SUMÁRIO:
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A impugnação das quantias relativas a juros de mora liquidados por atraso no pagamento de uma dívida já liquidada e em execução, não sendo actos de liquidação de tributos nem a eles equiparados é feita através da reclamação prevista nos artigos 276.º a 278.º do CPPT, e não através de processo de impugnação judicial ou do meio a este alternativo que é o processo arbitral.
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No caso dos autos, verifica-se precisamente que a AT não emitiu liquidações de IRS sobre as mais valias imobiliárias obtidas pela mulher do Requerente em relação à mesma fracção, não pondo consequentemente em causa o facto de a fracção em apreço ser a sua habitação própria e permanente, não podendo agora vir, para os mesmo efeitos de não tributação das mais valias, concluir que não estamos perante habitação própria e permanente do agregado familiar do Requerente, verificando-se os demais presupostos legais relativos à exclusão de tributação das mais valias imobiliárias.
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Com efeito, ao actuar da forma pretendida vem a AT incorrer em venire contra factum proprium.
I – Decisão Arbitral
1. A..., natural do Brasil, residente em Rua ..., ..., ..., ...-... Porto, portador do passaporte número ..., válido até 22/02/2028, emitido pela República Federativa do Brasil, contribuinte fiscal n.º..., veio, nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), artigo 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro - Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), em conjugação com os artigos 96.º e seguintes e 104.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), requerer a CONSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRS n.º 2023...referente ao ano de 2022 do Requerente no montante de € 47.530,00 e pagamento de juros indemnizatórios a calcular nos termos do disposto nos artigos 43.º e 100.º da Lei Geral Tributária (LGT), bem como a condenação da Requerida nas custas do processo.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Requerida.
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que a ora signatária foi nomeada pelo CAAD em 17 de Janeiro de 2024, e as partes, devidamente notificadas, não manifestaram intenção de o recusar, pelo que o Tribunal ficou constituído em 6 de Fevereiro de 2024.
4. A Requerente arrolou testemunhas e juntou à petição diversos documentos.
5. Tendo este Tribunal exarado Despacho a 6 de Fevereiro para no prazo de 30 se notificar o dirigente máximo do Serviço da Autoridade Tributária e Aduaneira para apresentar Resposta, a 4 de Março de 2024 veio a AT apresentar a sua Resposta.
6. Tendo sido arroladas testemunhas e apresentada uma excepção, a 19 de Março de 2024 o Tribunal proferiu Despacho a designar o dia 26.04.2024, pelas 10,30 horas, para efeitos da realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, na qual se iria proceder à inquirição das testemunhas.
7. Por Despacho de 4 de Abril de 2024, determinou este Tribunal que, por motivos logísticos, se tornava necessário remarcar a diligência para dia 16.05.2024 pelas 10,30 horas.
8. Na data referida foram inquiridas as testemunhas arroladas, tendo sido dado um prazo de 15 dias para, querendo as partes apresentarem alegações simultâneas.
9. Em 27 de Maio de 2024 veio o Requerente apresentar alegações, reproduzindo, no essencial, os fundamentos já invocados.
10. Em 28 de Maio de 2024 veio a Requerida apresentar alegações, reproduzindo, no essencial, o invocado na sua Resposta e salientando que a prova testemunhal vai no sentido das suas conclusões.
11. Em linhas gerais, na situação controvertida está fundamentalmente em causa aferir se a AT actuou devidamente ao liquidar a mais-valia no IRS de 2022 do sujeito passivo, não o fazendo em relação à sua mulher, devendo os rendimentos do Requerente decorrentes da venda do imóvel na proporção de metade para cada um reinvestimento de mais-valias resultantes da alienação de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar ser considerado para efeitos do disposto no artigo 10.º n.º 5 do CIRS.
12. Neste contexto, invoca o Requerente, essencialmente, o seguinte:
“ 29.º Mas aqui o que nos importa é o disposto no artigo 10.º n.º 5 do CIRS, na medida em que a AT ao liquidar a mais-valia no IRS de 2022 do sujeito passivo, não o fazendo em relação à sua mulher B..., nega-lhe o direito de efetuar o reinvestimento das mais-valias obtidas.
30.º Apesar de ambos terem declarado nos seu Mod. 3 de IRS referente ao exercício de 2022 pretenderem realizar esse reinvestimento, estando assim preenchida a alínea c) do n.º 5 do artigo 10.º do CIRS.
31.º Para o que contariam com um prazo de 3 anos para efetuarem esse reinvestimento de acordo com a alínea b) do n.º 5 do artigo citado, prazo que não decorreu uma vez que a venda teve lugar em 23 de Novembro de 2022.
32.º E, por último, está igualmente preenchida a condição do corpo do n.º 5 do artigo 10.º do CIRS, que “os ganhos resultantes da alienação de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo, ou do seu agregado familiar”, sejam reinvestidos em nova habitação própria e permanente.
