Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 5/2024-T
Data da decisão: 2024-06-06   Outros 
Valor do pedido: € 80.258,57
Tema: CSR — Natureza jurídico-tributária da Contribuição de Serviço Rodoviário — Âmbito material da jurisdição arbitral tributária — Impugnação arbitral de atos de repercussão de tributos — Legitimidade ativa do repercutido— Ineptidão da petição inicial — Cadu­cidade do direito de ação.
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DECISÃO ARBITRAL

 

— I —

            A..., S.A., pessoa coletiva n.º ..., com sede na Rua ..., ..., ...-..., Vila Nova de Gaia; B..., LDA, pessoa coletiva n.º ..., com sede na ..., ...-..., Pinhão, Vila Real; C..., S.A., pessoa coletiva n.º ..., com sede na Rua ..., ..., ...-..., Vila Nova de Gaia; D..., S.A., pessoa coletiva n.º ..., com sede no ..., ...-..., Vila Real, Pinhão; E..., LDA., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua do ..., ..., ...-...,Vila Nova de Gaia; F..., S.A., pessoa coletiva n.º ..., com sede na Rua ..., ..., ...-..., Vila Nova de Gaia; G..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na ...-..., ...-..., Vila Nova de Gaia; H..., LDA., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., ..., ...-..., Vila Nova de Gaia; e I..., LDA., pessoa coletiva n.º ..., com sede na Rua..., ..., ...-..., Vila Nova de Gaia (doravante “as requerentes”), vieram deduzir pedido de pronúncia arbitral tributária contra a AUTO­­RI­­DADE TRIBU­TÁ­RIA E ADUANEIRA (doravante “a AT” ou “a requerida”), peticionando a declaração de ilega­lidade dos atos de liquidação de Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”) referentes aos meses de maio de 2019 a dezembro de 2022, incidentes sobre a J..., S.A., pessoa coletiva n.º ..., e cujo encargo tributário teria sido repercutido na esfera delas requerentes (doravante “as Liquidações Impugnadas”) e, bem assim, a declaração de ilegalidade do ato tácito de indeferimento do pedido de revisão oficiosa deduzido contra aqueles atos tributários.

Para tanto alegaram, em síntese, que são sociedades comerciais que se dedicam quer a atividades relacionadas com a produção e comercialização de vinho, com particular enfoque no vinho do Porto, quer ao ramo da hotelaria e do turismo, nas regiões do Porto e do Douro; que no período compreendido entre maio de 2019 e dezembro de 2022 as requerentes adquiriram, no âmbito da sua atividade comercial, 665.895,66 litros de gasóleo e 72.921,29 litros de gasolina à sociedade J... S.A. (doravante “a J...”), conforme os documentos que juntam à sua p.i.; que, por força da repercussão efetuada pela J..., o preço pago pelas requerentes incluiu os montantes suportados por aquela entidade, a título de CSR, aquando da introdução do combustível no consumo, ascendendo o encargo tributário feito impender sobre as requerentes ao montante de EUR 80.258,57; que em 31-05-2023 apresentaram junto da Alfândega do Freixieiro pedido de revisão oficiosa incidente sobre os atos de liquidação impugnados na presente arbitragem tendo, em 16-06-2023, junto a este procedimento as declarações emitidas pela J..., nas quais é feita menção expressa à transferência do encargo com a CSR para as requerentes mas que até à data da propositura da presente arbitragem a AT ainda não se pronunciou sobre o pedido de revisão oficiosa por si apresentado, não tendo as requerentes sido sequer notificadas de um eventual projeto de decisão; que, de acordo com as leis reguladoras do contencioso tributário e administrativo, têm legitimidade para intervir no processo tributário todos aqueles que demonstrem ter um interesse legalmente protegido cuja tutela dependa desse processo, ainda que não sejam legalmente responsáveis pelo cumprimento de quaisquer obrigações tributárias, pelo que a legitimidade no processo tributário não se confunde com a qualidade de sujeito passivo de um tributo; que, assim, necessariamente se conclui que o repercutido será, independentemente da modalidade de repercussão, titular de um interesse legalmente protegido justificativo da atribuição de legitimidade processual para discussão da legalidade da dívida tributária, tudo nos termos dos artigos 9.º, n.os 1 e 2, e 9.º, n.º 1, do CPPT; que na situação em presença o sujeito passivo da CSR é a J... mas, sem prejuízo de tal facto, o encargo inerente ao pagamento desses valores foi transferido pelo respetivo sujeito passivo para a esfera das requerentes; que não obstante, pese embora a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, não preveja expressamente uma obrigação legal de repercussão sobre os consumidores finais dos combustíveis, tal obrigação decorre, ainda assim, do disposto nos arts. 2.º e 3.º daquele diploma legal; que, consequentemente, sendo indiscutível a repercussão efetiva do encargo tributário na esfera jurídica das requerentes, necessariamente se conclui terem as requerentes legitimidade para propor a presente ação arbitral e, por conseguinte, para intervir no processo arbitral tributário; que a CSR foi declarada desconforme com o Direito Europeu pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, pelo que em consonância com a jurisprudência do TJUE, o preenchimento do conceito de “motivo específico”, na aceção do art. 1.º, n.º 2, da Diretiva n.º 2008/118/CE depende da verificação (i) de uma relação direta entre o destino das receitas provenientes da liquidação do imposto e a suposta finalidade da tributação ou (ii) de que o imposto, considerada a técnica legislativa adotada, seja suscetível de dissuadir os contribuintes de adotarem os comportamentos que se pretendem modelar através da tributação; que, inexistindo qualquer conexão entre a liquidação e cobrança da CSR e um qualquer objetivo juridicamente atendível, distinto do ISP e sem cariz meramente orçamental, é manifesta a ilegalidade da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, por preterição do disposto no art. 1.º, n.º 2, da referida Diretiva; que prevalecendo o Direito Europeu sobre o direito interno dos Estados Membros que com aquele seja conflituante, atento o princípio do primado ínsito no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, impõe-se a desaplicação da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, sendo, consequentemente, ilegais todas as liquidações de CSR efetuadas ao abrigo de tal diploma legal, pelo que são ilegais e, concomitantemente, anuláveis ao abrigo do artigo 163.º do CPA, as liquidações impugnadas na presente arbitragem; que, além do mais, o princípio da igualdade fiscal, ínsito no artigo 13.º da CRP, impõe que os impostos sejam pagos por todos os contribuintes na medida da respetiva capacidade contributiva, uma vez que as utilidades financiadas com as receitas deles provenientes são igualmente aproveitáveis por todos, pelo que na presença de um imposto que onere em exclusivo (ou mais intensamente) alguns cidadãos ou setores de atividade, terá necessariamente de concluir-se pela respetiva inconstitucionalidade por violação do mencionado princípio fundamental da igualdade; que ao fazer incidir um imposto sobre um conjunto restrito de contribuintes, a referida Lei n.º 55/2007 padece de inconstitucionalidade material, por preterição do princípio constitucional da igualdade, ínsito no artigo 13.º da CRP, na medida em que onera de forma injustificada um conjunto de contribuintes em face do seu setor de atividade económica, fazendo-os contribuir em maior medida para o financiamento de funções do Estado igualmente aproveitáveis por todos os cidadãos e que, sendo inconstitucional o seu regime jurídico, são consequentemente ilegais todas as liquidações de CSR, designadamente aquelas impugnadas na presente arbitragem, o que implica a respetiva anulação nos termos do artigo 163.º do CPA; que a anulação de tais liquidações implica também a consequente restituição dos montantes ilegalmente liquidados e, subsequentemente, repercutidos na esfera jurídica das requerentes; finalmente, que para além do direito ao reembolso dos montantes indevidamente pagos, as requerentes terão ainda direito à perceção de juros indemnizatórios, nos termos dos arts. 43.º, n.º 3, alínea c), e 100.º da LGT.

Concluíram peticionando declaração de ilega­lidade dos atos de liquidação impugnados na presente arbitragem e do ato tácito de indeferimento do pedido de revisão incidente sobre tais atos tributários e sua concomitante anulação, bem como a condenação da requerida no reembolso às requerentes dos montantes de CSR por estas indevidamente suportado, no pagamento de juros indemnizatórios e, bem assim, no pagamento das custas processuais.

Juntaram documentos e declararam não pretender proceder à designação de árbitro. Atribuíram à causa o valor de EUR 80.258,57 e procederam ao pagamento da taxa de arbitra­gem inicial.

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            Ainda antes da constituição do Tribunal Arbitral veio a requerida dirigir requerimento ao Presidente do CAAD, sob a invocação de não ter detetado a identificação de qualquer ato tributário na p.i., peticionando que fossem identificados os atos de liquidação cuja ilegalidade as requerentes pretenderiam ver sindicada. A este requerimento responderam as requerentes terem juntado aos autos a totalidade dos documentos que, enquanto entidades que suportaram o encargo do tributo, tinham em seu poder, os quais inelutavelmente atestariam ter o referido tributo sido liquidado e, subsequentemente, suportado por elas requerentes.

            Sobre esses requerimento e resposta recaíram dois despachos do Presidente do CAAD ordenando a remessa dos mesmos ao Tribunal Arbitral a constituir, por ser esse o órgão competente para a sua apreciação.

            Por despacho arbitral de 15 de abril de 2024, proferido já depois da constituição do presente Tribunal Arbitral, foi indeferido o requerido.

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            Constituído o Tribunal Arbitral Colegial nos termos legais e regulamentares aplicá­veis, foi proferido despacho arbitral a determinar a notificação da administração tributária requerida, na pessoa do seu dirigente máximo, para os efeitos previstos no art. 17.º do RJAT.

            Devidamente notificada, a requerida veio apresentar resposta defendendo-se por exceção e impugnação. Por exceção sustentou, em síntese, que a AT está vinculada à jurisdição arbitral tributária por força da Portaria n.º 112-A/2011, nos termos da qual estão abrangidas apenas as pretensões relativas a “impostos”, sendo que a CSR não é um imposto, mas antes uma contribuição financeira a favor de entidade pública, pelo que os litígios relativos aos atos a ela referentes estão excluídos da jurisdição arbitral tributária; que a incompetência desta jurisdição resulta ainda da circunstância das requerentes virem peticionar a desaplicação de diplomas legislativos aprovados por lei da Assembleia da República, decorrentes do exercício da função legislativa e, portanto, pretendem sujeitar as normas reguladoras da CSR à fiscalização abstrata do CAAD, o que a esta entidade não seria consen­ti­do; que, ainda assim, o que está em causa na pretensão deduzida é a impugnação não dos atos de liquidação da CSR mas, na verdade, dos atos de repercussão desse tributo sobre o consumidor final, os quais, por se tratar de uma repercussão meramente económica ou de facto e não legalmente imposta, estão igualmente excluídos do âmbito material da jurisdição arbitral tributária; que apenas os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução dos produtos no consumo em território nacional possuem legitimidade para solicitar o reembolso do imposto pago e, portanto, apenas a estes será lícito solicitar a revisão das correspondentes liquidações com vista ao reembolso dos montantes cobrados, de modo que, nos termos dos arts. 15.º e 16.º do CIEC, os adquirentes dos produtos carecem de legitimidade procedimental para solicitação do ato tributário e consequente pedido de reembolso do imposto não tendo, consequentemente, legitimidade processual para impugnar os atos de liquidação e o ato de indeferimento da revisão oficiosa; que as requerentes carecem ainda de legitimidade substantiva, o que consubstancia uma exceção perentória conducente à absolvição do pedido; que, não se concretizando nem demonstrando ou provando que as requerentes pagaram os valores referentes à CSR, carecem igualmente estas de interesse em agir, pois não se verifica em concreto a necessidade objetiva de tutelar qualquer direito legalmente protegido das requerentes; que se verifica ainda a exceção de ineptidão da petição inicial, na medida em que o pedido arbitral não identifica qualquer ato tributário, violando o requisito do art. 10.º, n.º 2, al. b), do RJAT, o que determina a nulidade de todo o processo, e, obstando a que o tribunal conheça do mérito da causa, deverá também conduzir à absolvição da instância; que no caso da presente arbitragem inexiste uma identidade de causas de pedir, nem estão os pedidos formulados pelas requerentes entre si numa relação de prejudicialidade ou de dependência nem preenchidos os requisitos da coligação ativa impostos pelo artigo 36.º do CPC, resultando assim numa situação de ilegal coligação ativa; que, além do mais, é ainda forçoso concluir que a cumulação de pedidos é ilegal, por não se encontrar verificado o requisito da coincidência quanto às circunstâncias de facto porquanto se está perante situações fácticas díspares consubstanciadas em alegados factos e atos tributários distintos respeitantes a requerentes distintas com datas de alegadas aquisições de combustível e pagamento de valores a título de CSR distintas; finalmente, que na data de apresentação do pedido de revisão oficiosa (31-05-2023), já teria terminado o prazo de 3 anos previsto no art. 15.º, n.º 3, do CIEC para requerer o reembolso do alegado valor pago por alegada repercussão económica de CSR no que se refere a todas as aquisições efetuadas pelas requerentes, assim como o prazo de 120 dias previsto no art. 78.º, n.º 1, da LGT, não podendo as requerentes fazer-se valer do prazo de quatro anos previsto na segunda parte deste último preceito legal, circunstância que resulta, mesmo que apenas parcialmente, na caducidade do direito de ação das requerentes.

