SUMÁRIO:
I – as exigências de fundamentação não são rígidas, variando de acordo com o tipo de acto e as circunstâncias concretas em que este foi proferido, bastando-se com a expressão clara das razões que levaram a determinada deliberação decisória, não devendo confundir-se a suficiência da fundamentação com a exactidão ou a validade substancial dos fundamentos invocados.
II - não viola o dever de fundamentação um acto de liquidação de IRS - que assume a natureza de “processo de massa” - cumprido pela Administração Fiscal de forma “padronizada”, mas sem deixar de observar o disposto no n.º 2 do artigo 77.º da LGT, mormente se a nota de liquidação evidencia a demonstração de todo o conjunto das operações que, com base na informação aduzida pelos Sujeitos Passivos, conduziram ao cálculo do imposto em cobrança, bem assim o respectivo prazo de pagamento e os meios de que dispunham para reagir contra tal acto.
III - a liquidação IRS que não respeita as normas consagradas para evitar a dupla tributação internacional, padecendo de erro que resulta numa cobrança de imposto em excesso, deve anular-se parcialmente, dando lugar ao reembolso da quantia indevidamente cobrada, acrescida de juros indemnizatórios.
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
A..., contribuinte fiscal n.º..., e B..., contribuinte fiscal n.º..., casados entre si no regime de bens da comunhão de adquiridos, ambos com morada na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... Cascais, doravante designados por Requerentes, vieram, na sequência da notificação do ato de liquidação de IRS n.º 2023..., e ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), em conjugação com o artigo 99.º e com a alínea a) do n.º 1 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), aplicável por força do disposto na alínea a) do
n.º 1 do artigo 10.º do RJAT, apresentar pedido de constituição de tribunal arbitral, sem designação de árbitro, e pedido de pronúncia arbitral.
Peticionam anulação do sobredito acto de liquidação, relativo ao período de tributação de 2022, com as demais consequências, nomeadamente a devolução do montante de imposto indevidamente cobrado e o pagamento de juros indemnizatórios.
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
Em 06 de Dezembro de 2023, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e, automaticamente, notificado à AT.
Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 2, alíneas a) e b), 6.º, n.º 1, e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o árbitro deste Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar (artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e c), do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD).
O Tribunal Arbitral ficou constituído em 14 de Fevereiro de 2024.
Por despacho de 14 de Fevereiro de 2024, a Requerida foi notificada para apresentar Resposta, facultativamente solicitar a produção de prova adicional e juntar o processo administrativo. Esta notificação presume-se consumada em 19 de Fevereiro de 2024.
Reconhecendo que o prazo para apresentar a Resposta terminaria em 19 de Março de 2024, mas alegando a ausência de atempada pronúncia por parte da Direcção de Serviços de Imposto Sobre o Rendimento (DSIRS), a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) requereu a diferimento do prazo de resposta por cinco dias, pretensão que lhe foi deferida, por despacho de 20 de Março de 2024. Com esta prorrogação, o prazo da Resposta foi dilatado para 01 de Abril de 2024. Mesmo assim, a Resposta da AT só deu entrada em 12 de Abril de 2024, pelo que, e não obstante a tentativa de justificação do atraso ensaiada em requerimento concomitante, a mesma é manifestamente extemporânea, razão pela qual não pode ser atendida para efeitos da decisão a proferir nestes autos.
Por despacho de 22 de Abril de 2024, dispensou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e determinou-se a prossecução dos autos com a produção de alegações, por prazo simultâneo de 15 dias, nos termos do art. 120.º do CPPT, ex vi art. 29.º, n.º 1, a), do RJAT. Entre o mais, ordenou-se a junção do processo administrativo, determinação à qual a AT viria contrapor a respectiva inexistência, uma vez que a liquidação impugnada resultou da entrega do modelo 3 de IRS.
Apenas os Requerentes ofereceram alegações, nas quais, e nos moldes que adiante se detalharão, passaram a pugnar pela procedência somente parcial do pedido antes formulado.
