Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 548/2023-T
Data da decisão: 2024-05-13  IMI Outros 
Valor do pedido: € 243.359,65
Tema: IMI e AIMI – Impugnação do valor patrimonial tributário. Efeitos da intempestividade da impugnação de atos de fixação do valor patrimonial.
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SUMÁRIO:

1.     Os atos de avaliação de valores patrimoniais previstos no CIMI são atos destacáveis, para efeitos de impugnação contenciosa, sendo objeto de impugnação autónoma, não podendo na impugnação dos atos de liquidação que com base neles sejam efetuadas discutir-se a legalidade daqueles atos.

2.     Os vícios de atos de avaliação de valores patrimoniais não podem ser invocados em impugnação de atos de liquidação de AIMI e de IMI que os têm como pressupostos.

3.     A não impugnação tempestiva dos referidos atos de avaliação conduz à formação de caso decidido ou resolvido sobre a avaliação do prédio em causa. 

 

Os Árbitros Guilherme W. d'Oliveira Martins, Vítor Braz e Armando Oliveira, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

  1. RELATÓRIO

A..., S.A., com sede social em ..., freguesia de..., concelho de Loulé, ...-...   ..., titular do número de identificação de pessoa coletiva ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Loulé sob o mesmo número (doravante designada por “Requerente”), veio solicitar a constituição de Tribunal Arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), apresentando PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRA, o qual tem por objeto o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente, a 29 de dezembro de 2022 – cfr. cópia do pedido de revisão que se junta como Documento n.º 1 e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais - contra o ato de liquidação de Imposto Municipal sobre Imóveis (doravante abreviadamente designado de “IMI”), identificado sob o n.º 2019 ... (cfr. Documento n.º 2 que se junta e se dá por reproduzido para todos os efeitos legais) e respetivas notas de cobrança e comprovativos de pagamento, relativas ao período de tributação de 2019 (cfr. cópias que se juntam como Documentos n.ºs 3 a 8 e se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais), bem como do ato de liquidação de Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis (doravante abreviadamente designado de “AIMI”), identificado sob o n.º 2020 ... .

 

É Requerida a AT.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo (TAC) foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à AT no dia 27 de julho de 2023.

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.° e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.° do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 13 de setembro de 2023, que não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos do artigo 11.º n.º1 alíneas a) e b) e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

O TAC encontra-se, desde 3 de outubro de 2023, regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

Notificada para o efeito, a Requerida, apresentou a sua resposta a 14 de fevereiro de 2024.

Por despacho de 17 de novembro de 2023, o TAC proferiu o seguinte despacho sobre o Requerimento da Requerida de 7 de novembro: “Notifique-se a Requerente para se pronunciar, no prazo de 5 dias, sobre o Requerimento proferido pela Requerida em 7/11/2023”.

            Por despacho de 27 de fevereiro de 2024, foi proferido o seguinte despacho:

“1. Admita-se o prazo de 10 dias para junção por parte da Requerente dos documentos solicitados pela Requerida.

2. Notifique-se a Requerida para, a partir da junção dos referidos documentos ou do termo do referido prazo que, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 17.º do RJAT e do n.º 1 do art. 17.º do RJAT, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e, caso queira, solicitar a produção de prova adicional, acrescentando que, deve ser remetido ao tribunal arbitral cópia do processo administrativo dentro do prazo de apresentação da resposta, aplicando-se, na falta de remessa, o disposto no n.º 5 do artigo 110.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

 

3. Designa-se o dia 13 de março de 2024, pelas 10h00 horas, nas instalações do CAAD como nova data para realização da audiência para produção de prova testemunhal.

Notifiquem-se as partes do presente despacho.”

 

Na sequência de pedido da Requerente, foi formulado o seguinte despacho em 12 de março de 2024:

“A pedido da Requerente, considera-se sem efeito a data de audiência marcada para dia 13 de março de 2024.

Designa-se o dia 21 de março de 2024, pelas 14h30 horas, nas instalações do CAAD como nova data para realização da audiência para produção de prova testemunhal.

Notifiquem-se as partes do presente despacho.”

 

A audiência de inquirição de testemunhas foi realizada no dia 21 de março de 2024.

Apenas a Requerente apresentou alegações escritas.

