Decisão Arbitral
Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dra. Ana Teixeira de Sousa e Dr. António Cipriano da Silva (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 02-04-2024, acordam no seguinte:
1. Relatório
A..., número de identificação fiscal ..., residente na ..., n.º ..., ...-..., Porto e B..., com o número de identificação fiscal ..., residente na Rua ..., n.º ..., ... – ..., Porto, doravante designados conjuntamente como “Requerentes”, apresentaram pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade e anulação da liquidação oficiosa de IRS, com o n.º 2023..., no montante de €83.957,69.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 24-01-2024.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 12-03-2024, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 02-04-2024.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
Por despacho de 06-05-2024, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT.
As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e o Tribunal é competente.
O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
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Os Requerentes entregaram a Declaração de IRS, dentro do prazo, relativa ao período tributável de 2019, na sequência da qual foi emitida a nota de liquidação n.º 2020..., no montante de €664,76, (doravante referida como “1.ª liquidação”), que consta do documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;
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A Autoridade Tributária e Aduaneira instaurou um procedimento de divergência n.º ...2023..., com o motivo “R10 – “Rendimentos no estrangeiro (AEOI) com Declaração de Rendimentos Modelo 3 de IRS e sem anexo J, ano de 2019”, com fundamento em informação de autoridades fiscais estrangeiras no sentido de a Requerente B... ter auferido rendimentos não declarados (informação sobre a manutenção do acto, que integra o processo administrativo);
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Em 17-04-2023-, a Requerente B... procedeu à alteração da morada no cartão do cidadão para R ..., ..., ...-... PORTO (processo administrativo);
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Em 02-10-2023, com o número de registo CTT n.º RF ... PT, foi enviada à Requerente B... uma carta registada com aviso de recepção para notificação para exercício do direito de audição sobre o projecto de correcções, que não foi entregue, sendo o aviso devolvido com a indicação «Impossível entrega de aviso às 16H 21m, sem RPD» (ponto 4 do documento de manutenção do acto e documento do processo administrativo com a designação
«SP+NIF+...+R102019+PRIMEIRA+NOTIFICAÇÃO+NOTIFICAÇÃO+ARTIGO+60+.º+LEI+GERAL+TRIBUTÁRIA_+REGISTOS+CTT+DEVOVIDOS+COM+INDICAÇÃO+IMPOSSÍV»);
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Em 12-10-2023, foi repetido o envio da notificação por carta registada com aviso de receção, registo CTT n.º RF ... PT, para a mesma morada, a qual veio igualmente devolvida com a indicação “Impossível entrega de aviso” (ponto 5 do documento de manutenção do acto e documentos do processo administrativo com as designações
«IRS+2019+R10_2.º+NOTIFICAÇÃO+DIREITO+DE+AUDIÇÃO+ARTIGO+60º+LGT_1ª+PÁGINA)», «IRS+2019+R10_NOTIFICAÇÃO+DIREITO+DE+AUDIÇÃO+ARTIGO+60º+LGT_3ª+PÁGINA» e
«IRS+2019+R10_NOTIFICAÇÃO+DIREITO+DE+AUDIÇÃO+ARTIGO+60º+LGT_4ª+PÁGINA»);
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Em 07-12-2023, foi proferido despacho pela Chefe de Divisão da Direcção de Finanças do Porto, que consta do processo administrativo, procedendo à «alteração dos elementos declarados em sede de IRS no ano de 2019», e manifestando concordância com uma Informação, cujo teor se dá como reproduzido em que se refere, além do mais, o seguinte:
Sujeito Passivo: B... - NIF: ...
Domicilio. Fiscal: R ...
Concelho/ Serviço Finanças: ... – PORTO-...
1.RENDIMENTOS DE FONTE ESTRANGEIRA
1.1- A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) tomou conhecimento, através da troca automática de informações fiscais internacionais prevista na Diretiva 2011/16/EU, transposta para a ordem jurídica nacional pelo Decreto-Lei 61/2013 e/ou no âmbito da troca de informações financeiras prevista no Decreto-Lei n.º 64/2016, que, O Sujeito Passivo, para o ano de 2019, obteve rendimentos de fonte estrangeira, no REINO UNIDO.
