Sumário:
I – As entidades utilizadoras da rede rodoviária nacional que suportam o encargo tributário da Contribuição de Serviço Rodoviário por efeito da repercussão, têm legitimidade processual para impugnar judicialmente os atos de liquidação do imposto que incidam sobre combustíveis que tenham adquirido, como meio de reagirem contra a ilegalidade da repercussão;
II - A Contribuição de Serviço Rodoviário, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, não prossegue “motivos específicos”, na aceção do artigo l.°, n.° 2, da Diretiva 2008/118/CE, na medida em que as suas receitas têm essencialmente como fim assegurar o financiamento da rede rodoviária nacional, não podendo considerar-se como suficiente, para estabelecer uma relação direta entre a utilização das receitas e um “motivo específico”, os objetivos genéricos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental que se encontram atribuídos à concessionária;
III – O ónus da prova da efectiva repercussão da contribuição de serviço rodoviário incumbe às entidades utilizadoras da rede rodoviária nacional, carecendo de ser demonstrada através de documentos que identifiquem o efetivo pagamento do imposto, não podendo assentar em juízos presuntivos ou em meras declarações genéricas.
DECISÃO ARBITRAL
Acordam em tribunal arbitral
I – Relatório
1. A..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na ..., n.º..., ...-... ..., ... - Braga, veio requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a legalidade dos atos de liquidação da Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR), referente ao período de março de 2019 a dezembro de 2022, cujo encargo tributário foi repercutido na sua esfera jurídica, e, bem assim, da decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa contra eles deduzido, requerendo ainda o reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.
A Requerente fundamenta o pedido nos seguintes termos.
A Requerente é uma sociedade comercial anónima que, para exercer a sua atividade comercial, se dedica ao transporte rodoviário de mercadorias.
No período compreendido entre março de 2019 e dezembro de 2022, a Requerente adquiriu aos fornecedores B..., S.A., C..., Lda. e D..., LDA. 740.982,30 litros de gasóleo rodoviário.
Em face de tais aquisições e por força da repercussão efetuada pelos fornecedores, a Requerente suportou o montante de € 82.249,04 a título de contribuição de serviço rodoviário.
Não se conformando com as liquidações de CSR, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa nos termos do artigo 78.º, n.os 1 e 4, da Lei Geral Tributária (LGT), que não foi objecto de decisão no prazo cominado.
Face ao regime constante da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que criou a Contribuição de Serviço Rodoviário, não existe qualquer contraprestação indireta e presumivelmente destinada aos contribuintes sobre quem recai o encargo, nem se evidencia qualquer objetivo extrafiscal de modelação de comportamentos desses mesmos sujeitos passivos, havendo de entender-se que a CSR não é uma contribuição financeira, mas um verdadeiro imposto, dado o seu carácter unilateral.
De acordo com a Diretiva n.º 2008/118/CE, de 16 de dezembro de 2008, que fixa a estrutura comum dos IEC harmonizados, a CSR configura-se como um imposto cuja criação está sujeita à condição de apresentar como fundamento um “motivo específico” que justifique a sua imposição.
Segundo a jurisprudência do TJUE, este “motivo específico” não pode corresponder a uma finalidade puramente orçamental de obtenção de receita, não podendo considerar-se como tal um imposto cujas receitas ficam genericamente afectas a uma empresa pública concessionária da rede rodoviária nacional.
E, por conseguinte, a CSR deve considerar‑se um imposto desconforme com o artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva n.º 2008/118/CE, sendo ilegal por violação de Direito Europeu.
Acresce que, ao fazer incidir o imposto sobre um conjunto restrito de contribuintes, a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, padece de inconstitucionalidade material, por preterição do princípio da igualdade, na medida em que onera de forma injustificada um conjunto de contribuintes em face do seu setor de atividade económica, fazendo-os contribuir em maior medida para o financiamento de funções do Estado.
A Autoridade Tributária, na sua resposta, suscita as exceções dilatórias da incompetência do tribunal em razão da matéria, incompetência do tribunal em razão da causa de pedir, ilegitimidade processual e substantiva da Requerente, falta de interesse em agir, ineptidão da petição inicial, caducidade do direito de acção, falta de pagamento de valores a título de CSR por parte da Requerente e não exigibilidade de juros indemnizatórios. Requer ainda a intervenção principal no processo da B..., S. A., enquanto sujeito passivo do imposto.
