Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 686/2023-T
Data da decisão: 2024-06-03  IRC IVA  
Valor do pedido: € 188.210,75
Tema: IRC e IVA – Operações simuladas - Dedutibilidade de gastos
Versão em PDF

SUMÁRIO:

I - A conclusão da AT, em sede de IVA, face às estruturas das fornecedoras não lhe permite, nem permite ao tribunal, concluir que as operações da Requerente em apreço nos autos sejam simuladas e, nesse pressuposto, lhe seja negado o direito à dedução do imposto.

II – Já quanto ao IRC e atendendo à natureza da argumentação suscitada pela Requerida, entende este Tribunal, na senda do entendimento exposto na Decisão prolatada no Processo n.º 102/2020-T do CAAD, que «O artigo 23.º do CIRC não se reconduz a uma norma antiabuso, que pudesse ser utilizada em substituição do artigo 38.º, n.º 2, da LGT (…)» Na sequência da análise realizada ao caso, concluiu então o Tribunal, com o qual se concorda, que «Cada norma tem um conteúdo prescritivo diverso – e o art. 23.º do CIRC não funciona como uma norma anti abuso substitutiva daqueles outros preceitos.» 

 

Os Árbitros Guilherme W. d'Oliveira Martins, Fernando Miranda e António Lima Guerreiro, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

  1. RELATÓRIO

A..., LDA., com o NIPC..., com sede social na ... ..., ..., ...-... ..., doravante abreviadamente designada por “Requerente” veio, ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 2.º e dos n.os 1 e 2, do artigo 10.º, ambos do Decreto‐Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º, da Portaria n.º 112‐A/2011, de 22 de Março, requerer a CONSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL COLETIVO.

É Requerida a AT.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo (TAC) foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à AT no dia 29 de setembro de 2023.

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.° e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.° do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 15 de novembro de 2023, que não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos do artigo 11.º n.º1 alíneas a) e b) e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

O TAC encontra-se, desde 6 de dezembro de 2023, regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

Notificada para o efeito, a Requerida, apresentou a sua resposta a 23 de janeiro de 2024.

Por despacho de 1 de março de 2024, o TAC proferiu o seguinte despacho:

“1. Designa-se o dia 18 de março de 2024, pelas 10h00 horas, nas instalações do CAAD como nova data para realização da audiência para produção de prova testemunhal.

2. Notifiquem-se as partes do presente despacho.”

 

A audiência foi realizada e ambas as partes apresentaram alegações.

 

  1. DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS

II.1      Posição da Requerente

 

A Requerente fundamenta o seu pedido nos seguintes termos:

  1. As presentes liquidações foram feitas ao abrigo do procedimento inspetivo n.º OI2021... e incidiram sobre o ano de 2019, em sede de IVA e de IRC.
  2. Na sequência da tomada de conhecimento das liquidações de IVA e IRC, do ano de 2019, com os números:

Período

Liquidação

Data

Valor

Doc. cobrança

Valor

IVA 1903T

...

11.10.2022

€ 30241,39

2022...

€ 10485,67

JC1903T

...

11.10.2022

€ 1419,79

2022...

€ 1419,79

IVA 1906T

...

11.10.2022

€ 38091,13

2022...

€ 12006,00

JC1906T

...

11.10.2022

€ 1488,08

2022...

€ 1488,08

IVA 1909T

...

11.10.2022

€ 43589,41

2022...

€ 4002,00

JC 1909T

...

11.10.2022

€ 453,92

2022...

€ 453,92

 

 

Período

Liquidação

Data

Valor

Doc. cobrança

Valor

IRC 2019

2023...

17.02.2023

€ 72927,23

...

€ 27981,62

 

 

  1. As correções de IVA totalizam 111.921,93 euro, e geraram um valor de imposto a pagar total de 26 592,67 Euro; por sua vez, as correções à matéria coletável, em sede de IRC, geraram uma liquidação de 72.927,03, o que deu origem a um imposto a pagar de 27.981,62 euro. O valor total das liquidações é de 184.848,96, o que gerou um imposto total a pagar de 54.574,29.
  2. A requerente pretende a anulação das liquidações supra identificadas, bem como dos juros compensatórios aplicados, no montante total de 3361,79, o que faz nos termos e com os fundamentos seguidamente expostos:
  3. A Requerente é uma sociedade comercial por quotas, que se dedica à extração de inertes e outras atividades conexas.
  4. No exercício da sua atividade a Requerente adquire a terceiros areia e extrai do rio Tejo, através de meios mecânicos, areia e outros inertes, que vende aos seus clientes.
  5. O processo de armazenagem é feito, parcialmente, no estaleiro, saindo deste, depois de pesada em báscula, para um espaço cedido pela CP, à Requerente, sito na estação de ... .
  6. O transporte da areia do estaleiro para a armazenagem na Estação ... é feito por camiões pesados, que são contratados pela requerente a entidades terceiras, para a execução deste tipo de trabalhos.
  7. O percurso é de cerca de 1500 metros.
  8. A requerente não tem camiões próprios para executar estes trabalhos, recorrendo a entidades terceiras, sendo estas que dispõem dos meios/camiões para procederem à recolha e entrega, aos clientes da requerente, das areias e inertes.
  9. A Requerente tinha contratado, em 2019, com a empresa B... Unipessoal Lda., titular do NIPC ..., a execução deste tipo de trabalhos.
  10. B... executava o trabalho, que faturava mensalmente.
  11. A Requerente desconhecia e desconhece a matrícula dos camiões utilizados, se os mesmo eram de propriedade da B..., de empresas terceiras associadas, já que o que contratava era a prestação de um serviço, ou seja, transporte de areias e inertes.
  12. Perante mais do que uma situação de serviço defeituoso (e.g. atrasos, não comparência de camiões para a execução de trabalho contratado) a Requerente cessou o contrato com B... e passou a recorrer aos serviços de uma outra empresa do sector, para a execução do mesmo trabalho.
  13. A sociedade prestadora de serviços era uma sociedade unipessoal por quotas, estando a mesma totalmente associada ao seu único sócio, sr.ºC... .
  14. Em data que a requerente desconhece, o sr.º C..., com o nif ..., faleceu.
  15. O falecimento do titular da empresa que prestara serviços à requerente impediu e impede a Requerente de prestar quaisquer esclarecimentos adicionais, já que o falecido era o único interlocutor da requerente.
  16. Não existe qualquer relação societária especial, de domínio, participação ou outra, entre a Requerente e a B... LDA.
  17. A argumentação expendida no relatório de inspeção não tem base legal.
  18. As faturas emitidas pelo prestador do serviço à requerente identificam o serviço contratado e quem o contratou. Resulta, igualmente, das faturas que se tratava de um serviço feito em base mensal, ou seja, com regularidade e continuidade, e traduzido na no transporte de areia para os clientes da Requerente.
  19. Os serviços foram prestados e, por isso, pagos através de cheque, devidamente preenchido e com a clara identificação do seu destinatário.
  20. O pagamento de uma factura por meio de cheque é uma forma de pagamento legal e de acordo com o exigido por lei.
  21. A opção de levantamento do cheque, praticada pela empresa prestadora de serviços, é da inteira responsabilidade de B... e da sua gestão, a que a Requerente é alheia.
  22. Conforme reconhecido pelo relatório de inspeção tributária a Requerente sempre declarou atempadamente todas as faturas que pagou e cumpriu todos os seus deveres declarativos e de contabilização relativos a IRC e IVA, do ano de 2019.
  23. A AT, que teve registada no seu sistema, em sede de IVA, a empresa B..., vem agora alegar uma impossibilidade de cumprimento por esta das suas obrigações contributivas. Se assim é, porque é que a empresa B... não foi colocada sob suspeita e reserva no sistema IVA? Onde está o cumprimento do dever de cuidado da Requerida? Como pode ser a Requerida a vítima da ausência de informação por parte de B...?
  24. Com boa-fé a Requerente pagou todas faturas que lhe foram apresentadas pelos serviços prestados pela B..., LDA, por corresponderem a efectivos serviços que lhe estavam a ser prestados, nunca tendo qualquer razão para duvidar da sua honorabilidade, como fez sempre, até hoje, a todos os seus prestadores de serviços.
  25. A Requerente não pode ser “castigada” pela falta de dados por parte da Requerida.
  26. A requerente dá como reproduzidos todos os argumentos apresentados na Reclamação Graciosa e no seu exercício do contraditório. -Docs. 1 e 2

II.2. Posição da Requerida

 

Por seu turno, a Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:

  1. Atentas as situações detetadas e descritas no Capítulo II.4 – Diligências efetuadas e todo o Capítulo III – Descrição dos Factos e Fundamentos das Correções Meramente Aritméticas à Matéria Tributável, do Relatório de Inspeção Tributária (RIT) elaborado pelos SIT, efetuaram-se correções, ao IVA deduzido, indevidamente, em faturas de aquisição de serviços de transporte que deram origem às liquidações anteriormente identificadas e dedução indevida de gastos em sede IRC, no ano de 2019.
  2. Estas correções em sede de IVA, têm por fundamento a ausência de requisitos de ordem formal essenciais, das faturas de aquisição de serviços de transporte emitidas por B..., baseados nos seguintes factos: i) as descrições dos serviços de transporte de areia são vagas; ii) as faturas não identificam as datas e locais efetivos de carga e descarga - são indicados as sedes do fornecedor e da Requerente - desconformes com a realidade descrita pela Requerente em sede de reclamação graciosa ;iii) não identificam as viaturas transportadoras.
  3. E por incumprimento dos requisitos substanciais detetados por fiscalização cruzada, no âmbito da qual foram apurados pelos SIT factos indiciantes, sérios e credíveis, de que as faturas em causa não titulam operações reais e que o fornecedor “B...” não seja um real operador económico, como a seguir se sintetizam:

-          Trata-se de um não declarante em sede de IRC e IVA, relativamente ao exercício/ano de 2019 em análise. No que se refere ao e-fatura, não havia comunicado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) qualquer fatura emitida no ano de 2019;

-          Foi no decurso do presente procedimento inspetivo que efetuou a comunicação de faturas e procedeu à entrega das declarações periódicas de IVA e da declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC, relativas ao ano de 2019;

-          Nas declarações periódicas de IVA submetidas à AT, foi deduzido no campo 24, o montante de € 273.911,24, valor próximo do valor do IVA liquidado, apurando-se montantes reduzidos de imposto a entregar;

-          Verificou-se, no entanto, que do e-fatura não constam faturas comunicadas por terceiros em nome da “B...”, suscetíveis de suportar o IVA deduzido nas declarações periódicas de IVA (o IVA constante das faturas comunicadas em que esta entidade surge como adquirente, ascende a €7.111,65);

-          Os documentos comunicados no e-fatura em que a “B...” consta como destinatária, relativos ao ano de 2019, são 16 faturas e 3 notas de crédito, sendo que são emitidas por apenas duas entidades (Companhia de Seguros D..., SA e a E..., SA);

-          A B... não foi destinatária de qualquer fatura relacionada com aquisição de combustíveis, serviços de reparações, portagens, etc., imprescindíveis ao exercício da atividade de transporte de bens;

-          Não possui, nem nunca foi detentora de qualquer viatura, sendo que, também não foi comunicada qualquer fatura em seu nome que pudesse sustentar que detinha viaturas em leasing;

-          Solicitados, quer à Requerente, quer à B..., diversos elementos, nomeadamente, orçamentos e/ou contratos celebrados entre as partes, identificação das viaturas que efetuaram os transportes, bem como, cópias dos documentos de transporte, não foram tais elementos apresentados por nenhuma destas entidades;

-          No que se refere aos meios de pagamento utilizados, foram enviados pela A..., cópias dos cheques de pagamentos àquela entidade, os quais, não foram objeto de depósito bancário, tendo sido levantados ao balcão, com aposição da rubrica correspondente a C..., sócio-gerente de “B...”, no período compreendido entre 2017-09-28 e 2018-03-04.