Por impugnação sustentou a requerida, em síntese, que as requerentes não lograram fazer a prova de ter pago e suportado integralmente, por repercussão, o encargo de pagamento da CSR, sendo que recaía sobre si o ónus da prova dessa factualidade; que as faturas juntas com a p.i. como documento n.º 1 apenas constam valores referentes ao IVA, não se fazendo qualquer referências a montantes pagos a título de ISP ou CSR, não tendo também sido apresentados quaisquer comprovativos de pagamento ao Estado dos referidos tributos; que a declaração emitida pela J..., junta como documento n.º 2 da p.i., não identifica igualmente quaisquer declarações de introdução no consumo ou atos de liquidação, tratando-se apenas de uma declaração genérica insuscetível de demonstrar quer os montantes de tributo alegadamente repercutidos às requerentes no período em causa, quer que estas tenham de facto suportado a CSR por repercussão, e em que medida; que, além do mais, o montante de CSR que as requerentes alegam ter suportado por repercussão é calculado de forma incorreta, uma vez que nos termos do art. 91.º do CIEC a unidade tributável dos produtos petrolíferos e energéticos (e consequentemente da CSR) é de 1000 litros convertidos à temperatura de referência de 15° C, mas porém as requerentes adquiriram os combustíveis indicados nas faturas que juntam com a sua p.i. à temperatura ambiente, circunstância que torna impossível, na fase da cadeia logística em que as requerentes se encontram, determinar a eventual parte da CSR efetivamente repercutida no preço por elas pago nos fornecimentos de combustíveis que invocam como causa de pedir; finalmente, que é falso o pressuposto, em que assenta a causa de pedir das requerentes, de que o Tribunal de Justiça da União Europeia tenha alguma vez declarado a incompatibilidade do regime da CSR com o Direito Europeu, inexistindo qualquer desconformidade do regime deste tributo com a Diretiva n.º 2008/118/CE porquanto não há qualquer decisão judicial transitada em julgado que assim o declare, tanto mais que existiu e existia à data dos factos um vínculo intrínseco entre o destino da CSR e o motivo específico de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental que que levou à sua criação legal.

            Concluiu pela sua absolvição da instância arbitral ou, assim não se entendendo, pela improcedência do pedido principal e dos pedidos acessórios e sua consequente absolvição dos mesmos. Juntou despacho de nomeação de mandatários forenses e um processo administrativo.

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            Seguidamente foi proferido despacho arbitral a dispensar a realização da reunião a que se refere o art. 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações escritas finais, convidando-se no entanto as requerentes a, querendo, pronunciarem-se acerca das exceções suscitadas no articulado de resposta da requerida.

No exercício do contraditório vieram as requerentes pugnar pela competência da jurisdição arbitral tributária para conhecer do presente litígio, atento o carácter fiscal do tributo em causa e vários arestos deste CAAD que invocaram; que, quanto à arguida ilegitimidade ativa, também a mesma é improcedente porquanto têm legitimidade para intervir no processo tributário todos aqueles que demonstrem ter um interesse legalmente protegido cuja tutela dependa desse processo, ainda que não sejam legalmente responsáveis pelo cumprimento de quaisquer obrigações tributárias, circunstância que permite concluir que a legitimidade no processo tributário não se confunde com a qualidade de sujeito passivo, como bem se revela no art. 18.º, n.os 3 e 4, da LGT, resultando desse modo que o repercutido será titular de um interesse legalmente protegido justificativo da atribuição de legitimidade processual para discussão da legalidade da dívida tributária e, assim, aquele que demonstrar ter suportado o encargo do tributo terá legitimidade procedimental e/ou processual para contestar a legalidade das liquidações, quer detenha ou não a qualidade de sujeito passivo; que, além do mais, o fenómeno de repercussão implicado na CSR seria, em qualquer caso, de repercussão legalmente imposta, nos termos do art. 2.º da Lei n.º 55/2007; que a petição inicial não padece de qualquer vício gerador da sua ineptidão atendendo a que a exigência de identificação das liquidações pelas requerentes, quando o repercutido não tem possibilidade de as identificar, pode bem ser suprida por intermédio das diligências de produção de prova a desenvolver na fase da instrução da causa e, em qualquer caso, os atos tributários impugnados estão perfeita e corretamente identificados em sede do pedido de pronúncia arbitral, encontrando-se espelhados nas faturas que atestam a aquisição pelas requerentes do combustível sobre o qual incidiu o tributo; que, nos termos do art. 3.º, n.º 1, do RJAT, encontram-se verificados no caso vertente todos os pressupostos de que depende a coligação de requerentes e a cumulação de pedidos formulada nos presentes autos arbitrais, sendo as mesmas legais e devendo por essa razão ser admitidas; finalmente, que o pedido de revisão oficiosa é um meio procedimental idóneo para reagir contra a ilegalidade de liquidações de CSR cujo encargo tenha sido totalmente suportado por terceiro sob as vestes de contribuinte de facto sendo, por isso, um meio de garantia ao dispor das requerentes no caso da presente arbitragem, não se percecionando como poderia o regime previsto no art. 78.º da LGT ser inaplicável à CSR.

Concluíram pela improcedência das exceções invocadas pela requerida e procederam ainda à junção do comprovativo de pagamento do remanescente da taxa de arbitragem.

           

 

— II —

            Importa, antes de mais, proceder ao saneamento dos autos, tendo aliás presente o ele­va­­do número de exceções e questões prévias suscitadas pela requerida no seu articulado de res­pos­ta e que, se procedentes, obstam ao conhecimento de mérito e ao prosseguimento da cau­sa.

            Nos termos do art. 13.º do CPTA, aplicável à arbitragem tributária por via do art. 29.º, n.º 1, al. c), do RJAT, o conhecimento da competência precede o de todas as demais matérias. Porém, uma vez que, por um lado, o âmbito de atuação da jurisdição arbitral tributária está limitado em razão do valor da causa (art. 3.º, n.º 1, da Port. n.º 112-A/2001) e, por outro lado, a competência funcional das formações, singulares ou colegiais, de julgamento está igualmente dependente do concreto valor fixado para cada arbitragem [art. 5.º, n.os 2 e 3, do RJAT], ter-se-á, primeiramente, de proceder à determinação do valor da causa que funciona assim como uma condição prévia à cognição da competência.

Cabe então conhecer das seguintes exceções e demais questões obstativas do prosseguimento dos autos suscitadas pela requerida, segundo a ordem da respetiva precedência lógica:

            — Incompetência da jurisdição arbitral tributária;

            — Nulidade de todo processo decorrente de ineptidão da petição inicial;

            — Inadmissibilidade da coligação de requerentes e da cumulação de pedidos;

            — Caducidade do direito de ação;

            — Ilegitimidade ativa das requerentes;

            — Falta de interesse processual das requerentes.

 

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            Antes porém, e porque em relação a essas questões inexiste qualquer controvérsia entre as partes, é possível desde já concluir que ambas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão devida­men­te patrocinadas nos autos. Também se pode desde já estabelecer que a requerida tem legitimidade ad causam.

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Nos termos do art. 97.º-A do CPPT, quando se impugnem atos de liquidação o valor atendível, para efeitos de custas, será o da importância cuja anulação se pretende. Tendo presente que as requerentes peticionam a invalidação de atos de liquidação que correspondem a um montante total de EUR 80.258,57 que alegam ter suportado em CSR e não se vislum­brando qualquer motivo para divergir dessa posição, há que aceitar o montante indicado na p.i., que aliás não foi impugnado pela requerida.

            Fixa-se assim à presente arbitragem o valor de EUR 80.258,57.

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Fixado que está o valor da causa e uma vez que este excede o dobro do montante da alçada dos tribunais centrais administrativos sem contudo ultrapassar a fasquia dos dez milhões de euros, é então possível concluir que o presente Tribunal Arbitral Colegial dispõe de competência funcional [art. 5.º, n.º 3, al. a), do RJAT] e de competência em razão do valor para conhecer da presente arbitragem (art. 4.º, n.º 1, in fine, do RJAT e art. 3.º, n.º 1, da Port. n.º 112-A/2011).

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Vem porém suscitada a exceção de incompetência em razão da matéria com base em três linhas de argumentação. Em primeiro lugar, a requerida invoca que as requerentes pretendem que este Tribunal Arbitral proceda a uma fiscalização abstrata da validade (em sentido amplo) do regime jurídico que, à época dos factos relevantes, regulava a CSR. Em segundo lugar, invoca-se a incompetência da jurisdição arbitral para conhecer da legalidade de atos de repercussão da CSR subsequentes e autónomos dos atos de liquidação deste tributo. Finalmente, sustenta-se que, não tendo este tributo a natureza de imposto em sentido próprio, a sindicância dos atos tributários que lhe digam respeito está excluída por força da cláusula negativa de adesão aposta na portaria de vinculação da AT à jurisdição arbitral tributária.

Adiante-se, desde já, que quer o primeiro, quer o segundo daqueles fundamentos vão liminarmente rechaçados por serem manifestamente infundados. Com efeito, quanto ao primeiro fundamento, a apreciação da conformidade do regime jurídico da CSR com o Direito Europeu, que vai implicada nas pretensões deduzidas pelas requerentes, tem natureza meramente instrumental ao pedido de invalidação de atos tributários deduzido na p.i. Não está, portanto, em causa uma pretensão de apreciação da validade, eficácia ou aplicabilidade em abstrato das normas reguladoras daquele tributo, mas antes e apenas uma apreciação incidental da conformidade de tais normas com o Direito Europeu (e, portanto, da eventual necessidade da sua desaplicação em concreto nestes autos) na medida em que as respetivas estatuições sejam chamadas a regular a situação jurídica das requerentes à luz das pretensões que deduziram de invalidação de certos atos de liquidação de tributos. Com efeito, é absolutamente consensual na doutrina e na jurisprudência que os atos administrativos (e tributários) que procedam à aplicação de normas de direito interno desconformes com o Direito da União padecem de vício de violação de lei decorrente de erro nos seus pressupostos de direito. Daí que para averiguar da procedência de um tal vício, quando invocado como causa de pedir, seja necessário que o tribunal indague da eventual necessidade de desapli­cação incidental e concreta das normas de direito interno arguidas de desconformidade com o Direito Europeu sem que desse escrutínio jurisdicional possa resultar a invalidação ou a desaplicação, com força obrigatória geral, das normas que dele sejam objeto. Por outro lado, a ‘ilegalidade abstrata’ de um tributo não deixa ainda assim de ser uma modalidade de “qualquer ilegalidade” que, nos termos do corpo do art. 99.º do CPPT, pode servir de fundamento de impugnação de atos tributários.

