Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 554/2023-T
Data da decisão: 2024-06-03  IVA  
Valor do pedido: € 67.792,69
Tema: IVA – Fusão-cisão; princípios da continuidade e da neutralidade fiscal; fundamentação ilegal; princípio do inquisitório.
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Sumário:

 

  1. As fusões–cisões regem-se por um princípio de continuidade da atividade, assumindo a sociedade incorporante os direitos, créditos e obrigações da sociedade incorporada.
  2. Na sequência da concretização de uma operação de cisão-fusão, como a dos autos, e ao abrigo do regime da neutralidade fiscal que lhe esteja subjacente, é reconhecido à sociedade beneficiária da operação – sociedade incorporante – o direito de dedução do IVA suportado pelas sociedades fundidas/cindidas que não tenha por estas sido previamente deduzido.
  3. É de admitir a transferência dos créditos de IVA das sociedades cindidas/fundidas para a sociedade resultante da fusão/cisão (sociedade incorporante) quando a operação ocorrer ao abrigo do regime da neutralidade fiscal, não exigindo a lei a comunicação prévia da operação de fusão‑cisão à AT e a intervenção da AT através de uma inspeção prévia para controlo das deduções efetuadas pelas sociedades envolvidas, sem prejuízo de a AT poder levar a cabo as inspeções e solicitar os esclarecimentos que entenda necessários e proceder a posteriori às correções que se mostrem devidas.
  4. É ilegal o ato de liquidação adicional de IVA que corrigiu automaticamente o montante reportado de crédito de IVA pela sociedade incorporante relativo aos créditos transferidos das sociedades cindidas/incorporadas, por a AT entender que não lhe foi comunicada previamente a operação de fusão-cisão, o que não lhe permitiu efetuar uma inspeção prévia para controlo das deduções efetuadas pelas sociedades envolvidas, por falta de fundamentação e violação da lei e dos princípios da continuidade e da neutralidade inerentes às operações de fusão-cisão e do princípio do inquisitório.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Professora Doutora Carla Castelo Trindade (Árbitra Presidente), Dra. Raquel Montes Fernandes (Árbitra Adjunta) e Dr. Pedro Miguel Bastos Rosado (Árbitro Adjunto e Relator), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 3 de outubro de 2023, acordam no seguinte:

 

  1. Relatório

 

1. A..., S.A., NIPC.., com sede na ..., n.º ..., ..., ...-... Porto, doravante designada por Requerente, apresentou, em 26 de julho de 2023, pedido de pronúncia arbitral, tendo por objeto o ato de liquidação de IVA n.º 2022..., no montante de € 67.617,24, e o ato de liquidação de juros de IVA (moratórios) n.º 2022..., no montante de € 175,45, dos quais resultou um valor total a pagar de € 67.792,69, na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada contra as referidas liquidações, cuja anulação pretende, mais peticionando a restituição integral dos valores indevidamente pagos, acrescido de juros indemnizatórios.

 

2. É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, doravante designada também por Requerida ou AT.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) em 27 de julho de 2023 e automaticamente notificado à AT.

 

4. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5. Em 13 de setembro de 2023, as partes foram notificadas da designação dos árbitros, não tendo arguido qualquer impedimento.

 

6. Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT sem que as Partes alguma coisa viessem dizer, o Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 3 de outubro de 2023.

 

7. Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17.º do RJAT, a Requerida apresentou resposta na qual defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, tendo protestado juntar o “processo administrativo”, o qual acabou por não ter sido junto.

 

8. Em 29 de fevereiro de 2024 realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT em que foi produzida prova testemunhal e decidido: a) notificar as partes para de modo simultâneo e no prazo de 10 dias, a Requerida se pronunciar sobre a caducidade do direito de ação por si suscitada e a Requerente juntar ao processo a prova que tiver conveniente; b) findo esse prazo, conceder o prazo de 30 dias simultâneos para a Requerida se pronunciar sobre a documentação junta pela Requerente e a Requerente para se pronunciar sobre a questão da caducidade do direito de ação suscitada pela Requerida; c) findo o prazo de 30 dias, começar a contar o prazo de 10 dias para a Requerente e a Requerida, de modo simultâneo, apresentarem alegações escritas; d) a prorrogação por dois meses do prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 21.º do RJAT, ao abrigo do disposto no seu n.º 2, determinada em virtude da tramitação processual subsequente definida; e) designar o dia 3 de junho de 2024 para o efeito de prolação da decisão arbitral.

 

9. Em 12 de março de 2024, a Requerida apresentou requerimento em que defende a caducidade do direito de ação.

 

10. Em 13 de março de 2024, a Requerente juntou aos autos diversos documentos, devidamente notificados à Requerida.

 

11. Em 10 de abril de 2024, a Requerente pronunciou-se sobre a exceção da caducidade do direito de ação suscitada pela Requerida, defendendo que ela não deve proceder.

 

12. As partes apresentaram alegações.

 

II.        Saneamento

 

1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT.

 

2. As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

3. O processo não enferma de nulidades.

 

4. O Tribunal é competente.

 

5. A exceção – caducidade do direito de ação

 

Importa apreciar a exceção da caducidade do direito de ação suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira na reunião arbitral e no seu requerimento de 12 de março de 2024.

 

A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

Aliás, na sua Resposta (cfr. arts 3.º a 5.º), a Requerida refere expressamente que “Em conformidade com os elementos dos autos, o presente pedido de pronúncia arbitral (PPA) foi apresentado contra o indeferimento tácito da reclamação graciosa n.º ...2022..., que manteve a liquidação de IVA n.º 2022..., no valor de 67.617,24 €, e respetivos juros de mora, liquidação n.º 2022 –..., na quantia de 175,45 €, respeitantes ao período 2022-09.” e que “o presente PPA foi apresentado em 2023-07-26, dentro do prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea d) do CPPT.”.

 

Notificada para se pronunciar por escrito sobre a questão da caducidade do direito de ação que suscitara na reunião, a Requerida veio, por requerimento de 12 de março de 2024, dizer que a Requerente veio no art. 1.º do PPA afirmar que “O presente pedido de constituição de tribunal arbitral tem por objeto a declaração ilegalidade e consequentemente anulação da liquidação de IVA, e de juros, n.º 2022..., melhor identificada em epígrafe, referente ao período de setembro de 2022” e que, a final, a Requerente peticiona (unicamente) que o tribunal “declare ilegal, com a sua imediata e consequente anulação, o ato de liquidação de IVA (e de juros) n.º 2022..., no valor total de € 67.792,69 por ser manifestamente ilegal, com as necessárias consequências legais; [e] Se condene a Requerida na restituição do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal.” – cf. Pedido a final.”.

 

Com referência à exceção entende a Requerida, em síntese, que o verdadeiro e único pedido de pronúncia formulado pela Requerente foi o de anulação dos atos tributários de liquidação de IVA e de juros, pelo que “se mostra (claramente) ultrapassado o prazo legalmente definido para a impugnação de actos de liquidação em sede arbitral.”.

 

Acresce que estando os poderes de cognição do Tribunal limitados pelo pedido, fica o Tribunal impedido de apreciar e declarar a ilegalidade e consequente anulação do ato de liquidação, por intempestivo, devendo, nestes termos, a AT ser absolvida da instância.

 

Em 10 de abril de 2024 veio a Requerente proceder à resposta à exceção deduzida pela AT, tendo aí pugnado pela tempestividade de apresentação do mesmo.

 

A Requerente alega que se depreende do articulado que a par de se solicitar a ilegalidade do ato tributário de liquidação, não se prescindiu de contestar o ato imediato de indeferimento tácito presumido da reclamação graciosa, sendo feitas inúmeras referências ao ato de segundo grau ao longo de todo o articulado e que a Requerida viola o princípio da colaboração e os princípios constitucionais da legalidade, justiça e imparcialidade e que “resulta clara a pretensão da Requerente com a interposição do pedido de pronúncia arbitral”.

 

A terminar, a Requerente requer ao Tribunal que “se promova o convite ao aperfeiçoamento do pedido de pronúncia arbitral, por motivo de imprecisão na exposição” e “sem prejuízo, requer a ampliação do pedido no sentido de o Tribunal declarar ilegal o indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada”.

 

A Requerida, nas suas alegações, voltou a defender que “Tal como requerido em requerimento antes apresentado, nos termos e com os fundamentos ali referidos, deve ser julgada provada a excepção de caducidade do direito de acção, que obsta ao conhecimento da causa, com todas as consequências legais, nomeadamente a absolvição da Requerida da instância.”.

 

Entende o Tribunal que esta exceção deverá ser considerada improcedente.

