Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 896/2023-T
Data da decisão: 2024-06-03  IRS  
Valor do pedido: € 594.427,60
Tema: IRS – transparência fiscal – sociedades de administradores judiciais
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SUMÁRIO

  1. A rejeição liminar de um pedido de revisão oficiosa, por não se verificar erro imputável aos serviços, comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação que deu origem a tal pedido, sendo, por isso, o meio idóneo de reação o processo de impugnação judicial, para o qual os tribunais arbitrais são competentes em razão da matéria.
  2.  Não é aplicável às sociedades que têm por objeto o exercício das funções de Administrador Judicial o regime da transparência fiscal previsto no artigo 6.º do Código do IRC, uma vez que a atividade do Administrador Judicial não está especificamente prevista na tabela a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS.

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Rui Duarte Morais (árbitro presidente), Jorge Belchior de Campos Laires e Sérgio Santos Pereira, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

            I.         Relatório

A..., com o NIF ... (“Primeira Requerente”), e B..., com o NIF ... (“Segundo Requerente”), casados entre si, ambos residentes na Rua ..., n.º ..., ..., ..., ...-... Porto (mencionados em conjunto como “Requerentes”), apresentaram, nos termos e para os efeitos dos artigos 95.º, n.º 1 e 2 da Lei Geral Tributária (“LGT”), e dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“RJAT”), um Pedido de Pronúncia Arbitral (“PPA”) contra o ato de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa n.º ...2022... e, mediatamente, contra os atos de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) relativos aos exercícios de 2018, 2019 e 2020, que estão na origem daquela revisão oficiosa.

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante referida por “AT” ou “Requerida”).

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral deu entrada no dia 28/11/2023, tendo sido aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e notificado à AT.

Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.

O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 06/02/2024.

Em 13/03/2024 a Requerida apresentou a Resposta com defesa por exceção e impugnação, concluindo que o PPA deve ser julgado improcedente.

Por Despacho de 14/03/2024 o Tribunal notificou a Requerente para, em 10 dias, informar se mantinha o pedido de produção de prova testemunhal e, em caso afirmativo, os concretos factos sobre que deverá incidir, tendo os Requerentes prescindido da prova.

Por despacho de 16/04/2024 o Tribunal considerou dispensável a reunião prevista no 18.º do RJAT, fixando em 15 dias o prazo para alegações, sucessivas, o que Requerentes e Requerida fizerem em, respetivamente, 07/05/2024 e 17/05/2024.

II.       Saneamento

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.

A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).

Foram invocadas exceções pela Requerida que serão analisadas no Capítulo IV.

            III.      Matéria de Facto

  1. Factos Provados

Com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Primeira Requerente é a única sócia da sociedade civil sob a forma comercial, designada C..., Unipessoal, Lda (“Sociedade”), que tem por objeto exclusivo o exercício das funções de Administrador Judicial confiadas à Primeira Requerente (facto alegado pela Requerente e não contestado pela Requerida, estando ainda em consonância com o Relatório de Inspeção Tributária – RIT – de 2015 e 2016).
  2. A Primeira Requerente foi alvo de uma inspeção tributária, em cumprimento das Ordens de Serviço n.º OI2017... e OI2018..., por referência aos exercícios de 2015 e 2016 (cfr. Documento n.º 5 junto com o PPA).
  3. Do respetivo relatório de inspeção resultou o entendimento de que a Sociedade da Primeira Requerente seria uma sociedade de profissionais, pelo que os rendimentos por aquela obtidos deveriam estar sujeitos ao regime de transparência fiscal em sede de IRC e, portanto, tributados em sede do IRS da sua sócia única (cfr. Documento n.º 5 junto com o PPA).
  4. A AT promoveu, em consequência, correções que se materializaram em liquidações adicionais de IRS, delas resultando o montante global de imposto a pagar de € 46.156,47 (cfr. Documento n.º 8 junto com o PPA).
  5. Relativamente aos exercícios de 2018, 2019 e 2020, a Primeira Requerente passou a declarar os rendimentos da sua sociedade no Anexo D da declaração Modelo 3 do IRS, que preencheu e submeteu anualmente em conjunto com o seu cônjuge, o Segundo Requerente (cfr. Documento n.º 9 junto com o PPA).
  6. Por referência aos exercícios de 2018, 2019 e 2020, as declarações geraram liquidações de IRS, das quais resulta o montante global de imposto a pagar de € 594.427,60 (cfr. Documento n.º 3 junto com o PPA).
  7. A declaração mais antiga (2018) foi entregue pelos Requerente em 28/06/2019 (cfr. indicado pela AT na sua Resposta).
  8. Em 1 de julho de 2022, a Primeira Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa das referidas liquidações de IRS (cfr. Documento n.º 2 junto com o PPA).
  9. O pedido de Revisão Oficiosa foi alvo de despacho de indeferimento total, tendo sido notificado aos Requerentes em 11/09/2023 (cfr. Documento n.º 1 junto com o PPA).
  1. Factos não Provados

Não existem factos não provados com relevância para a decisão.