            Quanto ao segundo dos fundamentos invocados em abono da exceção de incom­pe­tência é também manifesta a sua improcedência. Como é sabido, é pelo critério do pedido que se afere a competência de um tribunal. Nesta sede, puramente formal, irrelevam assim quaisquer considerações em torno da viabilidade substancial da pretensão deduzida, as quais apenas deverão aferidas na fase do julgamento da causa. Assim, não se verificará aquele apontado vício da instância se a pretensão concretamente deduzida, apreciada em abstrato e alheando-se de qualquer avaliação do seu mérito, couber no quadro das competências jurisdicionais do tribunal em que a ação pende. No caso presente não subsistem dúvidas de que a pretensão deduzida — de resto, de modo bastante claro e sem qualquer ambiguidade ou equivocidade — é a de invalidação de diversos atos de liquidação da CSR, com fundamento em que o conteúdo exatório desses atos foi repercutido na esfera jurídica das requerentes e assacando-se-lhes vícios que, de acordo com a argumentação sufragada, seriam causa da respetiva ilegalidade. Para apreciar a competência do tribunal é indiferente, portanto, saber se o vício invocado procede quer no que diz respeito à existência efetiva dos seus elementos constitutivos quer mesmo no que diz respeito ao efeito invalidante que se lhe atribui — tudo isso pertence já ao conhecimento da questão de fundo — ou se as requerentes têm legiti­mi­dade adjetiva para o invocar em juízo, matéria que ingressará já no quadro da aprecia­ção da exceção de ilegitimidade. Ora, a jurisdição arbitral tributária é competente para conhecer de pretensões relativas à “declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos” [art. 2.º, n.º 1, al. a), do RJAT]. Tanto basta, assim, para concluir pela manifesta improcedência da exceção de incompetência com este fundamento, na medida em que o que se peticiona não é a declaração de ilegalidade dos atos de repercussão do encargo de pagamento da CSR, mas antes a declaração de ilegalidade de atos de liquidação deste tributo cujos efeitos foram alegada­men­te repercutidos nas esferas das requerentes, pretensão que claramente se compreende no âmbito material da jurisdição arbitral tributária.

Finalmente, e em relação ao terceiro dos fundamentos invocados em abono da exceção de incompetência, trata-se de matéria já abundantemente discutida na jurisprudência deste CAAD e que tem encontrado resultados algo díspares por parte das diferentes formações de julgamento, mas que assentam num entendimento já perfeitamente consensual e consolidado quanto à natureza jurídico-tributária a reconhecer-se à CSR.

A resposta a essa questão passa pela seguinte metodologia de abordagem: em primeiro lugar pela averiguação do âmbito material da vinculação da AT à jurisdição arbitral do CAAD; em segundo lugar, pela qualificação jurídico-tributária a dar ao tributo em discussão nestes autos. Finalmente, e face às respostas encontradas nos momentos anteriores, pela averiguação da subsunção das questões que formam o objeto desta arbitragem no âmbito material da jurisdição arbitral em matéria fiscal confiada aos tribunais tributários instituídos no seio do CAAD.

Ora, o âmbito material da jurisdição arbitral tributária encontra-se disciplinado, em primeiro plano, no art. 2.º do RJAT que a delimita materialmente por referência à categoria genérica dos “tributos.” Porém, como se pode inferir a partir do art. 4.º, n.º 1, do mesmo diploma esta jurisdição arbitral compreende-se dentro da modalidade da arbitragem voluntária, pelo que a sua efetividade prática pressupõe uma manifestação, expressa ou tácita, de adesão por parte dos litigantes que a ela recorrem. No caso específico da AT essa manifestação tem de ser expressa e “depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos,” consentindo assim que a adesão desta entidade à jurisdição arbitral do CAAD possa não abranger a totalidade dos tributos administrados por aquele serviço da Administração direta do Estado, como possa, em qualquer caso, conter-se dentro dos limites máximos que se estabelecerem nesse instrumento de vinculação.

Ora, precisamente ao abrigo daquele preceito legal, o art. 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março (doravante “a Portaria de Vinculação”) veio restringir os termos da adesão da AT à jurisdição arbitral tributária prevendo expressamente que “[o]s serviços e organismos referidos no artigo anterior [correspondem atualmente à Autoridade Tributária e Aduaneira] vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro” (realce adicionado).

Daqui resulta que, no que interessa à economia da presente arbitragem, a adesão da AT à jurisdição arbitral tributária se circunscreve apenas “à análise de questões relativas a impostos, não sendo portanto suscetíveis de recurso a arbitragem, porquanto fogem aos termos de vinculação da administração tributária questões relativas a taxas e contribuições” (SÉRGIO VASQUES / CARLA CASTELO TRINDADE, “O âmbito material da arbitragem tributária”, in Cadernos de Justiça Tributária, n.º 0, 2013. pp. 24-25).

Com efeito, pelo menos desde a sua expressa consagração constitucional a partir da revisão de 1997, o conceito de tributo compreende, além das já tradicionais espécies dos impostos e das taxas, também as contribuições financeiras a favor de entidades públicas que constituem um tertium genus e “que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que compartilham em parte da natureza dos impostos (porque não têm necessariamente uma contrapartida individualizada para cada contribuinte) e em parte da natureza das taxas (porque visam retribuir o serviço prestado por uma instituição pública a certo círculo ou certa categoria de pessoas ou entidades que beneficiam coletivamente de uma atividade administrativa)” (J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constitui­ção da República Portuguesa Anotada, vol. i, 4.ª ed., Coimbra Ed. p. 1095; cfr., no mesmo entendimento, Ac. TC n.º 539/2015, Ac. TC n.º 344/2019 e Ac. TC n.º 255/2020). De realçar, porém, que a distinção entre impostos, contribuições financeiras e taxas não é puramente semântica ou onomástica — pelo contrário, tem de assentar numa avaliação estrutural do tributo, da sua incidência objetiva e subjetiva e das finalidades recaudatórias que, em concreto, é chamado a prosseguir.

Do exposto resulta que, nos termos da Portaria de Vinculação, à jurisdição arbitral tributária apenas cabe conhecer de litígios em que esteja em causa a declaração de ilegalidade e invalidação de atos de liquidação de impostos, em sentido próprio, sendo-lhe vedado (não por imposição legal, mas por força dos limites apostos à manifestação de adesão da AT à arbitragem voluntária em matéria fiscal) conhecer da legalidade de atos de liquidação de taxas ou das denominadas contribuições financeiras.

Isto visto, torna-se então necessário averiguar da natureza jurídico-tributária da CSR: se, não obstante a sua denominação (“Contribuição”), se tratará de um imposto em sentido próprio ou de uma contribuição financeira. As requerentes sustentam que se trata de um imposto; já a requerida invoca estarmos perante uma contribuição financeira.

A esse respeito deixou-se dito na Decisão CAAD 14-02-2024 (P.º 486/2023-T):

11. A Contribuição de Serviço Rodoviário, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (artigo 1.º), que, entretanto, passou a denominar-se Infraestruturas de Portugal, S.A., sendo que o financia­mento da rede rodoviária nacional a cargo desta entidade é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável (artigo 2.º).

A mesma contribuição corresponde à contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis, e constitui uma fonte de financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da Infraestruturas de Portugal, S.A, no que respeita à respetiva conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento, ainda que a exigência da contribuição não prejudique a eventual aplicação de portagens em vias específicas ou o recurso da entidade concessionária a outras formas de financiamento (artigo 3.º).

A contribuição incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e dele não isentos (artigo 4.º, n.º 1) e é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo (artigo 5.º, n.º 1).

O produto da Contribuição de Serviço Rodoviário constitui receita própria da atualmente denominada Infraestruturas de Portugal, S.A. (artigo 6.º).

A atividade de conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional, que é objeto de financiamento através da Contribuição de Serviço Rodoviário foi atribuída, em regime de concessão, à EP - Estradas de Portugal, E. P. E. pelo Decreto-Lei n.º 380/2007, de 13 de novembro, que aprovou as bases da concessão e nas quais se prevê que, entre outros rendimentos, essa contribuição constitua receita própria dessa entidade (Base 3, alínea b)). E, por outro lado, nelas se estabelece, como uma das obriga­ções da concessionária, a prossecução dos “objetivos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental” (Base 2, n.º 4, alínea b)).

12. À luz do regime jurídico sucintamente descrito, dificilmente se poderia concluir que a Contribuição de Serviço Rodoviário constitui uma contribuição financeira.

Como se refere no acórdão proferido no Processo n.º 269/2021, corroborado pelo acórdão tirado no Processo n.º 304/2022, a Contribuição de Serviço Rodoviário não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva. A contribuição é estabelecida a favor da EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (artigo 3.º, n.º 2), sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (artigo 6.º). No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade da EP - Estradas de Portugal, E. P. E., a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (artigo 3.º, n.º 2).

Por outro lado, nada permite afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da atividade administrativa que se encontra atribuída à EP - Estradas de Portugal, E. P. E. é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários. Quando é certo que o artigo 2.º da Lei n.º 55/2007 declara expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E.P. E. (...) é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.”

Nestes termos, o financiamento da rede rodoviária nacional é assegurado pelos respetivos utilizadores, que são os beneficiários da atividade pública desenvolvida pela EP - Estradas de Portugal, E. P. E., verificando-se, no entanto, que a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”.

Não existindo, deste modo, qualquer nexo específico entre o benefício emanado da atividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos sujeitos passivos de ISP.

13. Resta acrescentar que o regime jurídico da CSR não é equiparável ao previsto para a Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE).

Com efeito, a CESE, criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2014, é tida como uma contribuição extraordinária que tem “por objeti­vo financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sisté­mi­ca do sector energético, através da constituição de um fundo que visa contri­buir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de polí­ticas sociais e ambientais do sector energético”, incidindo sobre as pes­soas singulares ou coletivas que integram o sector energético nacional.

A receita obtida é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE), criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril, com o objetivo de estabelecer mecanismos que contribuam para a sustentabilidade sistémica do sector energético, designadamente através da contribuição para a redução da dívida e ou pressão tarifárias e do financiamento de políticas do sector energético de cariz social e ambiental, de medidas relacionadas com a eficiência energética, de medidas de apoio às empresas e da minimização dos encargos financeiros para o Sistema Elétrico Nacional (artigo 11.º).

Assim sendo, a CESE tem por base uma contraprestação de natureza grupal, na medida em que constitui um preço público a pagar pelo conjunto de pessoas singulares ou coletivas que integram o sector energético nacional à entidade à qual são consignadas as receitas.

Não se reconduz à taxa stricto sensu, visto que não incide sobre uma prestação concreta e individualizada que a Administração dirija aos respetivos sujeitos passivos, nem preenche o requisito de unilateralidade que caracteriza o imposto, uma vez que não tem como finalidade exclusiva a angariação de receita, nem se destina à satisfação das necessidades financeiras do Estado, antes se pretendendo que o sector energético contribua para a cobertura do risco sistémico que é inerente à sua atividade.

Trata-se, nestes termos, de um tributo de carácter comutativo, embora baseado numa relação de bilateralidade genérica ou difusa, que, interessando a um grupo homogéneo de destinatários e visando prevenir riscos a este grupo associados, se efetiva na compensação de eventual intervenção pública na resolução de dificuldades desse sector, assumindo assim a natureza jurídica de contribuição financeira.

Por todas as considerações anteriormente expendidas, essa caracterização não é extensiva à CSR, pelo que não é aplicável ao caso a jurisprudência arbitral – como é o caso do acórdão proferido no Processo n.º 714/2020-T - que veio declarar a incompetência do tribunal arbitral ratione materiae para a apreciação de litígios que tinham como objeto a Contribuição sobre o Sector Energético.