II. Saneamento
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer da liquidação aqui posta em crise, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, alíneas a) e b), 6.º, n.º 1, e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).
III. Fundamentação de Facto
1. Matéria de Facto Provada
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:
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Os Requerentes são casados entre si no regime da comunhão de bens adquiridos, titulares dos números de identificação fiscais ... e ..., residentes fiscais em Portugal desde 2016, encontrando-se B... inscrito como Residente Não Habitual desde 2016.
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No dia 27 de junho de 2023, os Requerentes apresentaram a Declaração Modelo 3 de IRS referente ao período de tributação de 2022, à qual foi atribuído o número ... – Doc. 2 junto com o PPA, que se dá por integralmente reproduzido.
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Na referida DM3, os Requerentes optaram pela tributação conjunta dos rendimentos de ambos, tendo identificado como sujeito passivo A o contribuinte B... e como sujeito passivo B a contribuinte A...- cit. Doc. 2.
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O sujeito passivo A declarou rendimentos de pensões – Categoria H, com origem em Espanha, no montante de € 31.045,84 (trinta e um mil, quarenta e cinco euros e oitenta e quatro cêntimos), assinalando que era já residente fiscal em território português à data de 31 de dezembro de 2020, sem imposto pago no estrangeiro e não optando pelo novo regime de tributação – cit. Doc. 2, anexo L.
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O sujeito passivo A obteve rendimentos de capitais – Categoria E, no montante de €124.893,24 (cento e vinte e quatro mil, oitocentos e noventa e três euros e vinte e quatro
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cêntimos), os quais foram sujeitos a retenção na fonte, nos respetivos países de origem, no
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montante de €19.912,73 (dezanove mil, novecentos e doze Euros e setenta e três cêntimos), tendo optado pelo seu não englobamento e pelo método de isenção destes rendimentos – v. cit. Doc. 2, anexo J respectivo e anexo L.
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Decorrente da alienação onerosa de partes sociais, o sujeito passivo A obteve uma menos-valia no montante de €25.243,82 (vinte e cinco mil, duzentos e quarenta e três euros e oitenta e dois cêntimos), declarada na DM3 como rendimento da Categoria G, sendo feita opção pelo englobamento deste rendimento – cit. Doc. 2, anexo J respectivo.
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Pelo sujeito passivo B foram declarados rendimentos de capitais – Categoria E, no montante de €12.860,56 (doze mil, oitocentos e sessenta euros e cinquenta e seis cêntimos), aos quais foi aplicada retenção na fonte no país de origem no montante de €3.540,45 (três mil, quinhentos e quarenta euros e quarenta e cinco cêntimos), tendo optado pelo não englobamento destes rendimentos – cit. Doc. 2, anexo J respectivo .
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O sujeito passivo B apurou menos-valias pela alienação onerosa de partes sociais no montante total de Euro 15.244,14 (quinze mil, duzentos e quarenta e quatro euros e catorze cêntimos), sendo feita opção pelo englobamento deste rendimento – cit. Doc. 2, anexo J respectivo.
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Na sequência da apresentação da DM3, os Requerentes foram notificados da liquidação de IRS aqui impugnada – Doc. 1 junto com o PPA, que aqui se dá por reproduzido.
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Consta da liquidação a parcela a abater de €1.284,99 (mil duzentos e oitenta e quatro euros e noventa e nove cêntimos) – cit. Doc. 1.
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No que respeita às tributações autónomas, a liquidação em apreço apurou o montante de €3.600,96 (três mil e seiscentos euros e noventa e seis cêntimos) - cit. Doc. 1.
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Resulta da liquidação a dedução à coleta por dupla tributação internacional do montante
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de €1.808,42 (mil oitocentos e oito euros e quarenta e dois cêntimos) - cit. Doc. 1.