 

Com efeito, no pedido de constituição de Tribunal Arbitral, logo no início do seu articulado, a Requerente refere que “tendo-se formado a presunção de indeferimento tácito da Reclamação Graciosa, à qual foi atribuído o registo n.º 2022..., e que foi apresentada contra a liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) n.º 2022... e da respetiva demonstração de liquidação de juros de IVA, da qual resulta um valor total pagar de € 67.792,69 (cf. Documento n.º 1 que aqui se reproduz para todos os efeitos legais, o mesmo desde já se adiantando quanto aos restantes), vem, nos termos do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (doravante, “RJAT”) e no artigo 99.º do Código do Procedimento e Processo Tributário (doravante, “CPPT”), apresentar perante V. Exas.: PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL“(…).

 

E ao longo do referido pedido de pronúncia arbitral são diversas as referências à reclamação graciosa que “apresentou contra aquele ato tributário e à qual foi atribuído o registo n.º 2022... (cf. cópia de reclamação graciosa que adiante se junta como Documento n.º 2), e relativamente à qual, à data de hoje, se encontra formada a presunção de indeferimento tácito e que permite, agora, à aqui Requerente abrir a respetiva via contenciosa através do presente Pedido de Pronúncia Arbitral.” (art. 2.º do PPA); “Até à data da submissão do presente Pedido de Pronúncia Arbitral, a Requerente não obteve qualquer resposta por parte da AT quanto à reclamação apresentada.” (art. 5.º do PPA); “Nos termos do artigo 106.º do CPPT, “[a] reclamação graciosa presume-se indeferida para efeito de impugnação judicial após o termo do prazo legal de decisão pelo órgão competente” (art. 6.º do PPA); “Pelo que, nos termos do n.º 5 do artigo 57.º da LGT “[s]em prejuízo do princípio da celeridade e diligência, o incumprimento do prazo referido no n.º 1, contado a partir da entrada da petição do contribuinte no serviço competente da administração tributária, faz presumir o seu indeferimento para efeitos de recurso hierárquico, recurso contencioso ou impugnação judicial”. (art. 8.º do PPA); “(…) a ora Requerente dispõe de 90 dias a partir dos factos previstos nos n.º 1 e n.º 2 do artigo 102.º do CPPT, nomeadamente, da formação da presunção do indeferimento tácito (al. d), do n.º 1, o artigo 102.º, do CPPT), para submeter o seu Pedido de Pronúncia Arbitral.” (art. 10.º do PPA).

 

Ou seja, depreende-se deste articulado, que a Requerente, ao discutir a ilegalidade do ato tributário de liquidação (ato mediato), não prescindiu de contestar o ato imediato de indeferimento tácito presumido da reclamação graciosa.

 

Como se concluiu, entre outros, no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”), de 28 de outubro de 2009, proferido no âmbito do processo n.º 0595/09:

[a] reclamação graciosa tem como objecto um acto de liquidação. Nos casos em que a reclamação graciosa é expressamente indeferida, o objecto do processo de impugnação judicial é, formal e directamente, o acto de indeferimento, que manteve a liquidação que foi objecto da reclamação, mas, o objecto real da impugnação, o acto cuja legalidade está em causa apurar, é o acto de liquidação que foi mantido pelo acto de indeferimento da reclamação”.

 

No mesmo sentido, determina o Acórdão do STA, de 16 de novembro de 2011, proferido no processo n.º 0723/11 que “o processo de impugnação judicial instaurado na sequência e por causa de indeferimento expresso de uma reclamação graciosa tem por objecto imediato esse mesmo indeferimento e por objecto mediato o acto de liquidação cuja anulação é visada a final.”.

Veja-se, igualmente, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (“TCA/S”) datado de 17 de março de 2016, proferido no âmbito do processo n.º 08998/15, que aprecia inclusivamente um recurso interposto contra uma decisão do CAAD relativamente à mesma exceção. Neste acórdão do TCA-S, é mencionado que “o prazo para impugnar (o prazo de 90 dias que a Impugnante dispunha para formular o pedido de constituição arbitral), nas situações em que houve reclamação graciosa seguida de decisão expressa, se conta da notificação desta última decisão e não do terminus do prazo de pagamento voluntário da liquidação”, acrescentando que “há uma estreita relação e interdependência entre os objectos mediato e imediato e que a apreciação ou interpretação do pedido nestas situações não pode deixar de relevar essas circunstâncias de facto e direito” e destacando que “como igualmente se reconhece na sentença recorrida, a questão da existência da reclamação, ainda que não traduzida expressamente na formulação do pedido [o que até nem foi o caso da Requerente], não foi olimpicamente ignorada pela Impugnante”.

 

O Conselheiro Jorge Lopes de Sousa refere a este respeito que “formando-se indeferimento tácito ou havendo lugar a notificação do indeferimento expresso da reclamação graciosa, os contribuintes dispõem sempre de um prazo de 90 dias para o efeito de apresentação do pedido de pronúncia arbitral.” (JORGE LOPES DE SOUSA, Guia da Arbitragem Tributária – Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Coimbra: Almedina, 2017, p. 163).

 

A decisão arbitral do CAAD proferida no processo n.º 592/2016-T, de 11 de maio de 2017, debruçou-se, igualmente, sobre a questão de saber: “[m]as o que acontece se o contribuinte, tendo reclamado graciosamente do ato de liquidação, e visto indeferida essa reclamação, vier, aproveitando o prazo contado desse indeferimento, impugnar a liquidação, sem pedir, simultaneamente, a anulação do ato de indeferimento? (…) Para a AT, como viu, o resultado é a caducidade do direito de ação. Não do direito de ação contra a decisão de indeferimento da reclamação graciosa – esta estaria em prazo – mas do direito de ação contra o ato de liquidação. A escorreita argumentação da AT é aliciante, mas não nos parece que conduza à solução adequada. Como se viu, a mera impugnação do ato de indeferimento da reclamação graciosa seria de todo inconsequente, pois não arrastaria o apagamento do ato de liquidação. Deveriam, pois, em rigor, ser impugnados ambos os atos – imediatamente, o de indeferimento da reclamação; mediatamente, o de liquidação. Mas o que o tribunal apreciaria seriam, antes de tudo, os fundamentos opostos à liquidação, pois sem isso, pelas razões expostas, nenhuma tutela jurisdicional efetiva seria dada aos direitos do impugnante. O ato de indeferimento da reclamação, não tendo feito mais do que manter, administrativamente, o de liquidação, cairia por si, pois os vícios da liquidação transmitem-se-lhe – como ato secundário, ele será ilegal por não ter reconhecido, devendo fazê-lo, a ilegalidade da liquidação. De tudo isto resulta que a relevância do ato de indeferimento da reclamação graciosa tem a ver, mais do que com a sua (i)legalidade, com a fixação do prazo para a impugnação da liquidação. Consequentemente, a petição em que se pede apenas a declaração de ilegalidade da liquidação, sem formular idêntico pedido relativamente ao indeferimento da reclamação (apesar de, no caso, se lhe ter amplamente referido e exposto os fundamentos da sua ilegalidade), enferma apenas de uma imperfeição que, aliás, o tribunal podia ter convidado a corrigir, ao abrigo do disposto no artigo 18.º, alínea c), do RJAT.”.

 

É esta a posição do Tribunal, mesmo na situação de se formar indeferimento tácito (presumido), ao invés de indeferimento expresso.

 

A petição em causa enferma apenas, no limite, de uma imperfeição que o tribunal podia ter convidado a corrigir, ao abrigo do disposto no artigo 18.º, alínea c), do RJAT, e que não o fez por entender desnecessário, seja no momento inicial da análise do pedido de pronúncia arbitral, seja quando a própria Requerente, posteriomente, pediu que fosse promovido o convite ao aperfeiçoamento.

 

Por outro lado, como resulta do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, o objeto do processo arbitral é o ato de liquidação e não a decisão da reclamação graciosa, pelo que sempre se dirá que a Requerente não tinha de impugnar o indeferimento tácito, mas sim o ato de liquidação que dela era objeto.

 

 

Assim sendo:

 

O prazo de pagamento voluntário da liquidação de IVA e da liquidação de juros de mora impugnadas terminou em 2 de fevereiro de 2023.

 

Como resulta do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT, "o pedido de constituição de tribunal arbitral é apresentado" "no prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, quanto aos actos susceptíveis de impugnação autónoma e, bem assim, da notificação da decisão ou do termo do prazo legal de decisão do recurso hierárquico".

 

Por conseguinte, é manifesto que o prazo limite de pagamento não é o único termo inicial do prazo para pedir a constituição de Tribunal Arbitral e que o podem ser quaisquer dos factos indicados no artigo 102.º do CPPT.

 

Entre os factos suscetíveis de definirem o termo inicial do prazo para impugnar atos de liquidação inclui-se a notificação dos atos que podem ser objeto de impugnação autónoma, o que sucede com as decisões de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão oficiosa, como resulta do preceituado nos artigos 95.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), da LGT e do artigo 97.º, n.º 1, alínea c), do CPPT.

 

Na alínea d) do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT, prevê-se como termo inicial desse prazo a «formação da presunção de indeferimento tácito».