Quanto à matéria de fundo, considera que as Requerentes não lograram fazer prova de terem adquirido e pago combustível e suportado o encargo do pagamento da CSR por repercussão, sendo que, atento o disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, não incumbe à Requerida fazer a prova da não repercussão, nem é possível presumir a existência de repercussão quando, no caso, estamos perante uma repercussão meramente económica. Tal como incumbia à Requerente o ónus da prova de que o preço dos bens e serviços não foi objecto de repercussão nos seus clientes.
Por outro lado, baseando-se nos considerandos 33. e 34. do despacho do TJUE proferido no processo n.º C-460/21, a Requerida entende que o TJUE não declarou a existência de desconformidade do regime da CSR com a Diretiva Europeia e os objetivos que lhe estão subjacentes, analisados à luz da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, não são meramente orçamentais, mas visam a redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental, que constituem o motivo específico da criação da contribuição.
Conclui no sentido da declaração de extinção da instância com base nas exceções dilatórias e perentórias invocadas e, se assim se não entender, pela improcedência do pedido arbitral.
2. Notificadas para se pronunciar sobre a matéria de exceção, as Requerentes responderam através do requerimento de 8 de março de 2024, concluindo pela improcedência de todas as exceções e questões prévias suscitadas pela Requerida.
3. Por despacho arbitral de 2 de abril de 2024, considerando não haver novos elementos sobre que as partes se devam pronunciar, determinou-se a dispensa da reunião do tribunal arbitral a que se refere o artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações, relegando-se para final a apreciação da matéria de exceção.
Tendo sido juntos pela Requerente, por requerimento de 3 de abril de 2024, documentos tidos como comprovativos de pagamento de facturas sobre que incidiu a contribuição de serviço rodoviário, por despacho arbitral do dia imediato, a Autoridade Tributária foi notificada para se pronunciar sobre a junção desses novos elementos, tendo respondido por requerimento de 8 de abril seguinte, concluindo que os comprovativos do pagamento das aquisições de combustível não fazem prova da efetiva repercussão da CSR pelas fornecedoras e de ter sido a Requerente a suportar, a final, o encargo tributário.
4. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo a Prof. Doutora Marta Vicente e Dr.ª Maria Alexandre Mesquita, e como árbitro presidente o Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha. A Dr.ª Maria Alexandre Mesquita veio renunciar às funções arbitrais, pelo que, por despacho do Senhor Presidente do Conselho Deontológico de 6 de março de 2024, foi substituída pelo Prof. Doutor Tomás Tavares.
Os árbitros designados comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 17 de janeiro de 2024.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
II – Saneamento
Incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria
5. A Autoridade Tributária começa por suscitar a questão da incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria por considerar que a contribuição de serviço rodoviário deve ser qualificada como contribuição financeira, e não como imposto, encontrando-se excluída da arbitragem tributária, por força do disposto nos artigos 2.º e 3.º do RJAT e do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, defendendo a este propósito o entendimento expresso nos acórdãos proferidos nos processos arbitrais n.ºs 182/2019-T, 138/2019-T, 123/2019-T, que tiveram por objeto a Contribuição sobre o Sector Bancário (CSB),e nos acórdãos proferidos nos processos arbitrais n.ºs 248/2019-T, 714/2020-T e 585/2020-T, que tiveram por objeto a Contribuição Extraordinária Sobre o Sector Energético (CESE).
É esta a primeira questão que cabe analisar.
A competência contenciosa dos tribunais arbitrais em matéria de arbitragem tributária, tal como resulta do artigo 2.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), compreende a apreciação de pretensões que visem a “declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta” e a “declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais”.
O artigo 4.º, n.º 1, do RJAT faz ainda depender a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que deverá estabelecer, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.
E o diploma que, em execução desse preceito, define o âmbito e os termos da vinculação da Autoridade Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, que no seu n.º 2, sob a epígrafe “Objeto de vinculação”, e com a alteração resultante da Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, dispõe o seguinte:
“Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com exceção das seguintes:
a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
b) Pretensões relativas a atos de determinação da matéria coletável e atos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;
c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indiretos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação;
d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efetuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira;
e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo”.
A referência a serviços e organismos que se vinculavam à jurisdição arbitral era feita para a Direcção-Geral dos Impostos e a Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo, que foram, entretanto, extintas, tendo-lhes sucedido a Autoridade Tributária e Aduaneira.