  1. Motivação da Decisão de Facto

A convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos, que está referenciada em relação a cada facto julgado assente.

         IV.    Matéria de Direito

  1. Síntese da Posição das Partes

Posição dos Requerentes e pedido

Os Requerentes contestam que a Sociedade da qual a Primeira Requerente é sócia seja uma sociedade de profissionais, nos termos e para os efeitos do n.º 1, alínea b), e do n.º 4, alínea a), subponto 1), do artigo 6.º do Código do IRC. Conforme alegam os Requerentes, o entendimento da AT nesta matéria é de que o sócio único da sociedade exerce, através da sociedade, a atividade profissional especificamente prevista na lista de atividades a que alude o artigo 151.º do CIRS, designadamente sob o n.º 1310 – Administradores de bens, o que representa a totalidade dos rendimentos da sociedade.

Os Requerente consideram este entendimento da AT ilegal, numa dupla vertente: por um lado, (i) pela natureza excecional do artigo 6.º do Código do IRC, que impede a integração dos espaços deixados em branco pelo legislador, e pela correlativa taxatividade do elenco da Portaria n.º 1011/2001, de 21 de agosto, e, por outro lado, (ii) pela falta de identidade das atividades de administradores de bens e de Administradores Judiciais.

Cita jurisprudência favorável à sua tese, o acórdão do STA proferido no âmbito do processo n.º 0871/19.7BEPRT, de 6 de agosto de 2022, e o acórdão arbitral proferido no âmbito do processo n.º 58/2022-T.

E adicionalmente, ainda que a lista de atividades a que alude o artigo 151.º do CIRS fosse suscetível de integração por analogia, defendem os Requerentes que a atividade de mero administrador de bens, classificada com o código 1310, nunca se poderia confundir com a de Administrador Judicial, sendo estas funções confiadas por lei, nomeadamente pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (“CIRE”).

Desta forma, considerando os Requerentes que a sociedade em causa não se encontra abrangida pelo regime da transparência fiscal, em consequência não lhes poderia ser imputado o respetivo lucro para efeitos de IRS, pugnando assim pela anulação da decisão de indeferimento da revisão oficiosa apresentada e, mediatamente, também pela anulação dos atos subjacentes de liquidação do IRS referentes aos exercícios de 2018, 2019 e 2020, devendo a AT ser condenada ao reembolso do imposto indevidamente pago acrescidos dos juros indemnizatórios devidos até ao integral e efetivo pagamento.

 

Posição da Requerida

A Requerida defende-se por exceção e por impugnação.

Por exceção, alega que o pedido de revisão oficiosa foi alvo de uma rejeição liminar, não tendo havido qualquer pronúncia da AT, sendo o Tribunal Arbitral materialmente incompetente para apreciar atos em matéria tributária que, sem apreciar a legalidade das autoliquidações, se limitem a rejeitar o pedido dos Requerentes, como vem a ser o caso dos presentes autos, com fundamento na sua extemporaneidade.

Alega ainda, em matéria de exceção, que deve o Tribunal Arbitral julgar extinta a instância com fundamento em inimpugnabilidade das autoliquidações em crise em virtude de as mesmas, findo o prazo da reclamação graciosa, se terem já consolidado na ordem jurídica, o que também determina a caducidade do direito de ação, uma vez que os Requerentes apresentaram o presente pedido de pronúncia arbitral na sequência do indeferimento do pedido de revisão das liquidações.

Argumenta a Requerida que é extemporânea a revisão oficiosa nos termos da primeira parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, pois decorreram mais de 120 dias entre as datas de pagamentos das contestadas notas de cobrança iniciais dos respetivos exercícios quanto aos sujeitos passivos singulares e a data de instauração da revisão oficiosa, não tendo aqui aplicação o disposto na parte final do mesmo artigo, pois não houve qualquer erro imputável aos serviços, os quais apenas aceitaram as declarações entregues e, no exercício da sua competência, liquidaram o correspondente IRS, imputando as matérias coletáveis da sociedade, a qual entregou as suas declarações de IRC/2018, IRC/2019, IRC/2020 e IRC/2021 como tributada sob o regime de transparência fiscal. Também não tem aqui aplicação o disposto no n.º 4 do mesmo artigo 78.º, pois é pressuposto a existência de um comportamento não negligente da contribuinte.

