Sumário:
- a possibilidade de alteração ou substituição do ato impugnado apenas pode acontecer dentro do prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral (o prazo que, vulgarmente, é designado como sendo o do exercício do direito ao arrependimento pela AT) – nº 1 e nº 3 do art. 13º do RJAT;
- findo tal prazo, a administração tributária fica impossibilitada de praticar novo ato tributário relativamente ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação, a não ser com fundamento em factos novos.
- a ilegalidade, por tal intempestividade, da liquidação “substitutiva” pode ser declarada no processo arbitral inicialmente dirigido à apreciação da “liquidação substituída”, pois configura uma questão prévia em relação à do prosseguimento desse processo,
DECISÃO ARBITRAL
A..., S.A., NIPC..., com sede na ..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa, apresentou, nos termos legais, requerimento pedindo de constituição de tribunal arbitral.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I – RELATÓRIO
a) O Pedido
No P.P.A. o Requerente pedia:
- a anulação da liquidação de IMT n.º ..., de 22 de abril de 2022, no montante total de € 641.666,22, sendo € 632.296,36 relativos a imposto e € 9.369,86 juros compensatórios;
- a anulação do despacho do Exmo. Senhor Diretor de Finanças Adjunto de Lisboa de 30 de outubro de 2023 que indeferiu o recurso hierárquico n.º ...2023...;
- a anulação do despacho da Exma. Senhora Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa – ... de 31 de janeiro de 2023 que indeferiu a reclamação graciosa n.º ...2022...;
Posteriormente, como a seguir se dirá, o Requerente pediu a continuação do processo para apreciação da legalidade da liquidação entretanto emitida pela AT (nº ..., de 22 de abril de 2022), em substituição da acima identificada.
b) O litígio
Estava em causa uma liquidação de IMT fundamentada na consideração de a Requerente ter deixado de aproveitar da isenção prevista no art. 7º do CIMT (isenção pela aquisição de prédios para revenda) por não ter revendido, dentro do prazo aí previsto, a totalidade de um prédio por si adquirido para tal fim.
Na pendência deste processo arbitral, a AT revogou tal liquidação, emitindo outra cujo fundamento era o de a Requerente ter deixado de aproveitar da referida isenção por ter realizado obras significativas no prédio em causa.
A Requerente solicitou, tempestivamente, que este processo arbitral prosseguisse para apreciação da legalidade desta última liquidação.
A AT conclui pela inutilidade superveniente da lide uma vez que a liquidação impugnada no PPA foi, entretanto, revogada.
C) Tramitação processual
O pedido foi aceite em 21/12/2023.
Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.
O tribunal arbitral ficou constituído em 27/02/2024.
A Requerente foi notificada da revogação administrativa do ato reclamado, tendo solicitado o prosseguimento dos autos para apreciação da “liquidação substitutiva”.
A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.
Por despacho de 16/05/2024 foi dispensada a realização da reunião a que se refere o art. 18º do RJAT bem como a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs.
a) Saneamento
O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.
Não foram alegadas nem detetadas questões suscetíveis de impedir o conhecimento do mérito.
III – PROVA
A) Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
a) A Requerente tem por objeto, entre outros, a promoção imobiliária / desenvolvimento de projetos imobiliários e compra e venda de imóveis ou de direitos sobre os mesmos e revenda dos adquiridos para esse fim.
b) No âmbito da sua atividade, a Requerente adquiriu, para revenda, o prédio urbano sito na ..., n.ºs..., freguesia de ..., concelho de Lisboa.
c) Ficou expresso na escritura pública de compra e venda que o imóvel se destinava a revenda, razão pela qual a guia de liquidação do IMT n.º ... foi emitida, em 29 de novembro de 2018, “a zero”, em conformidade com o disposto no artigo 7.º do Código do IMT.
d) Em julho de 2020, o prédio foi dividido em propriedade horizontal, em 16 frações, passando a estar inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... da freguesia de ... .
e) A Requerente foi notificada de uma liquidação de IMT (n.º..., datada de 22 de abril de 2022) relativa a tal aquisição, no valor total de € 641.666, sendo € 632.296,36 relativos a imposto e € 9.369,86 a juros compensatórios.
f) A fundamentação de tal liquidação era a seguinte: “Verificou-se que o imóvel supra identificado foi adquirido por escritura de compra e venda nº .../48, outorgada no cartório notarial de B... em 2018-11-30, não se encontra totalmente revendido no prazo de três anos, pelo que caducou o direito à isenção face ao estipulado no nº 5 do artº 11 do CIMT a seguir transcrito (…)”.