  1. Em face do averiguado, entenderam os SIT, que o sujeito passivo “ B...”, não possuía estrutura empresarial adequada para a realização de serviços de transporte titulados pelas faturas em causa, existindo múltiplos indícios, robustos, objetivos e credíveis de que os serviços descritos não eram passiveis de terem sido prestados pelo seu emitente, configurando tratar-se de operações simuladas.
  2. Concluído os SIT que, para além das ditas faturas não cumprirem os requisitos formais, mas essenciais, elencados no n.º 5 do artigo 36.º do CIVA, não se encontrando, por isso, emitidas na forma legal, os factos recolhidos constituam indícios objetivos, seguros, consistentes sérios e credíveis, de que as operações económicas em causa não se realizaram da forma como se encontram tituladas nas faturas apresentadas e com fundamento nos n.ºs 2 e 3 do artigo 19.º do CIVA, foi desconsiderado o IVA deduzido nelas contido.
  3. No processo de Reclamação Graciosa n.º ...2023..., a A... suscitou a anulação das LA de IVA e IRC, centrando a linha argumentativa na contestação do RIT com os mesmos argumentos do presente pedido de pronúncia arbitral.
  4. Esta foi indeferida, com o fundamento de a ora Requerente não ter comprovado a veracidade dos serviços de transportes adquiridos, nos termos em que estão titulados, nem foram apresentados fundamentos que alterassem o entendimento vertido no RIT, como lhe competia à luz das regras de repartição do ónus da prova constante do n.º 1 do artigo 74.º e do n.º 2 do artigo 75.º ambos da LGT.
  5. Os factos são os constantes do PA, que se dão por integralmente reproduzidos, desde já se impugnando todos os factos alegados pela Requerente que se encontrem em contradição com aqueles ou que sejam omissos naqueles documentos.
  6. Assim, ao abrigo do princípio da economia processual e, tendo todos os factos constantes do PA sido dados como reproduzidos, escusamo-nos a repetir o ali constante.
  7. Destaca-se, de entre aqueles, que as liquidações reclamadas, de imposto e juros compensatórios, em sede de IVA, tinham data limite no documento de cobrança de 29-11-2022 e foram pagas a 27-11-2022 e, a liquidação reclamada, de imposto, juros de mora e juros compensatórios, em sede de IRC, tinha data limite de pagamento no documento de cobrança de 06-04-2023 e foi paga nessa data (06-04-2023).
  8. Bem assim, deve ser dado como provado que, no PPA apresentado pela Requerente, em parte alguma, peticiona a Requerente a anulação da Decisão de indeferimento expresso da Reclamação Graciosa que apresentara.

Por exceção - Da Caducidade do Direito de Ação

  1. Neste conspecto, cumpre salientar que o presente pedido de pronúncia arbitral, foi deduzido extemporaneamente.
  2. Como antedito, a Requerente opta por impugnar, no presente ppa, os acto de liquidação de IRC e IVA e correspondentes actos de liquidação de juros compensatórios, cujo o prazo de pagamento terminava 29-11-2022 (IVA) e a 06-04-2023(IRC).
  3. Sendo que, o pedido de pronúncia arbitral (PPA) veio a ser apresentado em 28-09-2023.
  4. Ora, o prazo para apresentação do pedido de constituição do tribunal é de 90 dias, contados a partir do termo do prazo para pagamento da prestação tributária, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime da Arbitragem Tributária, em conjugação com o artigo 102.º, n.º 1, alínea a), do CPPT, tendo terminado, relativamente ao IRC em 04-08-2023 e, relativamente ao IVA em 27/02/2023, o mesmo encontrava-se já esgotado em 28-09-2023, na data da interposição da presente ação arbitral. 
  5. Assim, tendo, no presente caso, o prazo de propositura da ação terminado relativamente ao IRC em 04-08-2023 e, relativamente ao IVA em 27/02/2023, e tendo o pedido de constituição de tribunal arbitral sido apresentado, por transmissão eletrónica de dados, em 28-09-2023, conclui-se que o mesmo é manifestamente extemporâneo, verificando-se, pois, a exceção de caducidade do direito de ação.

Por Impugnação

  1. Os fundamentos de direito das liquidações em apreço, são os constantes do PAT, que por se manterem actuais e, para não incorrer numa desnecessária repetição do ali feito constar, ao abrigo do princípio da economia processual, damos como integralmente reproduzidos na presente resposta, para todos os efeitos legais. Cabe no entanto realçar e referir, o seguinte,
  2. O que importa conhecer nos presentes autos, é a apreciação da legalidade das correções e consequentes atos tributários em sede de IVA, com fundamento em imposto indevidamente deduzido.
  3. A Requerente alega que a AT não fez prova de que as faturas em causa são falsas, não cumprindo com o ónus probatório que sobre si impendia, ficando a legitimidade das liquidações prejudicada.
  4. Todavia, nestes casos, a AT não precisa de demonstrar a falsidade das faturas, bastando-lhe evidenciar a consistência desse juízo, invocando factos que traduzem uma probabilidade elevada de as operações referidas nas faturas serem simuladas capaz de abalar a presunção legal incumbida ao contribuinte provar a realidade das mesmas [Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 2004/11/4, Processo n.º 810/04].
  5. Deste modo, a questão que se coloca é a de saber se os SIT recolheram indícios da falsidade das prestações de serviços de transporte tituladas pelas faturas emitidas por “B...”, de forma a justificar a desconsideração da dedução do IVA nelas mencionado e, em caso afirmativo, se a Requerente logrou demonstrar a sua veracidade, por aplicação das regras do ónus da prova do n.º 1 do artigo 74.º da LGT.
  6. O direito à dedução do imposto consubstancia uma das principais características do sistema do IVA.
  7. Contudo, para que seja possível o exercício desse direito, é necessário, em consonância com o que dispõe o artigo 20.º do CIVA, que o imposto a deduzir tenha incidido sobre bens e serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização de operações referidas no n.º 1 do mesmo preceito legal.
  8. Com a epígrafe “Direito à dedução”, o artigo 19.º do CIVA, na alínea a) do seu n.º 1, estabelece que, para apuramento do imposto devido, os sujeitos passivos deduzem, ao imposto incidente sobre as operações tributáveis que efetuaram, o imposto devido ou pago pela aquisição de bens ou serviços a outros sujeitos passivos.
  9. Por sua vez, o n.º 3 do mesmo artigo é perentório, quando determina que, “Não pode deduzir-se imposto que resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da fatura ou documento equivalente”.
  10. Como ressalta dos autos, a Requerente, foi sujeita a uma ação inspetiva no âmbito do IRC e IVA, incidente sobre o ano de 2019, da qual resultaram correções em sede destes impostos.
  11. No que respeita ao IVA, a AT não aceitou a dedução do imposto mencionado nas faturas de aquisição de prestação de serviços de transporte contabilizadas, quer por motivos de ordem formal, quer de ordem material.
  12. As faturas não cumprem o disposto no n.º 2 do artigo 19.º do CIVA, o que, conjugado com as averiguações levadas a cabo pelos SIT, permitiu concluir pela existência de fortes, sérios e fundados indícios, de que as operações nelas descritas não titulam operações reais, situação enquadrável no n.º 3 do mesmo artigo.
  13. Como tem sido realçado, reiterada e uniformemente pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, quando a AT desconsidera as faturas que reputa de falsas, aplicam-se as regras do ónus da prova do artigo 74.º da LGT, competindo à AT fazer prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua atuação, ou seja, de que existem indícios sólidos e inequívocos de que as operações constantes das faturas não correspondem à realidade. Feita esta prova, e só então, passa a recair sobre o sujeito passivo o ónus da prova da veracidade da transação.
  14. Assim sendo, importa analisar, se a AT, fez a prova, que lhe competia, da verificação de indícios que permitem concluir que às faturas contabilizadas pela Requerente não subjazem as operações que, alegadamente, teriam implicado a respetiva emissão.
  15. Não é imperioso que a AT efetue uma prova direta da simulação.
  16. Como em muitos outros casos, haverá que recorrer à prova indireta, a factos indiciantes, dos quais se procurará extrair, com o auxílio das regras de experiência comum, da ciência ou da técnica, uma ilação quanto aos factos indiciados.
  17. “A conclusão ou prova não se obtém diretamente, mas indiretamente, através de um juízo de relacionação normal entre o indício e o tema de prova” – cfr. Alberto Xavier, “Conceito e Natureza do Acto Tributário”, pág. 154; também neste sentido, entre outros, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), de 2012-04-26 (Processo n.º 00964/06.0 BEPRT).
  18. Ou seja, a AT, tem que demonstrar a falsidade das faturas, bastando-lhe evidenciar a consistência desse juízo (Acórdão do STA de 2004-10-27, Processo n.º 810/04), invocando factos que traduzem uma probabilidade elevada de as operações referidas nas faturas serem simuladas, capaz de abalar a presunção legal de veracidade das declarações dos contribuintes e dos dados constantes da sua contabilidade – artigo 78.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT) e artigo 75.º da LGT.
  19. Conforme referido no RIT, existem valores declarados pela B... ao nível de IVA deduzido de € 273.911,24, quando somente foi identificado que tenha sido adquirente de gastos e despesas referentes a seguros e comunicações nas operações, comunicadas no e-fatura, de € 7.111,65 de IVA.
  20. E por fim, o perfil não declarante desta entidade.
  21. Ou seja, rematando, a AT cumpriu os pressupostos legitimadores da sua atuação corretiva, traduzidos na recolha de factualidade que suporte um juízo de elevada probabilidade (que não de mera possibilidade) de que as faturas daquele emitente não refletem reais e efetivas operações económicas.
  22. Quanto à existência de relações especiais entre estas entidades, conforme alegado pela AT, diga-se que estas não podem ser refutadas e são evidentes, pois sendo o contabilista certificado comum, tal possibilitou o cumprimento das faltas declarativas em IVA no decurso do procedimento pela “B...”, apesar desta entidade não ter rececionado qualquer notificação efetuada pela AT.
  23. Por sua vez, a Requerente não desmonta os indícios recolhidos.
  24. Ademais, uma vez que não foi cumprido o ónus que impendia sobre a Requerente, de provar a efetividade das operações económicas, resulta a falta de legitimação ao direito à dedução do IVA.
  25. Com o presente pedido de pronúncia arbitral, a Requerente arrolou duas testemunhas.
  26. Ora, salvo melhor opinião, entende-se que no caso em escrutínio a audição de testemunhas é manifestamente impertinente ou desnecessária, porquanto o assunto aqui em discussão reporta-se a matéria documental, insuscetível de prova testemunhal.
  27. Deve, aliás, dizer-se, que só em circunstâncias excecionais o tribunal se poderá convencer da realidade de determinadas operações exclusivamente com base na prova testemunhal” (In Acórdão do TCAN, proferido no Processo n.º 02794/04, de 2010-03-11).

 

 

  1. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vide artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

O processo não enferma de nulidades.

  1. Fundamentação

IV.1.    Matéria de facto

 

Factos dados como provados

Considera-se como provada a seguinte matéria de facto:

  1. As presentes liquidações foram feitas ao abrigo do procedimento inspetivo n.º OI2021... e incidiram sobre o ano de 2019, em sede de IVA e de IRC.
  2. Na sequência da tomada de conhecimento das liquidações de IVA e IRC, do ano de 2019, com os números:

Período

Liquidação

Data

Valor

Doc. cobrança

Valor

IVA 1903T

...

11.10.2022

€ 30241,39

2022...

€ 10485,67

JC1903T

...

11.10.2022

€ 1419,79

2022...

€ 1419,79

IVA 1906T

...

11.10.2022

€ 38091,13

2022...

€ 12006,00

JC1906T

...

11.10.2022

€ 1488,08

2022...

€ 1488,08

IVA 1909T

...

11.10.2022

€ 43589,41

2022...

€ 4002,00

JC 1909T

...

11.10.2022

€ 453,92

2022...

€ 453,92

 

 

Período

Liquidação

Data

Valor

Doc. cobrança

Valor

IRC 2019

2023...

17.02.2023

€ 72927,23

...

€ 27981,62

 

 

  1. As correções de IVA totalizam 111.921,93 euro, e geraram um valor de imposto a pagar total de 26 592,67 Euro; por sua vez, as correções à matéria coletável, em sede de IRC, geraram uma liquidação de 72.927,03, o que deu origem a um imposto a pagar de 27.981,62 euro. O valor total das liquidações é de 184.848,96, o que gerou um imposto total a pagar de 54.574,29.

 

Factos dados como não provados

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição, no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária e na prova testemunhal produzida em audiência, e em factos não questionados pelas partes.