33.º Mesmo que não se entendesse que o imóvel alienado era habitação própria e permanente do sujeito passivo, o que não se concede, forçoso é concluir que estamos ao abrigo da previsão da norma do n.º 5 do artigo 10.º do CIRS, na medida em que basta para o legislador que o imóvel fosse habitação própria e permanente do agregado familiar (nesse sentido o Acórdão do STA no Proc. 01077/11.9BESNT).
13. Analisada a situação, conclui a AT na sua Resposta que, “6.º Ora, subjaz desde logo que a diferença entre o valor da liquidação € 47.530,00 - a qual não foi paga dentro do prazo limite para pagamento voluntário – e o valor que o Requerente pretende ser reembolsado no valor de €48.445,95 (€ 47.530,00 - €48.445,95 =€ 915,00), repercutem-se a eventuais juros e custas do processo pagas no âmbito do processo de execução fiscal.
7.Com efeito, o único documento junto pelo Requerente que atesta o pagamento do valor de €48.445,95, subsume-se ao documento n.º 17, o qual apenas titula a operação bancária.
8.º Como se afere do documento n.º 16 junto pelo Requerente este procedeu ao pagamento da liquidação em sede de execução fiscal, sendo que o documento em questão, apenas permite atestar que naquela data o Requerente sobre o valor da liquidação- € 47.530,00, era à data devedor da quantia de €229.42 a título de custas.
9.º Ora, a quantia de € 915,00 referente ao pagamento em sede de execução fiscal nada contende com a legalidade da dívida, mas única e tão somente com a sua exigibilidade, em sede de execução fiscal.
10.º Ora, conforme prescreve a alínea a) do n.º 1 do Art.º 2.º do RJAT, compete aos tribunais arbitrais a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta (decorrente de prováveis juros e custas do processo).
11.º No caso vertente, os atos subjacentes ao pedido no montante de € 915,00, repercutem-se a prováveis juros e custas do processo de execução fiscal, e em nada contendem com a legalidade da liquidação.
12.º Logo, não estando perante atos de liquidação de tributos (IRS), de acordo com o estabelecido na alínea a) do n.º 1 do Art.º 2.º do RJAT, o Tribunal Arbitral é incompetente para sindicar os actos que influenciam o pedido e que correspondem a juros e custas do processo execução fiscal, no montante de € 915,00.
13.º Neste desiderato, conclui-se que nessa parte – € 915,00 decorrentes de prováveis juros e custas – o Tribunal Arbitral constituído é materialmente incompetente para apreciar, atendendo à inexistência de atos de liquidação, atos praticados no processo de execução fiscal, o que consubstancia uma exceção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, nos termos do disposto no artigo 576.º, n.os 1 e 2 do CPC ex vi artigo 2.º alínea e) do CPPT e artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT,
14.º Como decorrência do que se antecede, afere-se que o meio processual – pedido de pronúncia arbitral – não consubstancia o meio processual adequado com vista a sindicar a exigibilidade da dívida no que concerne ao pagamento de prováveis juros e custas processuais decorrentes da instauração do processo de execução fiscal.
15.º Com efeito, o Requerente pagou a quantia de €48.445,95, no âmbito do processo de execução fiscal e nesse desiderato, tendo o Requerente deixado precludir o prazo voluntário de pagamento, e tendo apenas pago a quantia em sede de processo de execução fiscal, o meio processual adequado com vista à sindicância da exigibilidade da dívida (e não da sua ilegalidade), subsumir-se-ia à oposição à execução fiscal, consignada no disposto no Art.º 204.º do CPPT, e não ao pedido de pronúncia arbitral.
16.º Neste desiderato, afere-se que quanto à quantia de € 915,00, a que se reportam alegados juros e custas do processo de execução fiscal, o pedido de pronúncia arbitral não consubstancia ao meio processual adequado com vista a sindicar a pretensão do Requerente, razão pela qual se trata de uso de meio processual impróprio, o qual consubstancia uma exceção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, nos termos do disposto no Art.º 577.º do CPC, o qual dá lugar à absolvição do réu da instância nos termos do n.º 1 do Art.º Art.º 278.º ambos do CPC Sem conceder
(…)
21.º Recorta-se assim que são excluídos de tributação os ganhos decorrentes da transmissão onerosa de imóvel destinado a Habitação Própria e Permanente do sujeito passivo e/ou do seu agregado se o valor de realização, deduzido da amortização de eventual empréstimo que tenha sido contraído por forma a permitir essa aquisição, for reinvestido na aquisição de um outro com idêntico destino e desde que cumpridos os demais requisitos legais previstos no Art.º 10.º CIRS.
22.º Como tem sublinhado a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, o conceito de reinvestimento subjacente ao nº 5 do Art.º 10º do CIRS é um “conceito económico” e, por isso, o que é essencial é provar que “o produto da alienação obtido na transmissão onerosa de imóvel destinado à habitação do sujeito passivo ou do seu agregado familiar seja reinvestido na aquisição de outro imóvel destinado ao mesmo fim” (Ac. do Supremo Tribunal de 12-02-2020, Proc. nº 0116/07.2BECTB).