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O imposto a pagar apurado pela AT é de €1.792,54 (mil setecentos e noventa e dois euros e cinquenta e quatro cêntimos) - cit. Doc. 1.
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Por não concordarem com os cálculos que presidiram à mencionada liquidação, os Requerentes apresentaram, em 05 de Dezembro de 2023, o PPA ora em apreço, conforme consta do sistema de gestão processual do CAAD.
2. Factos não Provados
Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.
3. Motivação da Decisão de Facto
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.
A convicção do Tribunal fundou-se na análise dos documentos juntos com o PPA e no que se mostra consensualizado pelas partes, conforme está refectido em relação a cada facto considerado provado.
IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
1. QUESTÕES A DECIDIR
O dissídio em presença convoca a resposta às três questões suscitadas pelos Requerentes, a saber:
1. Vício de falta de Fundamentação;
2. Da tributação dos Requerentes;
3. Reembolso do imposto indevido e juros indmnizatórios.
2 - APRECIAÇÃO
2.1 – DA AUSÊNCIA DA FUNDAMENTAÇÃO LEGALMENTE EXIGIDA
Alega a Requerida, em síntese:
- ...qualquer correção que venha a ser efetuada pelos serviços da administração tributária deverá conter a respetiva fundamentação, a qual estará necessária e materialmente associada à decisão de procedimento, e que não deverá deixar de ser clara, congruente, suficiente e expressa.
- ...o dever de fundamentação tem por escopo uma dupla finalidade: por um lado, “obrigar” a administração tributária a refletir sobre a adequada solução ao caso concreto, e, por outro, permitir ao “administrado” o analisar da qualidade e mérito da solução encontrada, nomeadamente se a mesma é ou não conforme à lei e, bem assim, se deve ou não recorrer ou impugnar.
- Ora, o dever de fundamentação importa necessariamente a tarefa de demonstrar algo que se alega, de comprovar um facto com recurso a elementos de prova aptos a esse fim, não podendo afirmar-se que a AT cumpriu escrupulosamente o dever de fundamentação a que estava adstrita.
- A fundamentação, para além de ter de ser expressa, tem de ser contemporânea do próprio ato, qualquer futura fundamentação aduzida para o ato tributário, porque não contemporânea da emissão deste, não pode ser aceite.
- Deste modo, atento o dever geral de fundamentação expressamente consignado nos preceitos legais, doutrina e jurisprudência supra indicados, não pode deixar de concluir-se que se verifica um vício de forma que afeta a legalidade do ato tributário, o qual, por este motivo, deve ser anulado.
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O dever de fundamentação dos actos da Administração Pública que afetem direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos decorre de imperativo constitucional, abrangendo os actos lesivos e impositivos - artigo 268.º, n.º 3, da Constituição -, imperativo esse traduzido e desenvolvido nos artigos 152.º e 153.º do CPA e, mais especificamente em matéria tributária, no artigo 77.º, n.ºs 1 e 2, da LGT. Visa, neste caso, assegurar que o destinatário conheça as razões que sustentam a decisão administrativa, permitindo o controlo da sua validade, através da análise dos respetivos pressupostos, e o acesso à garantia contenciosa, dando a conhecer ao sujeito passivo o iter cognoscitivo e valorativo seguido pela a AT para ter decidido no sentido em que decidiu.