 

            Há assim que concluir que, dentro do género dos tributos, a CSR se compreende na espécie dos impostos em sentido próprio. Nessa medida, a apreciação da legalidade dos atos de liquidação deste imposto, por um lado, é subsumível no âmbito material da jurisdição arbitral dos tribunais tributários instituídos no seio do CAAD e, por outro lado, está compreendida nos termos em que teve lugar a adesão da AT a esta jurisdição arbitral, tal como manifestada na Portaria de Vinculação.

            Improcede assim a exceção de incompetência suscitada pela requerida no seu articulado de resposta.

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            Nestes termos, há que concluir que o presente Tribunal Arbitral é também competente em razão da matéria para conhecer da presente causa por força do art. 2.º, n.º 1, al. a), do RJAT e da vinculação à arbitragem tributária institucionalizada do CAAD por parte da adminis­tração tributária requerida, tal como resulta da Portaria de Vinculação.

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Vem seguidamente invocada a ineptidão da petição inicial.

A requerida assenta esta sua arguição na circunstância de o pedido arbitral não observar os requisitos previstos para a petição inicial previstos no art. 10.º, n.º 2, al. b), do RJAT porquanto, segundo refere, analisados quer o pedido arbitral, quer a documentação a ele anexa, em lado algum se encontra identificado qualquer ato tributário como objeto de impugnação. Acrescenta que, de acordo com aquele preceito legal, do requerimento de constituição do tribunal arbitral deve constar “[a] identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral” que, para a requerida, seria assim condição essencial de aceitação do requerimento de constituição de tribunal arbitral tributário.

Ora, a ineptidão da petição inicial é um vício formal — que se verifica, precisamente, neste articulado — que dá causa a uma nulidade processual principal típica e nominada: a nulidade de todo o processo [art. 98.º, n.º 1, al. a), do CPPT; art. 186.º, n.º 1, do CPC], cuja verificação determina a absolvição de réu da instância [art. 288.º, al. b), do CPC]. Tem assim por efeito invalidar, a partir do seu momento genético, toda a relação jurídica processual.  Em processo judicial tributário, e ao contrário do que sucede no processo civil, a nulidade de todo o processo é sempre insanável (art. 98.º, n.º 1, do CPPT). Acrescente-se ainda que não é qualquer irregularidade formal verificada neste articulado que é idónea a determinar a ineptidão da petição inicial: apenas são suscetíveis de produzir tal resultado aquelas irregularidades que, sendo particularmente graves, inquinem de forma irreversível a relação jurídica processual, tornando absolutamente inviável a subsistência da instância. Dito de outro modo: a ineptidão da petição inicial ocorre somente nos casos expressamente previstos nas diversas alíneas do art. 186.º, n.º 2, do CPC, mas já não perante qualquer outra irregularidade formal de que aquele articulado padeça (nesse sentido, cfr. o art. 98.º, n.º 5, do CPPT).

No caso, pese embora reportada a uma “falta de objeto,” a substância do que a requerida invoca em suporte desta sua arguição poderá reconduzir-se às situações de falta ou de ininteligibilidade do pedido que o legislador determina serem geradoras da ineptidão da petição inicial [art. 186.º, n.º 2, al. a), do CPC]. Desde logo, é possível afirmar-se sem hesitações que não falta na p.i. a indicação de um pedido. Por outro lado, também não se pode afirmar que o pedido seja ininteligível. É perfeitamente possível alcançar o que as requerentes pretendem: a anulação dos atos de liquidação da CSR que tiveram lugar a montante das suas cadeias de fornecimentos de combustíveis ao longo do período de 2019 a 2022 e cujo encargo, alegam, lhes foi repercutido pela sua fornecedora.

É certo que os atos impugnados, apesar de identificados por referência ao seu tipo, sujeito passivo e conteúdo decisório, não são individualizados na p.i., como também parece ser pretendido pelo cit. art. 10.º do RJAT. Tal falha, porém, não afeta a inteligibilidade do pedido, ressumando uma mera irregularidade processual que, em abstrato, pode ser suprida no decurso da instrução da causa, na medida em que estão juntas as faturas respeitantes às aquisições de combustíveis e alegado que a entidade emissora dessas faturas teria sido o sujeito passivo dos atos de liquidação e a apresentante das declarações de introdução no consumo que estariam na origem das liquidações impugnadas, bem como identificado o período cronológico aproximado em que estas últimas terão sido proferidas.

Improcede assim a arguida nulidade de todo o processo.

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            Vem também suscitada a inadmissibilidade da coligação de requerentes e da cumu­la­ção dos pedidos impugnatórios deduzidos a título principal.

            Ora, apresentam-se coligadas nove requerentes peticionando a anulação de diversos atos de liquidação da CSR proferidos ao longo do período temporal que vai de maio de 2019 a dezembro de 2022 e invocando-se, em relação a todas elas, terem suportado, por repercussão, o encargo efetivo do pagamento dos tributos liquidados nos atos impugnados.

            Nos termos do art. 3.º, n.º 1, do RJAT, “[a] cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes atos e a coligação de autores são admissíveis quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito.” No caso presente não se oferece dúvidas de que, pese embora se proceda à impugnação de distintos atos de liquidação, a causa de pedir em relação a todas essas pretensões envolve a apreciação de circunstâncias de facto essencialmente análogas e a aplicação dos mesmos princípios e normas jurídicos. E isto porque nas diversas causas de pedir implicadas nas pretensões das requerentes estão em causa diferentes fornecimentos de combustíveis que lhes foram efetuados e em relação aos quais vem alegado ter havido repercussão do montante de CSR suportado pela entidade fornecedora enquanto sujeito passivo daquele tributo. A todos esses atos de liquidação assaca-se o mesmo vício de erro nos pressupostos de direito decorrente da aplicação pelas liquidações impugnadas, por um lado, de normas de direito interno desconformes com o Direito da União Europeia e, por outro lado, de normas feridas de inconstitucionalidade material por violação do princípio da igualdade consagrado no art. 13.º da CRP.

            Também à coligação das requerentes não se oferecem obstáculos processuais porquan­to está em causa a impugnação de atos de liquidação de conteúdos substancialmente idênticos e em relação aos quais vêm invocados precisamente os mesmos vícios.

            Desse modo, improcede também esta exceção dilatória e, consequentemente, vão admitidas quer a coligação de requerentes, quer a cumulação de pedidos impugnatórios.

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            Vem de seguida excecionada a caducidade do direito de ação.

            Funda a requerida esta sua pretensão excetiva na circunstância de o pedido de revisão oficiosa apresentada pelas requerentes ser intempestivo na medida em que, por um lado, não poderia ser deduzido no prazo de quatro anos previsto no art. 78.º, n.º 1, in fine, da LGT por não estar em causa erro imputável aos serviços porquanto os serviços da AT se teriam limitado a aplicar a lei em vigor à data dos factos relevantes e, por outro lado, na data em que foi apresentado estariam já ultrapassados quer o prazo de 120 dias previsto na primeira parte daquele preceito legal, quer o de três anos previsto no art. 15.º do CIEC.

            Importa decidir.

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            Para o conhecimento da presente exceção torna-se necessário proceder ao estabele­ci­men­to da seguinte factualidade relevante:

  1. Entre 31-05-2019 e 31-12-2022 a sociedade J... emitiu em nome das requerentes diversas faturas relativas ao fornecimento de um total de 665.895,66 litros de gasóleo e 72.921,29 litros de gasolina;
  2. Através de carta expedida em 31-05-2023 sob o registo pos­tal n.º RH...PT, as requerentes remeteram à Al­fân­dega do Freixieiro um requerimento conjunto de instauração de procedimento de re­vi­são oficiosa tendo por objeto os atos de liquidação da CSR correspon­den­tes aos fornecimentos de combustíveis referidos em a);
  3. As requerentes não foram notificadas de qualquer decisão expressa proferida no âmbito do procedimento tributário desencadeado pela apresentação do requerimento referido em b);
  4. A presente arbitragem iniciou-se com a apresentação eletrónica da petição inicial das requerentes em 29-12-2023.

 

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Com relevância para o conhecimento da presente exceção inexistem quaisquer outros factos, alegados pelas partes ou do conhecimento oficioso do Tribunal, que se devam considerar como não provados.

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Na decisão da matéria de facto relevante para a decisão desta exceção o Tribunal teve exclusivamente em consideração a prova documental junta aos autos, em especial aquela constante do documento n.º 1 junto com a p.i. das requerentes [facto a)] e do Processo Administrativo [factos b) e c)], em particular, quanto ao facto c), a ausência nos autos do P.A. de qualquer documento relativo à prolação de uma decisão administrativa expressa e, por maioria de razão, à sua notificação às requerentes.

Finalmente, o facto d) resulta demonstrado pelo confronto da ficha eletrónica dos presentes autos constante da plataforma informática de gestão processual em uso no CAAD.

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            Em primeiro lugar, é forçoso constatar que, à luz do disposto no art. 10.º, n.º 1, al. a), do RJAT, a presente arbitragem é tempestiva, na medida em que tendo as requerentes deduzido pedido de instauração oficiosa de procedimento de revisão em 31-05-2023 [facto b)] que não foi objeto de qualquer decisão expressa [facto c)], ter-se-á formado ato tácito de indeferimento em 02-10-2023, nos termos do art. 57.º, n.º 1, da LGT [e tendo também presente o disposto no art. 279.º, al. c), do CC, numa interpretação atualista deste preceito legal]. Assim, aquando da propositura da presente arbitragem, em 29-12-2023 [facto d)], não estava ainda completado o prazo de 90 dias previsto no cit. art. 10.º, n.º 1, al. a), do RJAT (que terminaria apenas em 02-01-2024), pelo que, nessa perspetiva, não se verifica a caducidade do direito de ação das requerentes.

            Em segundo lugar, e no que diz respeito à tempestividade da apresentação do pedido de revisão oficiosa, também não assiste razão à requerida quando sustenta que não se poderia aplicar o prazo de quatro anos previsto no art. 78.º, n.º 1, in fine, da LGT por não estar em causa “erro imputável aos serviços” na medida em que os serviços da AT se teriam limitado a aplicar a lei em vigor à data dos factos relevantes

Ora, o erro que se exige nesta norma não corresponde a um erro psicológico ou volitivo e a sua verificação tão-pouco reclama um juízo de culpa por banda da administração ou dos seus agentes: o erro de que se cuida neste preceito legal é o erro material ou objetivo que integra o vício de violação de lei, entendido como a desconfor­mi­dade entre os pressupostos factuais invocados como motivação ou causa do ato concreto, ou a sua inexistência, e a previsão normativa em que se fundou o agir administrativo ou a divergência entre o conteúdo ou o objeto do ato e o bloco de juridicidade que lhe é aplicável, neste se incluindo também os princípios e as normas constitucionais e de Direito da União Europeia.

            Tendo as requerentes, no pedido de instauração oficiosa de procedimento de revisão que apresentaram junto da AT, assacado às liquidações impugnadas o vício de violação de lei decorrente de erro nos pressupostos de direito — vício que, de acordo com a configuração que as requerentes lhe deram, permite também imputar a ilegalidade assacada às liquidações diretamente à conduta da reque­rida, por se tratar de atos proferidos pelos seus órgãos — nada obsta, do ponto de vista legal, que pudessem lançar mão deste meio procedimental no prazo a que se refere o art. 78.º, n.º 1, in fine, da LGT. Por outro lado, a partir das datas das faturas juntas pelas requerentes é possível aquilatar que o pedido de revisão oficiosa terá sido apresentado ainda dentro do referido prazo de quatro anos.