23.º O n.o 5 do Art.º 10.º do CIRS exclui, assim, da incidência de tributação em IRS os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, desde que verificadas, cumulativamente, as condições enunciadas nas suas alíneas a), b) e c). "Trata-se, (...), de não onerar fiscalmente a efectivação do direito fundamental à habitação" e de "favorecer a propriedade do imóvel destinado a habitação permanente" (cfr., respectivamente, André Salgado de Matos, Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), Anotado, 1999, pág. 168 e José Guilherme Xavier de Basto, IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, 2007, pág. 413).
24.º Ora, conforme resulta dos autos o Requerente declarou no ano de tributação em análise, e assumiu a sua condição de “não residente”, situação que apenas terá sofrido alteração desde 2023, mantendo a sua atividade profissional e empresarial no Brasil.
25.º De igual modo, o outro elemento do seu agregado apenas passou a deter residência em território nacional um dia antes do negócio de alienação do imóvel gerador de mais valias.
(…)
29.º Ora, in casu e como se recorta da factualidade assente nos autos, a mulher do Requerente encontrava-se fora de Portugal quase até à celebração do negócio, sendo igualmente assente que o desenvolvimento da sua atividade empresarial se mantém, em perfeita consonância com o facto da sua domiciliação fiscal se situar fora do território nacional.
30.º Por outro lado, o Requerente era não residente em território nacional à data dos factos, e nesse desiderato resulta de forma clara e inequívoca que não estamos perante uma situação de habitação própria e permanente.
31.º Mesmo que se pondere a aplicação do disposto no n.º 5 do Art.º 10.º do CIRS, por via do “agregado familiar” tal como é suscitado pelo Requerente, tal facto também não é atendível na medida em que, também aqui a materialização do conceito de centro de interesses vitais, tal como se encontra firmado na doutrina e jurisprudência, não tem aplicação no caso vertente pois não se verifica o caráter de permanência inerente.
32.º Veja-se a este propósito o Acórdão do TCA Sul de 27/11/2022, Proc. 2648/10.6 BELRS, reafirmado e desenvolvido pelo Acórdão do STA de 3/5/2023, Proc. 05266/14, Proc. 9BEBRG, o qual refere “i)«Para que opere a exclusão tributária prevista no n° 5 do art. 10° do CIRS (exclusão da tributação do ganho obtido mediante a alienação onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo) a lei impõe que o respetivo ganho seja reinvestido, no prazo de 24 meses, na aquisição de um diferente imóvel e que este também tenha como destino a habitação do sujeito passivo ou do seu agregado familiar. Para efeitos do disposto neste normativo, o conceito de habitação própria e permanente não equivale ao conceito de domicílio fiscal. ii) «Estando em causa a interpretação de normas de exclusão de tributação, as mesm devem ser interpretadas nos seus exatos termos, sem o recurso à analogia e evitando também a interpretação extensiva, tornando prevalente a certeza e a segurança na sua aplicação». iii) «A exclusão referida só vale pois para as mais-valias de imóveis destinados a habitação própria e permanente quando o reinvestimento se opera em imóveis com o mesmo destino. iv)O imóvel “de partida” e o imóvel “de chegada” têm de ser destinados à habitação própria e permanente. Qualquer outro destino de ambos, ou só de um deles, destrói as condições de aplicação da exclusão de incidência – e mais-valia realizada no imóvel de “partida” será tributável”.
(…)
35.º Logo, em face do Requerente ser não residente em território nacional à data dos factos, tendo declarado tal facto na declaração de rendimento Modelo 3 de IRS, e a sua mulher apenas passou a deter residência em território nacional um dia antes do negócio de alienação do imóvel gerador de mais valias, recorta-se que o imóvel em questão não consubstanciava o centro dos seus interesses pessoais, não sendo para habitação própria e permanente, e por esse facto não é aplicável a exclusão de tributação consignada no disposto no n.º 5 do Art.º 10.º do CIRC.
(…)
37.º Por fim, e relativamente ao montante do empréstimo contraído para a aquisição e que estava ainda em dívida à data da alienação em Novembro de 2022, o mesmo não pode ser aceite porquanto não constitui despesa necessária e absolutamente imprescindível à celebração dos negócios de compra e venda.
Deve ser julgada procedente por provada a exceção dilatória de incompetência do Tribunal Arbitral na parte referente aos € 915,00 decorrentes de prováveis juros e custas sendo materialmente incompetente para apreciar, atendendo à inexistência de atos de liquidação, sendo atos praticados no processo de execução fiscal, o que consubstancia uma exceção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, nos termos do disposto no artigo 576.º, n.os 1 e 2 do CPC ex vi artigo 2.º alínea e) do CPPT e artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT; - Deve ser julgada procedente por provada a exceção dilatória de inidoneidade do meio processual impeditiva do conhecimento do mérito da causa, uma vez que a oposição à execução, constante do disposto no Art.º 204.º e seguintes do CPPT, configura o meio processual adequado com vista a devolução das quantias pagas indevidamente em sede de execução fiscal relativamente a prováveis juros e custas do processo, a qual se invoca nos termos do disposto no artigo 576.º, n.os 1 e 2 do CPC ex vi artigo 2.º - Mais deve o presente pedido de pronúncia arbitral ser julgado improcedente por não provado, e, consequentemente, absolvida a Requerida de todos os pedidos, tudo com as devidas e legais consequências.