Quanto ao mérito, e por impugnação, a Requerida reproduz a doutrina administrativa firmada no Processo: 1774/2017, com despacho concordante da Diretora de Serviços do IRS, de 28-12-2017, onde se defende que “6. Atendendo à natureza da atividade do administrador de insolvência dir-se-á que a atividade de administrador de insolvência se traduz na administração bens com vista a fazê-los frutificar com o fito de pagar aos credores do insolvente, pelo que é subsumível àquela atividade da tabela anexa ao artigo 151.º do CIRS. 7. Desta forma conclui-se que, em sede de IRS, a atividade a desenvolver pela sociedade é subsumível à atividade descrita sob o código 1310 da lista anexa ao artigo 151.º do Código do IRS”.

  1. Análise das questões

 

  1. Exceções invocadas

Deve começar por analisar-se as exceções invocadas, na medida em que a eventual procedência obstaria à apreciação do mérito da causa.

  1. Quanto à incompetência do Tribunal Arbitral

A posição da Requerida é de que a rejeição liminar do pedido de revisão oficiosa não consubstancia uma apreciação da legalidade da liquidação, mas sim a prática de um outro ato administrativo, um ato de recusa de decisão, ou seja, um ato administrativo em matéria tributária. De onde decorreria a incompetência, em razão da matéria, dos tribunais arbitrais, atento o disposto no artigo 2.º, n.º 2, do RJAT.

Porém, quanto a esta matéria, atente-se ao concluído pelo STA no Acórdão proferido no processo n.º 01958/13, de 14 de maio de 2015[1]:

“Em suma, no caso vertente estava em causa a legalidade do ato tributário de liquidação, sendo que a decisão do diretor distrital de finanças ao indeferir o pedido de revisão com base na falta de pressupostos legais, nomeadamente por não se verificar erro imputável aos serviços, comporta a apreciação da legalidade de um ato de liquidação. Assim, é de concluir que no presente caso, ao atacar contenciosamente aquele despacho pela via da impugnação judicial, e não por via de ação administrativa especial, a recorrente utilizou o meio processual adequado”.

E no que se refere à transposição da jurisprudência citada ao caso concreto, transcrevemos abaixo, por se acompanhar, o que foi decidido por este Tribunal Arbitral no Processo n.º 457/2022-T:

“O decidido pelo STA é inequívoco e é totalmente transponível para o caso ora em análise: o meio processual adequado para atacar contenciosamente uma decisão de indeferimento de um pedido de revisão por não verificação dos respetivos pressupostos, resultante de não se verificar erro imputável aos serviços, é o processo de impugnação.

Se bem entendemos, podemos sintetizar a posição do STA, estando em causa o indeferimento de um pedido de revisão oficiosa por intempestividade, como se segue:

• indeferimento por intempestividade do pedido de revisão por terem sido ultrapassados os prazos previstos no nº 1 do artigo 78º para a sua apresentação - sindicada através de ação administrativa;

• indeferimento por "intempestividade" mas que, na realidade, constitui um indeferimento por inadmissibilidade legal do pedido, o que ocorre sempre que a AT considera que o pedido não é admissível face à inexistência de um erro imputável aos serviços (o que envolve uma apreciação dos fundamentos que suportam o pedido de revisão) e que, por consequência, é inaplicável o prazo fixado na 2ª parte do nº 1 do artigo 78º da LGT - sindicada através de impugnação judicial.

Não podemos deixar de concordar com esta visão, a nosso ver expressão de um correto entendimento que resulta da natureza, legalmente expressa, do contencioso tributário como sendo de plena jurisdição.

(…)

O acórdão do STA acima citado corresponde à jurisprudência mais recente, aparecendo replicada em outras decisões dos tribunais superiores.

O que foi pedido a este tribunal arbitral é, pois, que aprecie a legalidade das liquidações impugnadas, o que inclui apreciar se as mesmas, independentemente da sua eventual ilegalidade substancial, se consolidaram definitivamente por força do decurso do tempo. O que se pede a este tribunal não é, pois, que aprecie uma decisão “autónoma” de indeferimento de um pedido de revisão oficiosa, pois que tal decisão surge baseada em razões relativas consolidação na ordem jurídica (e, portanto, à legalidade) das liquidações que lhe deram origem.