 

Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

A matéria de facto foi fixada por este TAC e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, cfr. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, cfr. n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo n.º 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

IV. 2. Matéria de Direito

 

IV.2.A. Quanto à exceção de caducidade

Invoca a Requerida na sua Resposta a exceção da caducidade do direito de ação, para tanto sustentando que, à data da apresentação do pedido de pronúncia arbitral, o prazo previsto para impugnação de atos tributários de liquidação estava já esgotado, pelo que o mesmo é manifestamente extemporâneo.

 

Neste âmbito, tendo em consideração que a exceção da caducidade do direito de ação pode determinar, a proceder, a intempestividade do pedido de pronúncia arbitral (exceção perentória), torna-se necessário analisar esta exceção porquanto a procedência da mesma terá consequências no conhecimento do mérito daquele pedido.

Com efeito, de acordo com o disposto no artigo 576º, n.º 3 do Código de Processo Civil (aplicável subsidiariamente pelo artigo 29º do RJAT), “as exceções perentórias importam a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor”.

Cumpre decidir.

Resulta dos factos dados como provados o seguinte:

  1. A Requerente impugna, no presente ppa, os acto de liquidação de IRC e IVA e correspondentes actos de liquidação de juros compensatórios, cujo o prazo de pagamento terminava 29-11-2022 (IVA) e a 06-04-2023(IRC).
  2. Sendo que, o pedido de pronúncia arbitral (PPA) veio a ser apresentado em 28-09-2023.

Entende a Requerida que o prazo para apresentação do pedido de constituição do tribunal é de 90 dias, contados a partir do termo do prazo para pagamento da prestação tributária, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime da Arbitragem Tributária, em conjugação com o artigo 102.º, n.º 1, alínea a), do CPPT, tendo terminado, relativamente ao IRC em 04-08-2023 e, relativamente ao IVA em 27/02/2023, o mesmo encontrava-se já esgotado em 28-09-2023, na data da interposição da presente ação arbitral. E que, “assim, tendo, no presente caso, o prazo de propositura da ação terminado  relativamente ao IRC em 04-08-2023 e, relativamente ao IVA em 27/02/2023, e tendo o pedido de constituição de tribunal arbitral sido apresentado, por transmissão eletrónica de dados, em 28-09-2023, conclui-se que o mesmo é manifestamente extemporâneo, verificando-se, pois, a exceção de caducidade do direito de ação.”

Entendemos que não assiste razão alguma à Requerida, sendo até de censurar as suas alegações, uma vez que omite que a Requerente apresentou Reclamação graciosa dentro do prazo estabelecido pelo n.º 1 do artigo 70.º do CPPT.

Ora, como a própria Requerida reconhece:

  • No processo de Reclamação Graciosa n.º ...2023..., a A... suscitou a anulação das LA de IVA e IRC, centrando a linha argumentativa na contestação do RIT com os mesmos argumentos do presente pedido de pronúncia arbitral.
  • Esta foi indeferida, com o fundamento de a ora Requerente não ter comprovado a veracidade dos serviços de transportes adquiridos, nos termos em que estão titulados, nem foram apresentados fundamentos que alterassem o entendimento vertido no RIT, como lhe competia à luz das regras de repartição do ónus da prova constante do n.º 1 do artigo 74.º e do n.º 2 do artigo 75.º ambos da LGT.

 Nos termos do disposto no artigo 10º nº 1 alínea a) do RJAT, o pedido de constituição de tribunal arbitral é apresentado no prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos números 1 e 2 (entretanto revogado) do artigo 102º do CPPT, quanto aos atos suscetíveis de impugnação autónoma e, bem assim, da notificação da decisão ou do termo do prazo legal de decisão do recurso hierárquico. 

Como antedito, a Requerente:

  • opta por impugnar no presente ppa, os acto de liquidação de IRC e IVA e correspondentes actos de liquidação de juros compensatórios, cujo o prazo de pagamento terminava 29-11-2022 (IVA) e a 06-04-2023(IRC);
  • tendo por base o indeferimento de uma reclamação graciosa apresentada em 14-02-2023, isto é perfeitamente dentro do prazo de 120 dias estabelecido pelo artigo 70.º, n.º 1 do CPPT.

Em consequência, este Tribunal Arbitral declara totalmente improcedente a exceção invocada.

 

 

IV.2.B. Quanto ao thema decidendum

Atenta a posição das partes, assente nos argumentos apresentados, a questão central que importa analisar, no ano de 2019:

  • o IVA deduzido, indevidamente, em faturas de aquisição de serviços de transporte que deram origem às liquidações anteriormente identificadas;
  • a dedução indevida de gastos em sede IRC.

 

 

  1. Do IVA deduzido em faturas de aquisição de serviços de transporte e as operações simuladas

O thema decidendum é o de se determinar se a exclusão do direito à dedução do IVA operada pela AT e suportado pela Requerente nas faturas em apreço nos autos, com fundamento no art. 19.º, n.º 3 do Código do IVA por operações simuladas, está ou não conforme a lei.

A este respeito importará analisar a questão da dedutibilidade do IVA, tendo em conta a interpretação do disposto nos artigos 168.º da Diretiva IVA (DIVA) e os artigos 19.º n.º 3 do CIVA. 

Quanto a esta análise, recorremos à decisão arbitral do CAAD no processo n.º 767/2016-T, do qual se extrai que “[s]endo o IVA um imposto de matriz comunitária, impõe-se tecer algumas considerações prévias relativamente à natureza e amplitude do direito à dedução, considerando nesta análise as regras que regem este imposto de acordo com o Direito da União Europeia, com a respetiva transposição a nível interno e com a interpretação administrativa e judicial que sobre as mesmas tem vindo a ser levada a cabo, especialmente pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). A este respeito importará analisar a questão da dedutibilidade do IVA, tendo em conta a interpretação do disposto nos artigos 168.º da Diretiva IVA (DIVA) e os artigos 19.º n.º 3 do Código do IVA.”

Neste âmbito o “[…] direito à dedução faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado, exercendo-se imediatamente em relação à totalidade do IVA que incidiu sobre as operações a montante.

Nesta aceção do princípio da neutralidade, o regime instituído pela DIVA permite aos sujeitos passivos deduzir o IVA que tenha onerado as aquisições de bens e serviços destinados à atividade tributada. Note-se, que o TJUE refere-se ao princípio da neutralidade do IVA ainda numa outra aceção, de acordo com a qual o sistema do IVA não deve interferir com as decisões económicas nem com a formação dos preços ao longo do circuito económico.

Por conseguinte, o mecanismo do direito à dedução permite ao sujeito passivo expurgar do seu encargo o IVA suportado a montante retirando o efeito cumulativo e a tributação em cascata que caracterizavam sistemas anteriores de tributação do consumo. Assim, o direito à dedução assenta no designado método da dedução do imposto, método do crédito de imposto, método subtrativo indireto ou ainda método das faturas.

De acordo com este método, e em conformidade com o disposto no artigo 19.º do Código do IVA, através de uma operação aritmética de subtração, ao imposto apurado nas vendas e prestações de serviços (outputs) e identificável nas respetivas faturas, deduz-se o imposto suportado nas compras e outros gastos (inputs). Como determina o 2.º parágrafo, do n.º 2 do artigo 1.º da DIVA “Em cada operação, o IVA, calculado sobre o preço do bem ou serviço à taxa aplicável ao referido bem ou serviço, é exigível, com prévia dedução do montante do imposto que tenha incidido diretamente sobre o custo dos diversos elementos constitutivos do preço”.

Tal como previsto na DIVA, o Código do IVA determina, como regra geral, a dedutibilidade do imposto devido ou pago pelo sujeito passivo nas aquisições de bens e serviços feitas a outros sujeitos passivos.

As situações expressas de exclusão do direito à dedução são excecionais e reportam-se a casos específicos enunciados pelo legislador nacional em termos taxativos, de acordo com o estatuído na DIVA, em função do tipo de despesas em causa.

As regras do exercício do direito à dedução do imposto contemplam requisitos objetivos, mais ligados ao tipo de despesas, subjetivos, relativos ao sujeito passivo, e temporais, atinentes ao período em que é possível exercer o direito à dedução do IVA, os quais se devem verificar em simultâneo para se exercer o direito à dedução.

Como requisitos objetivos do exercício do direito à dedução do IVA temos, nomeadamente, o facto de o imposto suportado dever constar de fatura passada na forma legal (ou seja, deverá obedecer, nos seus requisitos, aos termos gerais previstos no atual artigo 36.º, n.º 5, e artigo 40.º do Código do IVA), de se tratar de IVA português, e de a despesa, por si, conferir o direito à dedução do imposto (isto é, não se deve tratar de uma despesa excluída do direito à dedução, nos termos do disposto no artigo 21.º do Código do IVA).

  Como requisitos subjetivos do exercício do direito à dedução do imposto determina-se, nomeadamente, que os bens e serviços deverão estar diretamente relacionados com o desenvolvimento de uma atividade económica. Com efeito, de acordo com a DIVA, no artigo 168.º (transposto, em parte, pelo artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do Código do IVA), o sujeito passivo pode deduzir o IVA suportado no Estado membro em que se encontra estabelecido, nas transmissões de bens e prestações de serviços, assim como operações assimiladas nas aquisições intracomunitárias de bens e nas importações ali localizadas, desde que “os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas (…)”.

Note-se que o TJUE admite a possibilidade de dedução do IVA mesmo que não se assista à efetiva realização de operações tributáveis, no caso dessas operações, por factos que ultrapassem a vontade da entidade, não se venham efetivamente a concretizar, ocorrendo a liquidação da sociedade. Acresce que este normativo, em conformidade com as regras do Direito da União Europeia, vem exigir que exista um nexo de causalidade entre o bem ou serviço adquirido (input) e o output tributado, para que o IVA seja susceptível de ser dedutível. Isto é, o IVA suportado a montante numa determinada operação só é dedutível na medida em que possa estar relacionada a jusante com uma operação efetivamente tributada, devendo a relação ser aferida em função do reporte e inclusão do custo suportado, no preço da operação tributada.

No que diz respeito aos regimes de dedução de IVA, o TJUE tem vindo a considerar que o direito à dedução faz parte integrante do mecanismo do próprio imposto, que não pode em princípio ser limitado, e que se exerce em relação à totalidade dos impostos que incidiram sobre as operações efetuadas a montante, sublinhando ainda que “toda e qualquer limitação do direito à dedução tem incidência ao nível da carga fiscal e deve aplicar-se de modo semelhante em todos os Estados-Membros. Em consequência, só são permitidas derrogações nos casos expressamente previstos pela Diretiva”.

Acresce referir que qualquer limitação do direito à dedução deve observar os princípios da proporcionalidade e da igualdade o que pressupõe uma ponderação equilibrada dos benefícios derivados da medida e do sacrifício que esta implica”. 

Na senda da decisão arbitral 201/2018-T e conforme suscitado pelo STA, no seu Acórdão proferido no processo n.º 01455/12, de 07/10/2015 “[…]o princípio da dedução do IVA, enquanto meio de concretizar a neutralidade do imposto, impõe que todas as restrições ao direito de dedução sejam interpretadas de forma restritiva e reduzidas ao mínimo”.