14. Em 13 de Maio de 2024 o Requerente veio apresentar um Requerimento de resposta à excepção invocada pela AT, invocando que, “3. A Requerida fez a presente liquidação em erro sobre os pressupostos de facto e de direito e, em vez de aguardar o fim do prazo de reinvestimento previsto no n.º 5 do artigo 10.º do CIRS, liquidou de imediato o imposto com erro, por ela Requerida aceite, no prazo previsto no artigo 13.º do RJAT.
4. A reconstituição da situação preexistente à liquidação implicará necessariamente a anulação da execução encetada com o respetivo reembolso de todos os valores indevidamente cobrados.
5. A Requerida iniciou a execução sem título válido e erro sobre os pressupostos de facto e de direito. O montante de € 915,00 deverá ser devolvido, se não no presente processo, inevitavelmente em execução de sentença.
6. Improcede assim a alegada incompetência material do Tribunal Arbitral.”
7. A questão da inidoneidade do meio processual está já respondida no ponto anterior.
8. Uma execução fundamentada num título executivo inválido, conforme expressamente reconhecido pela Requerida, não legitimam a liquidação de juros moratórios e custas pelo erro ser imputável exclusivamente à A.T.
9. Resulta claro do pedido de anulação da liquidação n.º 2023-..., que é o pedido principal, tendo dois pedidos subsidiários: o pagamento pela Requerida de juros indemnizatórios e custas processuais suportadas pela Requerente.
10. As custas cobradas pela Requerida no âmbito do processo executivo encetado em erro sobre os pressupostos de facto e de direito deverão ser liquidadas em execução de sentença.”
II- Saneador
1. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
2. O Tribunal encontra-se regularmente constituído, é competente e o processo não enforma de nulidades.
III – Fundamentação
1. Questões decidendas
As questões cuja pronúncia se impõe ao Tribunal Arbitral consubstanciam-se, no essencial, em apurar se a AT procedeu adequadamente ao ter, nos termos indicados, liquidado ao Requerente um imposto em sede de IRS referente ao exercício de 2022 de € 47 530,00, resultado da aplicação da taxa liberatória de 28% ao montante das mais-valias brutas obtidas a que corresponde uma matéria colectável total corrigida de € 169 750,00, não tendo considerado as mais-valias imobiliárias obtidas por 50% do seu valor.
2. Matéria de facto
2.1 Factos provados
Em face das posições das partes expressas nos articulados e dos documentos integrantes do processo administrativo anexo bem como do depoimento das testemunhas, julgam-se como provados os seguintes factos pertinentes para a decisão da causa:
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O Requerente tem nacionalidade brasileira sendo residente na Rua ..., ..., ...-... Porto.
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O sujeito passivo é casado com B..., residente não habitual em Portugal, no regime de comunhão parcial de bens – Doc. 3 junto pelo Requerente.
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O Requerente, por escritura celebrada em 8 de Junho de 2017, adquiriu conjuntamente com a sua mulher, B..., pelo valor de € 525 000,00 (quinhentos e vinte e cinco mil euros) a fracção autónoma designada pela letra “F”, 4º andar com acesso pelo número ... da Rua ..., do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., números..., ... e ... e Rua do ..., números ... ..., freguesia da ..., concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número ..., da freguesia ... e inscrito na matriz predial urbana da freguesia da ..., sob o artigo ...– Doc. 2 junto pelo Requerente) e certidão permanente com o código de acesso PA-....
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Em 23 de Novembro de 2022, o Requerente e a mulher venderam a fracção identificada pelo valor de € 875 000,00 – Doc. 4 junto pelo Requerente.
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O Requerente declarou na escritura de venda que pretendia reinvestir o produto da venda em habitação própria e permanente – Doc. 4 junto pelo Requerente.
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Aquando da apresentação da declaração de rendimentos Modelo 3 relativa a 2022, o Requerente inscreveu a situação pessoal de casado, não optando pela tributação conjunta, e declarou ser “não residente”.
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Os factos tributários geradores de rendimentos de mais-valias foram inscritos no anexo G, na respetiva quota-parte, sem qualquer montante a titulo de despesas e encargos e, no Quadro 5, foi manifestada a intenção de reinvestimento da totalidade do valor de realização, no valor de € 437.500, bem como o valor de € 234.220,31 de empréstimo ainda em dívida à data de alienação, sendo que esta declaração deu lugar à liquidação datada de 14.07.2023, objecto dos presentes autos.
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Antes da venda da fracção autónoma, o Requerente e a mulher celebraram contratos de fornecimento de serviços de água, electricidade, telecomunicações e condomínio relativamente à referida fracção– Doc. 5 junto pelo Requerente.
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Em 2022, o Requerente e a mulher deram entrada de um pedido de visto para obtenção de residência em Portugal (Doc. 6 junto pelo Requerente), tendo esta adquirido o estatuto de residente não habitual – Doc. 7 junto pelo Requerente.
