência de que se está, no caso, perante uma diferenciação desproporcional e, portanto, ilegítima.

 

46. Acresce que, e este é outro aspeto relevante em sede do artigo 65.º, n.º 1 e 3, do TFUE[9], a garantia da coerência do sistema fiscal português também não pode ser invocada para justificar a diferenciação de regime da retenção, na medida em que se exige uma ligação direta entre a vantagem fiscal em causa e a compensação dessa vantagem através de uma imposição específica, situação que não se verifica necessariamente através da eventual sujeição dos OIC’s às taxas de tributação autónoma de IRC e da Verba 29 da Tabela Geral do Imposto Selo, sendo este um tributo de natureza e lógica patrimonial. 

 

47. A aplicação trimestral do IS a fundos em diferentes condições (v.g. fundos com valorização súbita de ativos, seguida de alienação e distribuição de dividendos; fundos com perfil conservador de investimento e valor da carteira de investimentos relativamente constante), estando dependente da eventual capitalização dos rendimentos provenientes dos dividendos, pode gerar, dentro de cada um dos sucessivos exercícios, consideráveis disparidades arbitrárias de tratamento fiscal entre os vários fundos de investimento residentes e entre estes e os não residentes, com impacto evidente nos respetivos fundos de caixa. Esta realidade é tanto mais significativa quanto é certo que, de acordo com a jurisprudência do TJUE, a apreciação da existência de um eventual tratamento desvantajoso dos dividendos pagos a não residentes deve ser efetuada em relação a cada ano fiscal individualmente considerado.

 

48. Por outro lado, a aplicação da taxa de tributação autónoma de 23% prevista no artigo 88.º n.º 11 do CIRC – por força do artigo 22.º do EBF – está dependente do facto eventual da não permanência, de modo ininterrupto, das partes sociais a que correspondem os lucros na titularidade dos sujeitos passivos aí previstos durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição, e da sua não manutenção durante o tempo necessário para completar esse período, situações de ocorrência eventual e incerta. As disparidades de tratamento fiscal assim geradas não asseguram necessariamente a neutralização da desvantagem fiscal em que ficaram colocados os fundos não residentes, sujeitos a uma retenção de imposto suscetível de os dissuadir de investirem em Portugal e de dissuadir os residentes em Portugal de investirem em fundos de investimento de outros Estados-Membros.

 

49. Também não colhe o argumento do interesse geral na garantia de uma repartição e equilibrada do pode de tributar, devendo entender-se, com o TJUE, que quando um Estado Membro tenha optado por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados Membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários de tais rendimentos . Ou seja, em caso algum se poderá entender que se trata aqui de restrições justificadas por razões de segurança pública ou ordem pública.

 

50. O princípio da primazia ou primado do direito da União Europeia, desde há muito consolidado na jurisprudência do TJUE, significa que o direito nacional tem que ser produzido, interpretado e aplicado em conformidade com esse direito, mesmo quando estejam em causa matérias da competência reservada aos Estados membros, como é o caso da tributação do rendimento. Ele tem como subprincípio concretizador da primazia de aplicação, nos termos do qual, no caso de contradição entre o direito nacional e o direito da União Europeia, o juiz nacional deve desaplicar o primeiro e aplicar o segundo, sob pena de o Estado incorrer em infração.

 

51. Assim sucede, por maioria de razão, quando o TJUE se tenha pronunciado sobre o sentido da norma europeia a aplicar à questão em causa e sobre ela tenha fixado jurisprudência de maneira constante e uniforme. Nestes casos, se o juiz nacional não adotar aplicar ao caso a interpretação adotada pelo TJUE incorre numa violação suficientemente caracterizada do direito da União Europeia.

 

52. Num caso de contornos semelhantes, envolvendo as mesmas normas do sistema fiscal português e um OIC com residência fiscal na Alemanha, o AllianzGI-Fonds AEVN [10], o TJUE sustentou que “[a]o proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes. Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.º TFUE.” 

 

53. Nesse mesmo caso, o TJUE reiterou a posição que já vinha acolhendo, de que “a situação de um OIC residente que beneficia de uma distribuição de dividendos é comparável à de um OIC beneficiário não residente, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia”, concluindo que a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis. O TJUE não entendeu que a diferença de tratamento fosse necessária para assegurar a coerência fiscal nacional, na medida em que “para que um argumento baseado nessa justificação possa ser acolhido, é necessário que esteja demonstrada a existência de uma relação direta entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal”.