A Portaria n.º 112-A/2011, também chamada Portaria de vinculação, fixa, por conseguinte, um segundo nível de delimitação das pretensões que poderão ser sujeitas à jurisdição arbitral. Tratando-se de um mero regulamento de execução, a Portaria não poderia ir além do estabelecido na lei quanto ao âmbito de competência material dos tribunais arbitrais, mas poderia estabelecer restrições quanto ao âmbito da vinculação à arbitragem tributária, mormente por referência ao tipo de litígios e ao valor do processo.
Ainda a este propósito, o acórdão proferido no Processo n.º 48/2012-T, depois seguido por diversos outros arestos, consignou o seguinte:
“A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no artigo 2.º, n.º 1, do [RJAT].
Numa segunda linha, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é também limitada pelos termos em que Administração Tributária se vinculou àquela jurisdição, concretizados na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pois o artigo 4.º do RJAT estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos».
Em face desta segunda limitação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos desta vinculação, pois, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele artigo 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este tribunal arbitral”.
No caso, a Portaria de vinculação, aparentemente, estabelece duas limitações: refere-se a pretensões “relativas a impostos”, de entre aquelas que se enquadram na competência genérica dos tribunais arbitrais, e a impostos cuja administração esteja cometida à Autoridade Tributária. Haverá de concluir-se, nestes termos, que a vinculação se reporta a qualquer das pretensões mencionadas no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT que respeitem a impostos - com a exclusão de outros tributos - e a impostos que sejam geridos pela Autoridade Tributária.
6. A constitucionalização das contribuições financeiras resultou da alteração introduzida no artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Lei Fundamental, pela revisão constitucional de 1997, que autonomizou as contribuições financeiras a favor das entidades públicas como uma terceira categoria de tributos.
A LGT, aprovada em 1998, passou a incluir entre os diversos tipos de tributos, os impostos e outras espécies criadas por lei, designadamente as taxas e as contribuições financeiras a favor das entidades públicas, definindo, em geral, os pressupostos desses diversos tipos de tributos no subsequente artigo 4.º.
A doutrina tem caracterizado as contribuições financeiras como um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que visam retribuir os serviços prestados por uma entidade púbica a um certo conjunto ou categoria de pessoas. Como referem Gomes Canotilho/Vital Moreira, “a diferença essencial entre os impostos e estas contribuições bilaterais é que aqueles visam financiar as despesas públicas em geral, não podendo, em princípio, ser consignados a certos serviços públicos ou a certas despesas, enquanto que as segundas, tal como as taxas em sentido estrito, visam financiar certos serviços públicos e certas despesas públicas (responsáveis pelas prestações públicas de que as contribuições são contrapartida), aos quais ficam consignadas, não podendo, portanto, ser desviadas para outros serviços ou despesas” (Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4ª edição, Coimbra, pág. 1095). Neste sentido, as contribuições são tributos com uma estrutura paracomutativa, dirigidos à compensação de prestações presumivelmente provocadas ou aproveitadas pelos contribuintes, distinguindo-se das taxas que são tributos rigorosamente comutativos e que se dirigem à compensação de prestações efetivas (Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2015, pág. 287).
Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem também reconhecido a existência dessas diferentes categorias jurídico-tributárias, designadamente para efeito de extrair consequências quanto à competência legislativa, admitindo que as taxas e outras contribuições de carácter bilateral só estão sujeitas a reserva parlamentar quanto ao seu regime geral, mas não quanto à sua criação individual e quanto ao regime concreto, podendo portanto ser criadas por diploma legislativo governamental e reguladas por via regulamentar desde que observada a lei-quadro (cfr., entre outros, o acórdão n.º 365/2008).
Ou seja, não há dúvida que as contribuições financeiras se distinguem dos impostos.
7. A Contribuição de Serviço Rodoviário, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (artigo 1.º), que, entretanto, passou a denominar-se Infraestruturas de Portugal, S.A., sendo que o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo desta entidade é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável (artigo 2.º).
A mesma contribuição corresponde à contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis, e constitui uma fonte de financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da Infraestruturas de Portugal, S.A, no que respeita à respetiva conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento, ainda que a exigência da contribuição não prejudique a eventual aplicação de portagens em vias específicas ou o recurso da entidade concessionária a outras formas de financiamento (artigo 3.º).