            É certo que, como refere a requerida, não se apuraram as datas das liquidações subjacentes às mencionadas faturas. Porém, é forçoso ter presente que as requerentes não tinham de ser, nem veio alegado que tenham sido, notificadas desses atos de liquidação: para as requerentes, portanto, o prazo para os impugnar administrativamente apenas começou com o conhecimento da sua existência, como decorre do art. 188.º, n.º 2, do CPA [ex vi do art. 2.º, alínea c), da LGT], que não lhe chegou antes da emissão das faturas [em sintonia, aliás, com o que, paralelamente, se estabelece no art. 102.º, n.º 1, al. f), do CPPT, para a impugnação contenciosa]. Por outro lado, relativamente a factos extintivos, como é o decurso do prazo que gera a caducidade do direito de pedir a revisão oficiosa ou o decurso do prazo do exercício do direito de impugnação contenciosa, o ónus da prova recaía sobre a requerida: à face das regras do Código Civil, o ónus da prova dos factos extintivos recai sobre quem os invoca, como decorre da regra geral do art. 342.º, n.º 2, do CC. Especialmente no que diz respeito à cadu­ci­dade do direito de ação, o art. 343.º, n.º 2, deste diploma esclarece que “cabe ao réu a prova de o prazo ter já decorrido, salvo se outra for a solução especialmente consignada na lei.”

Assim, não se tendo provado factos relevantes para concluir pela caducidade do direito de pedir a revisão oficiosa, designadamente que o pedido de revisão oficiosa tenha sido apresentado mais de 4 anos após o conhecimento, pelas requerentes, dos atos revidendos, também por esta via tem de se concluir pela tempestividade (já não, naturalmente, pela procedência, matéria em cujo conhecimento não se entrará) do referido pedido de revisão oficiosa deduzido pelas requerentes e, concomitantemente, também pela tempestividade da propositura da presente arbitragem.

            Improcede, assim, a exceção de caducidade do direito de ação.

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*          *

Vem, finalmente, excecionada a ilegitimidade ativa das requerentes.

Para a requerida apenas os sujeitos passivos da CSR teriam legitimidade para solicitar o reembolso dos valores de imposto indevidamente pagos, sendo que, nos termos dos arts. 15.º e 16.º do CIEC, os múltiplos adquirentes dos produtos petrolíferos careceriam de legitimidade para solicitar a revisão dos correspondentes atos tributários e obter o reembolso do imposto pago. Mais acrescenta que as requerentes, além de não serem sujeitos passivos do imposto CSR, também não viram o encargo de pagamento deste tributo repercutido nas suas esferas jurídicas ao abrigo de qualquer norma legal. A repercussão que se verifica no caso será, então, uma repercussão de natureza económica, ou de facto, que não é imposta por, nem decorre, da lei reguladora daquele tributo, mas que resulta das práticas comerciais, de direito privado, seguidas pelos comercializadores e distribuidores de combustíveis.

            Respondendo, as requerentes sustentaram que têm legitimidade para intervir no processo tributário todos aqueles que demonstrem ter um interesse legalmente protegido cuja tutela dependa desse processo, ainda que não sejam legalmente responsáveis pelo cumprimento de quaisquer obrigações tributárias, circunstância que permite concluir que a legitimidade no processo tributário não se confunde com a qualidade de sujeito passivo, como bem se revela no art. 18.º, n.os 3 e 4, da LGT. De acordo com este preceito legal resultaria assim que o repercutido será titular de um interesse legalmente protegido justificativo da atribuição de legitimidade processual para discussão da legalidade da dívida tributária e, assim, aquele que demonstrar ter suportado o encargo do tributo terá legitimidade procedimental e/ou processual para contestar a legalidade das liquidações, quer detenha ou não a qualidade de sujeito passivo. Para as requerentes, o fenómeno de repercussão implicado na CSR seria, em qualquer caso, de repercussão legalmente imposta, nos termos do art. 2.º da Lei n.º 55/2007.

            Importa decidir.

            Também a legitimidade adjetiva se configura como um pressuposto processual, sendo portanto um requisito puramente formal que se abstrai do conteúdo da relação jurídica de direito material que está na base do litígio. Na sua aferição não cabe ao tribunal efetuar uma antecipação sobre o julgamento da questão de fundo, nem apreciar o bem fundado da causa de pedir avançada ou dos meios de defesa deduzidos pelas partes, temas que já dizem respeito à apreciação do mérito da causa.

            No caso específico das pretensões de invalidação de atos tributários regula, antes de mais, o art. 9.º, n.º 1, do CPPT (aplicável ex vi do n.º 4 do mesmo preceito legal), segundo o qual terão legitimidade adjetiva “os contribuintes, incluindo os substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido.” Já à luz do art. 55.º, n.º 1, al. a), do CPTA, cuja aplicação supletiva ao contencioso tributário também se poderia hipotizar, a legitimidade ativa para a impugnação de atos administrativos pertence a “[q]uem alegue ser titular de um interesse direto e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo ato nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos.” Finalmente, resulta do art. 30.º, n.º 3, do CPC que, na operação de aferição da legitimidade adjetiva das partes “são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.”

            Portanto: é à luz da configuração que o autor dá da relação material controvertida que deve ser aferida a eventual existência de uma posição jurídica subjetiva que consinta à parte um interesse direto e pessoal — em demandar ou em contradizer, consoante a posição que ocu­pe na relação jurídica processual — em face do concreto pedido que foi judicialmente deduzido.

            É certo que, por força do art. 18.º, n.º 4, al. a), da LGT, nos casos de repercussão legal de imposto é expressamente reconhecida ao repercutido legitimidade, quer procedimental, quer adjetiva, para impugnar os correspondentes atos de liquidação, em relação aos quais, naturalmente, ele não assume a condição de sujeito passivo e, habitualmente, tão-pouco a de sujeito procedimental do correspondente procedimento de liquidação.

            Porém, este preceito não tem aplicação ao caso presente, na medida em que inexiste no regime jurídico da CSR qualquer mecanismo de repercussão legal, circunstância que as próprias requerentes também  acabam por admitir (pelo menos quanto à inexistência de uma previsão legal expressa) no art. 96.º da sua p.i.

            Como se decidiu na Decisão CAAD 08-01-2024 (P.º 408/2023-T):

No entanto, afigura-se claro que a CSR não constitui um caso de repercussão legal. A Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que instituiu a CSR não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal, nem sequer, adiante-se, de repercussão meramente económica, isto, sem prejuízo de ser um dado que, em princípio, as empresas repassam nos preços praticados os gastos em que incorrem, independentemente da sua natureza (e, portanto, incluindo os gastos tributários), por forma a concretizarem o objetivo lucrativo que preside à sua criação e manutenção (v. artigos 22.º do Código das Sociedades Comerciais e 980.º do Código Civil).

 

            Também na Decisão CAAD 07-05-2024 (P.º 633/2023-T) se deixou discorreu que “a Requerente alega para este efeito é o de lhe ter sido repercutida a CSR. Qualifica esta repercussão, erradamente, como legal, que, a ser “legal”, sempre teria de constar de uma norma com essa natureza, a qual, porém, não existe.

            É, assim, de concluir que a Lei n.º 55/2007 não contém qualquer preceito determinando ou imponto a repercussão legal do encargo de pagamento da CSR sobre terceiros que não sejam os sujeitos passivos daquele imposto. É certo que a técnica legislativa utilizada naquele diploma não é a melhor, mas torna-se manifesto que “sem prejuízo de a CSR ter sido consagrada como “contrapartida” da utilização da rede rodoviária nacional, a Lei [n.º 52/2007] não indica ou sequer sugere sobre quem é que deve constituir encargo” (Decisão CAAD 15-01-2024, P.º 375/2023-T) não se afigurando como suficiente, para esse efeito, a referência genérica e vaga de que “[o] financiamento da rede rodoviária nacional […] é assegurado pelos respetivos utilizadores” (art. 2.º da Lei n.º 55/2007) na medida em que não há — nem legalmente, nem logicamente — uma identidade ou sobreponibilidade entre o que sejam os utilizadores das vias da rede rodoviária nacional e os consumidores de combustíveis (pense-se, por exemplo, no caso dos veículos elétricos, dos velocípedes ou dos carros de tração animal que não consomem qualquer combustível não obstante serem, também eles, empregues na utilização daquelas vias, não se podendo tão-pouco afirmar que exista, em relação ao uso destes veículos, qualquer norma expressa de exclusão de tributação ou de isenção em sede de CSR).

            Inexistindo, desse modo, um mecanismo de repercussão legal do encargo de pagamento da CSR — o que vale por dizer que as requerentes não têm a qualidade de repercutidas legais daquele imposto — tem-se forçosamente por concluir pela inaplicabilidade, no contexto da presente arbitragem, da norma habilitadora de legitimidade processual prevista no art. 18.º, n.º 4, al. a), da LGT.

            Subsistiria, ainda assim, a hipótese de legitimidade ativa ao abrigo do disposto no art. 9.º, n.º 1, do CPPT, que a reconhece a quem prove ter um interesse legalmente protegido na anulação do ato de liquidação.

            Ora, a esse respeito as requerentes alegam, substancialmente, que “em qualquer situação de repercussão do pagamento do imposto — independentemente de se tratar de repercussão legal ou voluntária —, verifica-se uma ablação do património pessoal do repercutido” (art. 84.º da p.i.) que justificaria que, “independentemente da modalidade de repercussão, [este seja] titular de um interesse legalmente protegido justificativo da atribuição de legitimidade processual para discussão da legalidade da dívida tributária” (art. 87.º da p.i.), concluindo mais adiante neste seu articulado que é “indiscutível a repercussão efetiva do encargo tributário na esfera jurídica” delas requerentes (art. 102.º da p.i.).

            Ressalta, desde logo, que está por adquirido que as requerentes não invocam nem alegam ser o sujeito passivo, ou por qualquer outra forma ou modalidade o obrigado tributário, em relação à obrigação de pagamento da CSR liquidada. Também se excluiu, pelos fundamentos já avançados supra, que tivessem, em relação a esse tributo, a qualidade de repercutidos legais. Invocam, ainda assim, que suportaram o encargo desse imposto porque o valor deste foi incorporado, pela empresa sua fornecedora, no preço dos diversos abastecimentos de combustíveis ocorridos ao longo dos anos de 2019 a 2022 e que ressumam das correspondentes faturas.

            Portanto: não vem alegado que os atos tributários que são objeto de impugnação nesta arbitragem tivessem por conteúdo decisório a repercussão na esfera da requerente, enquanto adquirente ou consumidor dos combustíveis em causa, do encargo de suportar as obrigações tributárias a cuja liquidação se procedeu em tais atos. Por outro lado, no entendimento deste Tribunal esse encargo também não resulta como um efeito jurídico necessário desses mesmos atos tributários que decorresse diretamente da lei, independentemente do concreto conteúdo dispositivo de tais atos.

Está em causa, por conseguinte, um fenómeno de repercussão económica ou de facto porquanto a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que instituiu a CSR, não contempla nenhum mecanismo de repercussão legal deste imposto: o legislador limitou-se a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão, mesmo económica até, deste tributo sobre terceiros. Essa possibilidade de repercussão económica do encargo do tributo não está assim nem excluída, nem pressuposta, na lógica de operacionalização daquele imposto, ficando na disponibilidade dos sujeitos passivos e daqueles com quem estes interagem no dia-a-dia das suas atividades operacionais. De salientar ademais que a repercussão económica de um tributo não é, em si mesma, critério determinante da titularidade de legitimidade processual, como se retira a contrario do disposto no art. 18.º, n.º 4, al. d), da LGT, que a reconhece apenas àqueles que “suporte[m] o encargo do imposto por repercussão legal.”

            Na verdade, e de acordo com a configuração que as próprias requerentes dão da relação material controvertida, colocada de lado a fonte legal, a alegada repercussão que sofreram nas suas esferas jurídicas será o resultado das políticas comerciais de preços seguidas pelo agente económico com quem contrataram o fornecimento de combustíveis e que são livremente definidas por esse operador, e pelos seus clientes, de acordo com as regras do mercado livre. Assim, não foram os atos de liquidação a determinar ou impor a repercussão do imposto liquidado na esfera das requerentes. O que determina esse resultado é a prática comercial de, na formação dos preços de venda, o seu fornecedor de combustíveis ter repercutido os gastos fiscais suportados a montante nas várias etapas da sua cadeia de operações, como de resto o fará certamente em relação a outros gastos e custos, inclusivamente fiscais e parafiscais, que igualmente suporta, na medida em que qualquer operador racional num mercado concorren­cial tem de gerar, na sua atividade opera­cional, um resultado líquido positivo. Essa prática de repercussão do encargo da CSR, ainda que possa eventualmente ser segui­da de forma generalizada por entre os operadores do mercado de combustíveis, não é impos­ta nem pressuposta pelo regime jurídico regulador daquele tributo. Nada — nem a lei, nem os corres­pon­dentes atos de liquidação — impõe ao sujeito passivo da CSR que repercuta a jusan­te da cadeia comercial o montante de imposto que foi sobre si liquidado e cujo paga­men­to efetuou.