 

  1. DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS

II.1      Posição da Requerente

 

A Requerente fundamenta o seu pedido nos seguintes termos:

  1. A Requerente entende que as liquidações efetuadas são ilegais no montante de € 104.296,99 (cento e quatro mil duzentos e noventa e seis euros e noventa e nove cêntimos), relativamente ao IMI de 2019, e no montante de € 139.062,66 (cento e trinta e nove mil e sessenta e dois euros e sessenta e seis cêntimos), relativamente ao AIMI de 2020.
  2. No que concerne à adequação do presente meio de reação procedimental, a Requerente está ciente de que o n.º 8 do artigo 130.º do Código do IMI prescreve o seguinte: “os efeitos das reclamações, bem como o das correções promovidas pelo chefe do serviço de finanças competente, efetuadas com qualquer dos fundamentos previstos neste artigo, só se produzem na liquidação respeitante ao ano em que for apresentado o pedido ou promovida a retificação”, o que, numa análise superficial, poderia levantar dúvidas quanto à viabilidade da correção de liquidações de IMI e AIMI de anos anteriores, com base em ilegalidades verificadas no apuramento do VPT dos imóveis.
  3. Contudo, tal não será o caso, i.e., a viabilidade da correção de liquidações de IMI e AIMI de anos anteriores, com base em ilegalidades verificadas no apuramento do VPT subjacente às mesmas, não é, de forma alguma, colocada em causa pela norma prevista no n.º 8 do artigo 130.º do Código do IMI.
  4. Tal entendimento seria, inclusivamente, atentatório dos princípios basilares de procedimento tributário, nomeadamente no que respeita aos meios de garantia constitucionalmente atribuídos aos contribuintes para que estes possam fazer valer os seus direitos perante a AT, e que se encontram igualmente previstos na LGT e no CPPT.
  5. Efetivamente, a limitação prevista no n.º 8 do artigo 130.º do Código do IMI apenas tem aplicação relativamente ao expediente previsto no artigo 130.º e seguintes do Código do IMI, o qual consiste numa petição exclusivamente dirigida a inscrições matriciais de imóveis que apresentem incorreções (nomeadamente no que respeita ao apuramento do VPT) e não a atos de liquidação ilegais, pelo que, considerando a data de encerramento das matrizes prevista no artigo 94.º do Código do IMI (i.e., 31 de dezembro de cada ano), é natural que as mesmas apenas possam produzir efeitos a partir do ano em que for apresentado o pedido ou promovida a retificação.
  6. A verdade é que, as possibilidades de correção de ilegalidades no apuramento do VPT de imóveis não se esgotam na faculdade de apresentação de reclamações contra as inscrições matriciais (i.e., não se esgotam na possibilidade de evitar que tais lapsos afetem as liquidações de IMI e de AIMI de anos subsequentes), sob pena de serem perpetuadas no ordenamento jurídico-fiscal, liquidações de IMI e de AIMI de anos anteriores contendo vícios de lei (i.e. liquidações que resultaram de bases tributáveis – VPT - erradamente determinadas).
  7. De facto, o sistema fiscal português assenta num princípio da legalidade, constitucionalmente protegido, prevendo o n.º 3 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) que “Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos (…) cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei”.
  8. Assim, estando as liquidações objeto da presente petição assentes num VPT apurado em violação das regras legais, conforme abaixo se demonstrará, é, naturalmente, de concluir que a Requerente não poderia ser obrigada a suportar o imposto que dele resultou, sob pena de violação do direito constitucionalmente protegido acima citado.
  9. O princípio da legalidade, constitucionalmente consagrado, encontra igualmente expressão na LGT e demais legislação tributária, a qual reforça, de forma patente, que a liquidação de impostos tem de cumprir, escrupulosamente, com os requisitos e normas legalmente previstos.
  10. Com efeito, atente-se ao artigo 8.º da LGT, sob a epígrafe “Princípio da legalidade tributária”, o qual estabelece que “estão sujeitos ao princípio da legalidade tributária a incidência (…)”, bem como “a liquidação e cobrança dos tributos,” resultando daqui claro que não deverão subsistir na ordem jurídico-fiscal liquidações de imposto assentes em bases tributáveis (neste caso o VPT) apuradas com violação das normas legais.