Da análise desta informação consta em seu nome e para o ano de 2019:
País da Fonte dos Rendimentos: REINO UNIDO
INSTIUIÇÃO FINANCEIRA: Tilney Investment Management – CONTA N.º TML...
Natureza dos Rendimentos: JUROS - CATEGORIA E
Valor Bruto dos Rendimentos: 6.715,85 €
Imposto suportado no estrangeiro: 0,00 €
Natureza dos Rendimentos: DIVIDENDOS – CATEGORIA E
Valor Bruto dos Rendimentos: 20.593,54 €
Imposto suportado no estrangeiro: 0,00 €
Natureza dos Rendimentos: OUTROS RENDIMENTOS – CATEGORIA E
Valor Bruto dos Rendimentos: 1.969,89 €
Imposto suportado no estrangeiro: 0,00 €
Natureza dos Rendimentos: RESGATES ATIVOS FINANCEIROS – CATEGORIA G
Valor Bruto Alienação: 232.210,21 €
Imposto suportado no estrangeiro: 0,00 €
1.2- Nos termos do artigo 57.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), está obrigado(a) a apresentar uma declaração Modelo 3 com todos os rendimentos auferidos nesse ano.
Muito embora tenha apresentado uma declaração para este ano, não incluiu o anexo J com os rendimentos obtidos no REINO UNIDO supra referenciados
2. AUDIÇÃO PRÉVIA – Artigo 60.º da LGT
Foi notificado por estes serviços, para o exercício do direito de audição prévia por força do disposto no artigo 60.º da LGT, através do n/oficio de SAIDA n.º 2023S... de 2023-09-29, todavia a notificação não foi levantada nos serviços dos CTT. Procedeu-se á segunda notificação, Saída GPS n.º 2023.... datada de 2023-10-12, tendo a mesma sido devolvida a esta Direção de Finanças. Não procedeu ao exercício desse direito no prazo que lhe foi indicado, nem procedeu à entrega de declaração de substituição Modelo 3 IRS/2019 para declarar em anexo J os rendimentos de fonte estrangeira a que estava obrigado conforme o disposto no n.º 1 do artigo15.º do CIRS –
Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares). A Notificação foi considerada efetuada em conformidade com o disposto no nº 1 do artigo 39º do Código Procedimento e do Processo Tributário (CPPT).
3. PROJETO DECISÃO
Importa esclarecer que a informação que dispomos é proveniente de uma troca de informação automática da Autoridade Fiscal (AF) francesa. O direito de tributação dos rendimentos de dividendos e juros auferidos, no REINO UNIDO, por um residente fiscal em Portugal é da competência do país da residência, podendo também haver lugar a tributação no Reino Unido, conforme disposto na Convenção para evitar a Dupla Tributação Internacional celebrada entre os dois países contratantes: artigos 10.º e 11.º.
Relativamente aos rendimentos obtidos, no REINO UNIDO, resultantes da alienação de ativos financeiros, nos termos do parágrafo 1º, artigo 20.º da citada Convenção, a sua tributação é de competência exclusiva da residência fiscal do sujeito passivo que os auferiu.
Deste modo, tratando-se de sujeito passivo residente em território português que, comprovadamente, obteve rendimentos no estrangeiro, fica sujeito a IRS no seu estado de residência, o qual incide sobre a totalidade dos rendimentos, incluindo os auferidos no estrangeiro (artigos 13.º e 15.º n.º 1 do CIRS).
Com residência em Portugal, o IRS incide sobre a totalidade dos rendimentos, os obtidos em Portugal e os obtidos fora deste território, neste caso os rendimentos de pensões auferidas em França, constantes do ponto 1 desta informação.