Esse resultado é, mesmo de acordo com a versão das relações materiais controvertidas dada pelas requerentes (já despida da invocação do fenómeno de repercussão legal, que se julgou não ser atendível), estranho à relação jurídica tributária e não é direta ou imediatamente imputável aos atos de liquidação impugnados. Dito de outra forma: os atos de liquidação impugnados não são condição suficiente da lesão que as requerentes invocam ter sofrido nas suas esferas patrimoniais e que querem ver reparada por intermédio da anulação que peticionam. Do mesmo modo que não decorre do regime jurídico da CSR que o imposto liquidado a montante devesse necessariamente ser repercutido na esfera das requerentes, enquanto adquirentes ou consumidoras, também não se pode concluir que, eliminadas essas liquidações da ordem jurídica, se seguiria necessariamente que os preços dos combustíveis por si adquiridos teriam sido mais baratos na mesma e exata proporção do montante de CSR alegadamente suportado pela sua fornecedora.

Com efeito, nada vem alegado no sentido de que as partes contratuais (as requerentes e a entidade que lhes forneceu os combustíveis), ao celebrarem os diversos contratos que titulam os abastecimentos em causa nesta arbitragem tivessem ajustado os respetivos preços em função do, ou por indexação ao, valor de CSR alegadamente suportado pela fornecedora (de resto, como as requerentes reconhecem, as faturas que juntam nem sequer identificam separada­­mente o montante pago a título de CSR como uma componente autónoma de formação do preço final) e que, portanto, tivesse sido outro o montante de CSR (ou não tivesse havido lugar à sua liquidação ou pagamento) os preços concretamente ajustados para os forneci­men­tos de combustíveis teriam inevitavel­mente sido distintos daqueles que foram praticados e estão refletidos nas faturas juntas aos autos.

A versão fáctica alegada pelas requerentes não exclui a conclusão — aliás, conduz a ela — segundo a qual se os concretos atos de liquidação impugnados não tivessem sido profe­ri­dos as requerentes teriam, em qualquer caso, sido chamadas a pagar pelos combustíveis que adquiriram os mesmos preços que lhe foram cobrados — ou, por outras palavras, que as liquidações impugnadas tenham sido indiferentes aos preços suportados pelas requerentes nas faturas que juntaram, na medida em que estes, ainda assim, teriam sobrevindo devido aos mecanismos normais de formação de preços no mercado concorrencial dos combustíveis.

Em síntese: mesmo de acordo com a configuração que as requerentes fornecem das várias relações materiais controvertidas não resulta que à procedência das suas pretensões — isto é, à anulação dos atos de liquidação que impugnam — se seguiria necessariamente, em sede de reconstituição da situa­ção atual hipotética, a redução dos preços que pagaram pelos fornecimentos de combus­tíveis a que se referem as faturas que juntam com a p.i.

Em conclusão, as requerentes não alegam a existência, na esfera de cada uma delas, de uma posição jurídica subjetiva que tenha sido direta e causalmente lesada pelos atos tributários que impugnaram e, por conseguinte, carecem verdadeiramente de um interesse legal­mente protegido na demanda da anulação desses mesmos atos. O que vale por dizer que as reque­ren­tes são partes ilegítimas na presente arbitragem, devendo por conseguinte absolver-se a requerida da instância arbitral.

*

*          *

Vem, por último, suscitada a exceção de falta de interesse processual por banda das requerentes.

Ora, como é sabido, o interesse processual ou interesse em agir é um pressuposto proces­sual que contende com a necessidade de tutela jurisdicional e que se distingue da legiti­mi­­dade processual, na medida em que “a legitimidade exprime a relação entre a parte no proces­so e o objeto deste, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, dedu­zindo-o ou contradizendo-o; o interesse em agir traduz-se na necessidade objetivamente justi­ficada de recorrer à ação judicial” (Ac. RP 24-10-2002, P.º 0231246). Como se deixou dito no Ac. STJ 05-02-2013 (P.º 684/10.1YXLSB.L1.S1): “[o] interesse processual não se confunde com o pressuposto processual legitimidade: pode ter-se o direito de ação por se ser o titular da relação material, ou por a lei especialmente permitir a intervenção processual a quem não é o titular daquela relação e, todavia, perante as circunstâncias concretas do caso não existir qualquer necessidade de recorrer ao tribunal para definir, reconhecer ou fazer valer o direito.

Sob este prisma, é inelutável a conclusão de que “o interesse em agir distingue-se da legitimidade desde logo por esta preceder aquele” (Ac. RL 19-01-2017, P.º 3583/16.0T8SNT.L1-2; cfr., apontando também para essa conclusão no domínio do contencioso administrativo, o Ac. STA 29-10-2020, P.º 01641/18.5BELSB).

Assim, tendo presente que o interesse processual ou interesse em agir vem configu­rado dogmaticamente como um plus em relação à legitimidade adjetiva, e uma vez que se concluiu já pela ilegitimidade ativa das requerentes, fica prejudicado o conhecimento da exceção de falta de interesse processual igualmente suscitada na resposta da requerida.

*

*          *

            Tendo sido as requerentes a dar causa à extinção da presente instância, são elas as respon­sá­veis pelas custas da arbitragem — art. 12.º, n.º 2, do RJAT e arts. 4.º, n.º 5, e 6.º, al. a), do Regu­­lamento de Custas da Arbitragem Tributária do CAAD.

            Desse modo, tendo em conta o valor atribuído ao processo em sede de saneamento, por aplicação da Tabela I ane­xa ao mencionado Regulamento — e atendendo a que não se encontra prevista qualquer redução das custas processuais quando o processo conclua sem prola­ção de decisão de mérito —, a final fixar-se-á a taxa de arbitragem no montante de EUR 2.754,00, em cujo pagamento serão condenadas as requerentes.

 

 

— III—

            Assim, pelos fundamentos expostos, acordam os Árbitros que compõem o presente Tribunal Arbitral em:

  1. Julgar procedente a exceção de ilegitimidade das requerentes e, consequen­te­men­te, absol­ver a requerida da presente ins­tân­cia arbitral;
  2. Julgar prejudicado o conhecimento da exceção de falta de interesse processual das reque­rentes;
  3. Julgar improcedentes as restantes exceções e demais questões obstativas do conhe­ci­­mento do mérito da causa suscitadas no articulado de resposta da requerida; e
  4. Condenar as requerentes no pagamento das custas do presente proces­so, cuja taxa de arbitra­gem se fixa em EUR 2.754,00.

 

Notifiquem-se as partes.

 

CAAD, 6 de junho de 2024

Os Árbitros,

 

 

 

 (Jorge Lopes de Sousa)

(Presidente)

Vencido nos termos de declaração de voto anexa

 

 

 (Nina Aguiar)

 

 

 

 (Gustavo Gramaxo Rozeira)

(Relator)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Processo n.º 5/2024-T

 

Voto de vencido

 

Votei vencido quanto às questões da incompetência do Tribunal Arbitral por falta de vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira e da ilegitimidade das Requerentes, pelas seguintes razões:

 

  1. Questão da incompetência do Tribunal Arbitral por falta de vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira

 

O artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, que autorizou o Governo a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, fixou como possível âmbito da arbitragem «os actos de liquidação de tributos, incluindo os de autoliquidação, de retenção na fonte e os pagamentos por conta, de fixação da matéria tributável, quando não dêem lugar a liquidação, de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação, os actos de fixação de valores patrimoniais e os direitos ou interesses legítimos em matéria tributária».

O Decreto-Lei n.º 10/2011 (RJAT), emitido ao abrigo da autorização legislativa, não estendeu o âmbito da jurisdição arbitral tributária a todo o tipo de litígios permitidos pela autorização legislativa, limitando a competência dos tribunais arbitrais à «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», à «declaração de ilegalidade de actos de determinação da matéria tributável, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais» e à «apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação, sempre que a lei não assegure a faculdade de deduzir a pretensão referida na alínea anterior».

A Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, restringiu ainda mais o âmbito da arbitragem tributária, eliminado a possibilidade de recurso à arbitragem para declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando dêem origem à liquidação de qualquer tributo, e para apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de decisão de liquidação.

No entanto, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça», veio admitir que, no âmbito das competências dos tribunais arbitrais, o âmbito da arbitragem tributária fosse limitado de harmonia com a vinculação.

Foi em concretização deste desígnio legislativo que foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que definiu o «objecto da vinculação» e os «termos da vinculação» da seguinte forma:

 

Artigo 1.º

Vinculação ao CAAD

 

     Pela presente portaria vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, no CAAD — Centro de Arbitragem Administrativa os seguintes serviços do Ministério das Finanças e da Administração Pública:

a) A Direcção -Geral dos Impostos (DGCI); e

b) A Direcção -Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC).

 

Artigo 2.º

Objecto da vinculação

 

     Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e

d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.

 

Artigo 3.º

Termos da vinculação

 

     1 – A vinculação dos serviços e organismos referidos no artigo 1.º está limitada a litígios de valor não superior a € 10 000 000.

     2 – Sem prejuízo dos requisitos previstos no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a vinculação dos serviços referidos no artigo 1.º está sujeita às seguintes condições:

a) Nos litígios de valor igual ou superior a € 500 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de mestre em Direito Fiscal;

b) Nos litígios de valor igual ou superior a € 1 000 000, o árbitro presidente deve ter exercido funções públicas de magistratura nos tribunais tributários ou possuir o grau de doutor em Direito Fiscal.

     3 – Em caso de impossibilidade de designar árbitros com as características referidas no número anterior cabe ao presidente do Conselho Deontológico do CAAD a designação do árbitro presidente.

 

            Desta legislação e regulamentação conclui-se que houve uma preocupação em limitar o âmbito da arbitragem tributária:

– na alínea a) do n.º 4 do artigo 124.º da Lei de autorização legislativa admitia-se a possibilidade de nela ser incluída a generalidade dos litígios relativos a liquidação de tributos (inclusivamente os praticados pelos contribuintes) e de fixação de valores patrimoniais que podem ser apreciados em processo de impugnação judicial e o reconhecimento de direitos e interesse legítimos em matéria tributária;

– no artigo 2.º do RJAT não se incluiu na arbitragem tributária o reconhecimento de direitos e interesse legítimos em matéria tributária e estabeleceu-se no artigo 4.º, que a vinculação da Administração Tributária, que se reconduz a definição do âmbito da arbitrabilidade de litígios deveria ser efectuada por portaria;

– com a Lei n.º 64-B/2011, impôs-se que na portaria se indicassem o tipo e o valor máximo dos litígios, o que tem como corolário que nem todos os litígios abrangidos pelo artigo 2.º, n.º 1, do RJAT;

– a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, limitou a vinculação aos serviços da Administração Tributária estadual e aos tribunais «que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida», com várias excepções.