 Resulta da aludida decisão do STA que:

       “[D]a aplicação conjugada de todas as normas invocadas, resulta demonstrado que o direito à dedução do IVA incorrido não está dependente de tal imposto ter sido devidamente liquidado pelo sujeito passivo, contrariamente ao que refere a Requerida. Vem sendo jurisprudência unânime dos tribunais superiores que o IVA indevidamente liquidado em factura ou documento equivalente é, não obstante, devido ao Estado, competindo à entidade emitente do documento em causa a sua entrega ao Estado. Só desta forma é que se pode assegurar o princípio da neutralidade do imposto, quer para os intervenientes, quer para o próprio Estado. A título de exemplo, veja-se o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 04-06-2015, proferido no proc. n.º 07111/13 (disponível em www. dgsi.pt) em que se conclui que “(...) cada factura com menção de imposto, constitui um verdadeiro "cheque sobre o tesouro", pois atribui ao destinatário que seja sujeito passivo o direito de deduzir o I.V.A. nela contido. Por isso, a simples menção do I.V.A. em factura (mesmo que porventura descabida, por não haver lugar a imposto naquele caso, por qualquer razão) origine sempre a obrigação de pagar, independentemente da qualidade do emissor, isto é, seja ele ou não um sujeito passivo. Tornar-se-á, pelo simples facto da menção, um "devedor de imposto". Só assim se consegue que ao direito à dedução, que a factura atribui ao destinatário sujeito passivo, corresponda sempre uma obrigação de pagar e se assegure o funcionamento regular do sistema de pagamentos fraccionados em sede de I.V.A. (cfr.ac.S.T.A.-2a.Secção, 24/4/2002, rec.26636; ac.S.T.A.-2a.Secção, 26/9/2012, rec. 555/12; ac.T.C.A.Sul2a.Secção, 17/1/2012, proc.4711/11; José Guilherme Xavier de Basto, A tributação do consumo e a sua coordenação internacional, Lições sobre harmonização fiscal na Comunidade Económica Europeia, C.T.F. 362, Abr./Jun. 1991, pág.42 e seg.; F. Pinto Fernandes e N. Pinto Fernandes, Código do I.V.A. Anotado e Comentado, Editora Rei dos Livros, 4a. edição, Janeiro de 1997, pág.51; Clotilde Celorico Palma e Outros, Código do IVA e RITI, Notas e Comentários, Almedina, 2014, pág.47). (...) A razão de ser desta obrigação decorre do facto dessas mesmas facturas conterem I.V.A. dedutível por parte da entidade a favor da qual foram emitidas e, nessa medida, ser necessário assegurar que o imposto delas constante tenha dado entrada nos cofres do Estado.” (sublinhado nosso). Este entendimento do Tribunal Central Administrativo Sul vem sustentado no aí mencionado acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 26-09-2012, proc. n.o 555/12 (também disponível em www.dgsi.p), em que se concluiu que “(...) a simples menção do IVA em tais documentos, mesmo que porventura descabida, por não haver lugar ao mesmo, origina obrigação de imposto. Como ficou consignado no Acórdão deste Supremo Tribunal de 24/4/2002, proc no 26636, este resultado deriva tanto do carácter rígido e formalista do IVA como do facto de o sujeito passivo destinatário da factura ter o direito de dedução respectivo. Nas palavras de XAVIER DE BASTO ( Cfr. “A harmonização Fiscal na CEE”, Ciência e Técnica Fiscal, no 362, p. 44. ), cada factura com menção de imposto, constitui “um cheque sobre o tesouro, pois atribui ao destinatário que seja sujeito passivo o direito de deduzir o IVA nela contido. Por isso, (...) a simples menção do IVA em factura (mesmo que porventura descabida, por não haver lugar a imposto naquele caso, por qualquer razão) origine obrigação de pagar, independentemente da qualidade do emissor, isto é, seja ele ou não um sujeito passivo. Tornar-se-á, pelo simples facto da menção, um “devedor de imposto”. Só assim se consegue que ao direito à dedução, que a factura atribui ao destinatário sujeito passivo, corresponda sempre uma obrigação de pagar. Assim se assegura o funcionamento regular do sistema de pagamentos fraccionados”. Aplicando o exposto ao caso em apreço, verifica-se que o recorrente não era sujeito passivo de IVA e não estava obrigado a passar a factura, cuja cópia consta do ponto c) do probatório. No entanto, ao fazê-lo, a menção na mesma do imposto atribuiu ao destinatário (no caso dos autos, à B..., SA.), o direito de deduzir com base nela o IVA. Daí que o legislador comine que a simples menção do IVA no documento em causa origine obrigação de pagar, independentemente da qualidade do emissor, que se torna “devedor do imposto”, pois só assim se consegue, como refere XAVIER DE BASTO, “que ao direito à dedução, que a factura atribui ao destinatário sujeito passivo, corresponda uma obrigação de pagar”, com vista a assegurar “o funcionamento regular do sistema de pagamentos fraccionados.

       Decorre do supra exposto, tal como se conclui na decisão arbitral citada, que o direito à dedução do IVA é essencial ao funcionamento do mecanismo deste imposto só podendo ser limitado em situações excecionais.

Assim sendo, e tendo em conta o supra exposto, a negação do direito à dedução do IVA em negócio simulado, mantendo a adoção da posição que resulta da decisão arbitral 201/2018-T, “resulta da jurisprudência do TJUE não ser compatível com o regime do direito à dedução a recusa desse direito a um sujeito passivo que não sabia nem podia saber que a operação em causa fazia parte de uma fraude cometida pelo fornecedor ou que outra operação incluída na cadeia de fornecimento, anterior ou posterior à realizada pelo referido sujeito passivo, estava viciada por fraude ao IVA As disposições previstas no artigo 19.º n.ºs 3 e 4, do Código do IVA visam precisamente consagrar o impedimento do direito à dedução que resulte de operações fraudulentas. Desde logo, tendo presente que só confere direito à dedução o IVA que tenha onerado aquisições de bens e serviços destinados ao exercício da actividade tributada realizada pelo sujeito passivo, pelo que o n.º 3 do artigo 19.º do Código do IVA explicita que “não poderá deduzir-se imposto que resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da factura ou documento equivalente”. Este preceito legal, em face da sua formulação aplica-se quer em situações de simulação absoluta, de que constituem paradigma no âmbito do IVA as designadas “facturas falsas”, quer em situações de simulação relativa, de que uma das variantes poderá constituir a simulação do valor da operação.

            No caso concreto entende a AT que as faturas são falsas porquanto não correspondem a operações efetivas, mas sim a negócios simulados, recorrendo ao mecanismo previsto no n.º 3 do artigo 19.º do CIVA.

            Neste âmbito, por exemplo, a decisão proferida no processo 00030/05.6BEPNF, da 2.ª Secção do Contencioso Tributário, pelo TCA-Norte, também citada na decisão arbitral, esclarece que, “ […] quando a administração tributária desconsidera as facturas que reputa de falsas, aplicam-se as regras do ónus da prova do artigo 74.º da Lei Geral Tributária, competindo à administração tributária fazer prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua actuação, ou seja, de que existem indícios sérios de que a operação constante da factura não corresponde à realidade.

Feita esta prova, passa a recair sobre o sujeito passivo o ónus da prova da veracidade da transacção - cfr. entre outros, Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte de 24-01-2008, processo n.º 01834/04 Viseu, de 24-01-2008, processo n.º 2887/04 Viseu, de 27-01-2011, processo n.º 455/05.7BEPNF e de 18-03-2011, processo n.º 456/05BEPNF.

De notar que a administração tributária não precisa de demonstrar a falsidade das faturas, bastando-lhe evidenciar a consistência daquele juízo (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27-10-2004, processo n.º 810/04), invocando factos que traduzem uma probabilidade elevada de as operações referidas nas faturas serem simuladas, probabilidade elevada capaz de abalar a presunção legal de veracidade das declarações dos contribuintes e dos dados constantes da sua contabilidade - artigo 75.º da Lei Geral Tributária.

Neste domínio, em princípio, se os indícios denunciam que com forte probabilidade os emitentes das faturas não tinham capacidade empresarial para vender a mercadoria mencionada nas faturas, tanto bastaria para se criar um juízo sério de que aquelas transações não existiram, ou seja, que aqueles emitentes não venderam à recorrente aqueles materiais, logo, a recorrente não os comprou, traduzindo assim a fatura uma simulação de transação entre o emitente e o utilizador da fatura.

E assim dir-se-ia que bastaria à administração tributária, para cumprir o seu ónus, carrear factos relativos aos emitentes das faturas indiciadores da sua incapacidade para transacionarem as mercadorias. E ficaria desonerada de averiguar qualquer facto na esfera do utilizador das faturas indiciador da sua participação ou conhecimento ou dever de conhecer da falsificação. Poderia limitar-se, como aconteceu no caso dos autos, a constatar na contabilidade do sujeito passivo a existência de faturas daqueles emitentes para, sem mais, considerar indevidamente deduzido o IVA, passando a competir ao sujeito passivo o ónus de demonstrar a veracidade das transações.

Em suma, a ser assim entendido, a administração tributária, conhecedora que determinado sujeito passivo se dedicava à emissão de faturas falsas, poderia sem mais, desconsiderar os custos de qualquer outro sujeito passivo inspecionado que tivesse contabilizado faturas daquele emitente.

Assim sendo, os indicadores de facto de que o emitente da fatura não tem capacidade para prestar o serviço não bastam, por si só, para obstar à dedutibilidade do imposto mencionado nessa fatura, se não houver razões para pôr em causa a realização desse serviço por terceiro.

Pode, à partida, parecer estranho que o legislador se tenha abstraído da relação subjacente titulada na fatura que, para ser subjetivamente verdadeira, teria que existir entre aqueles dois sujeitos (o emitente da fatura e o utilizador da fatura). Mas há uma razão para tal: é que o legislador também abstrai da relação subjacente para exigir o imposto do emitente.

Com efeito, e nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea c), do mesmo código, o imposto também pode ser exigido ao emitente da fatura que ali o mencione indevidamente. Cada fatura onde seja mencionando imposto constitui um «cheque sobre o Tesouro» (cit. José Guilherme Xavier de Basto, in «A Tributação do Consumo e a sua Coordenação Internacional», Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, 164, Centro de Estudos Fiscais 1991, pág. 140). E isto acontece precisamente porque o destinatário da fatura também não deixa, por esse facto, de ter o direito a utilizá-la, no exercício do seu direito à dedução.

Assim, não sendo a existência da relação subjacente entre aqueles dois sujeitos um requisito de dedutibilidade do imposto, esta só pode ser afastada por uma norma de exclusão.

O Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado contém várias normas que excluem especialmente o direito à dedução, mas só nos interessa analisar aqui uma delas: o n.º 3 do seu artigo 19.º. Porque foi com base nessa norma que a administração tributária procedeu às correções impugnadas.

E segundo esta norma, não pode deduzir-se imposto que resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da fatura ou documento equivalente.

No entanto, o Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado também não nos diz o que se deve entender por operação simulada para os efeitos desse Código, pelo que terá que ser interpretada com o sentido que o termo tem no direito civil - artigo 11.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária.

Ora a simulação é a divergência entre a vontade real e a vontade declarada dos sujeitos do negócio jurídico, por acordo entre o declarante e o declaratário e com o intuito de enganar terceiros – artigo 240.º do Código Civil. Pode ser absoluta (quando não existe vontade de realizar negócio nenhum) ou relativa (quando existe a vontade de dissimular um outro negócio). E, neste último caso, pode ser subjetiva (quando o negócio dissimulado é realizado com outro sujeito) ou objetiva (quando o negócio dissimulado tem natureza ou conteúdo diverso, como sucede com a simulação de valor).

Analisemos mais detalhadamente a simulação subjetiva (que é a que para o caso releva). Para que haja simulação é necessário que exista um acordo entre os sujeitos os sujeitos reais da operação e o interposto (interposição fictícia). Se o acordo existe apenas entre o interposto e um dos sujeitos reais da operação, atuando aquele em nome próprio, mas no interesse e por conta desse sujeito (interposição real), não se nos apresenta uma simulação, mas antes um mandato sem representação (cfr. artigos 1180.º e seguintes do Código Civil – neste sentido, Carlos Alberto da Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição atualizada, pág. 476).

A comissão mercantil, regulada nos artigos 266.º e seguintes do Código Comercial, é uma modalidade de mandato sem representação, com a particularidade de ter por objeto, não a prática de atos jurídicos, mas a prática de atos do comércio. Também neste caso existe uma interposição real e lícita de sujeitos (e que se contrapõe, por isso, a interposição fictícia ou simulada - Pires de Lima e Antunes Varela, in «Código Civil Anotado», volume II, pág. 747). Ou seja, o negócio é realmente celebrado entre o mandatário ou comissário e o destinatário dos serviços. Mas aquele fica com a obrigação de transferir para o mandante a titularidade dos direitos que tenha adquirido em execução do mandato.

Assinale-se que o Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado acolheu expressamente a figura jurídica da comissão mercantil, como decorre dos seus artigos 3.º, n.º 3, alínea c) (no caso de interposição na transferência de bens) e 4.º, n.º 4 (no caso da prestação de serviços). O que significa que, também para os efeitos deste imposto, a prestação de serviços por conta de outrem não é uma interposição fictícia ou simulada.

Assim sendo, a interposição de um sujeito entre o emitente da fatura e o seu utilizador só será uma operação simulada para efeitos do disposto no artigo 19.º, n.º 3, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado e, por conseguinte, só excluirá o direito à dedução se existir acordo entre eles com o intuito de enganar terceiros, nomeadamente o fisco.

Pelo que a existência de acordo entre o verdadeiro prestador do serviço e o seu utilizador, no sentido de simular a celebração do negócio entre um deles apenas e terceiro com o intuito de enganar terceiros (e o fisco em particular) é elemento essencial da simulação subjetiva.