Os valores comunicados pelas AF estrangeiras fazem fé face ao disposto no n.º 1 e 4 do artigo 76.º da Lei Geral Tributária, o ónus da prova cabe ao contribuinte, devendo este demonstrar que os rendimentos comunicados pelas Autoridades Fiscais estrangeiras não são os corretos, de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 74.º da LGT.
4- ALTERAÇÃO DOS RENDIMENTOS DECLARADOS
Sendo sujeitos a tributação em Portugal os referidos rendimentos de fonte estrangeira,
provenientes de , e não tendo sido regularizada a sua situação tributária em IRS/2019, em conformidade com o disposto no ponto 1, a AT vai proceder à alteração dos rendimentos declarados, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 4 do artigo 65.º do CIRS, através da elaboração de documento oficioso- DCU, à declaração nº ... - 2019 - ... - ..., data receção, 2020-06-07, com inclusão do Anexo J para sujeitar a tributação a totalidade dos rendimentos de fonte estrangeira mencionados no ponto 1, e consequente liquidação adicional de imposto.
SP A: ...- A...
SP B: ... – B...
(OPÇÃO PELA TRIBUTAÇÃO CONJUNTA)
Categ. SP A Categ. SP B
B: 3 117,88 €
E: 29 279,28 €
F: 4 200,00 €
G: 232 201,21€ (valor bruto de alienação)
H: 12 728,38 € 4 282,46€
SOMA: 12 728,38 € 273 080,83 €
1.1. RENDIMENTO BRUTO TOTAL: 24 328,72€
1.2. Deduções Específicas: 8 442,14€
1.3. Rendimentos c/ tributação autónoma: 261 480 49,00€
(Rendimentos das Categorias E, e G, auferidos, no Reino Unido, não englobados, sujeitos a tributação autónoma à taxa especial de 28%, nos termos do artigo 72.º do CIRS)
OPÇÃO PELO ENGLOBAMENTO DOS RENDIMENTOS PREDIAIS.
RENDIMENTO LÍQUIDO TOTAL: (1.1-1.2): 15.886,58 €
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Em 11-12-2023, a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu a liquidação oficiosa de IRS n.º 2023..., relativa ao período tributável de 2019, com o valor a pagar no montante de € 83.957,69 (doravante referida como “2.ª liquidação”) (documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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Nesta 2.ª liquidação, a AT considerou que existem rendimentos sujeitos a tributação autónoma, no valor de € 73.217,06, que não tinham sido considerados na 1.ª liquidação referida;
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Na 2.ª liquidação, ao montante de IRS liquidado acresce um valor de juros compensatórios de € 10.075,87;
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Em 11-01-2024, a Autoridade Tributária e Aduaneira enviou uma carta registada com aviso de recepção dirigida à Requerente B... com o n.º de registo RF ... PT, que foi devolvida, em 15-01-2024, sem assinatura da destinatária, com a indicação «não existe (Rua, lote, n.º porta)» (documento do processo administrativo com a designação
«SP+NIF+...+R102019+2.ª+NOTIFICAÇÃO++77+LGT_+REGISTO+CTT+AR+DEVOLVIDO»);
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A Autoridade Tributária e Aduaneira expediu em 29-01-2024, nova carta registada com aviso de recepção para notificação da Requerente B..., com o registo n.º RF ... PT que foi devolvida, em 21-01-2024, em sem assinatura da destinatária, com a indicação «Casa Fechada S/ RPD» (documentos do processo administrativo com as designações «SP+NIF+...++R102019+2.ª+NOT+77+LGT+REGISTO+CTT» e
«SP+NIF+...+R102019+SEGUNDA+NOTIFICAÇÃO+NOTIFICAÇÃO++77+LGT_+REGISTO+CTT+AR+E+CARTA++DEVOLVIDO»);
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Nenhuma das notificações expedidas durante o procedimento administrativo foi recebida por qualquer dos Requerentes;
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Em 22-01-2024, os Requerentes apresentaram o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto
2.2.1. Não se provou que tivesse sido enviado a qualquer dos Requerentes o ofício cuja cópia consta do processo administrativo com a designação IRS2019+R10_NOTIFICAÇÃO+DA+DIVERGÊNCIA+DETETADA+PARA+TITULAR+DOS+RENDIMENTOS+NÃO+DECLARADOS+NO+ANEXO+J».