 

No caso em apreço, em que são impugnados atos de liquidação na sequência de indeferimento tácito, é da sua formação que se conta o prazo para apresentação de pedido de constituição do tribunal arbitral.

 

Ora, em 27 de dezembro de 2022, foi instaurado o procedimento de reclamação graciosa, pelo que a Requerente apresentou a reclamação, dentro do prazo de 120 dias previsto no n.º 1 do artigo 70.º do CPPT, mesmo antes de se iniciar esse prazo.

 

A reclamação graciosa que precede o presente pedido de pronúncia arbitral deu entrada num momento em que o prazo de decisão expressa da Administração Tributária é de quatro meses, findos os quais se presume o indeferimento tácito do pedido (art. 57.º nºs 1 e 5 da LGT).

 

Por conseguinte, volvidos quatro meses após a apresentação da reclamação graciosa, presume‑se o indeferimento tácito da mesma, momento esse, por sua vez, relevante para o cálculo e início da contagem do prazo de recurso hierárquico, recurso contencioso ou impugnação judicial, segundo o disposto no art. 57.º, n.º 5, da LGT e 106.º do CPPT.

 

Nos termos do art. 57.º, n.º 3, da LGT, no procedimento tributário, os prazos são contínuos e contam-se nos termos do Código Civil.

 

Ainda nos termos do art. 20.º, n.º 1, do CPPT, os prazos do procedimento tributário e de impugnação judicial contam-se nos termos do art. 279.º do Código Civil, assim deixando clara a natureza procedimental destes prazos, para efeito da sua contagem.

 

Tendo a reclamação graciosa dado entrada no serviço competente no dia 27 de dezembro de 2022, o cômputo do termo – 4 meses – fixa-se a 27 de abril de 2023, de acordo com o art. 279.º, alínea d) do Código Civil.

 

No caso em apreço, formou-se indeferimento tácito em 27 de abril de 2023, sendo no dia seguinte que se inicia o prazo para deduzir pedido de constituição do tribunal arbitral.

 

Em caso de presunção de indeferimento tácito, o prazo para formular o pedido de constituição de tribunal arbitral é de 90 dias, de acordo com o art. 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e art. 102.º, n.º 1, alínea d), do CPPT.

 

A Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral em 26 de julho de 2023, antes de decorridos 90 dias sobre a data da formação de indeferimento tácito.

 

Por conseguinte, o pedido de constituição do tribunal arbitral é tempestivo.

 

Assim, improcede a exceção da caducidade do direito de ação suscitada pela Requerida.

 

III. Matéria de facto

 

1. Factos provados

 

Dão-se como provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

 

  1. A Requerente foi constituída sob a forma de sociedade anónima de direito português e o seu objeto consiste no investimento dos capitais obtidos junto dos acionistas, predominantemente em ativos imobiliários, incluindo imóveis, participações em sociedades imobiliárias e ações ou unidades de participação em outros organismos de investimento imobiliário, que permitam gerar rendimento para a sociedade através da compra, da venda, do arrendamento, de outras formas de exploração onerosa e de administração de imóveis, incluindo a revenda dos que sejam adquiridos para esse fim, do desenvolvimento de projetos de construção e de reabilitação de imóveis, da aquisição e venda de outros direitos sobre imóveis tendo em vista a respetiva exploração económica, da realização de obras de melhoramento, ampliação e de reconstrução de imóveis em carteira, bem como a prática de todos os atos necessários à realização do objeto social ou de atividades com este conexas, tudo dentro dos limites, termos e condições definidos para a SICAFI no respetivo Regulamento de Gestão, no RGOIC e em regulamentos da Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários. na construção de edifícios residenciais e não residenciais, em atividades de engenharia, de arquitetura, bem como outras atividades de consultoria para negócios e a gestão. (cfr. documento n.º 7 junto com o PPA, cujo teor se dá como reproduzido);
  2. A Requerente é sujeito passivo de IVA, encontrando-se registada no regime normal de periodicidade mensal (cfr. documento n.º 8 junto com o PPA, cujo teor se dá como reproduzido);
  3. O sócio único da Requerente tomou a decisão de reorganizar o Grupo por si detido, através da realização de uma operação de cisão-fusão, em que foi sociedade incorporante a aqui Requerente e sociedades incorporadas:
  • B... Unipessoal, Lda., com NIPC ... (“B...” também designada por sociedade cindida);
  • C..., S.A., com NIPC ... (“C...” também designada por sociedade fundida);
  • D..., S.A., com NIPC ... (“D...” também designada por sociedade fundida);
  • E..., S.A., com NIPC ... (“E...” também designada por sociedade fundida);
  • F..., S.A., com NIPC ... (“F...” também designada por sociedade fundida);
  • G..., S.A., com NIPC ... (“G...” também designada por sociedade fundida);
  • H..., S.A., com NIPC ... (“H...” também designada por sociedade fundida);
  • I..., S.A., com NIPC ... (“I...” também designada por sociedade fundida);
  • J..., S.A., com NIPC ... (“J...” também designada por sociedade fundida);
  • K..., S.A., com NIPC ... (“K...” também designada por sociedade fundida);
  • L..., S.A., com NIPC ... (“L...” também designada por sociedade fundida); e
  • M..., S.A., com NIPC ... (“M...” também designada por sociedade fundida).

(cfr. documentos n.ºs 4, 5 e 7 juntos com o PPA, cujos teores se dão como reproduzidos).

  1. A operação de cisão-fusão, através da qual a sociedade incorporante manteve, para efeitos fiscais, os ativos e passivos transferidos pelos mesmos valores que se encontravam contabilizados nas sociedades cindidas e incorporadas, foi devidamente registada em 1 de julho de 2022 na Conservatória do Registo Comercial e devidamente publicitada em 4 e 5 de julho de 2022 em www.mj.gov.pt/publicações (cfr. documentos n.ºs 4, 5 e 7 juntos com o PPA, cujos teores se dão como reproduzidos).
  2. Em 18 de novembro de 2022, a Requerente entregou a Declaração Periódica de IVA – Comprovativo de entrega da declaração – via internet, relativa ao período 2022/09, à qual coube o n.º ... (cfr. documento n.º 8 junto com o PPA, cujo teor se dá como reproduzido).
  3. Na Declaração Periódica de IVA referida em E), a Requerente, no que respeita aos créditos de IVA em reporte, refletiu, no Campo 61 referente ao período de setembro de 2022, o montante de crédito de IVA a reportar do período anterior, no valor de € 479.390,34, e nos Campos 94 e 96 o montante de crédito de IVA a reportar para o período seguinte, no valor de € 377.067,11 (cfr. documento n.º 8 junto com o PPA, cujo teor se dá como reproduzido).
  4. O valor de € 479.390,34, reportado de crédito de IVA, correspondeu: ao crédito apurado na atividade da Requerente em período(s) anterior(es) e aos créditos transferidos das sociedades cindidas /incorporadas, C..., S.A., no montante de € 393.077,76, I..., S.A., no montante de € 27.475,77 e B..., Unipessoal, Lda., no montante de € 24.130,82, respetivamente, estes três no montante total de € 444.684,35 (cfr. documento n.º 2 junto com o PPA, cujo teor se dá como reproduzido).
  5. Em 19 de novembro de 2022, a Requerida emitiu a liquidação de IVA (Demonstração de liquidação de IVA n.º 2022...), referente ao período 2022-09, no montante a pagar € 67.617,24, donde consta a seguinte fundamentação: “Liquidação efetuada nos termos do art. 87.º do CIVA e em resultado da correção automática da declaração periódica enviada para o período indicado, de que resultou falta de entrega de imposto ao Estado” (cfr. documento n.º 1 junto com o PPA, cujo teor se dá como reproduzido).
  6. Na liquidação adicional de IVA referida em H), a Requerida corrigiu automaticamente o montante de € 479.390,34, reportado de crédito de IVA, retirando o montante de € 444.684,35 relativo aos créditos transferidos das sociedades cindidas/incorporadas, e reduziu o reporte de crédito de IVA para o valor € 34.705,99 (cfr. documento n.º 1 junto com o PPA, cujo teor se dá como reproduzido).
  7. Em 19 de novembro de 2022, a Requerida emitiu a liquidação de juros de IVA (Demonstração de liquidação juros de IVA n.º 2022...– juros moratórios), referente ao período 2022-09 e à liquidação de IVA referida em H, no montante a pagar € 175,45, donde consta a seguinte fundamentação: “Juros calculados nos termos do art. 96.º do CIVA e dos artos. 35º e 44º da LGT por ter sido retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto ou por se ter verificado atraso ou insuficiência do pagamento, por facto imputável ao contribuinte) (cfr. documento n.º 1 junto com o PPA, cujo teor se dá como reproduzido).
  8. A Requerente, por discordar do entendimento propugnado pela Administração Tributária, apresentou, em 27 de dezembro de 2022, reclamação graciosa contra os referidos atos de liquidação de IVA e de juros de IVA, peticionado a sua anulação (cfr. documentos n.º 2 e 3 juntos com o PPA, cujos teores se dão como reproduzidos).
  9. Em 1 de fevereiro de 2023, a Requerente pagou a quantia de € 67.617,24, relativa à liquidação de IVA (Demonstração de liquidação de IVA n.º 2022...), bem como a quantia de € 175,45, relativa à liquidação de juros de IVA (Demonstração de liquidação juros de IVA n.º 2022...– juros moratórios), no total de € 67.792,69 (cfr. documento n.º 9 junto com o PPA, cujo teor se dá como reproduzido).
  10. As sociedades participantes da operação de cisão-fusão, incluindo a Requerente como sociedade incorporante, são sociedades imobiliárias, dedicando-se, em termos genéricos e sem prejuízo de ligeiras diferenças na redação dos respetivos objetos sociais, à gestão e administração de imóveis próprios e alheios, compra, venda e arrendamento de imóveis e revenda dos adquiridos para esse efeito, promoção imobiliária, consultoria imobiliária e prestação de serviços conexos a essas atividades, sendo que a Requerente deu continuidade às atividades económicas desenvolvida pelas sociedades incorporadas e cindidas (cfr. documentos n.ºs 4, 5 e 7 juntos com o PPA, e documentos juntos pela Requerente em 13 de março de 2024, cujos teores se dão como reproduzidos, bem como o depoimento das testemunhas N... e O...).