Passemos a outra questão, que é a de saber se compete à administração tributária provar o acordo simulatório. É o problema da repartição do ónus probatório entre a administração tributária e o sujeito passivo na aferição da legalidade do exercício à dedução.

Sobre esta matéria, dispõe com interesse o artigo 74.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária que o ónus de prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque. Assim, e tomando como modelo o procedimento de liquidação da iniciativa da administração tributária, esta terá o ónus de demonstrar a ocorrência dos factos de que deriva o direito à liquidação (os factos-pressupostos da existência, qualificação e quantificação do facto tributário). E o sujeito passivo terá o ónus de demonstrar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito.

Todavia, o acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 2003-05-07 (Processo n.º 01026/02, disponível a redação integral in www.dgsi.pt, seguindo o entendimento do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 2002-04-17, processo n.º 026635, também ali disponível), firmou jurisprudência no sentido de que recai sobre o contribuinte a prova da existência dos factos tributários que alegou como pressuposto do direito à dedução do imposto sobre o valor acrescentado.

A razão de ser deste entendimento é a seguinte: ao contrário do que sucede em regra, em que a administração tributária afirma a ocorrência do facto de que deriva o direito à tributação, neste caso é o sujeito passivo que afirma o facto tributário de que deriva o direito à dedução e a administração tributária que põe em causa a sua ocorrência.

Deve salientar-se, porém, que esta regra do ónus probatório só opera verdadeiramente depois de a administração tributária ter reunido e invocado indícios fundados de que o facto tributário não ocorreu (no caso, que não ocorreu entre os sujeitos mencionados na fatura. Ou seja (para utilizar as palavras do mesmo aresto), depois da administração tributária ter emitido «um juízo administrativo de adequação entre os factos e as valorações em que a administração diz, formalmente, suportar a sua decisão e o resultado desse juízo no sentido de se lhe afigurar ter sido declarado uma dedução superior à devida e com a prova perante o tribunal da pertinência desse juízo ou seja, com a prova, perante o tribunal, da existência dos elementos que tornam possível ter como adequada a consideração por si feita de que o contribuinte declarou uma dedução superior à permitida pela lei».

O que, de resto, resultava já do artigo 82.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (na redação então em vigor) segundo o qual a ratificação das declarações do sujeito passivo ocorreria quando a administração tributária fundadamente considerasse que nelas figurara um imposto superior ou uma dedução superior aos devidos.

E que nem poderia ser de outra forma, porque o exercício do direito à dedução tem por base a declaração a que então aludia o artigo 28.º, n.º 1, alínea c), do mesmo Código. Declaração essa que, nos termos do artigo 75.º da Lei Geral Tributária, se presume verdadeira quando seja apresentada nos termos previstos na lei e os dados dela constantes se encontram inscritos na sua contabilidade ou escrita, por sua vez organizadas de acordo com a legislação comercial ou fiscal. E quando alguém tem a seu favor uma presunção legal não tem que provar o facto a que ela conduz – artigo n.º 350.º, n.º 1, do Código Civil.

Pelo que, quando o direito à dedução tenha por base declaração do sujeito passivo apresentada nos termos da lei, a administração tributária que pretenda infirmar a ocorrência do facto em que se suporta essa dedução invocando a simulação de sujeitos, não tem que demonstrar que o acordo simulatório existiu (o que seria muito difícil demonstrar, na generalidade dos casos), mas tem que reunir indicadores objetivos de que tal acordo deveria ter existido. …”.

A partir daqui, e considerando a situação particular em apreciação nos autos, tem de entender-se que para haver simulação seria necessário que a administração fiscal tivesse reunido elementos que relacionassem a utilizadora das faturas com o esquema de fraude, ou seja, que tivesse reunido indícios de que a utilizadora das faturas participou ou que sabia ou devia saber que a emitente das faturas não era o verdadeiro fornecedor da mercadoria em apreço, na medida em que pode acontecer que a utilizadora de faturas falsas não saiba nem tenha possibilidades de saber da falsidade.

Com efeito, basta que um operador, obtendo as necessárias quantidades de mercadorias, munindo-se de um livro de faturas e abrindo uma conta bancária em nome do titular da fatura, se desloque às instalações de um outro revendedor, ofereça as mercadorias, acorde um preço e desconte o cheque usado como meio de pagamento.

A aceitar-se que o ónus da Fazenda Pública se basta com a recolha de indícios de falsidade relativamente aos emitentes das faturas levaria a que os utilizadores das faturas falsas, que não sabem que são falsas, não pudessem deduzir custos que efetivamente suportaram, sem que tivessem participado em qualquer esquema fraudulento.

Dir-se-á que, sempre tais utilizadores inocentes poderiam fazer prova da veracidade das transações - na aplicação do quadro probatório acima fixado: à administração tributária cabe o ónus de demonstrar indícios da falsidade; cumprido tal ónus passa a caber ao contribuinte o ónus da prova da veracidade das transações.

Mas facilmente se percebe que tal prova, nestas circunstâncias, de fraude a montante, que desconhece, será impossível para o utilizador das faturas provar o que quer que seja para além do que resulta da sua contabilidade, e que, não se deve esquecer, goza de presunção de veracidade. Se houve fraude e o utilizador das faturas desconhece não pode provar que as mercadorias foram adquiridos aos emitentes das faturas, porque não foram; nem pode provar que os adquiriu a outrem, porque para este utilizador de faturas a mercadoria foi comprada ao emitente, desconhecendo o real vendedor.

O que pode fazer o utilizador das faturas nestas circunstâncias é tão-só esclarecer como é que as negociações se desenvolveram e com quem se desenvolveram.

 (…)

 Deste modo, havendo indícios de que a emitente das faturas não forneceu o serviço mencionado nas faturas, impunha-se que a administração fiscal indagasse da participação da ora Recorrida no esquema simulatório.

Ora, a administração tributária não diz que a recorrente sabia ou devia saber que estava a comprar a pessoa diferente da que figura na fatura e o utilizador da fatura não está obrigado a saber a situação empresarial ou fiscal do emitente da fatura que lhe presta o serviço.

Aceitar-se que um utilizador de faturas veja os custos desconsiderados sem que de alguma forma a administração tributária o ligue ao esquema fraudulento, seria violador do princípio da justiça. E poria em causa a confiança nas relações comerciais.

Este entendimento vai de encontro ao do Tribunal de Justiça que no Acórdão de 31 de Janeiro de 2013, processo C-642/11 - que tratava de uma questão de dedutibilidade de IVA, reportando-se aos casos em que as irregularidades se verificam na esfera dos emitentes, pronunciou-se assim:

«47 Assim, cabe às autoridades e aos tribunais nacionais recusar o direito a dedução, se se demonstrar, face a elementos objetivos, que esse direito é invocado fraudulenta ou abusivamente (v., neste sentido, acórdão de 6 de Julho de 2006, Kittel e Recolta Recycling, C-439/04 e C-440/04, Colet., p.I-6161; e acórdãos, já referidos, Mahagében e David, n.º 42, e Bonik, n.º 37).

48 Contudo, também segundo jurisprudência bem assente, não é compatível com o regime do direito a dedução prevista pela Diretiva 2006/112 sancionar, com a recusa desse direito, um sujeito passivo que não sabia nem podia saber que a operação em causa fazia parte de uma fraude cometida pelo fornecedor ou que outra operação incluída na cadeia de fornecimento, anterior ou posterior à realizada pelo referido sujeito passivo, estava viciada por fraude ao IVA (v., especialmente, acórdão de 12 de Janeiro de 2006, Optigen e o., C-354/03, C-355/03 e C-484/03, Colet., p. I-483, n.ºs 52 e 55; e acórdãos, já referidos, Kittel e Recolta Recycling, n.ºs 45, 46, e 60, Mahagében e Dávid, n.º 47, e Bonik, n.º 41).

49 Além disso, o Tribunal de Justiça declarou, nos n.ºs 61 a 65 do acórdão Mahagében e David, já referido, que a Administração Fiscal não pode exigir de maneira geral que o sujeito passivo que pretenda exercer o direito a dedução do IVA, por um lado, verifique que o emitente da fatura referente aos bens e aos serviços em função dos quais o exercício deste direito é pedido dispõe da qualidade de sujeito passivo, possui os bens em causa e está em condições de os entregar e cumpre as suas obrigações de declaração e de pagamento do IVA, a fim de se certificar de que não há irregularidades ou fraude ao nível dos operadores a montante, ou, por outro, possua documentos a este respeito.

50 Daqui decorre que o tribunal nacional que deva decidir se, num determinado caso, existe operação tributável, tendo a Administração Fiscal alegado no processo que a existência de irregularidades cometidas pelo emitente da fatura ou por um dos seus fornecedores, como omissões contabilísticas, deve zelar por a apreciação da prova não conduza a esvaziar de sentido a jurisprudência recordada no n.º 48 do presente acórdão, obrigando de forma indireta o destinatário da fatura a proceder a verificações junto do seu contratante que, em principio, não lhe incumbem.»

E a final declarou:

«(…)

2- Os princípios da neutralidade fiscal, da proporcionalidade e da confiança legitima devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a que seja o direito a dedução do imposto sobre o valor acrescentado pago a montante seja recusado ao destinatário de uma factura, por inexistência de uma operação tributável efectiva, quando, no aviso retificativo de tributação enviado ao emitente da fatura, o imposto sobre o valor acrescentado declarado pelo emitente não tiver sido corrigido. Contudo, se, por causa de fraudes ou irregularidades cometidas pelo emitente ou a montante da operação invocada como base do direito a dedução, se considerar que essa operação não foi efectivamente realizada, deve provar-se, perante elementos objectivos e sem exigir ao destinatário da fatura verificações que lhe não incumbem, que o mesmo destinatário sabia ou tinha obrigação de saber que a operação estava implicada numa fraude ao imposto sobre o valor acrescentado, o que cabe ao tribunal de reenvio verificar.» 

  (…)

 

No caso, repete-se, estando demonstrado que a ora Recorrida prestou o serviço em causa, teria a administração tributária que recolher indícios bastantes de que a recorrida sabia ou devia saber que quem lhe estava a vender não era a pessoa que figurava nas faturas.

E não tendo tal acontecido, concluímos que a administração tributária não recolheu indícios que legitimam a sua atuação no sentido de não aceitar a dedução do IVA mencionado nas faturas em causa nos autos, ou seja, não cumpriu com o ónus que sobre si impendia no sentido de fundamentar as liquidações impugnadas, as quais estão, assim, feridas de ilegalidade, impondo-se assim acompanhar a decisão recorrida quando determinou a anulação das liquidações impugnadas.”.

Tendo em conta o supra referido a AT entende que as faturas não correspondem a operações efetivas para efeitos de permitir a dedutibilidade do IVA incorrido pela Requerente, ou seja, que se trata de operações simuladas, pelo que de acordo com o número 3 do artigo 19.º do CIVA a Requerente não poderia ter deduzido o imposto relativo a estas aquisições simuladas.

Neste âmbito ao ónus da prova, quando a AT desconsidera faturas que reputa como falsas, aplicam-se as regras previstas no art. 74.º da LGT, competindo fazer prova da verificação dos pressupostos que legitimam a sua atuação, ou seja, que existem indícios sérios de que as operações não correspondem com a realidade passando, então, a incidir sobre o sujeito passivo o ónus da veracidade da transação.

Sendo verdade que a AT conclui que as empresas fornecedoras da Requerente não apresentariam estrutura que lhe permite concluir que inexistem guias de transporte ou até de controlo, mas, estes factos não permitem indiciar que o trabalho não foi, de facto, executado.

A verdade é que nenhum indício foi apresentado pela Requerida para demonstrar que, de facto, e independentemente da estrutura das empresas fornecedoras, o trabalho não foi feito, mormente tendo em conta que o mesmo foi integralmente faturado e pago; não incumbindo à Requerente averiguar – ainda que o tenha feito como consta de declarações de não dívida de uma das empresas fornecedoras – a situação empresarial ou fiscal dos seus fornecedores. I.e., para haver simulação, como resulta da decisão transcrita, seria necessário que a AT tivesse reunido elementos que relacionassem a Requerente com o esquema que imputa às empresas fornecedoras. O que, não só não faz, como nem sequer o alega. Partindo para uma conclusão cujos factos que lhe estão subjacentes em nada se relacionam com a Requerente.