g) A Requerente procedeu ao pagamento voluntário do montante liquidado.
h) A Requerente apresentou reclamação graciosa contra a referida liquidação de IMT e juros, argumentando, no essencial, que parte das frações do prédio tinham sido alienadas dentro dos três anos subsequentes à aquisição, pelo que entendia que a AT não podia ter liquidado IMT sobre todo o valor de aquisição, mas o deveria ter feito na proporção correspondente ao valor das frações não vendidas em tal prazo.
i) A Requerente foi notificada para exercer o direito de audição em relação à proposta de indeferimento da reclamação graciosa, onde se podia ler que “a isenção em causa, caducou, não por o imóvel ter sido submetido ao regime da propriedade horizontal e não terem sido revendidas todas as frações, mas sim, por no imóvel terem ocorrido obras das quais resultaram alteração da estrutura do prédio e das suas divisões internas. O que se comprova através da apresentação, em 2021.09.27, da declaração mod. 1 de IMI, onde é reconhecido que, a mesma foi entregue por o imóvel ser ″Prédio Melhorado/Modificado/Reconstruído″ (Motivo 3) (…). Assim, verificando-se que, na data da 1.ª liquidação de IMT, a respetiva aquisição usufruiu da isenção para revenda, prevista no art.º 7.º do CIMT, e tendo o imóvel sofrido obras estruturais profundas, foi dado ao mesmo destino diferente, pelo que, a isenção fica sem efeito”.
j) A proposta de decisão foi convolada em decisão de indeferimento da reclamação graciosa por despacho da Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa – ... datado de 31 de janeiro de 2023.
k) Em 16 de março de 2023 a Requerente interpôs recurso hierárquico, o qual foi indeferido por despacho cuja fundamentação coincide com a do indeferimento da reclamação graciosa.
l) Por Despacho da Subdiretora Geral do Património de janeiro de 2024, foi revogado o ato tributário de liquidação inicialmente impugnado neste processo.
m) Em 2 de Fevereiro, a Requerida comunicou ao CAAD a revogação da liquidação inicialmente impugnada neste processo.
n) Em 06/02/2024, o Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa notificou a Requerente para, em face da revogação do ato impugnado, se pronunciar sobre se pretendia o prosseguimento do procedimento arbitral
o) Em 15/02/2024, a Requerente veio declarar pretender que os autos prosseguissem tendo por objeto a nova liquidação de IMT e juros compensatórios que viesse a ser emitida pela AT em substituição da original.
p) Em 27 de fevereiro de 2024, a Requerida AT restituiu à Requerente o montante correspondente ao valor da liquidação original.
q) Em 13 de março de 2024, a Requerida emitiu nova liquidação de IMT, relativa à aquisição do prédio em causa, com o n.º ... (n.º de registo da declaração: 2024/...), no valor total de € 897.500,12, sendo € 886.617,80 respeitantes a imposto e € 10.882,32 a juros compensatórios.
r) A fundamentação desta liquidação corresponde à fundamentação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa incidente sobre a primeira liquidação, transcrita em i).
s) O valor liquidado foi pago.
Todos estes factos estão documentalmente provados não tendo suscitado qualquer controvérsia entre as partes.
II.2 – Factos não provados
Não foram considerados não provados quaisquer factos relevantes para a decisão da causa.
III – O DIREITO
Resulta do provatório terem sido emitidas duas liquidações de IMT, com valores, fundamentos e datas diferentes, relativas à aquisição do prédio em causa pela Requerente, ambas por a AT entender terem deixado de se verificar pressupostos da isenção consagrada no art. 7º do CIMT (“prédios para revenda”): na primeira liquidação, a fundamentação foi a não revenda total do prédio no prazo legal; na segunda, a fundamentação foi a realização de obras profundas no prédio antes da revenda.
É óbvio que tendo ocorrido a anulação administrativa da primeira das liquidações em causa, à qual a Requerente não se opôs, o prosseguimento do processo arbitral, relativamente a tal liquidação, se tornou supervenientemente inútil uma vez que tal liquidação não existe mais na ordem jurídica.
A questão que se mantém refere-se à segunda liquidação: poderá este processo prosseguir arbitral para apreciação da sua legalidade como, tempestivamente, solicitou a Requerente?
Temos, em primeiro lugar, que existe a possibilidade de alteração ou substituição da liquidação impugnada após apresentação do e um pedido de constituição de tribunal arbitral, nos termos do nº 1 do art. 13º do RJAT.