 

  1. O procedimento de reclamação graciosa referido em K) não foi decidido até 26 de julho de 2023, data em que a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2. Fundamentação da matéria de facto dada como provada

 

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, als. a) e e), do RJAT).

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT).

 

Os factos provados acima elencados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral e com o requerimento apresentado em 13 de março de 2024, atrás mencionados, cuja autenticidade não foi colocada em causa, na prova testemunhal produzida e nas posições assumidas por ambas as Partes em relação aos factos essenciais, sendo as questões controvertidas estritamente de Direito.

 

As testemunhas N... e O... tinham conhecimento direto da matéria em discussão e aparentaram depor com isenção e com conhecimento dos factos que foram dados como provados.

 

3. Factos não provados e fundamentação

 

Não se provou que a Autoridade Tributária e Aduaneira tenha efetuado qualquer diligência na sequência da apresentação pela Requerente da Declaração Periódica de IVA relativa ao período 2022/09, bem como na sequência da apresentação da reclamação graciosa, designadamente solicitando quaisquer esclarecimentos sobre o montantes declarados ou iniciando qualquer procedimento inspetivo, tendo em vista apurar junto da Requerente as razões dos valores constantes da mesma.

 

Na verdade, a Requerida, por um lado, apesar de protestar juntar na sua resposta, nem sequer juntou o processo administrativo, limitando-se a dizer que “no âmbito da citada reclamação graciosa, em face do exposto pela ora Requerente, foi prestada informação, depois de uma prévia análise dos factos em causa, onde se conclui ser necessária a colaboração da área de Inspeção Tributária (AIT), em 24-05-2023.”, informação esta que o Tribunal desconhece em que consistiu.

 

Por outro lado, «a administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido» (artigo 58.º da LGT), pelo que tinha o dever de diligenciar, na sequência da apresentação da declaração de IVA da Requerente e/ou do pedido de reclamação graciosa, no sentido de apurar a razão dos valores inscritos pela Requerente na declaração periódica de IVA e/ou objeto de reclamação, se necessário através de pedidos de esclarecimento e exames à contabilidade da Requerente.

 

É apenas nas situações em que, após a produção das provas e a realização de diligências necessárias para apurar a factualidade relevante para a decisão, subsistem dúvidas sobre factos em que deve assentar a decisão que funcionam as regras do ónus da prova, valorando procedimentalmente as dúvidas contra aquele a quem é atribuído o ónus da prova.

 

As regras do ónus da prova não significam que seja sobre a parte à qual ele é atribuído que recai o dever de trazer ao processo os meios de prova dos factos relevantes para decisão, dispensando a parte contrária de tal tarefa, pois a Administração Tributária nunca está dispensada de, em cumprimento do princípio do inquisitório, antes de aplicar as regras do ónus da prova, «realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido», por força do artigo 58.º da LGT.

 

«No procedimento, o órgão instrutor utilizará todos os meios de prova legalmente previstos que sejam necessários ao correcto apuramento dos factos, podendo designadamente juntar actas e documentos, tomar declarações de qualquer natureza do contribuinte ou outras pessoas e promover a realização de perícias ou inspecções oculares» (artigo 50.º do CPPT), independentemente de o ónus da prova recair ou não sobre o contribuinte.

 

A expressão «todas as diligências necessárias» não dá margem para interpretação restritiva quanto aos deveres de realização de diligências que a lei impõe a AT.

 

O princípio do inquisitório, enunciado no artigo 58.º da LGT, situa-se a montante do ónus de prova (acórdão do STA de 21-10-2009, processo n.º 0583/09), só operando as regras do ónus da prova quando, após o devido cumprimento daquele princípio, se chegar a uma situação de dúvida (non liquet) sobre os factos relevantes para a decisão do procedimento tributário, situação esta em que a matéria de facto é decidida contra a parte a quem é imposto tal ónus.

 

Por isso, não podem aplicar-se as regras do ónus da prova contra o sujeito passivo, valorando contra ele as dúvidas sobre a matéria de facto, em situação em que não foi cumprido adequadamente pela Autoridade Tributária e Aduaneira o princípio do inquisitório: se houve omissão absoluta de diligências no procedimento que tinham potencialidade para esclarecer os factos relevantes para a apreciação da causa, a falta de prova tem de ser valorada contra a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

Não existem quaisquer outros factos com relevância para a decisão arbitral que não tenham sido dados como provados.

 

  1.  Matéria de Direito

 

1. Apreciação do mérito do pedido de pronúncia arbitral

 

1.1. Posições das Partes

 

Para fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, a Requerente alegou, em suma, o seguinte:

 

- Que a liquidação adicional de IVA “viola os mais elementares princípios que subjazem ao regime da neutralidade fiscal que teve subjacente à concretização da operação de cisão-fusão realizada”;

 

- Que a operação de cisão-fusão realizada “permitiu – e exigia, até – à Requerente inscrever o excesso de IVA em reporte no Campo 61 da DP de IVA do período de 09/2022.

 

- Que “de acordo com o princípio da continuidade subjacente às operações de fusão e de cisão‑fusão, as obrigações declarativas e de pagamento de imposto mantêm-se para todas as sociedades participantes, incluindo a incorporante, até ser efetuado o registo definitivo da operação de cisão-fusão, assumindo aquela última todas as obrigações das sociedades cindidas/fundidas a partir daquele registo”;

 

- Que “ao abrigo do regime da neutralidade fiscal previsto na legislação fiscal, o legislador fiscal quis fazer corresponder um conjunto de efeitos fiscais a um negócio de estruturação societário, estabelecendo uma regulamentação especial visando salvaguardar o princípio da neutralidade fiscal, com o objetivo de acompanhar determinadas realidades societárias, como por exemplo, quando se verifica a continuidade do exercício das atividades incorporadas – como foi aqui o caso –, agora por meio da sociedade incorporante, o mesmo acontecendo aos direitos e obrigações da sociedade cindida e sociedades incorporadas, determinando-se que, para efeitos fiscais e ao abrigo deste regime, tudo se passa como se operação de cisão-fusão nunca tivesse ocorrido.”;

 

- Que “no que respeita ao tratamento da cisão-fusão em sede de IVA, as operações de fusão e as operações de cisão-fusão encontram-se abrangidas pela regra de não sujeição nos termos do n.º 4 do artigo 3.º do Código do IVA”;

 

- Que “na sequência da concretização de uma operação de cisão-fusão, como aquela que aqui ocorreu, e ao abrigo do regime da neutralidade fiscal que lhe esteja subjacente – como é aqui o caso – é transmitido para a sociedade beneficiária da operação – in casu, a Requerente – o direito de dedução do IVA suportado ainda pelas sociedades fundidas/cindidas, a ser exercido nos termos do n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA.”;

 

- Que “a sociedade incorporante, com esta operação, irá dar continuidade à atividade económica desenvolvida pelas sociedades incorporadas/cindidas”;

 

- Que “o princípio da intransmissibilidade dos créditos de IVA não pode ter – e, de resto, não tem – aplicação no caso de cisão-fusão de sociedades a que seja aplicado o regime de neutralidade fiscal, como foi aqui o caso, tal operação de cisão-fusão ou qualquer outra operação de reestruturação realizado ao abrigo da neutralidade fiscal exige a transmissão integral dos direitos e obrigações das sociedades incorporadas/cindidas para a sociedade incorporante que estejam subjacentes e sejam inerentes ao ramo de atividade transmitido.”;

 