 E a AT não só não o demonstra como se pode concluir, face aos elementos constantes dos autos, que as operações são efetivas, facto que a AT nem sequer alega e nem sequer ponderou ou analisou na sua decisão inspetiva.

Face ao exposto, a AT não reuniu ou invocou indícios fundados de que o facto tributário não ocorreu. O que obsta a desencadear o ónus probatório da Requerente que só opera depois da AT ter reunido e invocado aquela matéria indiciária, o que nunca aconteceu no caso concreto face aos factos apurados nestes autos.

Em suma, a conclusão da AT face às estruturas das fornecedoras não lhe permite, nem permite ao tribunal, concluir que as operações da Requerente em apreço nos autos sejam simuladas e, nesse pressuposto, lhe seja negado o direito à dedução do imposto.

 

  1. Da natureza da regra de dedutibilidade dos gastos em sede de IRC 

Quanto à segunda questão que envolve a dedutibilidade em sede de IRC, a análise jurídica em questão foi já objeto de várias decisões do CAAD, as quais naturalmente beneficiam a presente análise pela exposição técnica aportada.

Sem prejuízo do que acima se refere relativamente ao entendimento de ambas as Partes, para efeitos de pronúncia do presente Tribunal, importa saber se do contraditório realizado existe prova bastante de que os gastos em crise determinam a anulação das respetivas liquidações aqui identificadas, com referência à sua dedutibilidade em sede de IRC, respeitante aos períodos de tributação de 2018 e 2019 da Requerente.

Dispõe o art.º 23.º, n.º 1 do Código do IRC que "são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC".

Se até à introdução da redação do art.º 23.º do Código do IRC dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, a norma em causa referia expressamente o conceito de indispensabilidade do gasto para efeitos da sua dedução em sede de determinação do lucro tributável, tal conceito deixou de ter expressa previsão legal.

Tal não significa, contudo, que não se deva admitir atualmente o conceito de indispensabilidade para efeitos de apuramento de um gasto como dedutível para efeitos fiscais. Na verdade, volvidos cinco anos da introdução da nova redação do artigo 23.º do Código do IRC, a doutrina e jurisprudência (judicial e arbitral) continuam a defender a presença deste conceito, admitindo como gasto dedutível para efeitos de determinação da matéria coletável, «todo o gasto decorrente da gestão realizado na prossecução do objecto societário, excluindo-se assim todo o gasto que seja estranho a tal prossecução.» [nosso sublinhado]

Neste sentido, pode ler-se na Decisão prolatada no Processo n.º 398/2020-T que «A exclusão, propositada, da menção comprovadamente sejam indispensáveis", não significa uma alteração radical nas regras da dedutibilidade. A doutrina considera que é bastante consensual que a indispensabilidade dos gastos deve, num plano geral, ser entendida como considerando dedutíveis aqueles que sejam incorridos no interesse da empresa, na prossecução das respetivas atividades. De facto, não se eliminou toda a subjetividade que poderia existir com a anterior redação, pois a relevância fiscal de um gasto continuará a depender de uma ponderação de critérios, tais como, a prova da sua necessidade, adequação, ou da produção do resultado, sendo que a falta geral dessas características gera a dúvida sobre se é um gasto efetivamente incorrido no interesse da empresa e, como tal, se estamos perante um gasto aceite fiscalmente ou não.» Conclui assim que «Um dos objetivos destes limites à dedutibilidade dos gastos consiste em impedir eventuais situações de abuso fiscal, daí que o legislador tenha estabelecido uma lista exemplificativa de gastos dedutíveis por forma a limitar as reduções indevidas de impostos, ou estaria aberto o caminho à prossecução de interesses alheios, mormente dos sócios em detrimento dos da empresa, resultando numa violação do princípio da tributação do lucro real.»

Assim, no seguimento do que se refere na Decisão prolatada no Processo n.º 33/2018-T deste Tribunal: «há que concluir que a relevância fiscal de um gasto depende unicamente da sua conexão com a atividade da empresa, independentemente do mérito da opção de gestão empresarial que tenha sido seguida na assunção desse encargo, havendo apenas de afastar-se os gastos que tenham sido determinados por outras motivações.» [nosso sublinhado].

Entendimento que se afigura em linha com o já propugnava o Supremo Tribunal Administrativo [Acórdão de 30 de novembro de 2011, prolatado no processo n.º 0107/11] quando refere, «Os custos indispensáveis equivalem aos gastos contraídos no interesse da empresa ou, por outras palavras, em todos os atos abstratamente subsumíveis num perfil lucrativo. (…) O gasto imprescindível equivale a todo o custo realizado em ordem à obtenção de ingressos e que represente um decaimento económico para a empresa. Em regra, portanto, a dedutibilidade fiscal do custo depende, apenas, de uma relação causal e justificada com a atividade da empresa.»

No entendimento de MOURA PORTUGAL[1]«Os custos indispensáveis equivalem, assim, aos gastos contraídos no interesse da empresa. A dedutibilidade fiscal do custo deve depender apenas de uma relação justificada com a actividade produtiva da empresa e esta indispensabilidade verifica-se “sempre que – por funcionamento da teoria da especialidade das pessoas colectivas – as operações societárias se insiram na sua capacidade, por subsunção ao respectivo escopo societário e, em especial, desde que se conectem com a obtenção de lucro ainda que de forma indirecta ou mediata”». [nosso sublinhado].

Sendo que, por lucro deverá entender-se «(…) o resultado ou produto líquido de uma actividade produtiva, que tem a natureza de uma compensação líquida, por se tratar de retribuição que já vem depurada de todos os custos correlativos.»[2] Nesta senda, e nas palavras de VÍTOR FAVEIRO, os custos assim apurados apenas poderão «ser objecto de correcção directa, (…) quando se trate de factos que, por natureza e univocidade se evidenciem objectivamente como estranhos ao objecto e ao fim económico e gestionário global da empresa.»[3]

Perante o exposto, é possível afirmar que o regime que decorre atualmente do artigo 23.º do Código do IRC norteia a dedutibilidade de gastos através de dois critérios: um de natureza formal, através do qual se exige que os gastos ou perdas tenham um suporte documental adequado, em conformidade com o disposto no n.º 3 do referido artigo; e outro de natureza material, nos termos do qual se exige que os gastos ou perdas tenham sido «incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC»
[cf. artigo 23.º, n.º 1 do Código do IRC].

A par das conclusões expendidas anteriormente, «só perante normas expressas e uma motivação intrínseca se poderá afastar a dedutibilidade de custos contabilísticos que preencham os requisitos legais do citado artigo 23.º do CIRC»[4] [nosso sublinhado]

Deste modo[5], a não dedutibilidade de um gasto para efeitos fiscais terá de «passar no teste da “motivação”», sendo que para efeitos de consideração da referida não dedutibilidade «tem de ser visível e identificável o interesse fiscal específico que se visa acautelar. Ora se esta exigência recai sobre o legislador, mais se justifica que na tarefa de aplicação do preceito ao facto concreto o julgador tenha presente que está a aplicar uma norma que constitui uma excepção à regra geral de identidade conceptual entre custos contabilísticos e custos fiscais.»

Neste sentido, cabe igualmente acolher o entendimento de acordo com o qual «Só respeitando estes requisitos e fazendo um uso restritivo da limitação à dedutibilidade dos custos para efeitos fiscais se respeitarão o princípio da tributação pelo lucro real e o princípio segundo o qual a conexão dos custos com a actividade do contribuinte justifica a respectiva dedutibilidade.»[6]

Desta forma, exposto o que se deve entender por gasto fiscal para efeitos de apuramento do lucro tributável, em sede de IRC, bem como das exigências que a aplicação do artigo 23.º-A do Código do IRC reclama em sede da própria construção e funcionamento do ordenamento jurídico-tributário, nomeadamente do respeito pelo princípio da tributação pelo rendimento real, importa analisar o caso concreto.

O art.º 23.º-A do Código do IRC tem funcionado como uma espécie de cláusula geral antiabuso invertida, na medida em que não se exige à Administração Tributária um concreto dever de fundamentação quanto à exclusão de dedutibilidade de um determinado gasto para efeitos de apuramento do lucro tributável, que de resto deve pautar toda a sua atuação.

Está em causa a seguinte situação, conforme detalhado pela Requerente:

  • Trata-se de  transporte da areia do estaleiro para a armazenagem na ... é feito por camiões pesados, que são contratados pela requerente a entidades terceiras, para a execução deste tipo de trabalhos.
  • O percurso é de cerca de 1500 metros.
  • A requerente não tem camiões próprios para executar estes trabalhos, recorrendo a entidades terceiras, sendo estas que dispõem dos meios/camiões para procederem à recolha e entrega, aos clientes da requerente, das areias e inertes.
  • A Requerente tinha contratado, em 2019, com a empresa B... Unipessoal Lda., titular do NIPC ..., a execução deste tipo de trabalhos.
  • B... executava o trabalho, que faturava mensalmente.
  • A Requerente desconhecia e desconhece a matrícula dos camiões utilizados, se os mesmo eram de propriedade da B..., de empresas terceiras associadas, já que o que contratava era a prestação de um serviço, ou seja, transporte de areias e inertes.
  • Perante mais do que uma situação de serviço defeituoso (e.g. atrasos, não comparência de camiões para a execução de trabalho contratado) a Requerente cessou o contrato com B... e passou a recorrer aos serviços de uma outra empresa do sector, para a execução do mesmo trabalho.
  • A sociedade prestadora de serviços era uma sociedade unipessoal por quotas, estando a mesma totalmente associada ao seu único sócio, sr.º C... .

Pretendendo-se aferir da respetiva dedutibilidade, o mesmo é dizer que se se considera ou não que os referidos gastos foram incorridos no interesse da empresa e na prossecução da respetiva atividade.

Ora, da análise efetuada aos factos apresentados, e atentos os requisitos de aplicação do artigo 23.º do Código do IRC, não se revela possível o afastamento de que os mesmos foram incorridos no interesse da empresa, sendo manifesta a sua adequação atendendo à regular prossecução do objeto societário (e portante à atividade económica desenvolvida pela Requerente), não tendo ficado comprovada qualquer outra motivação. 

Atendendo à natureza da argumentação suscitada pela Requerida, entende este Tribunal, na senda do entendimento exposto na Decisão prolatada no Processo n.º 102/2020-T do CAAD, que «O artigo 23.º do CIRC não se reconduz a uma norma antiabuso, que pudesse ser utilizada em substituição do artigo 38.º, n.º 2, da LGT (…)» Na sequência da análise realizada ao caso, concluiu então o Tribunal, com o qual se concorda, que «Cada norma tem um conteúdo prescritivo diverso – e o art. 23.º do CIRC não funciona como uma norma anti abuso substitutiva daqueles outros preceitos.»

Pelo que, «Continuando na mesma linha de raciocínio do Acórdão 4/2/2020, emitido no processo 191/2019, deste Centro “O art. 23.º do CIRC limita o seu raio de ação à não dedução fiscal dos gastos assim contabilizados, mas que, quando contraídos (ou os investimentos efetuados) não se inserem no interesse económico da Sociedade, mas servem interesses extra societários, dos administradores ou de terceiros. Suponhamos que uma Sociedade suporta os juros de um financiamento por si contraído para efetuar um investimento apenas em benefício privado de um sócio ou administrador (e isso não é reconduzido a um rendimento em espécie da pessoa singular). Ou que se financia na banca para entregar essa quantia financeira a terceiro, sem qualquer contrapartida, fora do grupo ou fora do seu objeto social. Nesses casos, os juros que vier a suportar com esses fundos não são fiscalmente dedutíveis porque não foram (ab initio e para sempre) aplicados na exploração da Sociedade.”

Sobre o caso dos autos, não há convicção deste Tribunal de que as operações económicas subjacentes se reconduziram a esquemas abusivos para obtenção de ganho fiscal. Sendo este o entendimento da Requerida, a fundamentação deveria recair no artigo 38.º, n.º 2 da LGT

Conclui-se assim do exposto que procede o pedido de anulação da respetiva liquidação de IRC aqui identificada, com referência ao período de tributação de 2019 da Requerente.

 

  1. Juros indemnizatórios

A Requerente pede ainda a condenação da AT no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

Nos termos do artigo 24.º, n.º 5 do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, implicando o pagamento de juros indemnizatórios nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).