A Jurisprudência dos tribunais superiores tem ajuizado ser “... incontroverso que as exigências de fundamentação não são rígidas, variando de acordo com o tipo de acto e as circunstâncias concretas em que este foi proferido, bastando-se com a expressão clara das razões que levaram a determinada deliberação decisória. A determinação do âmbito da declaração fundamentadora pressupõe, portanto, a busca de um conteúdo adequado, que há-de ser, num sentido amplo, o suficiente para suportar formalmente a decisão administrativa (...); o acto estará suficientemente fundamentado quando o administrado, colocado na posição de um destinatário normal - o bonus pater familiae de que fala o art. 487º, nº 2, do Código Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, por aceitar, ou não, o acto (...); não deve confundir-se a suficiência da fundamentação com a exactidão ou a validade substancial dos fundamentos invocados. Com efeito, o discurso fundamentador tem de ser capaz de esclarecer as razões determinantes do acto, para o que há-de ser um discurso claro e racional; mas, na medida em que a sua falta ou insuficiência acarreta um vício formal, não está em causa, para avaliar da correcção formal do acto, a valia substancial dos fundamentos aduzidos, mas só a sua existência, suficiência e coerência, em termos de dar a conhecer as razões da decisão.” – Acórdãos do STA de 10-09-2014, no Proc. 01226/13, de 05-03-2009, no Proc. 0787/08, do TCA-Norte de 13-09-2012, no Proc. 00334/05.8BEBRG, e do TCA-Sul de 23-05-2006, proferido no processo 01156/06.
Na situação em apreço, está questionado um acto de liquidação de IRS que assume a natureza de “processo de massa”, matéria na qual o STA tem pronunciado: “I - A dignidade constitucional do direito à fundamentação (artigo 268.º n.º 3 da Constituição da República) vale de igual modo para os actos tributários e procura acautelar quer a racionalidade da decisão tributária, quer as condições materiais para o adequado exercício dos direitos de defesa por parte dos contribuintes; II - Nos casos em que a lei não imponha especiais requisitos de fundamentação, o cumprimento do dever de fundamentar por parte da Administração tributária afere-se em face do disposto nos números 1 e 2 do artigo 77.º da LGT e atendendo aos fins visados pelo dever de fundamentação; III - Nos actos de liquidação de IRS, atenta sua natureza de “processo de massa”, o dever de fundamentação é cumprido pela Administração fiscal de forma “padronizada” e “informatizada”, mas sem que possa deixar de observar o disposto no n.º 2 do artigo 77.º da LGT ou de pôr em causa as finalidades do direito à fundamentação.” – vide acórdão proferido no Proc. 246/09, de 17-06-2009. No mesmo sentido, vide Decisões arbitrais prolatadas no CAAD, no P. 137/2008, de 02.12.2013, e no P. 247/2021-T, de 11-11-2021.
O n.º 2 do artigo 77.º da LGT estabelece que “A fundamentação dos atos tributários pode ser efetuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.”
Donde, a informação padronizada inserta no acto de liquidação posto em crise não deve considerar-se, sem mais, como carente de fundamentação. Aliás, não pode ignorar-se que tal liquidação foi consequente de uma declaração de rendimentos apresentada pelos próprios Requerentes que, logicamente, têm a obrigação de saber os rendimentos que manifestaram. Ademais, a Requerida não produziu qualquer tipo de correcção de tais rendimentos, tendo-se limitado a tratar a informação que lhe foi transmitida pelos Contribuintes, à luz das normas legais aplicáveis, e a emitir a liquidação sumariamente fundamentada, tal qual se mostra preceituado no n.º 2, do artigo 77.º da LGT. Evidencia-se da mencionada nota de liquidação a demonstração de todo o conjunto das operações que, com base nos valores fornecidos pelos Sujeitos Passivos, conduziram ao cálculo do imposto em cobrança, bem assim o respectivo prazo de pagamento e os meios de que dispunham para reagir contra tal acto.
De qualquer modo, os Requerentes, se o entendessem necessário, poderiam ter requerido a fundamentação da liquidação que impugnam, de acordo com o preceituado nos n.ºs 1 e 2 do art.º 37.º do CPPT:
“1 - Se a comunicação da decisão em matéria tributária não contiver a fundamentação
legalmente exigida, a indicação dos meios de reacção contra o acto notificado ou outros
requisitos exigidos pelas leis tributárias, pode o interessado, dentro de 30 dias ou dentro do
prazo para reclamação, recurso ou impugnação ou outro meio judicial que desta decisão
caiba, se inferior, requerer a notificação dos requisitos que tenham sido omitidos ou a
passagem de certidão que os contenha, isenta de qualquer pagamento.