  11. É, também, com o intuito de proteger este princípio da legalidade previsto no n.º 3 do referido 103.º da CRP e no artigo 8.º da LGT, que são atribuídas garantias ao contribuinte para tutelar plena e efetivamente os seus direitos e interesses legalmente protegidos (nomeadamente a anulação de ilegalidades verificadas no passado), como é o caso do direito de acesso à justiça tributária previsto no artigo 9.º da LGT, o qual prevê no seu n.º 2 que “[t]todos os atos em matéria tributária que lesem direitos ou interesses legalmente protegidos são impugnáveis ou recorríveis nos termos da lei”.
  12. Como expressão deste direito de acesso à justiça tributária, a alínea a) do artigo 99.º do CPPT estabelece que “[c]constitui fundamento de impugnação qualquer ilegalidade, designadamente (...) errónea qualificação e quantificação dos rendimentos, lucros, valores patrimoniais e outros factos tributários”.
  13. Neste contexto, o artigo 129.º do Código do IMI refere expressamente que “Os sujeitos passivos do imposto, para além do disposto no tocante às avaliações, podem socorrer-se dos meios de garantia previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
  14. De facto, é o próprio legislador do Código do IMI a reconhecer expressamente a possibilidade de o contribuinte se socorrer dos meios de garantia previstos na LGT e no CPPT (e.g., designadamente a possibilidade de solicitar a revisão oficiosa de atos tributários) em adição aos meios de garantia especificamente previstos no Código do IMI ao referir, no n.º 1 do artigo 129.º do Código do IMI  - “para além do disposto no tocante às avaliações” - sublinhado da Requerente - , ficando claramente demonstrado que o procedimento de contestação das avaliações e de reclamação da matriz previsto no artigo 130.º se afigura como garantia adicional ao dispor do contribuinte, especificamente aplicáveis ao IMI e ao AIMI, não impedindo o recurso aos restantes meios de garantia disponíveis para contestação de atos de liquidação feridos de ilegalidade.
  15. Neste contexto, dispõe a alínea c) do n.º 1 do artigo 115.º do Código do IMI que “sem prejuízo do disposto no artigo 78.º da Lei Geral Tributária, as liquidações são oficiosamente revistas: (…) quando tenha havido erro de que tenha resultado coleta de montante diferente do legalmente devido”.
  16. Por seu turno o n.º 1 do artigo 78.º da LGT determina que a "revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços." (sublinhado da Requerente).
  17. A relação entre o artigo 78.º da LGT e o artigo 115.º do Código do IMI é uma relação de “norma geral vs. norma especial”, i.e., o artigo 78.º da LGT será inteiramente aplicável aos atos tributários de IMI e de AIMI (designadamente por remissão do n.º 1 do artigo 129.º do Código do IMI) a não ser que o artigo 115.º disponha em sentido contrário ou regule a situação em causa de forma especial – veja -se neste sentido António Santos Rocha e Eduardo José Martins Brás (in “Tributação do Património – IMI-IMT e Imposto do Selo (Anotados e comentados”, Ed. Almedina, 2015, pp. 300): “Tendo em atenção a relação entre ambas, a LGT considerada como de enquadramento ou lei geral, e o Código do IMI considerado como de detalhe ou lei especial, sempre se terá de concluir que, as regras revisão oficiosa da liquidação previstas pelo art. 78.º LGT são inteiramente aplicáveis ao IMI, a menos que, esse disponha especificamente de forma diversa”.
  18. A este respeito, também como referem António Santos Rocha e Eduardo José Martins Brás, o artigo 115.º do Código do IMI limita-se a detalhar “algumas situações que, de forma mais evidente, são verificadas em sede de IMI” – cfr. obra e páginas citadas.
  19. Ora, considerando que, no caso em apreço, não está em causa um atraso na atualização das matrizes (cfr. alínea a) do n.º 1 do artigo 115.º), o resultado de uma nova avaliação (cfr. alínea b) do n.º 1 do artigo 115.º), um erro de que tenha resultado coleta de montante diferente do legalmente devido (cfr. alínea c) do n.º 1 do artigo 115.º) ou o reconhecimento de uma isenção (cfr. alínea d) do n.º 1 do artigo 115.º), a Requerente entende que serão aplicáveis os fundamentos e as regras gerais, previstas no artigo 78.º da LGT.