Julgando-se procedente o pedido principal, procede o pedido de juros indemnizatórios.

 

  1. DECISÃO

 

Em face de tudo o exposto, decide este coletivo:

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e anular as liquidações de IVA e IRC em causa no pedido referentes ao período de 2019;
  2. Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos acima determinados;
  3. Condenar a Requerida nas custas do processo, no montante abaixo fixado.

 

 

 

 

  1. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 188.210,75, nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

  1. Custas

 

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 3.672,00, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.

Notifique-se.

 

 

Lisboa, 3 de junho de 2024

 

Os Árbitros,

 

 

(Guilherme W. d’Oliveira Martins)

 

 

(Fernando Miranda)


 

(António Lima Guerreiro)

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

A presente Decisão Arbitral não suscita a minha concordância e a doutrina aí citada  tem sido explícita e reiteradamente rejeitada pela jurisprudência mais recente dos  tribunais superiores e do  TJUE, que não tenho quaisquer razões  para pôr em causa. Por outro lado, os chamados Factos Provados não refletem suficientemente a prova documental e testemunhal produzida, na medida em que omitem elementos necessários a uma adequada fundamentação da Decisão Arbitral.

De acordo com o Sumário desta:

“I - A conclusão da AT, em sede de IVA, face às estruturas das fornecedoras não lhe permite, nem permite ao tribunal, concluir que as operações da Requerente em apreço nos autos sejam simuladas e, nesse pressuposto, lhe seja negado o direito à dedução do imposto.

 

II – Já quanto ao IRC e atendendo à natureza da argumentação suscitada pela Requerida, entende este Tribunal, na senda do entendimento exposto na Decisão prolatada no Processo n.º 102/2020-T do CAAD, que «O artigo 23.º do CIRC não se reconduz a uma norma antiabuso, que pudesse ser utilizada em substituição do artigo 38.º, n.º 2, da LGT (…)» Na sequência da análise realizada ao caso, concluiu então o Tribunal, com o qual se concorda, que «Cada norma tem um conteúdo prescritivo diverso – e o art. 23.º do CIRC não funciona como uma norma anti abuso substitutiva daqueles outros preceitos.» 

Tal  Decisão Arbitral  assenta nos seguintes pressupostos  de direito:

- Que a administração fiscal apenas pode recusar ao sujeito passivo o direito à dedução do IVA  mencionado   indevidamente em fatura  se provar um acordo simulatório entre o possuidor e emitente dessas faturas , com a consequente aplicação do nº 1 do art. 39º da LGT, por  divergência entre a vontade real e a vontade declarada das partes. Não bastariam  a alegação e prova indiciária de uma probabilidade elevada de as operações que deram origem à liquidação do imposto  não se terem realizado, sendo sempre necessária a demonstração da intenção enganosa da Requerente.

- Que a administração fiscal apenas pode recusar    o direito à dedução dos custos suportados pelo sujeito passivo de IRC em virtude de pagamento de fatura em que o IVA tiver sido indevidamente mencionado com fundamento na .aplicação da cláusula geral anti- abuso regulada nos nºs 2 a 6 do art. 38º da LGT e não com  fundamento na regra geral de dedutibilidade desses encargos do  nº 1 do art. 23º do CIRC,  insuficiente, no entanto, para justificar a liquidação impugnada.

Nem um nem outro dos pressupostos mencionados tem respaldo no direito aplicável.

O  nº 1 do art. 74º da LGT, na esteira do nº 1 do art. 342º do  CC, faz recair  a prova dos factos constitutivos dos direitos da administração  dos direitos da administração tributária e dos contribuintes sobre quem os invoque e não contra quem tais direitos são invocados.

 

É ao contribuinte que cabe, assim, demonstrar:

a) A relação direta e imediata entre uma dada operação  tributável a  montante e outra operação tributável a jusante que justifique  a aplicação do nº 1 do art. 19º do CIVA, salvo quando os gastos suportados fizerem parte das despesas gerais do sujeito passivo  (Acórdãos do TJUE nos procs. C-465/03 e C-126/14 e Acórdão do STA de 3/7/2013, proc. 01148/11).

b) A relação, nos termos do nº  1 do art. 23º do CIRC,  entre  o gasto ou perda  incorrido ou suportado  e a obtenção ou garantia dos rendimentos sujeitos a IRC.

 

Certamente o nº1 do art. 74º da LGT  apenas é aplicável em caso de dúvida sobre a veracidade dos elementos declarados pelo contribuinte que dispõem da presunção de verdade,  regulada pelo art. 75º  da LGT.

Assim, apenas indícios fundamentados, no sentido de sérios, objetivos e credíveis da não realização das operações tributáveis que justificaram o direito à dedução  ou  de que o custo não  foi incorrido  nem  suportado  no  âmbito do objeto estatutário da atividade do sujeito passivo de IRC podem remover a presunção de verdade das declarações dos contribuintes expressa nesse preceito da LGT.

A alegação e demonstração desses indícios transferem o ónus de a administração fiscal provar a existência e quantificação dos factos tributários para o contribuinte.

Este pode, no entanto, contrariar a idoneidade desses indícios  no próprio procedimento inspetivo, a quando do exercício do direito de audição, ou na reclamação ou impugnação da liquidação.

Esses critérios de repartição do ónus de prova foram definidos com carácter sistemático  no Acórdão do TCA Sul  de 4/4/2024, proc. 892/20. 7BELRA, nos seguintes termos:

“I-É sobre a AT que recai o ónus da prova da existência de indícios sérios, objetivos e credíveis que impliquem uma probabilidade elevada de que as operações tituladas pelas faturas não correspondem a operações reais.

II– Em sede de IVA deve, também, prevalecer o princípio da substância sobre a forma, o que significa que provada que esteja a veracidade das operações tituladas pelas faturas, deverá ser possível ao sujeito passivo deduzir o IVA das mesmas constantes, ainda que as faturas não contenham a totalidade dos  elementos constantes do art. 36º, nº 5 do CIVA.

III– O ónus da prova da veracidade dessas operações recai sobre o sujeito passivo.
………………………………………………………………………………………….”.

 

Esse Acórdão segue  a doutrina  do Acórdão também do  TCA Sul de 19/2/2002, proc. 05810/01, que seguiria a doutrina do Acórdão do proc. nº 342/87..

 

Segundo este último Acórdão:

 “I-Decorre do método por que opera o IVA - método do crédito do imposto ou "das faturas" -o recetor de fatura a que não corresponda uma operação não tem o direito a deduzir o IVA nela mencionado, ainda que o tenha pago, ou seja, como se diz no nº 3 do  art. 19.ºdo CIVA, «não poderá deduzir-se imposto que resulte de operação simulada», sendo que, como é entendimento unânime da doutrina e da jurisprudência, "operação simulada" tem aqui o sentido de operação total ou parcialmente inexistente.

II - Compete à AT a prova dos pressupostos que, afastando a presunção de veracidade da declaração, lhe permitiram o recurso às correções técnicas no apuramento da matéria tributável (que, no caso do IVA, se confunde com a liquidação do imposto) competindo-lhe, designadamente, demonstrar os factos que lhe permitiram concluir que a operação a que se refere uma determinada fatura é simulada (cfr. arts. 76.º, n.º 2, e 78.º, do CPT, em vigor à data, 28.º, n.º 1, alínea c), e 82.º, do CIVA).

III - Tal ónus cumpre-se com a prova dos "factos-índice" que, valorados à luz da experiência comum, permitam um juízo suficientemente sólido naquele sentido, não tendo a AT que fazer a prova dos requisitos da simulação previstos no art. 240.º, n.º 1, do CC, e, muito menos, que obter a prévia declaração judicial dessa simulação.

IV - Feita essa prova pela AT, cessa a presunção da veracidade da declaração (e da operação subjacente à fatura), passando a recair sobre o contribuinte o ónus de demonstrar que à fatura em causa corresponde uma operação efetivamente realizada.”

 

A corrente jurisprudencial iniciada por esse Acórdão apenas  seria interrompida pelo Acórdão também do TCA Sul  de 14/6/2015, proc. 07111/13, que  a Decisão Arbitral invoca:

Segundo esse Acórdão:

“Cada fatura com menção de imposto, constitui um verdadeiro "cheque sobre o tesouro", pois atribui ao destinatário que seja sujeito passivo o direito de deduzir o I.V.A. nela contido. Por isso, a simples menção do IVA em fatura (mesmo que porventura descabida, por não haver lugar a imposto naquele caso, por qualquer razão) origina sempre a obrigação de pagar, independentemente da qualidade do emissor, isto é, seja ele ou não um sujeito passivo. Tornar-se-á, pelo simples facto da menção, um "devedor de imposto". Só assim se consegue que ao direito à dedução, que a fatura atribui ao destinatário sujeito passivo, corresponda sempre uma obrigação de pagar e se assegure o funcionamento regular do sistema de pagamentos em sede de I.V.A.



6. A razão de ser desta obrigação decorre do facto dessas mesmas faturas conterem I.V.A. dedutível por parte da entidade a favor da qual foram emitidas e, nessa medida, ser necessário assegurar que o imposto delas constante tenha dado entrada nos cofres do Estado”

O Acórdão do referido proc. 07111/13, que contrariaria o anterior de 2001, já que admitiria que o simples facto ter suportado IVA, independentemente de essa menção ser ou não devido, é constitutivo do direito à dedução seria, no entanto,  caso isolado. Não inaugurou nos tribunais superiores nenhuma corrente jurisprudencial nova que aderisse ás suas conclusões.

A mais recente jurisprudência do TCA Sul rejeitaria, pelo contrário,  essa posição , a título exemplificativo, entre muitos outros, nos Acórdãos de 16/12/2018, proc. 754/07 3 BELS B,  8/5/2019, proc, 513/10.6BESNT,   11/3/2021, proc. 914/16.6.6 BEALM, 26/5/2022, proc. 0618/15.2BELBA,  20/4/2023, proc. 2206709.BELRS e a  TCA  Norte adotá-la-ia ,  entre outros,  nos  Acórdãos de 15/12/2022, proc. 00890/19  3EAVR e de 25/5/2023, proc. 0097/14BEPRT, regressando à anterior posição de   o direito á dedução não se estender ao imposto que é devido exclusivamente por estar mencionado na fatura, independentemente  da prova da  realização efetiva de operações tributáveis.

Segundo essa jurisprudência, na linha do Acórdão do TJUE no proc. nº 342/87,  o direito à dedução está excluído em relação a qualquer imposto que não corresponda a uma operação determinada quer porque o imposto é mais elevado que o legalmente devido quer porque a operação em causa não está submetida ao IVA

Assim, o exercício do direito a dedução estaria  limitado apenas aos impostos devidos, isto é, aos impostos correspondentes a uma operação sujeita ao IVA, ou pagos na medida em que sejam devidos ( e não apesar de não serem devidos).

Assim, o direito de audição depende não apenas de o imposto ter sido efetivamente suportado mas também  de ter sido suportado para a realização de operações sujeitas a IVA.

Ao contrário do que pretende a Decisão Arbitral, essa doutrina não seria contrariada mas incorporada no Acórdão do STA de 26/9/2012, proferido no proc. 0555/12, citado na Decisão Arbitral.

Tal Acórdão limita-se a sustentar   que a menção  indevida transforma o emitente da fatura em sujeito passivo do imposto, estando obrigado ao seu pagamento, mas não que  o destinatário da fatura  possa deduzir o imposto, pelo que a sua invocação parece inapropriada.

Posteriormente, o Acórdão de 1/712/2023, lavrado no Processo n.º 2922/12, explicitaria que: “II - Assim, não poderá ser recusado o direito à dedução do IVA pelo simples facto de uma fatura não preencher os requisitos exigidos pelo artigo 226º, ponto 6, da Diretiva IVA, se existirem dados suficientes para verificar se os requisitos materiais relativos a esse direito estão preenchidos, pois que a aplicação estrita do requisito formal de apresentar faturas colidiria com os princípios da realidade e da proporcionalidade, uma vez que teria por efeito impedir de maneira desproporcionada o sujeito passivo de beneficiar da neutralidade fiscal relativa às suas operações, sendo que, naturalmente, cabe ao sujeito passivo que pede a dedução do IVA provar que preenche os requisitos para dela beneficiar.”

Ainda que estiverem reunidos os requisitos formais das faturas, o direito á dedução pode ser recusado se houver indícios sérios, objetivos e credíveis do não preenchimento dos requisitos substanciais da dedução, como é, aliás, a posição da Requerida.