Não é referido nessa cópia qualquer número de registo postal, nem foi junto qualquer comprovativo de ele ter sido efectuado.
2.2.2. Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral, que não foram impugnados.
3. Matéria de direito
3.1. Posições das Partes
Os Requerentes foram notificados de uma 1.ª liquidação de IRS, em que foi considerado o «rendimento global» de € 24.328,72.
Posteriormente, os Requerentes foram notificados de uma 2.ª liquidação em que o valor do «rendimento global» se manteve, mas foi liquidado imposto relativo a título de tributações autónomas no montante de € 73.217,06.
O único vício imputado pelos Requerentes à liquidação impugnada é o de falta de fundamentação material (artigo 27.º do pedido de pronúncia arbitral).
Os Requerentes dizem, em suma, que «não conseguem sequer divisar que tipo de despesas poderão estar em causa, que tenham originado os montantes de tributação autónoma, reclamados pela Autoridade Tributária».
A Autoridade Tributária e Aduaneira juntou aos autos elementos do procedimento administrativo relativos a instauração de um procedimento de divergência, na sequência do qual alterada a matéria tributável, invocando informações de autoridades estrangeiras, em que se incluiriam as relativas a «RESGATES ATIVOS FINANEIROS – CATEGORIA G», no montante de € 232.210,21, que não forma declarados.
A Autoridade Tributária e Aduaneira invoca a «presunção de notificação prevista nos n.ºs 5 e 6 do art. 39º do CPPT» diz que a fundamentação consta das notas de liquidação juntas pelo Requerente.
3.2. Apreciação da questão
A exigência de fundamentação dos actos administrativos lesivos é feita no artigo 268.º, n.º 3, da CRP, que estabelece, que «carecem de fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos».
Concretizando o conteúdo da fundamentação no procedimento tributário, o artigo 77.º, n.º 1, da LGT que estabelece a regra geral de que «a decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária».
De harmonia com o preceituado no artigo 153.º do Código do Procedimento Administrativo, «equivale à falta de fundamentação a adoção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do ato».
Neste contexto, o Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a entender uniformemente que a fundamentação do acto administrativo ou tributário é um conceito relativo que varia conforme o tipo de acto e as circunstâncias do caso concreto, mas que a fundamentação é suficiente quando permite a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do acto para proferir a decisão, isto é, quando aquele possa conhecer as razões por que o autor do acto decidiu como decidiu e não de forma diferente, de forma a poder desencadear dos mecanismos administrativos ou contenciosos de impugnação. ([1] )
Assim, para a fundamentação ser considerada suficiente é necessário a sejam perceptíveis as razões por que se decidiu no sentido em que se decidiu.
Mas, por força do disposto no n.º 2 do referido artigo 77.º da LGT, «a fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo». (negrito nosso).
A indicação das disposições legais aplicáveis é, pois, um requisito mínimo da fundamentação dos actos tributários.
No caso em apreço, é manifesto que a demonstração de liquidação junta aos autos, como documento n.º 2, não satisfaz esses requisitos, pois, desde logo, não contêm indicação das disposições legais aplicáveis, designadamente quanto à qualificação e quantificação das tributações autónomas.
Nem mesmo a descrição «imposto relativo a tributações autónomas», que consta da linha 17 da demonstração de liquidação, permite perceber qual é o suporte jurídico da tributação, pois no CIRS prevêem-se várias situações em que são impostas tributações autónomas e na demonstração de liquidação nem sequer se refere se a tributação se enquadra na categoria G, como se vê pelas peças do procedimento de divergência juntas pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
Por outro lado, é ponto assente que nenhuma das notificações enviadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira no âmbito do procedimento de divergência chegou ao conhecimento de qualquer dos Requerentes.