 

A intenção legislativa de restringir o âmbito da arbitragem tributária em relação ao que foi permitido pela autorização legislativa resulta com evidência destes diplomas e é explicada pelas justificadas dúvidas que, no início da arbitragem tributária, se suscitavam sobre o possível inadequado funcionamento de um meio inovador de resolução de litígios em matéria tributária, bem patentes nas preocupações sentidas pelo Senhor Conselheiro Santos Serra, Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, na sessão de apresentação do novo regime de arbitragem fiscal, que ocorreu em Lisboa, no dia 14-12-2010:

 

Assim, e logo à partida, é preciso que o regime de arbitragem tributária ora constituído consiga afastar receios de que, por via da arbitragem, as partes consigam contornar as imposições legais que sobre si recaem, e que façam letra morta dos princípios da legalidade e da igualdade entre contribuintes em matéria tributária, com a capacidade negocial diferenciada das partes a sobrepor-se ao princípio da tributação de acordo com a sua real capacidade contributiva.[1]

A consciência dos riscos como fundamento das limitações do âmbito foi expressamente explicada pelo Senhor Prof. Doutor Sérgio Vasques (que desempenhava as funções de Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais ao tempo em que foram emitidos o Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março), em texto publicado na Newsletter n.º 1 do CAAD:

 

A arbitragem tributária, tal como contemplada no Regime da Arbitragem Tributária veio a apresentar âmbito mais estreito relativamente ao que figurava na autorização legislativa do orçamento do estado para 2010, pela consciência de que esta era, e continua a ser, uma experiência inovadora que não vai sem os seus riscos. Foi também com precaução que a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, através da qual se vinculou a administração tributária ao regime, impôs vários limites desde logo atendendo à especificidade e ao valor das matérias em causa, associando-se deste modo a Administração Fiscal a este mecanismo de resolução alternativa de litígios nos estritos termos e condições estabelecidos na Portaria». [2]

 

Nos litígios em matéria de direito tributário está em causa o interesse público primacial de um Estado de Direito, que é a obtenção de receitas imprescindíveis ao próprio funcionamento global do Estado, o que justifica que na vinculação se tomassem cautelas.

A arbitragem tributária poderia vir a ser um meio generalizado alternativo de resolução de litígios fiscais, mas, antes de serem dadas provas reiteradas da qualidade e isenção das suas decisões, a necessidade de protecção do interesse público e de assegurar a efectividade dos princípios essenciais da legalidade e da igualdade tributária que o enformam nesta matéria recomendava em 2011 e recomenda actualmente que se avance com cuidado, sem entusiasmos desmedidos, não deixando ao arbítrio dos cidadãos a opção livre e ilimitada por esse meio de resolução de litígios.

Essa cautela é especialmente aconselhada quando, por razões de celeridade, se optou por restringir os meios de impugnação e recurso das decisões arbitrais e, por isso, é menor do que nos tribunais tributários a viabilidade de correcção de possíveis erros de julgamento que sejam lesivos do interesse público.

Por isso se justificava em 2011 e se justifica ainda hoje que haja limitações ao acesso à arbitragem tributária, de forma de compatibilizar a utilização deste meio opcional de acesso à justiça com a obrigação estadual de proteger o interesse público, assegurar a legalidade e igualdade tributária e a arrecadação de receitas imprescindíveis para o funcionamento do Estado.

A esta luz, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer que o âmbito da vinculação seria definido por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, atribui-lhes um poder discricionário, para definirem a amplitude da vinculação da forma como entendam que melhor se prossegue o conjunto de interesses públicos cuja concretização está em causa, definição esta que não pode dispensar, naturalmente, a avaliação da verificação da existência das condições de ordem material e humana necessárias para a implementação deste novo regime.

Neste contexto em que havia uma evidente intenção de restringir o âmbito inicial da arbitragem tributária em relação à amplitude permitida pela lei de autorização legislativa, sendo consabido que a Constituição da República Portuguesa (CRP) e a Lei Geral Tributária (LGT) aludem a vários tipos de tributos, que designam como «impostos», «taxas» e «contribuições financeiras» [artigos 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP] e 3.º, n.ºs 2 e 3, da LGT], a inclusão da palavra «impostos» na expressão «apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida» contrastando com a referência mas abrangente a «actos de liquidação de tributos» que foi usada na alínea a) do n.º 4 do artigo 24.º da Lei n.º 3-B/2010 (autorização legislativa) para definir o âmbito da autorização, tem de ser interpretada expressão precisa da restrição que se pretendeu efectuar.

Na verdade, assente que a intenção legislativa era restringir o âmbito da jurisdição arbitral, se foi utilizada uma expressão com alcance restritivo para indicar o âmbito da restrição, tem de pressupor-se, presumindo que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (como impõe o n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil), que se pretendeu restringir nos precisos termos, se não houver razões que imponham que se conclua que houve alguma deficiência na expressão do pensamento legislativo. Uma norma com alcance restritivo deve, em princípio, ser interpretada em termos estritos e não extensivamente, pois a ampliação do seu alcance estará presumivelmente ao arrepio do pensamento legislativo que a interpretação jurídica visa reconstituir (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil).

Como se escreve no Acórdão n.º 539/2015, do Tribunal Constitucional:

«As contribuições financeiras constituem um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que compartilham em parte da natureza dos impostos (porque não têm necessariamente uma contrapartida individualizada para cada contribuinte) e em parte da natureza das taxas (porque visam retribuir o serviço prestado por uma instituição pública a certo círculo ou certa categoria de pessoas ou entidades que beneficiam coletivamente de um atividade administrativa) (Gomes Canotilho/Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa Anotada”, I vol., pág. 1095, 4.ª ed., Coimbra Editora).

As contribuições distinguem-se especialmente das taxas porque não se dirigem à compensação de prestações efetivamente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, mas à compensação de prestações que apenas presumivelmente são provocadas ou aproveitadas pelo sujeito passivo, correspondendo a uma relação de bilateralidade genérica. Preenchem esse requisito as situações em que a prestação poderá beneficiar potencialmente um grupo homogéneo ou um conjunto diferenciável de destinatários e aquelas em que a responsabilidade pelo financiamento de uma tarefa administrativa é imputável a um determinado grupo que mantém alguma proximidade com as finalidades que através dessa atividade se pretendem atingir (sobre estes aspetos, Sérgio Vasques, ob. cit., pág. 221, e Suzana Tavares da Silva, em “As taxas e a coerência do sistema tributário”, pág. 89-91, 2.ª edição, Coimbra Editora)».

 

Por outro lado, quando foi emitida a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, em que o Governo definiu o âmbito da vinculação à arbitragem tributária, a Autoridade Tributária e Aduaneira já administrava tributos com a designação de «contribuição» (designadamente, desde 2008, a contribuição de serviço rodoviário que aqui está em causa, e tinha já sido criada pelo artigo 141.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a contribuição sobre o sector bancário), pelo  que não se pode aventar, com pertinência, que não se colocasse, no momento da emissão daquela Portaria, a necessidade esclarecer com  rigor se o âmbito da vinculação abrangia ou não tributos com a designação de «contribuições».

A intenção governamental de afastar da vinculação à arbitragem tributária as  pretensões relativas a contribuições é confirmada pela alteração efectuada ao artigo 2.º da  Portaria n.º 112-A/2001 pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de Setembro, em que se manteve a referência restritiva a «impostos», em momento em que a Autoridade Tributária e Aduaneira já administrava vários tributos com  a designação de «contribuições», como, além da CSR e da contribuição sobre o sector bancário, a contribuição extraordinária sobre o setor energético (criada pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro) e a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica  (criada pelo artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro).

Por outro lado, utilizando a Constituição e a Lei designações específicas para classificar os vários tipos de tributos, terá de se presumir também que, para efeito da definição das competências dos tribunais arbitrais, se pretendeu aludir à classificação que a legislativamente foi adoptada em relação a cada tributo e não à que o intérprete poderá considerar-se mais apropriada, como base em considerações de natureza doutrinal. A classificação de tributos especiais, designadamente para apurar se devem ser ou não tratados constitucionalmente como impostos é, frequentemente, uma tarefa complexa, objecto de abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional. Não há qualquer razão para crer, em termos de razoabilidade, que o legislador, que tem de se presumir que consagrou a solução mais acertada (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), tivesse optado por impor indagações com esse nível de dificuldade, incerteza de resultados e morosidade para definição da competência dos tribunais arbitrais, em vez de optar pela identificação clara e segura dos tributos a que pretendeu aludir através da designação que legislativamente foi considerada adequada que, além do mais, se compagina melhor com a celeridade de decisões que se visou atingir com a criação da arbitragem tributária.

Para além disso, nem se pode aceitar, à face da presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), que fosse atribuída à CSR a designação de «contribuição» se legislativamente se pretendesse que ela fosse considerada como um «imposto» e não como uma das «demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas» a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP e o artigo 3.º, n.º 2, da LGT. A expressão do pensamento em termos adequados faz-se necessariamente através da expressão correcta e não uma outra que o dissimule.

Assim, em boa hermenêutica, é de concluir que o artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quando se refere a «impostos», está a reportar-se apenas aos tributos a que legalmente é atribuída tal designação (como, por exemplo, o IVA, o IRC e o IRS) e àqueles que, embora tenham outra designação, a própria lei explicitamente considerada «impostos» (como sucede com as «contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», que o n.º 3 do artigo 4.º da LGT identifica e expressamente considera «impostos»). E, paralelamente, aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos.

No caso da CSR, é manifesto que não se está perante uma «contribuição especial» enquadrável no conceito definido no n.º 3 do artigo 4.º da LGT, pois não assenta «na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», pelo que não há suporte literal mínimo para que seja considerada, na perspectiva legislativa, um dos «impostos» a que alude o artigo 2.º da Portaria n.º 112-/2011.

Por outro lado, da relegação da definição do âmbito da vinculação para diploma de natureza regulamentar depreende-se que, subjacente à restrição que se pretendeu efectuar estarão também razões pragmáticas relacionadas com a criação das condições práticas para implementação do novo regime, que normalmente se reservam para diplomas de natureza executiva, como são as relativas à disponibilidade de meios humanos da Administração Tributária com formação adequada para a representarem adequadamente nos processos tributários que exijam formação mais especializada. Neste caso, pelas limitações ao âmbito da jurisdição arbitral que se fazem nas alíneas c) e d) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quanto a litígios relacionados com matéria aduaneira, entrevê-se que estarão razões desse tipo subjacentes a essas restrições à arbitrabilidade de litígios.

Tendo o poder discricionário para definir o âmbito da vinculação sido atribuído aos membros do Governo indicados no artigo 4.º, n.º 1, da Portaria n.º 112-A/2011 e não aos tribunais arbitrais, não podem estes substituir-se àqueles na definição do âmbito da jurisdição arbitral. Desde logo porque os tribunais não possuem o conhecimento de todos os elementos de natureza operacional que podem ter levado os membros do Governo que emitiram a Portaria n.º 112-A/2011. E, depois, porque foi a esses membros do Governo e não aos tribunais arbitrais que a lei atribuiu o poder de definir o âmbito da vinculação.

Pelo exposto, a interpretação correcta, alicerçada no teor literal deste artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 e nas regras interpretativas que constam do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, mas tendo também em conta as «circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), é a de que se pretendeu restringir a vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD a litígios em que estejam em causa tributos legislativamente classificados como impostos ou explicitamente como tal considerados (como sucede com as «contribuições especiais» referidas no n.º 3 do artigo 4.º da LGT), com as excepções arroladas naquela norma.

Assim, é de concluir que não é abrangida pela vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira, a apreciação de litígios que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas à CSR.

Pelo que se refere no acórdão arbitral proferido no processo n.º 146/2019-T, a falta de vinculação não implica incompetência absoluta, em razão da matéria, a que alude o artigo 16.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, pois a competência para apreciação da generalidade de actos de liquidação de tributos se insere nas competências dos tribunais arbitrais definidas no artigo 2.º do RJAT.

Mas, está-se perante incompetência relativa por falta do acordo necessário para a constituição de tribunal arbitral, a que se reporta o artigo 18.º da Lei de Arbitragem Voluntária [Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT e artigo 181.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ( [3] )], acordo esse que, relativamente à arbitragem tributária, é genericamente exigido e definido no que concerne à Autoridade Tributária e Aduaneira através da vinculação, prevista no artigo 4.º do RJAT.

Tendo esta incompetência sido arguida tempestivamente, na Resposta (artigo 18.º, n.º 4, da LAV), tem de concluir-se que procede, com esta fundamentação, a excepção de incompetência suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

Esta interpretação do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 é compaginável com a Constituição, como já decidiu o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 545/2019, de 16-10-2019, proferido no processo n.º 1067/2018.