- Que “os créditos referentes às sociedades incorporadas/cindidas antes da data da cisão-fusão, bem como o direito ao seu reembolso ou o seu direito à utilização do crédito de IVA em reporte à data da operação de cisão-fusão realizada ao abrigo do regime da neutralidade fiscal, como foi aqui o caso, transferem-se, na íntegra, para a sociedade incorporante – a aqui Requerente.”;

 

- Que a “Requerente procedeu – e bem – ao reporte do crédito de IVA das sociedades incorporadas”;

 

- Que “o crédito de IVA resultante da incorporação a B..., Unipessoal, Lda., no valor de 24.130,82 Euro, (…) resultou do imposto suportado em obras de recuperação e adaptação de um prédio sito na Rua ..., n.º..., ...-... Porto, na parte e montantes não deduzidos ao IVA liquidado nas rendas cobradas ao abrigo de contrato de locação”;

 

- Que o “crédito de IVA resultante da incorporação da C..., S.A., no valor de 393.077,76 Euro, resultou das obras de construção de um conjunto comercial destinado a comércio e serviços, denominado de “...””;

 

- Que “o crédito de IVA resultante da incorporação da I..., S.A., no valor de 27.475,77 Euro, reporta-se ao IVA deduzido relativo a despesas de início da obra de ampliação/ alteração no prédio sito na ..., n.ºs ... e ..., ..., n.º ... e Rua ... n.ºs ... e..., da União de freguesias de ... ... ”;

 

- Que a “Requerente deu continuidade à atividade económica desenvolvida pelas sociedades incorporadas e cindidas”;

 

- Que “os créditos referentes às sociedades incorporadas antes da data da cisão fusão, bem como o direito ao seu reembolso ou à utilização do crédito de IVA em reporte à data da operação de cisão-fusão realizada ao abrigo do regime de neutralidade fiscal, como é aqui o caso, transferem-se, na íntegra, para a sociedade incorporante (a Requerente)”;

 

- Que “embora não exista norma que regule as transferências dos créditos de IVA em situações de cisão-fusão com neutralidade fiscal, deve admitir-se o reporte dos créditos de IVA das sociedades cindidas/fundidas para a sociedade resultante da fusão/cisão – in casu, a Requerente – quando, como foi aqui o caso, a operação ocorrer ao abrigo do regime da neutralidade fiscal”;

 

- Que a “Requerente, aquando do preenchimento da DP de IVA 09/2022, teve em conta os créditos de IVA em excesso (e em reporte) das sociedades incorporadas/cindidas“;

 

- Que “a AT deveria ter considerado a totalidade do crédito inscrito no Campo 61 da DP de IVA apresentada pela Requerente (…) e que era referente às sociedades fundidas/cindidas, objeto da operação de cisão-fusão aqui em causa;

 

- Que “não o tendo feito, emitiu um ato tributário em violação do princípio da continuidade e da neutralidade fiscal, incorrendo em evidente erro sobre os pressupostos de Direito, padecendo, por conseguinte, tal liquidação de vício de ilegalidade, devendo a mesma ser anulada nos termos gerais – o que se peticiona.”;

 

- Que “são devidos juros indemnizatórios contados desde a data do pagamento da prestação tributária indevida até ao seu integral reembolso.”;

 

Na sua resposta, a AT alegou, em suma, o seguinte:

 

- Que “um dos requisitos essenciais, para a alegada neutralidade do IVA, é que se trate de sujeitos passivos que realizem exclusivamente operações que conferem direito à dedução, nos termos do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA.”;

 

- Que “(q)uando o adquirente não seja um sujeito passivo que pratique exclusivamente operações tributadas, como aqui sucede, a administração fiscal deve adotar as “medidas regulamentares adequadas”, nomeadamente, a limitação do direito à dedução, seguindo os critérios enunciados no ponto 6 do Ofício-Circulado n.º 134850/89”;

 

- Que é “sempre necessária a intervenção da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT)”;

 

- Que no “período 2022-09, na DP submetida em 2022-11-18, a Requerente apurou um crédito de IVA de 377.067,11 €, ao passo que os Serviços da AT, apuram IVA e entregar de 67.617,24 €.”;

 

- Que “sem comunicação prévia e intervenção da AT, a Requerente não poderia incluir na DP, referente ao período 2022-09, um excesso a reportar de 479.390,34 €, quando da DP anterior (do período 2022-08) apenas resultou um excesso a reportar de 34.705,99 €.”;

 

- Que a “intervenção da Inspeção Tributária afigura-se também necessária para o controlo das deduções efetuadas, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 26.º do Código do IVA e no regime da renúncia à isenção do IVA nas operações relativas a bens imóveis, a que se refere o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 21/07, de 29 de janeiro, e artigo 12.º, n.º 6 do Código do IVA.”.

 

1.2. Da legalidade da liquidação adicional de IVA

 

Nos exatos termos em os autos foram delimitados pelas partes no PPA e na respetiva Resposta da AT, o thema decidendum nos presentes autos consiste em saber se a Requerente, na sequência da concretização de uma operação de cisão-fusão, devidamente registada e publicitada, e ao abrigo do regime da neutralidade fiscal que lhe esteja subjacente, beneficia dos créditos transferidos das sociedades cindidas/incorporadas, C..., S.A., no montante de € 393.077,76, I..., S.A., no montante de € 27.475,77 e B..., Unipessoal, Lda., no montante de € 24.130,82, respetivamente, estes no montante total de € 444.684,35, e podendo refleti-los no Campo 61 da Declaração Periódica de IVA, referente ao período de setembro de 2022, ou se, ao invés, sem comunicação prévia da fusão-cisão à AT e intervenção da mesma, a Requerente não poderia incluir em tal declaração um excesso a reportar de 479.390,34 €, que incluía os créditos transmitidos, para além dos valores que resultavam da declaração periódica de IVA anterior da Requerente (do período 2022-08).

 

No entender da Requerente, os créditos referentes às sociedades incorporadas antes da data da cisão-fusão, bem como o direito ao seu reembolso ou à utilização do crédito de IVA em reporte à data da operação de cisão-fusão realizada ao abrigo do regime de neutralidade fiscal, transferem-se, na íntegra, para a sociedade incorporante, aqui Requerente.

 

No entender da AT, tal não é possível sem comunicação prévia da fusão-cisão à AT e intervenção da mesma ao nível de uma inspeção tributária, para controlo das deduções efetuadas, podendo a AT adotar as “medidas regulamentares adequadas”, nomeadamente, a limitação do direito à dedução, seguindo os critérios enunciados no ponto 6 do Ofício-Circulado n.º 134850/89”, quando o adquirente não seja um sujeito passivo que pratique exclusivamente operações tributadas.

 

Como decorre da matéria de facto dada como provada, a operação de cisão-fusão, através da qual a sociedade incorporante manteve, para efeitos fiscais, os ativos e passivos transferidos pelos mesmos valores que se encontram contabilizados nas sociedades cindidas e incorporadas, foi devidamente registada em 1 de julho de 2022 na Conservatória do Registo Comercial e devidamente publicitada em 4 e 5 de julho de 2022 em www.mj.gov.pt/publicações.

 

Como decorre também da matéria de facto dada como provada:

- em 19 de novembro de 2022, a Requerida emitiu a liquidação de IVA (Demonstração de liquidação de IVA nº 2022...), referente ao período 2022-09, no montante a pagar € 67.617,24, donde consta a seguinte fundamentação: “Liquidação efetuada nos termos do art. 87.º do CIVA e em resultado da correção automática da declaração periódica enviada para o período indicado, de que resultou falta de entrega de imposto ao Estado” (sublinhado nosso).

- na liquidação adicional de IVA, a Requerida corrigiu automaticamente o montante de € 479.390,34, reportado de crédito de IVA, retirando o montante de € 444.684,35 relativo aos créditos transferidos das sociedades cindidas/incorporadas, e reduziu o reporte de crédito de IVA para o valor € 34.705,99;

- a Requerente deu continuidade às atividades económicas desenvolvidas pelas sociedades incorporadas e cindidas.

 

Vejamos:

 

A fusão vem prevista no artigo 97.º do Código das Sociedades Comerciais (CSCom), ao estatuir que “[d]uas ou mais sociedades, ainda que de tipo diverso, podem fundir-se mediante a sua reunião numa só” (n.º 1).

 

Nos termos do n.º 4 do citado artigo, a fusão pode realizar-se:

a) Mediante a transferência global do património de uma ou mais sociedades para outra e a atribuição aos sócios daquelas de partes, ações ou quotas desta;

b) Mediante a constituição de uma nova sociedade, para a qual se transferem globalmente os patrimónios das sociedades fundidas, sendo aos sócios destas atribuídas partes, ações ou quotas da nova sociedade.