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O Requerente e a mulher têm visto de residência em Portugal desde 2023 - Docs. 8 e 9 juntos pelo Requerente.
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O Requerente mantém actividade profissional e empresarial no Brasil.
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O Requerente e a mulher, para a aquisição do imóvel em 2017, contraíram um empréstimo junto do Banco Caixa Geral de Depósitos - Doc. 2 junto pelo Requerente.
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O valor da amortização do empréstimo à aquisição na data da venda do prédio sito na Rua ... foi de € 234 220,29 – Doc. 11 junto pelo Requerente.
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O custo da escritura de compra e mútuo com hipoteca do prédio sito na Rua ... e respectiva certidão notarial foi de € 1 361,30 – Doc. 10 junto pelo Requerente.
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O IMT referente à aquisição do prédio sito na Rua ..., foi de € 30 964,75– Doc. 12 junto pelo Requerente.
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O Imposto de Selo suportado na aquisição do prédio da ..., foi de € 4 200,00– Doc. 13 junto pelo Requerente.
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Em 2023 o Requerente e a mulher nas declarações de IRS referentes a 2022, declararam os rendimentos decorrentes da venda do imóvel na proporção de metade para cada um (€ 175 000,00), referindo expressamente a sua intenção de reinvestir a mais-valia obtida – Docs. 14 e 15 juntos pelo Requerente.
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A AT liquidou ao Requerente um imposto em sede de IRS referente ao exercício de 2022 de € 47 530,00, resultado da aplicação da taxa liberatória de 28% ao montante das mais-valias brutas obtidas a que corresponde uma matéria colectável total corrigida de € 169 750,00, não tendo considerado as mais-valias obtidas por 50% do seu valor - Doc. 1 junto pelo Requerente.
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No referido acto de liquidação a AT não considerou a dedução das menos valias suportadas em 50% pelo sujeito passivo (amortização do empréstimo, despesas de escritura, IMT e Imposto de Selo da aquisição).
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A AT instaurou ao Requerente o processo de execução fiscal n.º ...2023... – Doc. 16 junto pelo Requerente.
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O Requerente pagou em 24.10.2023 o valor em execução, € 48 445,95 – Doc. 17 junto pelo Requerente.
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A diferença entre o valor da liquidação € 47.530,00 e o valor que o Requerente pretende ser reembolsado no valor de €48.445,95 (€ 47.530,00 - €48.445,95 =€ 915,00), refere-se a eventuais juros e custas do processo pagas no âmbito do processo de execução fiscal.
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A AT nada liquidou no IRS de 2022, a este título ou por qualquer outro, à mulher do Requerente (Doc. 18 junto pelo Requerente).
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O pedido formulado pelo Requerente foi objecto de revogação parcial relativamente à liquidação do Requerente referente a IRS de 2022, relativamente à consideração a título de despesa e encargo e na quota parte de 50% que lhe assiste, dos valores de IMT, IS e escritura.
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Não decorreu o prazo de 36 meses previsto na lei para realizar o reinvestimento.
Note-se que relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º7, do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, bem como o depoimento das testemunhas, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
A convicção do Tribunal para dar os presentes factos como provados assentou na análise crítica do teor dos documentos constantes do processo administrativo e dos restantes documentos constantes dos autos, os quais não foram impugnados pelas partes e relativamente aos quais não há indícios que ponham em causa a respetiva genuinidade, de acordo com o indicado em cada um dos números do probatório, bem como dos esclarecimentos prestados pelas testemunhas. Com efeito, as testemunhas deporam de modo claro, objectivo, convincente e convergente, tendo demonstrado conhecimentos detalhados e precisos sobre a matéria em discussão nos presentes autos, atentas as respectivas funções profissionais desempenhadas à data dos factos.
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Factos não provados
Não se provou que o Requerente era residente no território nacional há data dos factos, mais concretamente na fracção alienada, não existindo mais factos relevantes para a decisão que não se tenham provado.
3. Das questões de direito
Encontrando-se a aludida material de facto dada como provada, importa seguidamente determinar o direito aplicável aos factos subjacentes, de acordo com as questões supra.
3.1 Excepção
Invoca a AT que, quanto à quantia de € 915,00, a que se reportam alegados juros e custas do processo de execução fiscal, o pedido de pronúncia arbitral não consubstancia ao meio processual adequado com vista a sindicar a pretensão do Requerente, razão pela qual se trata de uso de meio processual impróprio, o qual consubstancia uma excepção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, nos termos do disposto no artigo 577.º do CPC, o qual dá lugar à absolvição do réu da instância nos termos do n.º 1 do artigo 278.º, ambos do CPC. A quantia de € 915,00 reportar-se-á a juros e custas liquidados n processo de execução fiscal, tratando-se de juros de mora, enquadráveis no artigo 44.º da LGT e não de juros compensatórios, previstos no artigo 35.º da LGT.