Porém, tal possibilidade de alteração ou substituição do ato impugnado apenas pode acontecer dentro do prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral (o prazo que, vulgarmente, é designado como sendo o do exercício do direito ao arrependimento pela AT).
E compreende-se que a substituição ou alteração da liquidação impugnada apenas possa ocorrer dentro de tal prazo: o tribunal arbitral ainda não foi constituído, a Requerente está em tempo de alterar o seu pedido de pronúncia arbitral, adequando-o à nova liquidação, nomeadamente à fundamentação desta.
Certo é, também, que o nº 3 do art. 13º do RJAT é claro: findo o prazo previsto no n.º 1, a administração tributária fica impossibilitada de praticar novo ato tributário relativamente ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação, a não ser com fundamento em factos novos.
Não existem “factos novos” no caso em apreço: a realização de obras pela Requerente no prédio em causa era conhecida pela AT aquando da primeira liquidação, como resulta da decisão da reclamação graciosa a ela relativa; tal factualidade não terá sido escolhida como fundamento desta liquidação certamente por ter sido considerado mais simples invocar a não revenda da totalidade do prédio dentro do prazo legal.
A segunda liquidação ora em causa é de 13 de março de 2024, já com o presente tribunal arbitral formalmente constituído, ou seja, após termo do prazo previsto no nº 1 do art. 13º do RJAT (prazo que terminou em 8 de fevereiro de 2024).
Assim, a AT praticou um ato tributário num momento em que, legalmente, estava impedida de o fazer em razão da pendência do presente processo arbitral (nº 3 do art. 13º do RJAT). A ilegalidade do ato de substituição pode ser declarada no próprio processo arbitral, pois configura uma questão prévia em relação à do prosseguimento do processo, que cabe ao Tribunal Arbitral decidir[1].
A não ser assim – acrescentamos nós – ocorreriam facilmente intoleráveis “armadilhas” processuais: a Requerente, confiada no prosseguimento do processo arbitral já por si instaurado para apreciação da liquidação substitutiva, tal como por ela requerido, deixaria correr o prazo normal, contado da respetiva notificação, para reagir contra a segunda liquidação, podendo ver precludido o seu direito de defesa.
Sem que o tribunal arbitral, já constituído e com o processo em curso, a tal pudesse obstar! Não é, pois, aceitável o entendimento da AT de que a continuação da presente lide se tornou, na sua totalidade, supervenientemente inútil.
Há, pois, que anular a segunda liquidação em causa nestes atos.
Isto sem prejuízo de – em nossa opinião -, após o encerramento do presente processo, a AT, estando em tempo, poder praticar novo ato tributário com o mesmo (ou outra) fundamentação relativamente ao IMT tido por devido em razão da aquisição do prédio em causa.
IV – DECISÃO
a) Declara-se extinta a lide por inutilidade superveniente relativamente à liquidação de IMT n.º..., de 22 de abril de 2022, no montante total de € 641.666,22, sendo € 632.296,36 relativos a imposto e € 9.369,86 juros compensatórios (“primeira liquidação”), e, consequentemente, relativamente às decisões de indeferimento proferidas em sede de reclamação graciosa e de recurso hierárquico,
b) Anula-se, por violação do disposto no nº 3 do art. 13º do RJAT, a liquidação de IMT n.º ...,[2] (n.º de registo da declaração: 2024/...), de 13 de março de 2024, no montante total de € 897.500,12, sendo € 886.617,80 respeitantes a imposto e € 10.882,32 a juros compensatórios (“segunda liquidação”).
c) Em consequência, deve a Requerida restituir à Requerente o montante por esta indevidamente pago em decorrência da segunda liquidação, acrescido de juros indemnizatórios a serem calculados nos termos legais,
Valor: € 897.500,12, correspondentes ao valor da “segunda liquidação” pois que esta constituiu o verdadeiro objeto deste processo.
Custas, no montante de euros 12.546,00, pela Requerida por ter sido total o seu decaimento.
28 de maio de 2024
Os árbitros
Rui Duarte Morais
Jorge Bacelar Gouveia
Carla Alexandra Pacheco de Almeida Rocha da Cruz
[1] Nuno Villa-Lobos, Tânia Carvalhais Pereira (Coord.), Guia da Arbitragem Tributária, 2017, p. 174.
[2] De acordo com o Despacho de Retificação de 2024-07-04.