 

II.2. Posição da Requerida

 

Por seu turno, a Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:

  1. Nos presentes autos vem requerida a declaração de ilegalidade dos atos de liquidação com fundamento na errónea aplicação da majoração de 25%, prevista no artigo 39.o do CIMI, na avaliação dos terrenos para construção identificados nos autos.
  2. A jurisprudência tem entendido que na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção, na redação do artigo 45.º do CIMI anterior a 1 de janeiro de 2021, não há lugar à consideração do coeficiente de afetação e do coeficiente de localização, pelo que a aplicação dos referidos coeficientes avaliativos acarreta a ilegalidade do ato de fixação de valores patrimoniais.
  3. Enquanto proprietária dos referidos imóveis a Requerente é sujeito passivo do AIMI, nos termos do artigo 135.º-A do CIMI para os anos de 2019 e 2020, correspondendo o valor tributável aos valores patrimoniais tributários reportados a 1 de janeiro dos anos a que respeita o imposto, que constam nas matrizes prediais, na respetiva titularidade.
  4. Aqui chegados, cumpre relembrar que em causa nos presentes autos está o cálculo do VPT dos terrenos para construção, nomeadamente se houve lugar à aplicação indevida dos coeficientes previstos no artigo 38.º do CIMI.
  5. Importa desde já sublinhar que a Autoridade Tributária acolheu o entendimento preconizado pelos tribunais superiores no sentido que na determinação do VPT dos terrenos para construção, releva a regra específica constante do artigo 45.º do CIMI e não outra, não sendo considerados os coeficientes previstos na expressão matemática do artigo 38.º do CIMI, tais como os coeficientes de localização, de afetação, de qualidade e conforto.
  6. Donde, verifica-se ausência de litígio quanto à forma de cálculo aplicável para determinar o VPT dos terrenos para construção.
  7. Assim, não assiste qualquer razão à Requerente porquanto os atos de liquidação não enfermam de qualquer ilegalidade.

 

 

  1. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vide artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

O processo não enferma de nulidades.

  1. Fundamentação

IV.1.    Matéria de facto

 

Factos dados como provados

Considera-se como provada a seguinte matéria de facto:

  1. A Requerente é um Fundo Especial de Investimento Imobiliário Fechado que se dedica às atividades registadas sob os CAE Principal 68100 – Compra e Venda de Bens Imobiliários e CAE
  2. A Requerente é proprietária dos terrenos para construção da freguesia de ... (...) e de ... (...) do concelho do Entroncamento identificados no documento n.º 4 do ppa.
  3. No que respeita ao AIMI ora em discussão, foram emitidas as liquidações n.os 2019..., no valor de €11 843,43; e 2020  ... no valor de € 11 965,59, que correspondem às consequentes notas de cobrança 2019 ... e 2020 ... com referência aos anos 2019 e 2020, tendo por base o VPT inscrito nas respetivas matrizes em 1 de janeiro dos respetivos anos, conforme estipulado no n.º 1 do artigo 135.º-G do CIMI.
  4. A Requerente requereu a promoção da revisão oficiosa dos atos de liquidação de IMI e AIMI identificados supra, referentes aos períodos de tributação de 2019 e 2020 – cfr. Documento n.º 1 reproduzido.
  5. O pedido de revisão oficiosa mencionado teve como propósito impugnar o montante de imposto apurado pela Autoridade Tributária (doravante abreviadamente designada de “AT”), uma vez que a liquidação de tais tributos resulta de um manifesto erro imputável aos serviços, do qual resultou o apuramento do montante de imposto a pagar superior ao devido.
  6. Com efeito, a Requerente entende que as liquidações de IMI e de AIMI em apreço foram emitidas pela AT em violação da legislação em vigor à data dos factos, razão pela qual veio requerer a sua revisão, à luz do n.º 1 do artigo 129.º do Código do IMI e do artigo 78.º da Lei Geral Tributária.
  7. Assim, a Requerente apresentou o pedido de revisão oficiosa do ato de liquidação de IMI e AIMI – cfr. Documentos n.ºs 2 e 9 reproduzidos –, com base no disposto no artigo 78.º, n.º 1, da LGT: “a revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços”, relativamente aos terrenos de construção identificados na tabela que se junta como Documento n.º 11 que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

 

Factos dados como não provados

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária, e em factos não questionados pelas partes.