 

A fusão de sociedades encontra-se sujeita a registo (cfr. artigo 111.º do CSCom), produzindo-se os seguintes efeitos “[c]om a inscrição da fusão no registo comercial:

a) Extinguem-se as sociedades incorporadas ou, no caso de constituição de nova sociedade, todas as sociedades fundidas, transmitindo-se os seus direitos e obrigações para a sociedade incorporante ou para a nova sociedade;

b) Os sócios das sociedades extintas tornam-se sócios da sociedade incorporante ou da nova sociedade” (cfr. artigo 112.º do CSCom).

(sublinhado nosso)

 

Por sua vez, a cisão vem prevista no artigo 118.º do CSCom, nos seguintes termos:

1 - É permitido a uma sociedade:

 a) Destacar parte do seu património para com ela constituir outra sociedade;

 b) Dissolver-se e dividir o seu património, sendo cada uma das partes resultantes destinada a constituir uma nova sociedade;

 c) Destacar partes do seu património, ou dissolver-se, dividindo o seu património em duas ou mais partes, para as fundir com sociedades já existentes ou com partes do património de outras sociedades, separadas por idênticos processos e com igual finalidade.

 2 - As sociedades resultantes da cisão podem ser de tipo diferente do da sociedade cindida”.

 

Em face do disposto no artigo 120.º do CSCom, “É aplicável à cisão de sociedades, com as necessárias adaptações, o disposto relativamente à fusão”.

 

Em sede de IVA, importa ter presente o n.º 4 do artigo 3.º do Código do IVA (CIVA), que estatui que “[n]ão são consideradas transmissões as cessões a título oneroso ou gratuito do estabelecimento comercial, da totalidade de um património ou de uma parte dele, que seja susceptível de constituir um ramo de actividade independente, quando, em qualquer dos casos, o adquirente seja, ou venha a ser, pelo facto da aquisição, um sujeito passivo do imposto de entre os referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º”.

 

No n.º 5 do mesmo artigo 3º ressalva-se que “(…) a administração fiscal adopta as medidas regulamentares adequadas, nomeadamente a limitação do direito à dedução, quando o adquirente não seja um sujeito passivo que pratique exclusivamente operações tributadas”.

 

Nesta conformidade, vem a AT alegar que no ponto 6 do Ofício-Circulado n.º 134850, de 21 de novembro de 1989, da então Direção de Serviços de Conceção e Administração do IVA, se determina que:

“[…]

6.1 O n.º 4 do artigo 3.º do Código do IVA não será aplicável sempre que o adquirente seja um sujeito passivo isento ou esteja abrangido pelo regime dos pequenos retalhistas pois, num caso e noutro, não pratica quaisquer operações tributadas a jusante;

6.2 Quando o adquirente for, nos termos do art.º 23º do CIVA, um do sujeito passivo misto, isto é, quando pratique operações que conferem o direito à dedução, simultaneamente com operações que não conferem esse direito, deverá observar-se o seguinte:

6.2.1 Se o regime seguido pelo adquirente, para efeitos do exercício do direito à dedução (art.º 23.º), for o de percentagem de dedução ("prorata"), manter-se-á a aplicação do nº 4 do artigo 3.º, mas o referido adquirente deverá proceder a uma regularização a favor do Estado, correspondente à diferença entre o montante do IVA que lhe teria sido liquidado se a transmissão fosse tributada e o que resulta aplicação do prorata ao mesmo montante.

6.2.2 Se o regime for o da afectação real, haverá ou não haverá liquidação de IVA, conforme o estabelecimento transmitido for afecto, respectivamente, ao(s) sector(es) que não confere(m) o direito à dedução ou ao sector(es) que confere(m) esse direito”.

 

No caso em análise, entende o Tribunal que as fusões–cisões se regem por um princípio de continuidade da atividade, assumindo a sociedade incorporante os direitos, créditos e obrigações da sociedade incorporada (inclusive, ao nível da dedução do IVA de faturas que tenham ainda sido emitidas em nome da incorporada, mas cujo exercício do direito à dedução apenas ocorre na esfera da incorporante).

 

O direito à dedução faz parte integrante do mecanismo do IVA, sendo garante de uma correta aplicação do princípio basilar da neutralidade do imposto e não pode, em princípio, ser limitado, de onde decorre que qualquer limitação ao mesmo deve ser interpretada restritivamente.

 

Do princípio de continuidade subjacente à operação de fusão decorre que a sociedade resultante da fusão assume os direitos e obrigações das sociedades fundidas, incluindo, como reconhecido pela doutrina e acolhido genericamente na jurisprudência, os respeitantes a matérias fiscais.

 

Como vem afirmando o STA em várias decisões (veja-se, nomeadamente, os Acórdãos de 16 de Setembro de 2009, processo 0372/09, e de 10 de Fevereiro de 2010, processo 0925/09, disponíveis em www.dgsi.pt) “independentemente da posição que se assuma acerca da natureza jurídica da fusão (…), a extinção da personalidade jurídica própria da sociedade incorporada por fusão não tem por efeito a extinção dos seus direitos e deveres, antes, por expressa disposição legal estes se “transmitem” para a sociedade incorporante, seja porque esta sucede aquela, em conformidade com a teoria da sucessão universal, seja porque as situações jurídicas de que era titular a sociedade incorporada permanecem inalteradas ao longo do processo de fusão para se reunirem numa nova entidade, em conformidade com a teoria do acto modificativo”. Neste sentido, conclui que, “ (…) por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 112.º do CSC, para a sociedade incorporante “se transmitem” ou nela “se reúnem”, como efeito da inscrição da fusão no registo comercial, os direitos e obrigações da sociedade incorporada, não sendo as obrigações fiscais excepção a essa regra (…).” (cfr. Acórdão do STA de 16 de Setembro de 2009, já citado, e Acórdão de 23 de Setembro de 2009, processo 0370/09).

 

No que respeita especificamente ao IVA, a assunção pela sociedade resultante da fusão-cisão dos direitos e obrigações das sociedades fundidas-cindidas implica passar a incumbir-lhe dar cumprimento às obrigações impostas pela legislação deste imposto pela atividade que desenvolve, ainda que tais obrigações respeitem a factos tributários ocorridos na esfera das sociedades fundidas-cindidas antes da fusão, bem como responder pelas dívidas fiscais daquelas.

 

Como salienta Cidália Lança, “Na mesma ordem de ideias, entende-se que a sociedade resultante da fusão pode, nos termos previstos nos artigos 19.º e seguintes do CIVA, exercer o direito à dedução do imposto suportado para a realização de operações efectuadas pelas sociedades fundidas em data anterior à fusão, desde que tal direito não tenha já sido exercido na esfera destas últimas. Estarão nestas circunstâncias facturas cuja emissão possa ocorrer já após a fusão, mas também facturas com data anterior mas que sejam recepcionadas pela sociedade fundida após aquela data. O direito à dedução do IVA inserido em tais facturas deve ser exercido em declaração periódica apresentada pela sociedade resultante da fusão relativa ao período em que ocorreu a sua recepção ou a período posterior àquele. Importa referir que a circunstância de a factura estar emitida em nome de uma sociedade fundida não deve obstar ao exercício do direito à dedução pela sociedade resultante da fusão; tal é uma decorrência de nela terem sido incorporados os direitos das sociedades fundidas, mas também do efeito de neutralidade que está inerente à aplicação da regra de não sujeição a tais tipos de reestruturações empresariais”. Assim, prossegue a Autora, “o princípio da intransmissibilidade dos créditos de IVA não pode ter aplicação de forma absoluta no caso de fusão de sociedades, dado esta implicar necessariamente a transmissão dos direitos e obrigações das sociedades fundidas para a sociedade resultante da fusão (cfr. artigos 97.º e 112.º do Código das Sociedades Comerciais/CSC)”.

(CIDÁLIA LANÇA, “O tratamento em IVA da fusão de sociedades”, in Fiscalidade, n.º 46, Abril-Junho de 2011, pp. 91-103.

 

Esta interpretação é a que, face ao quadro legal em vigor, é acolhida, por exemplo, no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 15 de Junho de 2004, processo 01162/03, no qual, seguindo a posição doutrinária de que a fusão implica a integração da personalidade e capacidade jurídica da sociedade incorporada na sociedade incorporante, se decidiu que “… para efeitos de IVA, (…) de acordo com os princípios que regem a liquidação deste imposto, tudo aconselha que a sociedade incorporante processe e contabilize os créditos e débitos de imposto como se de uma única sociedade se tratasse, entregando ou ficando com crédito de imposto consoante o que dos saldos resultar.

 

No mesmo sentido, relativamente aos direitos e obrigações fiscais, se pronunciou o Ac. do TCA Sul de 13-10-2017, proferido no processo 09525/16 e disponível em http://www.dgsi.pt, também no sentido de que, por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 112.º do CSC, para a sociedade incorporante “se transmitem” ou nela “se reúnem”, como efeito da inscrição da fusão no registo comercial, os direitos e obrigações da sociedade incorporada, não sendo as obrigações fiscais excepção a esta regra, ….. pois que esta sociedade (incorporante) ….. sucedeu àquela ou, noutra concepção, sempre será responsável pelo seu pagamento (cfr. a alínea b) do n.º 1 do artigo 204.º do CPPT, a contrario).