Na verdade, quanto ao Requerente A... nem sequer foi enviada qualquer notificação.
No que respeita à Requerente B..., nenhuma das notificações enviadas foi recebida e não se prova qualquer situação de «recusa de recebimento ou não levantamento da carta» que permitisse accionar a presunção de notificação prevista nos n.ºs 5 e 6 do artigo 39.º do CPPT.
Com efeito, as cartas enviadas com aviso de recepção na pendência do procedimento de foram devolvidas com indicações «Impossível entrega de aviso» e as enviadas já depois de emitida a liquidação impugnada forma devolvidas com as indicações «não existe (Rua, lote, n.º porta)» e «Casa Fechada S/ RPD».
Nestas condições tem de se concluir que nem mesmo quanto à Requerente B... se pode presumir qualquer das notificações, pois, como e refere n acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 03-05-2018, processo n.º 032/18, citado pela Autoridade Tributária e Aduaneira na sua Resposta, «a presunção de notificação prevista nos n.ºs 5 e 6 do art. 39º do CPPT opera em duas situações: (i) no caso de o destinatário se recusar a receber a notificação. (ii) no caso de não levantamento da carta (remetida para a notificação) no prazo previsto no regulamento dos serviços postais e não se provar que, entretanto, o contribuinte comunicou à AT a alteração do seu domicílio fiscal».
Isto é, a presunção de notificação só funciona quando a existência da notificação foi do conhecimento do destinatário, que a recusou, ou foi-lhe dado conhecimento da sua existência, através de um aviso para levantamento, não operando quando se esta perante situações em que é seguro que não foi dado conhecimento da notificação ao destinatário nem foi deixado na sua disponibilidade receber a notificação.
Para além de a fundamentação da correcção relativa a tributações autónomas, anterior à liquidação, não ter sido do conhecimento dos Requerentes, constata-se que ela é incongruente e manifestamente insuficiente.
Na verdade, quanto aos rendimentos subjacentes à correcção, a Autoridade Tributária e Aduaneira apenas refere, na fundamentação da decisão de correcção que se tratará de «RESGATES ATIVOS FINANCEIROS – CATEGORIA G», o que não permite perceber de que tipo de activos se tratará e isso ´é essencial para apurar a legalidade da correcção.
Na verdade, nem todos os ganhos obtidos com activos financeiros eram tributados no âmbito da categoria G de IRS, só sendo os arrolados nos n.ºs 4) e 5) da alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS, em que, em 2019, não se incluíam, por exemplo, os ganhos obtidos com a alienação onerosa de criptoativos que não constituam valores mobiliários, que os vieram a ser aí incluídos com a Lei n.º 24-D/2022, de 30 de Dezembro.
Por outro lado, para saber se se está perante rendimentos tributáveis, é imprescindível saber a data de aquisição dos activos financeiros, já que, por força do disposto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-aA/88, de 30 de Novembro, «os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 373, de 9 de Junho de 1965, bem como os derivados da alienação a título oneroso de prédios rústicos afectos ao exercício de uma actividade agrícola ou da afectação destes a uma actividade comercial ou industrial, exercida pelo respectivo proprietário, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efectuada depois da entrada em vigor deste Código».
Para além disso, como se vê pela fundamentação da decisão de correcção, a Autoridade Tributária e Aduaneira considerou para determinação dos ganhos da categoria G que considerou terem sido obtidos no estrangeiro não o valor dos rendimentos, mas o «valor bruto de alienação», não se vislumbrando como possa haver coincidência dos dois montantes, já que os activos terão forçosamente um valor de aquisição que se abate ao valor de alienação, quer seja o real, quer seja o presumido nos casos de aquisição a título gratuito (artigo 45.º do CIRS).
Fazendo incidir a tributação sobre o valor bruto da alienação, até poderá suceder que não haja qualquer ganho, se o valor de aquisição for superior.