 

Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

A matéria de facto foi fixada por este TAC e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, cfr. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, cfr. n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo n.º 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

IV. 2. Matéria de Direito

 

Os Requerentes vêm impugnar atos de liquidação de Imposto Municipal sobre Imóveis (doravante abreviadamente designado de “IMI”), identificado sob o n.º 2019 ... (cfr. Documento n.º 2) e respetivas notas de cobrança e comprovativos de pagamento, relativas ao período de tributação de 2019 (cfr. cópias com Documentos n.ºs 3 a 8 e se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais), bem como do ato de liquidação de Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis (doravante abreviadamente designado de “AIMI”), identificado sob o n.º 2020 ... (cfr. Documento n.º 9) e respetivo comprovativo de pagamento (cfr. Documento n.º 10), com fundamento em erros dos atos de fixação dos VPTS dos prédios sobre que incidiu o imposto, pelo que é necessário esclarecer se os vícios de atos de avaliação de valores patrimoniais podem ser invocados em impugnação de atos de liquidação de IMI e de AIMI que os têm como pressupostos.

A AT defende globalmente o seguinte: “verifica-se ausência de litígio quanto à forma de cálculo aplicável para determinar o VPT dos terrenos para construção”.

Afigura-se correto este entendimento da AT.

Na verdade, podemos até acrescentar, e seguindo de perto o Processo 540/2020-T, deste Centro[1], por força do preceituado no artigo 15.º do CIMI a avaliação dos prédios urbanos é direta e, por isso, ela é «suscetível, nos termos da lei, de impugnação contenciosa direta» (artigo 86.º, n.º 1, da LGT).

Nos termos do n.º 2 do mesmo artigo 86.º da LGT, «a impugnação da avaliação direta depende do esgotamento dos meios administrativos previstos para a sua revisão».

 

Os termos da impugnação da avaliação direta de valores patrimoniais constam do artigo 134.º do CPPT em que se estabelece que:

 

– «os atos de fixação dos valores patrimoniais podem ser impugnados, no prazo de três meses após a sua notificação ao contribuinte, com fundamento em qualquer ilegalidade» (n.º 1); e

– «a impugnação referida neste artigo não tem efeito suspensivo e só poderá ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação» (n.º 7).

 

Como decorre do n.º 1 do artigo 134.º, ao fixar um prazo especial de três meses para impugnação de atos de fixação de valores patrimoniais e do n.º 7 do mesmo artigo, ao exigir o esgotamento dos meios graciosos, está afastada a possibilidade de essa impugnação se fazer, por via indireta, na sequência da notificação de atos de liquidação que a tenham como pressuposto, como são os de IMI ou de AIMI, sem observância do prazo de impugnação referido e sem esgotamento dos meios de revisão previstos no procedimento de avaliação.

No âmbito do IMI e do AIMI, quando o sujeito passivo não concordar com o resultado da avaliação direta de prédios urbanos, pode requerer ou promover uma segunda avaliação, no prazo de 30 dias contados da data em que o primeiro tenha sido notificado (artigo 76.º, n.º 1, do CIMI).

Só do resultado das segundas avaliações (que esgotam os meios graciosos do procedimento de avaliação) cabe impugnação judicial, nos termos do CPPT (artigo 77.º, n.º 1 do CIMI).

Isto significa que os atos de avaliação de valores patrimoniais previstos no CIMI são atos destacáveis, para efeitos de impugnação contenciosa, sendo objeto de impugnação autónoma, não podendo na impugnação dos atos de liquidação que com base neles sejam efetuadas discutir-se a legalidade daqueles atos.

Assim, o sujeito passivo de IMI e de AIMI pode impugnar as liquidações, mas não são relevantes como fundamentos de anulação eventuais vícios dos antecedentes atos de fixação de valores patrimoniais, que se firmaram na ordem jurídica, por falta de tempestivo esgotamento dos meios graciosos previstos nos procedimentos de avaliações e de subsequente impugnação autónoma a deduzir no prazo de três meses, nos termos dos n.ºs 1 e 7 do artigo 134.º do CPPT.

 

Na verdade, não sendo impugnado tempestivamente o ato de fixação de valores patrimoniais, forma-se caso decidido ou resolvido sobre a avaliação, que se impõe em sede de liquidação de IMI, sendo que «o imposto é liquidado anualmente, em relação a cada município, pelos serviços centrais da Direcção-Geral dos Impostos, com base nos valores patrimoniais tributários dos prédios e em relação aos sujeitos passivos que constem das matrizes em 31 de Dezembro do ano a que o mesmo respeita» (artigo 113.º do CIMI).