Ora, “Os juros compensatórios integram-se na própria dívida do imposto, com a qual são conjuntamente liquidados” (artigo 35.º, n.º 8, da LGT), sendo gerados por um retardamenro da liquidação (artigo 35.º, n.º 1, da LGT).
E, por isso, sendo os actos de liquidação desses juros são equiparados aos actos de liquidação de imposto, podem ser apreciados no CAAD, como a generalidade dos actos de liquidação de impostos.
Mas, se se trata de juros de mora, são liquidados por atraso no pagamento de uma dívida já liquidada e em execução, não sendo actos de liquidação de tributos nem a eles equiparados.
Termos em que se conclui que a AT tem razão, ao defender a incompetência dos tribunais arbitrais, pois não se está perante acto de qualquer dos tipos previstos no artigo 2.º do RJAT.
A impugnação desse actos lesivos praticados no processo de execução fiscal é feita através da reclamação prevista nos artigos 276.º a 278.º do CPPT, e não através de processo de impugnação judicial ou do meio a este alternativo que é o processo arbitral.
3.2 Enquadramento em sede de IRS
Em conformidade com o estatuído na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Código do IRS (CIRS), “Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, …a) resultem da alienação onerosa de bens imóveis.”
Por sua vez, de acordo com o disposto no n.º 4, alínea a) do mesmo artigo, “o ganho sujeito a IRS é constituído a) pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição…”.
De acordo com o disposto no artigo 10.º, n.ºs 5 e 6 do CIRS determina-se que:
“5 - São excluídos da tributação os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, desde que verificadas, cumulativamente, as seguintes condições:
a) O valor de realização, deduzido da amortização de eventual empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, seja reinvestido na aquisição da propriedade de outro imóvel, de terreno para construção de imóvel e ou respetiva construção, ou na ampliação ou melhoramento de outro imóvel exclusivamente com o mesmo destino situado em território português ou no território de outro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal;
b) O reinvestimento previsto na alínea anterior seja efetuado entre os 24 meses anteriores e os 36 meses posteriores contados da data da realização;
c) O sujeito passivo manifeste a intenção de proceder ao reinvestimento, ainda que parcial, mencionando o respetivo montante na declaração de rendimentos respeitante ao ano da alienação;
d) (Revogada.)
e) O imóvel transmitido tenha sido destinado a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, comprovada através do respetivo domicílio fiscal, nos 24 meses anteriores à data da transmissão; (Aditada pela Lei n.º 56/2023, de 6 de outubro)
f) Os sujeitos passivos não tenham beneficiado, no ano da obtenção dos ganhos e nos três anos anteriores, do presente regime de exclusão, sem prejuízo da comprovação pelo sujeito passivo, efetuada em procedimento de liquidação, de que a não observância da presente condição se deveu a circunstâncias excecionais. (Aditada pela Lei n.º 56/2023, de 6 de outubro)
6 - Não haverá lugar ao benefício referido no número anterior quando:
a) Tratando-se de reinvestimento na aquisição de outro imóvel, o adquirente o não afete à sua habitação ou do seu agregado familiar, até decorridos doze meses após o reinvestimento;
b) Nos demais casos, o adquirente não requeira a inscrição na matriz do imóvel ou das alterações decorridos 48 meses desde a data da realização, devendo afetar o imóvel à sua habitação ou do seu agregado até ao fim do quinto ano seguinte ao da realização;”
O artigo 43.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), do CIRS, dispõe que só estão sujeitos a mais -valias os rendimentos resultantes do saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias, devendo ser considerados por 50% do seu valor.
Independentemente da questão de considerarmos ou não o Requerente residente no território nacional, facto que não considerámos provado, importa em especial denotar que, de acordo com os factos documentalmente provados, não contestados pela AT, esta não procedeu à tributação das mais valias obtidas em relação ao seu agregado familiar, in casu, a mulher do Requerente.
Ora, a aludida disposição legal é absolutamente clara e inequívoca ao determinar que para efeitos de não tributação das mais valias interessa aferir se estão em causa imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar.
Não pode pois a AT vir considerar que, em relação ao agregado familiar do Requerente se verificam os pressupostos de exclusão de traibutação das mais valias (concretamente a residência na referida fracção) e que em relação ao mesmo não se verificam alegando agora que a sua mulher apenas adquiriu o estatuto de residente não habitual em vésperasda alienação da dita fracção.
Com efeito, ao actuar da forma pretendida vem a AT incorrer em venire contra factum proprium.
Como salienta Manuel de Andrade,“há abuso do direito quando o direito, legítimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante; e a consequência é a de o titular do direito ser tratado como se não tivesse tal direito ou a de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito extracontratual.”[1]
Neste contexto, como esclarece Antunes Varela, “para que haja lugar ao abuso do direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito.”[2]
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 12 de Fevereiro de 2009[3], salienta-se precisamente que “no âmbito da fórmula “manifesto excesso” cabe a figura da conduta contraditória (venire contra factum proprium), que se inscreve no contexto da violação do princípio da confiança, que ocontece quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte em função do modo como antes actuara”.