A contribuição incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e dele não isentos (artigo 4.º, n.º 1) e é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo (artigo 5.º, n.º 1).
O produto da Contribuição de Serviço Rodoviário constitui receita própria da atualmente denominada Infraestruturas de Portugal, S.A. (artigo 6.º).
A atividade de conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional, que é objeto de financiamento através da Contribuição de Serviço Rodoviário foi atribuída, em regime de concessão, à EP - Estradas de Portugal, E. P. E. pelo Decreto-Lei n.º 380/2007, de 13 de novembro, que aprovou as bases da concessão e nas quais se prevê que, entre outros rendimentos, essa contribuição constitua receita própria dessa entidade (Base 3, alínea b)). E, por outro lado, nelas se estabelece, como uma das obrigações da concessionária, a prossecução dos “objetivos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental” (Base 2, n.º 4, alínea b)).
8. À luz do regime jurídico sucintamente descrito, dificilmente se poderia concluir que a Contribuição de Serviço Rodoviário constitui uma contribuição financeira.
Como se refere no acórdão proferido no Processo n.º 269/2021, corroborado pelo acórdão tirado no Processo n.º 304/2022, a Contribuição de Serviço Rodoviário não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva. A contribuição é estabelecida a favor da EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (artigo 3.º, n.º 2), sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (artigo 6.º). No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis
rodoviários) não são os destinatários da atividade da EP - Estradas de Portugal, E. P. E., a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (artigo 3.º, n.º 2).
Por outro lado, nada permite afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da atividade administrativa que se encontra atribuída à EP - Estradas de Portugal, E. P. E. é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários. Quando é certo que o artigo 2.º da Lei n.º 55/2007 declara expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E.P. E. (...) é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.”
Nestes termos, o financiamento da rede rodoviária nacional é assegurado pelos respetivos utilizadores, que são os beneficiários da atividade pública desenvolvida pela EP - Estradas de Portugal, E. P. E., verificando-se, no entanto, que a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”.
Não existindo, deste modo, qualquer nexo específico entre o benefício emanado da atividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos sujeitos passivos.
9. Resta acrescentar que o regime jurídico da CSR não é equiparável ao previsto para a Contribuição sobre o Sector Bancário (CSB) ou para a Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE), que são caracterizadas como típicas contribuições financeiras, não tendo qualquer aplicação ao caso a jurisprudência constante dos acórdãos proferidos nos Processos n.ºs 182/2019-T, 138/2019-T, 123/2019-T, que tiveram por objeto a CSB, nem a dos acórdãos proferidos nos Processos n.ºs 248/2019-T e 585/2020-T, que incidiram sobre a CESE.
Por todo o exposto, a alegada exceção da incompetência material do tribunal arbitral com fundamento na qualificação da CSR como contribuição financeira, mostra-se ser improcedente.
Incompetência material do tribunal em razão da causa de pedir
10. A Autoridade Tributária suscita ainda a exceção da incompetência do tribunal arbitral para conhecer do presente pedido na medida em que se pretende discutir a legalidade do regime da CSR no seu todo.
A arguição assenta num evidente equívoco.
A Requerente formulou um pedido de pronúncia arbitral sobre a legalidade do ato de liquidação de CSR referente aos meses de março de 2019 a dezembro de 2022, invocando como causa de pedir, a desconformidade da contribuição com a Diretiva 2008/118/CE, do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa ao Regime Geral dos Impostos Especiais de Consumo
Estando em causa, no caso vertente, a desconformidade da CSR com a Diretiva 2008/118/CE, não pode deixar de concluir-se pela competência contenciosa do tribunal para a apreciação do litígio.
As normas de direito europeu derivado, como normas de direito internacional convencional, vigoram diretamente na ordem jurídica interna com a mesma relevância das normas de direito interno, vinculando imediatamente o Estado e os cidadãos (artigo 8.º da Constituição)
A impugnação judicial de um ato de liquidação pode ser deduzida com fundamento em qualquer ilegalidade (artigo 99.º do CPPT), nada permitindo distinguir entre a ilegalidade resultante de normas de direito interno ou de direito convencional.
Torna-se claro que não existe qualquer obstáculo a que o tribunal arbitral se pronuncie sobre o fundamento de ilegalidade do ato de liquidação baseado em desconformidade da CSR com o direito europeu, sendo manifestamente improcedente a invocada exceção de incompetência do tribunal em razão da causa de pedir.