A natureza de atos destacáveis que é atribuída aos atos de avaliação de valores patrimoniais é, há muito, reconhecida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo[2], desde o tempo em que regime idêntico ao do artigo 134.º, n.ºs 1 e 7 do CPPT, previsto nos n.ºs 1 e 6 do artigo 155.º do Código de Processo Tributário de 1991, quer em sede de Sisa, quer de contribuição autárquica, quer de IMI, quer de IMT.

 

Podemos até citar a decisão proferida no Processo 540/2020-T, deste Centro[3]:

 

«Na verdade, este regime de impugnação autónoma justifica-se por razões de coerência do sistema jurídico tributário inerentes ao facto de cada ato de avaliação poder servir de suporte a uma pluralidade de atos de liquidação de impostos (liquidações anuais de IMI e eventuais liquidações de IMT) e ser relevante para vários efeitos a nível de IRS (   ), IRC (   ) e Imposto do Selo (   ), o que não se compagina com a possibilidade de plúrima avaliação incidental que se reconduzisse à fixação de diferentes valores patrimoniais tributários para o mesmo prédio, no mesmo momento.

Por outro lado, a caducidade do direito de ação derivada da inércia do lesado por atos administrativos durante um prazo razoável, é generalizadamente justificada por razões de segurança jurídica, necessária para adequado funcionamento da administração pública, que também é um valor constitucional ínsito no princípio do Estado de Direito democrático e é reconhecida generalizadamente em matéria administrativa e tributária.

O prazo de impugnação de três meses para impugnação de atos de fixação de valores patrimoniais é perfeitamente razoável, sendo o prazo geral previsto a lei para a impugnação da generalidade dos atos administrativos com fundamentos geradores de vícios de anulabilidade (artigo 58.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e artigo 102.º do CPPT).

Para além disso, neste caso, a pretensão da Requerente reconduz-se a impugnar, em 2020, atos de avaliação praticados até 2015, muito depois do prazo legal de impugnação de três meses e mesmo depois do decurso do prazo de três anos em que a lei admite a revisão oficiosa de atos de fixação da matéria tributável, com fundamento em injustiça grave ou notória (artigo 78.º, n.º 4 da LGT).

Num Estado de Direito, assente no primado da Lei (artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa), estando os tribunais arbitrais obrigados a decidir «de acordo com o direito constituído» (artigo 2.º, n.º 2, do RJAT), o intérprete tem de acatar os ditames legislativos que não colidam qualquer norma de hierarquia superior, não podendo sobrepor ao entendimento legislativo manifestado na lei os critérios classificativos pessoais que ele próprio eventualmente adotaria se, em vez de ser intérprete, fosse o legislador.»

 

Pelo exposto, os alegados vícios dos atos de avaliação invocados pela Requerente, que não foram objeto de impugnação tempestiva autónoma, não podem ser fundamento de anulação da liquidação de IMI e de AIMI, pelo que improcede necessariamente pedido de pronúncia arbitral quanto aos seguintes atos:

  1. Ato de liquidação de Imposto Municipal sobre Imóveis (doravante abreviadamente designado de “IMI”), identificado sob o n.º 2019... e respetivas notas de cobrança e comprovativos de pagamento, relativas ao período de tributação de 2019;
  2. Ato de liquidação de Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis, identificado sob o n.º 2020..., relativo ao mesmo período.

 

Por isso, as liquidações de IMI e de AIMI não podem ser anuladas com fundamento nos alegados erros nas avaliações dos prédios.

 

  1. DECISÃO

 

Em face do supra exposto, o Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral quanto à anulação dos atos de liquidação de IMI dos anos de 2019 e das liquidações do AIMI dos anos de 2019, com as demais consequências legais;
  2. Condenar a Requerente no pagamento das custas arbitrais.

 

  1. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 243.359,65, nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

  1. Custas

 

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 4.284,00, a pagar pela Requerente, uma vez que o pedido foi totalmente improcedente, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.

Notifique-se.

 

 

Lisboa, 13 de maio de 2024

 

Os Árbitros,

 

 

(Guilherme W. d’Oliveira Martins)

 

 

(Vítor Braz)


 

(Armando Oliveira)

 

 

 

Declaração

  1. A decisão arbitral está em consonância com a uniformização da jurisprudência no sentido de: “Deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário nos termos previstos nos artigos 76.º e 77.º do Código do IMI, não pode arguir a ilegalidade da liquidação com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria colectável.” – Cf. Ac. STA (Pleno) de 23-02-2023, Proc. nº 0102/22.2BALSB.