Desenvolvendo esse  Acórdão,  o Acórdão de 7/2/2024 ,proc. 0555/18.3BECBR  , após analisar  e rejeitar a mesmíssima doutrina  que fundamenta a Decisão Arbitral e proceder a uma detalhada análise da jurisprudência mais recente do TJUE (procs. C-424/12 e C-453/22,  que entendeu não contrariarem mas aprofundarem  a doutrina do Acórdão  no proc- C-342/87) concluiria, em sendo oposto  ao teor desta Decisão Arbitral:  no sentido de a denegação do direito à dedução ser  possível, sem qualquer quebra injustificada do princípio da neutralidade, quando se encontrem comprometidos os requisitos substanciais de um tal direito.

Assim, não é necessária a prova de qualquer acordo simulatório para justificar a recusa da dedução, como também não  a  é  para justificar a recusa da dedução dos custos , necessária a utilização  da cláusula anti- abuso a que se refere o nº 2 do art. 38º da LGT, carecendo de pertinência a invocação para o efeito a Decisão Arbitral nº 102/2020- T, em que estava em causa um procedimento potencialmente abusivo em operação de fusão inversa e não a prova de qualquer factualidade.

 Relativamente ao IRC, a Decisão Arbitral contraria também   a doutrina do mais Acórdão do Pleno do STS de 16/11/2016, proc. 0600/5 , que se pronunciaria no seguinte sentido:

“I- Na desconsideração dos custos suportados por faturas existentes na escrita

do contribuinte e relativamente às quais considera não se terem efetivamente realizado as operações nelas consubstanciadas, a administração fiscal não tem de fazer prova da existência de acordo simulatório (existência de divergência entre a declaração e a vontade negocial das partes por força de acordo entre o declarante e o declaratário, no intuito de enganar terceiros – cfr. art. 240.º do CC) para satisfazer o ónus de prova que sobre si impende.

III Basta à AT provar a factualidade que a levou a não aceitar esses custos, factualidade essa que tem de ser suscetível de abalar a presunção de veracidade das operações constantes da escrita do contribuinte e dos respetivos documentos de suporte, só então passando a competir ao contribuinte o ónus de prova do direito de que se arroga (o de exercer o direito de deduzir os custos ao lucro tributável) e que não é reconhecido pela AT, ou seja, o ónus de prova de que as operações se realizaram efetivamente e ocorrem os pressupostos de que depende o direito á dedução”.

Essa jurisprudência, aliás, já tinha precedente no Acórdão de 4/6/2014, Rec. 01634/13.

Não tinha o Fisco, assim, de demonstrar qualquer acordo simulatório  nos termos do nº 1 do art. 39º da LGT.

Do mesmo modo, não tinha que recorrer à cláusula geral anti-abuso  que, nos termos do nº 2 do art. 38º da LGT ,  só é aplicável às construções ou séries de construções que, tendo sido realizadas com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável, sejam realizadas com abuso das formas jurídicas ou não possam ser  consideradas genuínas, tendo em conta todos os factos e circunstâncias relevantes, caso em que  essas construções  são desconsideradas para efeitos tributários, efetuando-se a tributação de acordo com as normas aplicáveis aos negócios ou atos que correspondam à substância ou realidade económica e não se produzindo as vantagens fiscais pretendidas.

Está em causa, no entanto,  não o  carácter artificial ou não  genuíno das formas utilizadas pela Requerente, mas   se cabia, ou não, à Requerente provar a veracidade dos factos que conduziram a administração fiscal a recusar a dedução de IRC.

Abalada a presunção de verdade de faturação apresentada, segundo a jurisprudência consolidada do CTA, cabia à Requerente provar a realização efetiva das operações tituladas por essas faturas.

No entanto, ao contrário do   que sustenta a Decisão Arbitral não ficou  provada nos presentes autos a efetiva realização de serviços de transporte pelo  sujeito passivo B... Unipessoal (B...), devendo-se a ausência  dessa prova à conduta comitiva  e omissiva da Requerente e ao ambiente da total informalidade que rodeou as suas relações com a fornecedora de serviços de transporte, que é obviamente da responsabilidade da Requerente e da empresa fornecedora.

Por outro lado, a prova produzida  no presente processo arbitral  confirmou – e não abalou- os indícios consistentes( sérios , objetivos e credíveis)  da não realização pelo sujeito passivo B... Unipessoal (B...) das operações que originaram a dedução pela Requerente  do IVA suportado no montante € 26.592, 67 e a contabilização como custos para efeitos de IRC no montante de € 115.620,33 .

Com efeito:

I-A Requerente, não obstante solicitada para o efeito, não disponibilizou na ação inspetiva nem posteriormente os contratos ao abrigo dos quais    lhe teriam sido prestados  pela B... os serviços de transporte de areias a que se reportam o IVA deduzido e os custos incorridos, contratos esses que, no entanto,  são obrigatórios nos termos do nº 1 do art.. 2º  do DL nº 239/2003, de 4/10, que regula o regime jurídico do contrato de transporte  rodoviário nacional de mercadorias em território nacional. Tal obrigatoriedade  apenas é  afastada quando for emitida guia de transporte elaborada nos termos dos arts. 3º e 4º desse DL , o que não aconteceu.

A junção desses contratos seria, aliás, sempre essencial para justificar o tipo de faturação  adotado pela B...,  que a Requerente aceitou, em que é emitida uma fatura global agregando os serviços efetuados em cada mês , uma vez o  nº 3 do art. 7º do CIVA fazer depender esse procedimento º de contrato escrito  entre o transmitente do bens ou prestador de serviços e seus clientes que não juntou.

II-À Requerente,  como  remetente dos bens , e à B..., como prestadora de serviços de transporte,  é aplicável o nº 1 do art. 2ºdo Regime dos Bens em  Circulação( RBC , aprovado pelo art. 1º do DL nº 147/2003, de 11/7), nos termos do qual: a) consideram-se «bens em circulação todos os que se encontrem fora dos locais de produção, fabrico, transformação, exposição, dos estabelecimentos de venda por grosso e a retalho ou de armazém de retém, por motivo de transmissão onerosa, incluindo a troca, de transmissão gratuita, de devolução, de afetação a uso próprio, de entrega à experiência ou para fins de demonstração, ou de incorporação em prestações de serviços, de remessa à consignação ou de simples transferência, efetuadas pelos sujeitos passivos referidos no art. 2º do  CIVA; b) Consideram-se ainda 'bens em circulação' os bens encontrados em veículos nos atos de descarga ou transbordo mesmo quando tenham lugar no interior dos estabelecimentos comerciais, lojas, armazéns ou recintos fechados que não sejam casa de habitação, bem como os bens expostos para venda em feiras e mercados a que se referem a Lei n.º 27/2013, de 12/4, e o Decreto-Lei n.º 173/2012, de 2/8”.

Esse  transporte dos   inertes está  abrangido pelo  RBC, nos termos da alínea a) do nº 1 do art. 2º do RBC ,  na medida em que, de acordo com o critério exposto,   a transmissão de tais bens está abrangida na  incidência do IVA definida no art. 3º do CIVA.

 Com efeito, apenas está  excluída do âmbito   das obrigações do  RBC  a circulação dos bens do ativo imobilizado  ou insuscetíveis de transmissão, nos termos da alínea c) do nº 1 do art.  3º do  referido Regime (Acórdão do STA de 6/3/2013, proc. 0209/13).

Esse transporte dos inertes deve  ser acompanhado  de fatura , que substitui a guia de remessa ou outros documentos de transporte, nos termos do nº  4 do art. 4º do referido RBC.

 

Segundo o nº 4 do art. 4º do RBC ,   com efeito, é condição para que a fatura emitida nos termos do nº 5 do art. 36º do CIVA  seja aceite documento de transporte, nos termos  da alínea b) do nº 1 do art. 2º , que indique os locais de carga e descarga, referidos como tais, e a data e hora em que se inicia o transporte, elementos  que  acrescem aos elementos normais das faturas.

 

Não prejudica a aplicação do RBC   uma prática contrária da empresa  de extração de inertes e das empresas transportadoras suspostamente generalizada.

 

É suficiente, nos termos do nº 1 do art. 2º do RCB, que o transporte seja efetuado fora do local da extração dos inertes, independentemente do tipo de caminho utilizado e das distancias, maiores ou menores,  percorridas.

 O costume, em particular o costume  contra- legem, não é fonte de direito fiscal e muito menos os tribunais arbitrais podem decidir livremente de acordo com a equidade.

Tal  nº 1 do art. 2º não pode considerar-se, por  derrogado  por uma pretensa prática, embora restrita a um conjunto limitado de casos,  em sentido contrário comum a  remetentes e transportadores, Mesmo que essa prática tivesse sido provada , não  é suscetível de ser invocada pelos operadores económicos  para justificar o incumprimento sistemático da lei.

Ora, a  faturação junta, que integra o Anexo II  do Relatório de Inspeção Tributária (RIT) emitida pela empresa transportadora mas aceite pela Requerente, não contém qualquer indicação sobre a data e hora em que os transportes  de areia se iniciaram.

Por outro lado, dessas faturas  consta a menção de que os locais de carga de areia  foram a sede da B..., à ..., em Lisboa (sic)  e de descarga na   ..., quando. na sua alegação, a Requerente sustenta que o transporte de a areia se iniciou nos locais onde os inertes foram  extraídos e terminou na estação ferroviária de ... .

 

Tal menção põe em causa obviamente a credibilidade de tais faturas ,já que é inverosímil  que a transportadora carregue areia na sede da ... para a transportar para a estação de comboios de ... .

III-A-   B..., não obstante , de acordo com o respetivo CAE, exercer a atividade de transporte rodoviário de mercadorias,   não tem qualquer veículo registado em seu nome , nem utiliza quaisquer veículos em regime de locação financeira ou aluguer, o que dificilmente a Requerente  não conhecer e que só é explicável pelo ambiente de total informalidade das relações com a Requerente, para o qual esta naturalmente contribuiu

IV - Não   registou  no Portal das Finanças  quaisquer consumos relacionados com a atividade transportadora, como os resultantes de portagens ou da  aquisição de combustíveis ou serviços de reparações, mas apenas com a aquisição de serviços de telecomunicações e seguros.

V- Nem a Requerente, nem a  B..., demonstraram, apesar de instadas  pela administração fiscal, a sub-contratação  , nos termos da legislação aplicável, de parte ou da totalidade da atividade de  transporte rodoviário de mercadorias a terceiros que exerçam efetivamente tal atividade, nem identificou o veículo ou veículos que transportaram a areia. A identificação das tais veículos deveria ser obtida pela Requerente por uma elementar cautela, na eventualidade de ter de provar a realização efetiva dos transportes.

VI- Não é contestável, refira-se, a realização dos transportes de areia, sem os quais a Requerente não poderia desenvolver a sua atividade económica, mas que estes transportes tenham sido efetuados pela B... e não por um terceiro ou pela própria Requerente.

É referido genericamente nos autos que a B... não foi a única empresa contratada para a realização desses transportes.

Tais transportes poderiam, aliás, ter sidos efetuados pela própria Requerente que, no n.º 9 das Alegações, admite que em 2019, “detinha duas viaturas pesadas mais pequenas através das quais  procedia à entrega de areias e inertes a clientes, nos distritos de Santarém e Lisboa”, o que abrange a área entre os locais de extração das areias e a estação ferroviária de   ...”.

A Requerente não justifica, talvez porque os factos sejam suficientemente eloquentes, o motivo pelo, apesar de dispor de meios para a realização dos transportes, recorreu a uma empresa externa para o exercício da atividade transportadora, sendo, assim, admissível a dúvida suscitada pela Requerida sobre a efetividade de tais serviços..

VII- Os pagamentos efetuados pela Requerente foram –no por cheques que, em lugar de serem transferidos, seriam levantados em dinheiro. É legítimo invocar esse facto como indício da não materialidade das operações pagas, ou seja, de que o objetivo dos intervenientes fosse criar uma mera aparência de realização de verdadeiras operações tributáveis para justificar uma dedução indevida (Acórdão do TCA Sul de 25/572017, proc. 08666/159 e jurisprudência posterior).

Também tal dúvida sobre a materialidade dos serviços de transporte não foi adequadamente contrariada pela Requerente.

A  3/6/2024

 

O Árbitro adjunto

 

(António Lima Guerreiro)



[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.