 

Quanto ao Ofício-Circulado n.º 134850, de 21 de novembro de 1989, da então Direção de Serviços de Conceção e Administração do IVA, invocado pela AT, importa referir o seguinte.

 

Preceitos criados por atos de natureza legislativa não podem ser, com eficácia externa, interpretados, integrados, modificados, suspensos ou revogados por atos de outra natureza (artigo 112.º, n.º 5, da CRP).

 

Para além disso, a definição dos pressupostos da tributação é matéria sujeita ao princípio da legalidade, desde logo por força do disposto no artigo 103.º, n.º 2, da CRP que estabelece que «os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes».

 

Este princípio da legalidade é reafirmado e ampliado pela LGT, no seu artigo 8.º.

 

É, assim, manifesto que as normas relativas à liquidação de tributos, designadamente, as que definem a incidência e os benefícios fiscais, estão subordinadas ao princípio da legalidade, estando consequentemente afastada a possibilidade de, por via administrativa, serem criadas normas de que resulte uma efetiva oneração para os contribuintes.

 

É nosso entendimento que nada impede que a AT emita uma circular de que consta o seu entendimento sobre aplicação de disposições do CIVA, pois tal possibilidade de emissão de orientações genéricas vinculativas para os seus serviços está prevista no artigo 68.º-A da LGT.

 

Como resulta do n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT e tem sido pacificamente entendido, as circulares apenas têm eficácia vinculativa para a Autoridade Tributária e Aduaneira, tendo efeitos externos apenas de natureza informativa para os contribuintes, que podem saber antecipadamente qual o entendimento que será por aquela adotado.

 

Nesta linha, pode ver-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 42/2014, de 09-01-2014, proferido no processo n.º 564/12, na esteira de Casalta Nabais, Direito Fiscal, 5.ª edição, página 201, em que se refere:

“Trata-se «de regulamentos internos que, por terem como destinatário apenas a administração tributária, só esta lhes deve obediência, sendo, pois, obrigatórios apenas para os órgãos situados hierarquicamente abaixo do órgão autor dos mesmos.

Por isso não são vinculativos nem para os particulares nem para os tribunais. E isto quer sejam regulamentos organizatórios, que definem regras aplicáveis ao funcionamento interno da administração tributária, criando métodos de trabalho ou modos de atuação, quer sejam regulamentos interpretativos, que procedem à interpretação de preceitos legais (ou regulamentares).

É certo que eles densificam, explicitam ou desenvolvem os preceitos legais, definindo previamente o conteúdo dos atos a praticar pela administração tributária aquando da sua aplicação. Mas isso não os converte em padrão de validade dos atos que suportam.

Na verdade, a aferição da legalidade dos atos da administração tributária deve ser efetuada através do confronto direto com a correspondente norma legal e não com o regulamento

interno, que se interpôs entre a norma e o ato.

Esses atos, em que avultam as “circulares”, emanam do poder de auto-organização e do poder hierárquico da Administração. Contêm ordens genéricas de serviço e é por isso e só no respetivo âmbito subjetivo (da relação hierárquica) que têm observância assegurada.

Incorporam diretrizes de ação futura, transmitidas por escrito a todos os subalternos da autoridade administrativa que as emitiu. São modos de decisão padronizada, assumidos para racionalizar e simplificar o funcionamento dos serviços. Embora indiretamente possam proteger a segurança jurídica dos contribuintes e assegurar igualdade de tratamento mediante aplicação uniforme da lei, não regulam a matéria sobre que versam em confronto com estes, nem constituem regra de decisão para os tribunais.”

 

Por conseguinte, não sendo ilegal a emissão de circulares que interpretem diplomas legislativos com eficácia interna, a ilegalidade de atos em matéria tributária que apliquem os entendimentos nelas perfilhados não pode derivar da sua aplicação em si mesma, mas, apenas, da ilegalidade desse entendimento em face do regime legal aplicável previsto no diploma legislativo interpretado.

 

Agora, uma coisa é a AT, proceder, no âmbito inspetivo, à verificação da legalidade das deduções de IVA no âmbito das sociedades envolvidas no processo de fusão-cisão, por entender que a “intervenção da Inspeção Tributária afigura-se também necessária para o controlo das deduções efetuadas, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 26.º do Código do IVA e no regime da renúncia à isenção do IVA nas operações relativas a bens imóveis, a que se refere o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 21/07, de 29 de janeiro, e artigo 12.º, n.º 6 do Código do IVA.”.

 

Outra coisa, bem diversa, é a AT, na sequência da apresentação de uma declaração periódica de IVA pelo contribuinte, proceder à emissão de uma liquidação adicional de IVA que corrigiu automaticamente o montante reportado de crédito de IVA pela sociedade incorporante relativo aos créditos transferidos das sociedades cindidas/incorporadas, por a AT entender que não lhe foi comunicada previamente a operação de fusão-cisão à AT, o que não lhe permitiu efetuar uma inspeção prévia para controlo das deduções efetuadas pelas sociedades envolvidas, e que tal resulta da lei. Não resulta.

 

Dispõe o art. 87.º do CIVA, sob a epígrafe “Rectificação das declarações e liquidações adicionais”, o seguinte:

 

1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 90.º, a Direcção-Geral dos Impostos procede à rectificação das declarações dos sujeitos passivos quando fundamentadamente considere que nelas figure um imposto inferior ou uma dedução superior aos devidos, liquidando adicionalmente a diferença.

2 - As inexactidões ou omissões praticadas nas declarações podem resultar directamente do seu conteúdo, do confronto com declarações de substituição apresentadas para o mesmo período ou respeitantes a períodos de imposto anteriores, ou ainda com outros elementos de que se disponha, designadamente os relativos a IRS, IRC ou informações recebidas no âmbito da cooperação administrativa comunitária e da assistência mútua.

3 - As inexactidões ou omissões podem igualmente ser constatadas em visita de fiscalização efectuada nas instalações do sujeito passivo, através de exame dos seus elementos de escrita, bem como da verificação das existências físicas do estabelecimento.

4 - Se for demonstrado, sem margem para dúvidas, que foram praticadas omissões ou inexactidões no registo e na declaração a que se referem, respectivamente, as alíneas a) do n.º 2 do artigo 65.º e c) do n.º 1 do artigo 67.º, procede-se à tributação do ano em causa com base nas operações que o sujeito passivo presumivelmente efectuou, sem ter em conta o disposto no n.º 1 do artigo 60.º

5 - Quando as liquidações adicionais respeitem a aquisições intracomunitárias de bens não mencionadas pelo sujeito passivo nas suas declarações periódicas de imposto ou a transmissões de bens que os sujeitos passivos considerem indevidamente como transmissões intracomunitárias isentas ao abrigo do artigo 14.º do Regime do IVA nas Transacções Intracomunitárias, considera-se, na falta de elementos que permitam determinar a taxa aplicável, que as operações são sujeitas à taxa prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º, sem prejuízo de a liquidação ficar sem efeito se o sujeito passivo proceder à regularização da sua situação tributária, ilidir a presunção ou demonstrar que a falta não lhe é imputável.

6 - A adopção por parte do sujeito passivo, no prazo de 30 dias a contar da data da notificação a que se refere o artigo 28.º, de um dos procedimentos previstos na parte final do número anterior tem efeitos suspensivos.

(sublinhado nosso).

 

Como se viu, da liquidação adicional de IVA consta a seguinte fundamentação: “Liquidação efetuada nos termos do artº 87º do CIVA e em resultado da correção automática da declaração periódica enviada para o período indicado, de que resultou falta de entrega de imposto ao Estado” (sublinhado nosso).

 

Portanto, é manifesto que, não só a lei não exige uma comunicação prévia à AT da operação de fusão-cisão, como as retificações das declarações de IVA dos sujeitos passivos e emissão de uma liquidação adicional de IVA só pode ocorrer, in casu, “quando fundamentadamente considere que nelas figure um imposto inferior ou uma dedução superior aos devidos, liquidando adicionalmente a diferença” (nº 1 do citado artigo 87º), sem prejuízo de “As inexactidões ou omissões podem igualmente ser constatadas em visita de fiscalização efectuada nas instalações do sujeito passivo, através de exame dos seus elementos de escrita, bem como da verificação das existências físicas do estabelecimento.” (nº 3 do citado artigo 87º). (sublinhado nosso).

 

Como já atrás se disse, «a administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido» (artigo 58.º da LGT), pelo que tinha o dever de diligenciar, na sequência da apresentação da declaração de IVA da Requerente e/ou do pedido de reclamação graciosa, no sentido de apurar a razão dos valores inscritos pela Requerente na declaração periódica de IVA e/ou objeto de reclamação, se necessário através de pedidos de esclarecimento e exames à contabilidade da Requerente.