Sendo o objeto do processo a legalidade das liquidações impugnadas e o meio processual próprio para tal o processo de impugnação, resulta inquestionável a afirmação da competência deste tribunal arbitral em razão da matéria, atento o disposto no art. 2º, nº 1, do RJAT. Como é corrente afirmar-se, regra geral a competência dos tribunais arbitrais em razão da matéria coincide com aquilo que cabe aos tribunais estaduais apreciar através do processo de impugnação”.

  1. Quanto à caducidade do direito à ação decorrente da intempestividade do pedido de revisão oficiosa

Na visão da Requerida, o Tribunal Arbitral deve julgar extinta a instância com fundamento em inimpugnabilidade das autoliquidações em crise, em virtude de as mesmas, findo o prazo da reclamação graciosa, se terem já consolidado na ordem jurídica, o que também determina a caducidade do direito de ação, uma vez que os Requerentes apresentaram o presente pedido de pronúncia arbitral na sequência do indeferimento do pedido de revisão das liquidações.

E tal conclusão apoia-se, mais uma vez, no facto de não ter havido, no entendimento da Requerida, erro imputável aos Serviços, razão pela qual o pedido de revisão oficiosa foi extemporâneo e, em consequência, caducou o direito de recorrer ao Tribunal Arbitral.

Todavia, e conforme se julgou na alínea anterior, saber se houve ou não erro imputável aos Serviços é, por si, uma questão de apreciação do mérito da causa, pelo que será apreciada pelo Tribunal no ponto seguinte.

Improcede assim o invocado pela Requerida em matéria de exceção. 

  1. Questão de mérito

O pedido de revisão oficiosa foi formulado ao abrigo do artigo 78.º, n.º 1, da LGT, que determina que “a revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços”.

Está em causa o alegado erro de direito na qualificação da Sociedade como sujeita ao regime da transparência fiscal em sede de IRC, defendendo a Requerida que não se verificou um erro imputável aos Serviços, por terem sido os próprios Requerentes a assumir a tributação no regime de transparência fiscal da sua sociedade.

Ultrapassada que está hoje a questão de a Revisão Oficiosa por iniciativa da AT poder ser acionada pelo contribuinte, tal como foi o caso, é certo que a sua admissibilidade depende de ter havido erro imputável aos Serviços. E, nesse âmbito, recorde-se o que foi decidido pelo TCA Sul:

“O conceito de erro imputável aos serviços a que alude o artº.78, nº.1, 2ª. parte, da L.G.T., embora não compreenda todo e qualquer vício (designadamente vícios de forma ou procedimentais) mas tão só erros, estes abrangem o erro nos pressupostos de facto e de direito, sendo essa imputabilidade aos serviços independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão do ato afetada pelo erro. Por outras palavras, o dito erro imputável aos serviços concretiza qualquer ilegalidade não imputável ao contribuinte por conduta negligente, mas à A. Fiscal, mais devendo tal erro revestir carácter relevante, gerando um prejuízo efetivo, em virtude do errado apuramento da situação tributária do contribuinte, daí derivando o seu carácter essencial (Proc. 1349/10.0BELRS).

Face à factualidade apurada e dada como provada, importa notar que a Primeira Requerente foi alvo de inspeção tributária aos exercícios de 2015 e 2016, tendo a AT expressamente manifestado a posição de que a Sociedade seria enquadrável no regime da transparência fiscal.

E a este respeito, importa igualmente conjugar como o disposto no n.º 2 do artigo 43º da LGT, a propósito do direito a juros indemnizatórios, em que se considera “também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efetuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas”.

Na medida em que a expressão legal usada em ambas as disposições legais é a mesma (“erro imputável aos serviços”), deve fazer-se uma interpretação sistemática e, nessa medida, considerar que no conceito acolhido pelo artigo 78.º cabe igualmente os casos em que o contribuinte seguiu uma orientação genérica da AT. 

Quanto a este aspeto, é de assinalar que a Requerida, no seu direito de resposta, fundamenta a sua posição em Ficha Doutrinária publicada pela AT, relativa ao Processo n.º 1774/2017, com despacho concordante da Diretora de Serviços do IRS, de 28-12-2017.

Mais, no caso concreto os Requerentes já tinham “sofrido” os efeitos desta posição, pelo que não se pode dizer, na aceção dada pelo referido Acórdão do TCA Sul, que houve uma conduta negligente dos Requerentes ao terem passado a aplicar o regime de transparência fiscal aos lucros obtidos pela Sociedade, declarando-os para efeitos de IRS.