 

54. Uma tal relação direta, no entender da instância europeia do Luxemburgo, não se verificava no caso, na medida em que a isenção da retenção na fonte dos dividendos em benefício dos OIC residentes não está sujeita à condição de os dividendos recebidos pelos organismos serem redistribuídos por estes e de a sua tributação na esfera dos detentores de participações sociais permitir compensar a isenção da retenção na fonte. Não havendo uma relação direta entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo, a necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional.

 

55. Mais entendeu o TJUE que quando um Estado-Membro tenha optado – precisamente como na situação em causa diante deste Tribunal Arbitral – por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados-Membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários desses rendimentos, pelo que a justificação baseada na preservação de uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados-Membros também não pode ser acolhida. Estes argumentos do TJUE mantêm a sua relevância no caso diante deste Tribunal Arbitral.

 

56. Nos termos do artigo 43.º da LGT, n.º1, “[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.” Na linha do que se sustentou no Acórdão arbitral do CAAD proferido no Processo n.º 12/2023-T, de 20.09.2023, os erros que afetam as retenções na fonte não são imputáveis à Administração Tributária, pois não foram por ela praticadas. Tal não sucede, porém, com a decisão da reclamação graciosa, pois deveria ter sido deferida a pretensão da Requerente e a mesma foi tacitamente indeferida e este erro é imputável a AT.

 

57. Relativamente à questão de saber qual o termo inicial da contagem dos juros indemnizatórios numa situação como a dos autos, parece ser de aplicar a lógica do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo, quando uniformizou jurisprudência sobre esta matéria, especificamente para os casos de retenção na fonte seguida de reclamação graciosa, no seu Acórdão lavrado no Processo n.º 93/21.7BALSB, de 29.06.2022, em que defendeu que no caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do ato tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à AT, depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efetivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, da LGT. 

 

58. Tratando-se de jurisprudência uniformizada, deve a mesma ser acatada por este Tribunal, pelo que é de concluir que o Requerente tem direito a juros indemnizatórios desde a data em que se operou o indeferimento presumido da reclamação graciosa, relativamente ao montante a reembolsar, até integral reembolso ao respetivo Requerente, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

 

3DECISÃO

 

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

 

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado;

 

  1. Anular os atos tributários de retenção na fonte, de IRC, n.º..., n.º ..., e n.º ... que foram efetuados a título definitivo, sobre os dividendos auferidos de fonte portuguesa, no período de 2020, no valor global de 99.092,70€, conforme pedido;

 

  1. Anular a decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada contra aqueles atos tributários;

 

  1. Condenar a Requerida no reembolso dos valores das retenções indevidas com juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT, desde data em que se operou o indeferimento tácito da reclamação graciosa;

 

  1. Condenar a Requerida no pagamento das custas deste processo atento o seu decaimento.

 

 

4VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em 99.092,70 €, nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, interpretados em conformidade com o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT.

 

5CUSTAS

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 2 754.00 €, a cargo da Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo.

Notifique-se.

 

Lisboa, 29 de maio de 2024

 

Os Árbitros

 

Carlos Alberto Fernandes Cadilha 

 

 

 

Jónatas E. M. Machado

                                                          

Manuel Faustino

 

 

 

 

 

 



[1] C‑480/16, Fidelity Funds e o., de 21.06.2018.

[2] Cfr., por todos, as decisões proferidas nos Processos n.º 802/2022-T, de 29.05.2023; n.º 12/2023-T, de 20.09.2023; n.º 496/2022-T, de 13.02.2023; n.º 83/2022-T, de 21.08.2022.

[3]C‑480/16, Fidelity Funds e o., de 01.06.2018.

[4] Cfr., a enumeração e classificação constante da Diretiva 88/361/CEE, do Conselho, de 24 de junho de 1988, relativa à liberdade de circulação de capitais

[5] C‑575/17, Sofina e o., de 22.11.2018.

[6] C‑252/14, Pensioenfonds Metaal en Techniek, de 02.06.2016.

[7] C‑480/19, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö, de 09.04.2021.

[8] C‑342/10, Comissão/Finlândia, de 08.11.2012. 

[9] Cfr. Decisão do CAAD no Processo n.º 90/2019, de 23.07.2019.

[10] C-545/19, AllianzGI-Fonds AEVN, 17.03.2022.