Nos termos do n.º 3 do art.º 8.º do Código Civil, o julgador, nas decisões que proferir, deve ter em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito. Esse dever é ainda mais vinculante nos casos em que, sobre a questão controvertida, existe acórdão uniformizador de jurisprudência, sem prejuízo de não possuir força obrigatória geral.

Considerando a fundamentação, os valores da segurança e certeza jurídicas, votámos favoravelmente a decisão.

  1. Todavia, em prol do indispensável debate e atento o método teleológico, entende-se oportuno observar, em síntese, o seguinte:
  1. Quanto à determinação do valor patrimonial tributário, o artigo 45.º do CIMI é norma específica na determinação do VPT dos terrenos para construção, o qual resulta do somatório do valor da área de implantação do edifício a construir e do valor do terreno adjacente à construção, não devendo ser incluído o valor do metro quadrado do terreno de implantação. O “valor das edificações autorizadas ou previstas”, previsto no n.º 2, do art.º 45.º, não deve ser entendido como equivalente ao valor de “prédios edificados”, constante do art.º 39.º, ambos do CIMI – cf. Ac. STA, Proc. n.º 0361/21.8BECBR, de 11-01-2024.
  2. Sobre o prazo de impugnação do ato de fixação do VPT, esse prazo é substancialmente inferior ao prazo para impugnar o ato final de liquidação.  Admitindo ser objetivo do legislador encurtar aquele prazo, por forma a consolidar na ordem jurídica o ato de fixação do VPT, tornando-o inimpugnável por via da formação de caso decidido, apresentar-se-ia incoerente a possibilidade de requerer a revisão oficiosa do ato de liquidação com base em “erro de que tenha resultado colecta de montante diferente do legalmente devido”, como previsto no artigo 115.º do CIMI.
  3. Sobre este matéria considera-se, ainda, relevante a distinção entre a componente estritamente técnica do ato de avaliação e a dimensão jurídica do ato de liquidação, designadamente o argumento que “há que entender que a previsão da impugnabilidade direta e imediata, em processo a tal diretamente dirigido, do «resultado das segundas avaliações», como diz a lei, só se mostra «indispensável» quando esteja em causa o resultado da aplicação da lei (das normas que regulam o procedimento de avaliação) num caso concreto, pois é em tal aplicação que poderão estar envolvidos conhecimentos técnicos, não jurídicos, e não, como acontece no presente caso, quando esteja em causa a determinação da lei aplicável à avaliação. Esta é uma questão exclusivamente jurídica, para a qual, por definição, um tribunal é mais qualificado para a precisar que uma comissão de peritos avaliadores.” - Cf. Proc. n.º 760/2020-T de 22-07-2021.
  4. Acresce que os atos de liquidação de IMI podem ser proferidos com base em atos de fixação do VPT realizados há vários anos e que já não são passíveis de impugnação contenciosa direta e autónoma, pelo que os vícios destes atos interlocutórios/intermédios iriam inquinar os atos de liquidação subsequentes sem que existisse a possibilidade de serem sindicados e sanados da ordem jurídica, maxime, quando os destinatários dos atos de liquidação sejam contribuintes subsequentes e que não tiveram a possibilidade de impugnar os atos que determinaram o VPT por não serem à data os proprietários dos prédios em questão.
  5. No sentido das posições enunciadas, recorda-se jurisprudência ao afirmar que: “a impugnabilidade autónoma constitui um desvio ao princípio da impugnação unitária (cfr. artigo 54.º do CPPT), que postula que em princípio só é possível impugnar o acto final do procedimento tributário, por só este apresentar efeitos lesivos na esfera jurídica do contribuinte. Este artigo prevê a possibilidade de impugnabilidade autónoma dos actos imediatamente lesivos e a possibilidade de, na impugnação do acto final de liquidação, serem invocados todos os vícios de que padeçam os actos prévios a essa liquidação (actos instrumentais, preparatórios ou prodrómicos dessa decisão final). – Cf. Ac. STAS, Proc. n.º 2765/12.8BELRS, em 31-10-2019.

 

O Árbitro adjunto,

 

 

 

(Vítor  Braz)

 

 



[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.