Isto é, o princípio da confiança é um princípio ético fundamental transversal acolhido no sistema jurídico, desde logo no artigo 334.º do Código Civil que, ao falar nos limites impostos pela boa fé ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a protecção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte.
Como se enfatiza no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte exarado em 14 de Março de 2013 no seu Processo 00702/12.9BEPNF, “O abuso do direito, nas suas várias modalidades, pressupõe sempre que “o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” (artigo 334.º do CC). Paulo Mota Pinto, Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório (Venire Contra Factum Proprium) no Direito Civil, BFDUC, Volume Comemorativo (2003), pág. 276.
O abuso de direito, consagrado no artigo 334º do Código Civil, traduz-se no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
(…)
Entre os comportamentos que a jurisprudência (e a doutrina) reconduzem à figura do ao abuso de direito, está o venire contra factum proprium, ou seja, a proibição do comportamento contraditório – cfr. neste sentido, entre muitos, o acórdão do STA, de 23/01/07 (proc. 41000) e os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa e de Guimarães, de 3/3/11 (proc. 535708.7) e de 26/05/04 (proc. 902/04-2), respectivamente.
Na sua estrutura, o “venire” pressupõe duas condutas da mesma pessoa, ambas lícitas, mas assumidas em momentos distintos e distanciadas no tempo, em que a primeira (o “factum proprium”) é contraditada pela segunda (o “venire”), de modo que essa relação de oposição entre as duas justifique a invocação do princípio do abuso do direito.
O “venire” tem a sua razão de ser no princípio da confiança enquanto exigência de que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido conduzidas a acreditar na manutenção de determinados comportamentos da comunidade humana, que se encontra organizada na base de relacionamentos estáveis, em que cada um deve ser congruente, não mudando, constante e arbitrariamente, de condutas, mormente que sejam prejudiciais para outrem.
Por seu turno, o principal efeito do venire contra factum proprium é, naturalmente, o da inibição do exercício de poderes jurídicos ou de direitos, em contradição com o comportamento anterior.”
Veja-se ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça prolatado no Processo 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1 em 12 de Novembro de 2013, nos termos do qual, “I - A proibição do comportamento contraditório configura actualmente um instituto jurídico autonomizado, que se enquadra na proibição do abuso do direito (art. 334.º do CC), nessa medida sendo de conhecimento oficioso; no entanto, não existe no direito civil um princípio geral de proibição do comportamento contraditório.
II - São pressupostos desta modalidade de abuso do direito – venire contra factum proprium – os seguintes: a existência dum comportamento anterior do agente susceptível de basear uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e actual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma actividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento” que nela assentou.
III - O princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia; está presente, desde logo, na norma do art. 334.º do CC, que, ao falar nos limites impostos pela boa fé ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a protecção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte.”
Como se salienta, há desde logo um primeiro e fundamental pressuposto a considerar: a existência de um comportamento anterior do agente (o factum proprium) que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança. Em segundo lugar exige-se que, quer a conduta anterior (factum proprium), quer a actual (em contradição com aquela) sejam imputáveis ao agente. Em terceiro lugar, que a pessoa atingida com o comportamento contraditório esteja de boa fé, vale por dizer, que tenha confiado na situação criada pelo acto anterior, ignorando sem culpa a eventual intenção contrária do agente. Em quarto lugar, que haja um “investimento de confiança”, traduzido no facto de o confiante ter desenvolvido uma actividade com base no factum proprium, de modo tal que a destruição dessa actividade pela conduta posterior, contraditória, do agente (o venire) traduzam uma injustiça clara, evidente. Por último, exige-se que o referido “investimento de confiança” seja causado por uma confiança subjectiva objectivamente fundada; terá que existir, por conseguinte, causalidade entre, por um lado, a situação objectiva de confiança e a confiança da contraparte, e, por outro, entre esta e a “disposição” ou “investimento” levado a cabo que deu origem ao dano.
No caso dos autos, verifica-se precisamente que a AT, ao não emitir liquidações de IRS sobre as mais valias imobiliárias obtidas pela mulher do Requerente em relação à mesma fracção, não pondo consequentemente em causa o facto de a fracção em apreço ser a sua habitação própria e permanente, não pode agora vir querer, fazer letra morta de tal facto e daí retirar diferentes ilacções e consequências, devendo assim concluir-se que estamos perante habitação própria e permanente do agregado familiar do Requerente, verificados que se encontram os demais presupostos legais relativos à exclusão de tributação das mais valias imobiliárias.
De notar por último que a AT tem razão quando alega, relativamente ao montante do empréstimo contraído para a aquisição e que estava ainda em dívida à data da alienação em Novembro de 2022, que o mesmo não pode ser aceite porquanto não constitui despesa necessária e absolutamente imprescindível à celebração dos negócios de compra e venda.
Termos em que se conclui que a liquidação de IRS n.º 2023 ... deverá ser anulada em conformidade por erro sobre os pressupostos de facto e de direito.