 

 

2. Questão da ilegitimidade das Requerentes

 

O regime da CSR, na versão anterior à Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, foi criado tendo em vista a repercussão nos consumidores das quantias cobradas a esse título pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos.

Na verdade, no artigo 2.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto (na redacção da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, vigente em 2018 e 2019) estabelece-se que «o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da IP, S. A., tendo em conta o disposto no Plano Rodoviário Nacional, é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável» e no n.º 3 do mesmo artigo (na redacção inicial) estabelece-se que «a contribuição de serviço rodoviário constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis».

Resulta destas normas que, na perspectiva legislativa, o destinatário do encargo económico resultante da imposição da CSR é o consumidor de combustíveis, sendo as empresas comercializadoras, que devem efectuar o seu pagamento ao Estado, meras substitutas tributárias. Neste contexto, a repercussão da CSR nos consumidores de combustíveis é uma repercussão legal, já que é pretendida e pressuposta por lei, como mecanismo necessário para atingir a esfera jurídica dos contribuintes que se pretende onerar com o tributo.

Na pena de CASALTA NABAIS,

«Tanto é contribuinte o contribuinte directo, em relação ao qual o referido desfalque patrimonial ocorre directamente na sua esfera seja ele ou não o devedor do imposto, como o contribuinte indirecto, em relação ao qual o mencionado desfalque patrimonial ocorre na sua esfera através do fenómeno económico da repercussão do imposto».

A este respeito, costumam alguns autores distinguir entre contribuinte de direito e contribuinte de facto, sendo o primeiro a pessoa em relação à qual se verifica o pressuposto de facto do imposto, e o segundo o que, em virtude da repercussão, suporta economicamente o imposto. Todavia, o conceito de contribuinte é um conceito jurídico e a repercussão, quando legalmente prevista como é a regra dos impostos sobre o consumo, convoca o suportador do imposto não apenas em termos económicos, mas também em termos jurídicos, uma vez que, para além de uma obrigação jurídica de repercussão formal, temos uma de obrigação natural de repercussão material.

Por isso mesmo, não admira que a al. a) do n.º 4 do art. 18º da LGT fale de repercussão legal e reconheça legitimidade processual activa ao consumidor final ou adquirente de serviços para impugnar, administrativa ou judicialmente, o correspondente acto tributário. Um reconhecimento que a nossa jurisprudência já vinha aceitando e que, a nosso ver, é mesmo exigido pelo respeito do princípio da capacidade contributiva, uma vez que a capacidade contributiva, que em tais impostos se visa atingir, é efectivamente a do consumidor final ou do adquirente de serviços e não a do sujeito passivo do IVA» ( [4] )

 

Estas considerações, tendo em mente o IVA, valem também para os casos da CSR, estando-se, em qualquer dos casos, perante uma situação de substituição tributária, já que «a substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte» (artigo 20.º, n.º 1, da LGT).

Na substituição tributária, «o estado não exige o tributo directamente daquele que preenche as normas de incidência - o "contribuinte directo" - mas de outra pessoa que, pela sua capacidade de organização, está melhor habilitada ao cumprimento desses deveres e faculta uma gestão mais eficaz da receita tributária. A diferença porém, é que na substituição com retenção o substituto é a fonte dos rendimentos do contribuinte, pelo que ao substituto cabe reter dada percentagem desses valores, ao passo que na substituição sem retenção o contribuinte é a fonte dos rendimentos do substituto, pelo que a tarefa deste é a de cobrar o tributo juntamente com os valores que tem a haver» ( [5] ).

O direito de o substituto e o substituído impugnarem os actos de liquidação nas situações de substituição tributária é regulado pelo artigo 132.º do CPPT, mesmo nos casos  em que a substituição não se concretiza através de retenção na fonte.

Com efeito, embora o artigo 132.º do CPPT se refira expressamente aos casos de substituição com retenção na fonte, esse regime deve aplicar-se a todos os casos de substituição. ( [6] ) Na verdade, como foi esclarecido na redacção do n.º 2 do artigo 20.º da LGT introduzida pela Lei n.º 7/2021, de 26 de Fevereiro, ao dizer que «a substituição tributária é efetivada, designadamente, através do mecanismo de retenção na fonte do imposto devido», a retenção na fonte do imposto devido é apenas uma das formas de substituição tributária ( [7] ) e os fundamentos do reconhecimento do direito de impugnação do substituto e do substituído valem manifestamente para todas as situações de substituição.

A aplicação do regime do artigo 132.º, com as adaptações que eventualmente forem necessárias, a todos os casos de substituição tributária, inclusivamente sem retenção na fonte, decorre desde logo, do teor expresso da epígrafe da SECÇÃO VIII, em que está incluído o art. 132.º: «SECÇÃO VIII Da impugnação dos atos de autoliquidação, substituição tributária, pagamentos por conta e dos atos de liquidação com fundamento em classificação pautal, origem ou valor aduaneiro das mercadorias».

Nesta epígrafe nem se faz referência a «retenção na fonte», mas apenas a «substituição tributária», o que revela uma intenção legislativa, que acabou por ser mal traduzida na letra do artigo 132.º, de estabelecer um regime aplicável a todos os casos de substituição tributária.

A confusão dos conceitos, reduzindo os casos de substituição tributária aos de retenção na fonte, já vem do Código de Processo Tributário de 1991, mas poderá ter sido incentivada pelo infeliz artigo 20.º da LGT, na redacção inicial, que dizia que «a substituição tributária é efectivada através do mecanismo da retenção na fonte do imposto devido», embora fosse evidente que havia casos de substituição sem retenção na fonte.( [8] )

A Lei n.º 7/2021, de 26 de Fevereiro, na nova redacção que deu ao n.º 2 do artigo 20.º da LGT, acabou por reconhecer expressamente que há substituição tributária sem retenção na fonte ao dizer que «a substituição tributária é efetivada, designadamente, através do mecanismo de retenção na fonte do imposto devido».

Mas, no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 06-09-2023, processo n.º 67/09.6BELRS acaba por se concluir, embora sem fundamentação explícita, que o artigo 132.º do CPPT, «exprime, no plano processual, um princípio material aplicável a todos os casos de substituição tributária».

Deve notar-se que, para detectar aqui uma situação de substituição tributária e de repercussão legal, o Supremo Tribunal Administrativo não necessitou de qualquer referência explicita à repercussão no texto do Decreto-Lei n.º  102/91 de 8 de Março, que não existe, deduzindo-a, por estar implícita na intenção legislativa de onerar  contribuinte/substituído, já que é o mecanismo necessário para assegurar a transferência para o contribuinte o encargo económico com que é onerado em primeira linha o substituto.

Em última análise, se se entendesse inviável uma interpretação extensiva (apesar do seu suporte expresso na epígrafe referida), em face do reconhecimento constitucional do direito de impugnação de todos os actos lesivos, sempre se teria de concluir que se estaria perante uma lacuna de regulamentação, que importaria preencher através da aplicação do regime do artigo 132.º do CPPT, com as adaptações necessárias, por existir evidente paralelismo das situações de substituição com e sem retenção na fonte, a nível dos direitos de impugnação do substituído, o que seria fundamento para a sua aplicação analógica.

O direito de reembolso do substituído a quem foi repercutido imposto liquidado com violação do Direito da União Europeia, é também assegurado, na interpretação que dele fez o TJUE no despacho de 07-02-2022, processo n.º C-460/21:

«39 A obrigação de reembolsar os impostos cobrados num Estado-Membro em violação das disposições da União conhece apenas uma exceção. Com efeito, sob pena de conduzir a um enriquecimento sem causa dos titulares do direito, a proteção dos direitos garantidos na matéria pela ordem jurídica da União exclui, em princípio, o reembolso dos impostos, direitos e taxas cobrados em violação do direito da União quando seja provado que o sujeito passivo responsável pelo pagamento desses direitos os repercutiu efetivamente noutras pessoas».

«42 Por conseguinte, um Estado-Membro só se pode opor ao reembolso de um imposto indevidamente cobrado à luz do direito da União quando as autoridades nacionais provarem que o imposto foi suportado na íntegra por uma pessoa diferente do sujeito passivo e quando o reembolso do imposto conduzisse, para este sujeito passivo, a um enriquecimento sem causa. Daqui resulta que, se só tiver sido repercutida uma parte do imposto, as autoridades nacionais só estão obrigadas a reembolsar o montante não repercutido».

43 «... a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos».

 

Como decorre desta jurisprudência, há uma obrigação de a Administração Tributária reembolsar os tributos cobrados em violação do Direito de União a quem efectivamente os suportou, pelo que no caso de tributos susceptíveis de repercussão, a titularidade do direito ao reembolso dependerá de ela ter sido ou não concretizada.

É corolário desta jurisprudência do TJUE que, no caso de ter havido repercussão, apenas o repercutido tem legitimidade para impugnar os actos que a concretizem ou os que a antecedam, pois apenas o repercutido é afectado na sua esfera jurídica pelo acto lesivo e o substituto só terá legitimidade na medida em que não tenha repercutido integralmente o tributo que suportou nessa qualidade.

No caso em apreço, deu-se como provado que ocorreu efectivamente repercussão da CSR, pelo que apenas as Requerentes são titular do direito ao reembolso, na medida em que foram repercutidas.

Assim, não se coloca a questão da plúrima possibilidade de reembolso pela Autoridade Tributária e Aduaneira, pois, no caso de ter havido repercussão, apenas o repercutido tem direito ao reembolso.

De qualquer modo, não há qualquer fundamento legal nem lógico para os direitos económicos e processuais do repercutido, que pagou o tributo indevido, serem prejudicados pelo facto de poder também ser efectuado indevido reembolso do tributo às entidades que o repercutiram.

Pelo exposto, entendo que as Requerentes têm legitimidade substantiva e processual, pelo que que devia ser julgada improcedente esta excepção invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 04-06-2024

 

O Árbitro

 

 

 

 

(Jorge Lopes de Sousa)

 



[1] Texto reproduzido no Guia da Arbitragem Tributária, 2.ª edição, página 192.

[2] Publicado em https://www.caad.pt/files/documentos/newsletter/Newsletter-CAAD_out_2011.pdf.

[3] No sentido da aplicação subsidiária da Lei de Arbitragem Voluntária à arbitragem tributária, pode ver-se, entre vários, o acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de e 21-04-2021, processo n.º 101/19.1BALSB. 

[4] CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 7.ª edição, páginas 243-244.

[5] SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, 2011, página 333.

[6] Como, no essencial, entendeu o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 06-09-2023, processo n.º 067/09.6BELR, identificando «o princípio segundo o qual tem direito ao reembolso o substituto em caso de entrega em excesso e o substituído em caso de pagamento ou retenção em excesso».

[7] Como já era entendimento doutrinal anterior, como pode ver-se em CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 7.ª edição, 2012, página 255, SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, 2011, página 333, e ANA PAULA DOURADO, Direito Fiscal – Lições, 2016, página 73.

[8] Ao  tempo da aprovação do Código de Processo Tributário, havia lugar a substituição tributária se retenção na fonte relativamente a várias taxas, como, por exemplo, a  «taxa anual de radiodifusão», prevista no Decreto-Lei n.º 389/76, de 24 de Maio, em cujo artigo 2.º, n.º 1, se estabelece que «é instituída uma taxa anual de radiodifusão de âmbito nacional, a cobrar em duodécimos, mensal e indirectamente, por intermédio das distribuidoras de energia eléctrica, a ela ficando sujeitos os consumidores domésticos de iluminação e outros usos».

Outro exemplo, é a «taxa de seguração» criada pelo DL n.º 102/91 de 8 de Março, que opera através de um mecanismo de substituição tributária, nos termos do qual a operadora de transporte aéreo substitui o INAC na cobrança da taxa aos passageiros e substitui-se aos passageiros na entrega do seu valor ao INAC, a que se refere o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 06-09-2023, processo n.º 67/09.6BELRS.