2 - Se o interessado usar da faculdade concedida no número anterior, o prazo para a
reclamação, recurso, impugnação ou outro meio judicial conta-se a partir da notificação ou
da entrega da certidão que tenha sido requerida.”
Porém, e como se evidencia das Alegações dos Requerentes – artigos 9.º a 17.º - bastou apenas fazerem uma análise mais esclarecida da nota de liquidação contestada (sem qualquer alteração, completude ou fundamentação posterior) para os mesmos demonstrarem ter cabalmente compreendido o quadro fáctico e legal em que assentou o resultado dessa liquidação.
Deriva do exposto a conclusão de que foram observados os requisitos de fundamentação dos actos tributários postos em crise, maxime os previstos no artigo 77.º, n.ºs 1 e 2 da LGT, não se reconhecendo a ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental, geradora de nulidade, nos termos do artigo 161.º, n.º 2, alínea d) do Código do Procedimento Administrativo (CPA), nem a violação de outras normas ou princípios jurídicos sancionadas com a anulabilidade,
improcedendo, destarte, o vício de falta de fundamentação invocado pelos Requerentes.
2.2 – DA TRIBUTAÇÃO DOS REQUERENTES
Sob este conspecto, estão apenas em causa os rendimentos de capitais (Categoria E), no montante de €12.860,56 (doze mil, oitocentos e sessenta euros e cinquenta e seis cêntimos), declarados pelo sujeito passivo B –A..., que optou pelo não englobamento, aos quais foi aplicada retenção na fonte no país de origem (Espanha) no montante de €3.540,45 (três mil, quinhentos e quarenta euros e quarenta e cinco cêntimos).
Para efeitos da eliminação da dupla tributação jurídica internacional, convoca-se o art. 81.º do CIRS:
“1 - Os titulares de rendimentos das diferentes categorias obtidos no estrangeiro, incluindo os previstos no artigo 72.º, têm direito a um crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, dedutível até ao limite das taxas especiais aplicáveis e, nos casos de englobamento, até à concorrência da parte da coleta proporcional a esses rendimentos líquidos, considerados nos termos do n.º 6 do artigo 22.º, que corresponde à menor das seguintes importâncias:
a) Imposto sobre o rendimento pago no estrangeiro;
b) Fração da coleta do IRS, calculada antes da dedução, correspondente aos rendimentos que no país em causa possam ser tributados, líquidos das deduções específicas previstas neste Código.
2 - Quando existir convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal, a dedução a efetuar nos termos do número anterior não pode ultrapassar o imposto pago no estrangeiro nos termos previstos pela convenção. (...)”
Por seu turno a a Convenção entre Portugal e a Espanha para Evitar a Dupla Tributação em Matéria de Impostos sobre o Rendimento, assinada em Madrid em 29 de Maio de 1968 (CDT) estabelece no seu artigo 10.º:
“1. Os dividendos pagos por uma sociedade residente de um Estado Contratante a um residente do outro Estado Contratante podem ser tributados neste último Estado.
2. Esses dividendos podem, no entanto, ser tributados no Estado Contratante de que é residente a sociedade que paga os dividendos e de acordo com a legislação desse Estado, mas o imposto assim estabelecido não excederá:
a) 10 por cento do montante bruto dos dividendos, se o seu beneficiário for uma sociedade que tenha, directamente, pelo menos 50 por cento do capital social da sociedade que paga os dividendos, desde que esta participação esteja representada por acções ou partes sociais possuídas pelo menos um ano antes da data da distribuição;
b) 15 por cento do montante bruto dos dividendos nos restantes casos.”