 

É apenas nas situações em que, após a produção das provas e a realização de diligências necessárias para apurar a factualidade relevante para a decisão, subsistem dúvidas sobre factos em que deve assentar a decisão que funcionam as regras do ónus da prova, valorando procedimentalmente as dúvidas contra aquele a quem é atribuído o ónus da prova.

 

Diversamente, e em violação da lei, a AT procedeu a uma correção automática, não fundamentada, da declaração periódica de IVA da Requerente.

Em jeito de síntese:

A operação de fusão/cisão ocorreu, de facto, em termos válidos, e encontra-se devidamente registada.

O art.º 3 n.º 4 do Código do IVA não exclui a sua aplicação a operações de fusão-cisão entre sujeitos passivos mistos, como é o caso.

E também não exige comunicação prévia à AT, sem prejuízo de a mesma ser recomendada, precisamente para evitar estes problemas derivados de assimetrias de informação.

Ou seja, a comunicação da operação de fusão-cisão não é um requisito legal para a aplicação deste regime de exclusão de imposto.

O ofício-circulado n.º 134850, de 21/11/1989, também permite a aplicação do regime do art.º 3 n.º 4 do Código do IVA a operações de fusão-cisão entre sujeitos passivos mistos, exigindo, no entanto, que se verifique se o adquirente dos créditos deve proceder a uma regularização de imposto a favor do Estado, consoante apure o seu direito à dedução por via de prorata ou afetação real.

Dos elementos disponibilizados não é possível confirmar se a Requerente procedeu, ou se teria de proceder, a alguma regularização de imposto na sua esfera, na sequência da operação de fusão-cisão, conforme é o entendimento da AT expresso no ofício-circulado.

Não obstante, a AT não fundamenta a liquidação oficiosa de IVA na inexistência de uma regularização parcial de imposto que não foi efetuada pelo Requerente.

Diversamente, a emissão da liquidação de IVA foi efetuada de forma automática pelo sistema da AT, com base na divergência de valores de crédito apurados entre a declaração do Requerente e os valores de controlo da AT.

Mesmo que se entendesse que a aplicação do regime do art.º 3 n.º 4 do CIVA implica, in casu, a necessidade de apurar uma eventual regularização de imposto a favor do Estado na esfera do Requerente, a AT não o demonstra, nem o fundamenta.

A AT limitou-se, por isso, a rejeitar na totalidade a transferência de créditos apurados na vigência de uma operação de fusão-cisão, por desconhecimento da mesma, e não verificou, entretanto, se estavam cumpridas as condições que a mesma estabeleceu por via administrativa para o efeito.

Ora, o afastamento tout court do direito à transmissão de créditos de IVA no âmbito de uma operação de fusão-cisão, efetuada ao abrigo do regime da neutralidade fiscal e continuidade da atividade, e que pressupõe a transmissão de todas as obrigações, direitos e créditos existentes na esfera das entidades cindidas/incorporadas para a entidade incorporante, numa lógica de continuidade do negócio, é inadmissível, por contrário à lei e ao princípio da neutralidade fiscal em sede de IVA.

Eventuais dúvidas que se possam suscitar quanto ao correto apuramento dos créditos de imposto em causa (suscitadas pela AT na sua Resposta), podem (e devem) ser averiguadas e confirmadas pela AT em sede de inspeção, mas não constituem fundamento para a manutenção deste ato tributário na ordem jurídica.

Em face do exposto, e sem necessidade de maiores considerações, impõe-se concluir que a liquidação de IVA em crise enferma de vícios de violação de lei (princípios da continuidade e da neutralidade inerentes às operações de fusões-cisões e do princípio do inquisitório), e falta de fundamentação, que justifica a sua anulação, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

Pelo que terá de proceder, na sua totalidade, o pedido apresentado pela Requerente.

 

O indeferimento tácito (presumido) da reclamação graciosa enferma do mesmo vício, já que se mantém a liquidação, devendo igualmente ser anulado.

 

1.3. Da legalidade da liquidação de juros de IVA (juros moratórios)

 

Como se viu, em 19 de novembro de 2022, a Requerida emitiu a liquidação de juros de IVA (Demonstração de liquidação juros de IVA n.º 2022...– juros moratórios), referente ao período 2022-09 e à liquidação de IVA referida em H) da matéria de facto dada como provada, no montante a pagar € 175,45.

 

A liquidação de juros de IVA tem como pressuposto a liquidação adicional de IVA, pelo que enferma dos mesmos vícios.

 

Além disso, o artigo 44.º da LGT prevê a responsabilidade dos contribuintes por juros de mora, estabelecendo que «são devidos juros de mora quando o sujeito passivo não pague o imposto devido no prazo legal».

 

Como resulta desta norma, a responsabilidade por juros de mora tem como pressuposto a existência de «imposto devido» que não seja pago no prazo legal.

 

Por isso, é ilegal a liquidação de juros de mora, igualmente por violação do artigo 44.º, n.º 1, da LGT.

 

Estes vícios justificam igualmente a anulação da liquidação de juros impugnada, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

 

2. Pedido de restituição da quantia paga e juros indemnizatórios

 

A Requerente formula pedido de restituição das quantias arrecadadas pela Requerida, bem como de pagamento de juros indemnizatórios.

 

A Requerida não põe em causa o pagamento do imposto, limitando-se a concluir que o pedido de pronúncia arbitral deverá ser julgado improcedente por não provado, e, consequentemente, absolvida a Requerida de todos os pedidos.

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no art. 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».

 

Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

 

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT (na redação dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redação inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

 

Assim, o n.º 5 do art. 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

 

Por outro lado, dependendo o direito a juros indemnizatórios de direito ao reembolso de quantias pagas indevidamente, que são a sua base de cálculo, está ínsita na possibilidade de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a possibilidade de apreciação do direito ao reembolso dessas quantias.

 

Cumpre, assim, apreciar o pedido de reembolso dos montantes indevidamente pagos e de pagamento de juros indemnizatórios.

 

Pelo que se referiu, o pedido de pronúncia arbitral procede totalmente contra a liquidação adicional de IVA n.º 2022..., no montante de € 67.617,24, bem como contra a liquidação de juros de IVA (Demonstração de liquidação juros de IVA nº 2022...– juros moratórios), no montante de € 175,45, tudo no montante total de € 67.792,69.

 

Por isso, a Requerente tem o direito de ser reembolsada desta quantia global, por força dos referidos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado».

 

Pelo exposto, procede o pedido de reembolso da quantia de € 67.792,69 (sessenta e sete mil setecentos e noventa e dois euros e sessenta e nove cêntimos).

 

A ilegalidade desta liquidação é imputável à AT, pois emitiu-a por sua iniciativa, com errada interpretação da lei.

 

Consequentemente, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT, relativamente ao montante a reembolsar.

 

Os juros indemnizatórios serão pagos desde a data em que a Requerente efetuou o pagamento (1 de fevereiro de 2023) até ao integral pagamento do montante que deve ser reembolsado, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

 

  1. Decisão

 

Em face do exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar improcedente a exceção de caducidade do direito de ação suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira;

 

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto à questão da ilegalidade e pedido de anulação dos atos de liquidação adicional de IVA n.º 2022 ..., no montante de € 67.617,24, e de liquidação de juros de IVA (Demonstração de liquidação juros de IVA nº 2022...– juros moratórios), no montante de € 175,45, bem como do indeferimento tácito da reclamação graciosa;

 

  1. Anular estes atos de liquidação de IVA n.º 2022 ... e de liquidação de juros de IVA (Demonstração de liquidação juros de IVA n.º 2022...– juros moratórios), bem como o indeferimento tácito do procedimento de reclamação graciosa;

 

  1. Julgar procedente o pedido de reembolso da quantia paga, no montante global de € 67.792,69, e condenar a Administração Tributária a pagar este montante à Requerente;

 

  1. Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagá-los à Requerente, nos termos referidos no ponto IV. 2. deste acórdão.

 

VI. Valor do Processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, e 297.º, n.º 2 do C.P.C., do artigo 97.º A n.º 1, al. a) do C.P.P.T. e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 67.792,69 (sessenta e sete mil setecentos e noventa e dois euros e sessenta e nove cêntimos).

 

VII. Custas

 

De acordo com o previsto nos artigos 22.º, n.º 4, e 12.º, n.º 2, do RJAT, no artigo 2.º, no n.º 1 do artigo 3.º e nos n.ºs 1 a 4 do artigo 4.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como na Tabela I anexa a este diploma, fixa-se o valor global das custas em € 2.448,00 (dois mil quatrocentos e quarenta e oito euros), a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 3 de junho de 2024

 

Os Árbitros,

 

 

(Carla Castelo Trindade, Árbitra Presidente)

 

 

 

(Raquel Montes Fernandes, Árbitra Adjunta)

 

 

 

(Pedro Miguel Bastos Rosado, Árbitro Adjunto e Relator)