Acresce ainda, e antecipando o fundamento da presente decisão, que a matéria em discussão no presente processo foi decidida mais recentemente por Acórdão do STA, dado no processo n.º 0871/19.7BEPRT, de 6 de agosto de 2022, portanto já depois de decorrido o prazo de Reclamação Graciosa, pelo menos para as liquidações de 2018 e 2019. É, pois, natural que, com base na jurisprudência emanada de tribunal superior, os Requerentes pretendam agora corrigir as suas declarações de IRS, nos limites do prazo de 4 anos que ainda lhes é conferido pelo artigo 78.º, n.º 1, da LGT, uma vez que essas declarações se encontravam em consonância com a orientação da AT, posteriormente julgada ilegal pelo STA.

Conclui-se assim ter havido erro imputável aos Serviços, pelo que tendo a Revisão Oficiosa sido apresentada no prazo de 4 anos a contar da data da liquidação mais antiga (relativa ao ano de 2018), conclui-se pela sua tempestividade.

E quanto à questão de fundo, conforme se abordou, decidiu o STA no processo identificado que “não é aplicável às sociedades de Administradores de Insolvência o regime da transparência fiscal previsto no artigo 6.º do Código do IRC, para efeito de ser imputada no rendimento dos sócios, em sede de IRS, a matéria coletável da sociedade, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo, uma vez que a atividade do Administrador Judicial não está especificamente prevista na tabela a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS”.

Assim, este Tribunal Arbitral segue a posição assumida por tribunal superior, determinando a procedência do pedido formulado pelos Requerentes de anulação da decisão de indeferimento da revisão oficiosa apresentada e dos atos subjacentes de liquidação do IRS referentes aos exercícios de 2018, 2019 e 2020, com direito a reembolso das importâncias indevidamente pagas pelos Requerentes.

  1. Juros indemnizatórios

Os Requerentes peticionam igualmente o pagamento de juros indemnizatórios sobre o valor que, anuladas as liquidações de IRS, se demonstrar ter sido pago em excesso.

Para esse efeito, rege o disposto no artigo 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT, sendo devidos juros indemnizatórios “quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária”.

Uma vez que está em causa um pedido de revisão oficiosa, deve aplicar-se a disciplina específica da citada norma.

E nesta matéria importa considerar que foi uniformizada jurisprudência pelo acórdão do Pleno do STA, de 30-09-2020, proferido no processo n.º 040/19.6BALSB, em que se conclui que “só são devidos juros indemnizatórios decorrido um ano após o pedido de promoção da revisão oficiosa e até à data da emissão das respetivas notas de crédito”.

O Acórdão justifica a posição adotada, com base no elemento teleológico, pelo facto de o contribuinte se ter desinteressado “temporariamente da recuperação do seu dinheiro”, quando podia ter reclamado graciosamente e obter muito mais rapidamente o reembolso e os juros contáveis desde a data do pagamento indevido. Pese embora as circunstâncias que rodeiam o caso concreto possam, como se viu, justificar essa inércia dos Recorrentes, não há como não aplicar aquele comando legal ao caso concreto.

Nestes termos, os juros indemnizatórios só devem começar a contar-se um ano após a entrega do pedido de revisão oficiosa, que foi em 1 de julho de 2022, sendo, portanto, devidos juros indemnizatórios desde 1 de julho de 2023 até à data até à emissão das notas de crédito.

V.        Decisão

De harmonia com o exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, declarando a ilegalidade das liquidações de IRS dos anos de 2018, 2019 e 2020, com todas as consequências legais, incluindo o reembolso do imposto pago indevidamente pelo Requerente.
  2. Julgar procedente o pedido de pagamento dos juros indemnizatórios, sendo contáveis desde 1 de julho de 2023 até à emissão das respetivas notas de crédito.
  3. Condenar a Requerida ao pagamento das custas.

VI.      Valor do Processo

Fixa-se o valor do processo em € 594.427,60, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

VII.    Custas

Custas no montante de € 8.874,00 a cargo da Requerida, por decaimento, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

3 de junho de 2024

Os Árbitros,

 

 

Rui Duarte Morais (árbitro presidente)

 

 

Jorge Belchior de Campos Laires (relator)

 

 

Sérgio Santos Pereira

 

 



[1] Por uma questão de uniformização, os textos em que a anterior grafia foi usada são aqui transcritos na nova grafia.