Assim fixados os parâmetros normativos a que deve atender-se para aquilatar do acerto da liquidação em causa, o resultado obtem-se por via de operações aritméticas simples para concluir que persiste um erro de cálculo na referida liquidação:
Vejamos:
- à luz do artigo 10.º da CDT, é de 15% a percentagem do imposto a deduzir, uma vez que não pode ultrapassar a fração de imposto sobre o rendimento tributado em Espanha;
- o rendimento declarado pela Requerente A... que aqui se insere (rendimentos de capitais - Categoria E) foi de € 12.860,56, logo a dedução a efetuar a título de crédito de imposto seria de € 1.929,08 (12.860,56x15%);
- tais rendimentos são sujeitos a tributação autónoma à taxa de 28% (art. 72.º do CIRS), ou seja, € 3.600,96, montante do qual há-se deduzir-se o aludido crédito de imposto;
- assim sendo, o imposto a cobrar não poderia exceder € 1.671,88 (3.600,96-1.929,08);
- dado que a AT, ora Requerida, indica o valor a pagar de € 1.792,54 – cfr. cit. Doc. 1 -, a liquidação em causa inquina de um erro que se cifra em € 120,66.
Em face da explanação que antecede, impõe-se reconhecer o mérito parcial da pretensão submetida no PPA, no sentido de que a liquidação impugnada padece de um erro de cálculo que resulta numa cobrança de imposto em excesso, em violação do disposto no artigo 10.º da CDT celebrada entre Portugal e Espanha, e do artigo 81.º do CIRS.
Enquanto tal, cumpre declarar a procedência parcial do pedido principal formulado pela Requerente, anulando-se a liquidação na medida do erro.
2.3 – DEVOLUÇÃO DO IMPOSTO INDEVIDAMENTE COBRADO E JUROS INDEMNIZATÓRIOS
Na sequência da anulação da liquidação os Requerentes tem direito a ser reembolsados das quantias indevidamente cobradas, o que é consequência da anulação.
Quanto aos juros indemnizatórios, de harmonia com o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
E, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
O conceito de “erro imputável aos serviços” tem sido abundantemente interpretado pelos tribunais, entendendo-se que a actuação ilegal da Administração constitui sempre erro imputável aos serviços (acórdão STA, de 21-01-2015, proc. n.º 632/14). Assim, tendo a Administração Tributária errado nos pressupostos de facto e de Direito, como ficou demonstrado no caso presente, tal erro é imputável aos serviços, para efeitos da citada norma.
O artigo 100.º da LGT estabelece que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”
Têm, portanto, os Requerentes o direito a ser reembolsados da quantia de € 120,66 que pagaram indevidamente (artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, do RJAT) por força do acto anulado e, ainda, a ser indemnizados, através de juros indemnizatórios, desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respectiva nota de crédito, em que são incluídos, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril. Dado que não se apurou a concreta data do pagamento em excesso, este cálculo terá de operar-se na execução desta decisão arbitral.
V. Decisão
Decorrendo do exposto, decide este Tribunal Arbitral:
- I) Julgar improcedente o vício de falta de fundamentação imputado à liquidação;
- II) Julgar parcialmente procedente o pedido arbitral, anulando o acto de liquidação de IRS aqui impugnado, na parte excedente a € 120,66 (cento e vinte euros e sessenta e seis cêntimos);
- III) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a reembolsar o montante de imposto indevidamente pago (€ 120,66), ora anulado, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos acima indicados;
- IV) Condenar ambas as partes nas custas do processo, na proporção dos respectivos decaimentos, que se fixam em 93% a cargo dos Requerentes e 7% a cargo da Requerida.
VI. Valor do Processo
Fixa-se o valor do processo em € 1.792,54 (mil setecentos e noventa e dois euros e cinquenta e quatro cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e do artigo 306.º, n.º 2, do CPC, ex vi artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
VII. Custas
Custas no montante de € 306,00 (trezentos e seis euros), a cargo de ambas as partes, nas proporções anteriormente definidas, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5, do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 06 de Junho de 2024.
O Árbitro,
(A. Sérgio de Matos)