3.3 Do pagamento de juros indemnizatórios
Nestas circunstâncias, preconiza a jurisprudência dos nossos tribunais superiores que deve encontrar-se preenchido o pressuposto do “erro imputável aos serviços” que o artigo 43.º, n.º 1, da LGT, reclama para o nascimento da obrigação de juros indemnizatórios.
Como se refere no Acórdão do STA, no Processo n.º 049/16, de 10 de Maio, que acompanhamos: “Foi esta a solução sustentada pelo citado acórdão de 02-12-2015, do Pleno desta Seção, Proc. 01524. Como se escreveu no acórdão deste STA, de 30-05-2012, proc. 410:
“Diz o n.º 1 do art. 43.º da LGT, ao abrigo da qual foi proferida a condenação ora recorrida: «São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido».
Ou seja, quando um acto de liquidação de um tributo for declarado em processo de reclamação graciosa ou de impugnação judicial viciado por erro imputável aos serviços e do qual tenha resultado o pagamento de uma dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, há direito a juros indemnizatórios, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT.
Como salienta JORGE LOPES DE SOUSA, «[a] utilização da expressão «erro» e não «vício» ou «ilegalidade» para aludir aos factos que podem servir de base à atribuição de juros, revela que se teve em mente apenas os vícios do acto anulado a que é adequada essa designação, que são o erro sobre os pressupostos de facto e o erro sobre os pressupostos de direito.
Com efeito, há vícios dos actos administrativos e tributários a que não é adequada tal designação, nomeadamente os vícios de forma e a incompetência, pelo que a utilização daquela expressão «erro» tem um âmbito mais restrito do que a expressão «vício».
Por outro lado, é usual utilizar-se a expressão «vícios» quando se pretende aludir genericamente a todas as ilegalidades susceptíveis de conduzirem à anulação dos actos, como é o caso dos arts. 101.º (arguição subsidiária de vícios) e 124.º (ordem de conhecimento dos vícios na sentença) ambos do CPTT.
Por isso, é de concluir que o uso daquela expressão «erro» tem um alcance restritivo do tipo de vícios que podem servir de base ao direito a juros indemnizatórios» (Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, volume I, anotação 5 ao art. 61.º, pág. 531..)
O mesmo Autor explica as razões por que a LGT restringiu o direito a juros indemnizatórios aos casos de anulação por vício substancial e já não o reconheceu relativamente aos vícios de forma ou incompetência que determinem a anulação do acto: o reconhecimento de um vício destes últimos tipos «não implica a existência de qualquer vício na relação jurídica tributária, isto é, qualquer juízo sobre o carácter indevido da prestação pecuniária cobrada pela Administração Tributária com base no acto anulado, limitando-se a exprimir a desconformidade com a lei do procedimento adoptado para a declarar ou cobrar ou a falta de competência da autoridade que a exigiu.
Ora, é inquestionável que, quando se detecta um vício respeitante à relação jurídica tributária, se impõe a atribuição de uma indemnização ao contribuinte, pois a existência desse vício implica a lesão de uma situação jurídica subjectiva, consubstanciada na imposição ao contribuinte da efectivação de uma prestação patrimonial contrária ao direito.
Por isso, se pode justificar que, nestas situações, não havendo dúvidas em que a exigência patrimonial feita ao contribuinte implica para ele um prejuízo não admitido pelas normas fiscais substantivas, se dê como assente a sua existência e se presuma o montante desse prejuízo, fazendo-se a sua avaliação antecipada através da fixação de juros indemnizatórios a favor daquele.”
Termos em que entendemos igualmente que deve proceder o pedido de pagamento de juros indemnizatórios por se encontrarem verificados os respetivos requisitos, devendo a Requerida ser condenada ao pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento até ao efectivo reembolso.
IV- DECISÃO
Neste contexto, decide-se o seguinte:
-
Julgar procedente o pedido arbitral na parte que se reporta à anulação, em conformidade, da liquidação de IRS n.º 2023 ... referente ao ano de 2022;
-
Julgar improcedente o pedido arbitral relativamente à devolução da quantia de € 915,00, a que se reportam alegados juros e custas do processo de execução fiscal;
-
Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios calculados desde a data do pagamento até ao efectivo reembolso dos montantes em apreço relativamente às quantias indevidamente pagas;
-
Condenar a Requerida no pagamento das custas.
V- VALOR DA CAUSA
De harmonia com o disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, que estabelece que o valor da causa nos casos previstos na alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT é o da liquidação a que o sujeito passivo, no todo ou em parte, pretenda obstar, fixa-se ao processo o valor de 47.530,00€ (quarenta e sete mil e quinhentos e trinta euros).
VI- CUSTAS
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2 e 24.º, n.º 4, do RJAT e 4.º, n.º 5, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em 2142,00 €, a pagar pela Requerida.
Lisboa, 31 de Maio de 2024
Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5, do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
A Árbitra
Clotilde Celorico Palma
[1] Teoria Geral das Obrigações, 3.ª ed., Almedina, 1966, pp. 63-64.
[2] Das Obrigações em Geral, vol. I, 6ª ed., Manuais Universitários, Almedina, 2017, p. 516.