Finalmente, a própria fundamentação da correcção à matéria tributável apresenta incongruências que afectam a sua credibilidade, desde logo, a invocada obtenção prova de ganhos obtidos com activos financeiros no Reino Unido através de informações da «Autoridade Fiscal (AF) francesa» e sobre «rendimentos de pensões auferidas em França».
Em matéria de fundamentação, deverão distinguir-se os conceitos de «fundamentação material» e «fundamentação formal».
Esta última «pode ser entendida como uma exposição enunciadora das razões ou motivos da decisão», enquanto a fundamentação material corresponde à «recondução do decidido a um parâmetro valorativo que o justifique: no primeiro sentido, privilegia-se o aspecto formal da operação, associando-a à transparência da perspectiva decisória; no segundo, dá-se relevo à idoneidade substancial do acto praticado, integrando-o num sistema de referência em que encontre bases de legitimidade». (...)
«O dever da fundamentação expressa obriga a que o órgão administrativo indique as razões de facto e de direito que o determinaram a praticar aquele acto, exteriorizando, nos seus traços decisivos, o procedimento interno de formação da vontade decisória. O dever cumpre-se desde que exista uma declaração a exprimir um discurso que pretenda justificar a decisão, independentemente de esse arrazoado». (VIEIRA DE ANDRADE, O dever da Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, páginas 11-13).
A falta de fundamentação formal constituirá vício de forma.
A falta de fundamentação substancial, que os Requerentes invocam, decorre de incorrecção ou falta de prova dos pressupostos de facto ou o erro de direito e consubstanciará vício de erro sobre os pressupostos de facto ou erro sobre os pressupostos de direito.
Neste sentido, refere-se no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28-09-2011, proferido no processo n.º 0494/11:
O facto de, porventura, a valia substancial dos fundamentos aduzidos nesse discurso fundamentador não ser suficiente para retirar a conclusão que aí se retirou, isto é, ser insuficiente ou inapta, do ponto de vista legal, para suportar a correção efetuada, é matéria que não contende com a fundamentação formal do acto, mas sim com a fundamentação substancial, que pode levar à procedência da impugnação por força dos vícios de violação de lei que foram invocados.
Com efeito, não deve confundir-se a suficiência da fundamentação com a exatidão ou a validade substancial dos fundamentos invocados. É que, como adverte SÉRVULO CORREIA ("Noções de Direito Administrativo", I, pág. 403.), «a fundamentação pode ser inexata e ser suficiente, por permitir entender quais os pressupostos de facto e de direito considerados pelo autor do acto. Deste modo, a inexatidão dos fundamentos não conduz ao vicio de forma por falta de fundamentação. Ela pode sim revelar a existência de outros vícios, como o vicio de violação de lei por erro de interpretação ou aplicação de norma, ou (...) por erro nos pressupostos de facto» (...)".
No caso em apreço, para além da falta de fundamentação formal (desde logo a não indicação das disposições legais em que se baseou a liquidação), verifica-se falta de fundamentação substancial, pois não se prova que a Requerente B... tenha obtido no Reio Unido rendimentos de activos financeiros sujeitos a tributação no âmbito da categoria G de IRS.
Pelo exposto, a liquidação impugnada enferma de vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto, que justifica a sua anulação nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
4. Decisão
De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:
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Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
-
Anular a liquidação de IRS n.º 2023... .
5. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 83.957,69, indicado pelo Requerente sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.
6. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.754,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 20-05-2024
Os Árbitros
(Jorge Lopes de Sousa)
(relator)
(Ana Teixeira de Sousa)
(António Cipriano da Silva)
[1] Essencialmente neste sentido, podem ver-se, entre muitos, os seguintes acórdãos do STA: de 4-11-1998, processo n.º 40618; de 10-3-1999, processo n.º 32796; de 6-6-1999, processo n.º 42142; de 9-2-2000, processo n.º 44018; de 28-3-2000, processo n.º 29197; de 16-3-2001, do Pleno, processo n.º 40618; de 14-11-2001, processo n.º 39559; de 18-12-2002, processo n.º 48366.