Ilegitimidade processual e substantiva da Requerente
11. A Autoridade Tributária alega que se verifica a ilegitimidade processual da Requerente tendo em consideração que apenas os sujeitos passivos que declararam a introdução dos produtos para consumo e efetuaram o pagamento do imposto, podem solicitar a anulação das liquidações e o reembolso por erro na liquidação.
Analisando esta questão, cabe começar por referir que, nos termos do artigo 9.º, n.º 1, do CPTA, subsidiariamente aplicável, e da correspondente disposição do artigo 30.º, n.º 3, do CPC, a legitimidade processual é aferida pela relação jurídica controvertida tal como é apresentada pelo autor. E, deste modo, há que atender à relação jurídica tal como o autor a apresenta e configura, isto é, à pretensa relação jurídica, e não à relação jurídica material, tal como ela se constituiu na realidade, sendo por isso indiferente, para a verificação da legitimidade, a questão de saber se o direito existe na titularidade de quem o invoca ou contra quem é feito valer, matéria que diz antes respeito à questão de fundo e poderá, quando muito, determinar a improcedência da ação (cfr. Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Coimbra, 1999, págs. 45 e segs.).
Alegando a Requerente, na petição inicial, que pretende impugnar os actos tributários de liquidação da contribuição de serviço rodoviário (CSR) incidentes, em determinado período de tempo, sobre os fornecedores de combustíveis e cujo encargo tributário se repercutiu na sua esfera jurídica, não pode deixar de entender-se que o contribuinte dispõe de legitimidade processual para deduzir o pedido, independentemente de saber se houve uma efectiva repercussão ou se as facturas de aquisição de combustível corporizam o valor pago a título de CSR.
A propósito da questão que assim vem colocada, cabe recordar a norma do artigo 18.º, n.º 4, alínea a), da LGT, que é do seguinte teor:
4 - Não é sujeito passivo quem:
-
Suporte o encargo do imposto por repercussão legal, sem prejuízo do direito de reclamação, recurso ou impugnação nos termos das leis tributárias.
Ainda segundo o disposto no n.º 3 desse artigo, como sujeito passivo entende-se “a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável”.
Como se depreende do transcrito artigo 18.º, n.º 4, alínea a) da LGT, o preceito recusa a qualidade de sujeito passivo a quem não estiver sujeito diretamente a uma obrigação fiscal, como é o caso do consumidor final de bens ou serviços, mas admite que da repercussão do imposto possa resultar a violação de um interesse legalmente protegido, e, nesse sentido, confere ao repercutido o direito à impugnação administrativa ou judicial como meio adequado de reação contra a repercussão ilegal do imposto, o que se justifica, no plano de política legislativa, por razões de similitude com a lesão que seja causada por um ato ilegal de liquidação (cfr. António Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária Anotada, Lisboa, 2001, págs. 116-117).
Como resulta da redacção originária do artigo 2.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que regula o financiamento da rede rodoviária nacional e cria a contribuição de serviço rodoviário, o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP – Estradas de Portugal “é assegurado pelos respetivos utilizadores”, e, nos termos do subsequente artigo 3.º, “a contribuição de serviço rodoviário constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis”. E, por outro lado, segundo o disposto no artigo 2.º do Código dos Impostos Especiais do Consumo (CIEC), na redação da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro - disposição essa a que foi atribuída natureza interpretativa (artigo 6.º dessa Lei) -, “os impostos especiais de consumo obedecem ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam, designadamente nos domínios do ambiente e da saúde pública, sendo repercutidos nos mesmos, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.
Quer as disposições da Lei n.º 55/2007, especificamente aplicáveis à contribuição de serviço rodoviário, quer a disposição geral do artigo 2.º do CIEC, consagram um princípio de repercussão legal do imposto, significando que o encargo do imposto não seja suportado pelo sujeito passivo, mas pelo contribuinte que intervém no processo de comercialização dos bens ou serviços. Havendo de admitir-se, por efeito da norma do artigo 18.º, n.º 4, alínea a), da LGT, que as entidades repercutidas dispõem de legitimidade procedimental e processual para deduzirem reclamação graciosa ou recurso hierárquico ou impugnação judicial contra o acto tributário de liquidação do imposto que é objecto de repercussão (cfr. Lopes de Sousa, Código de Processo e Procedimento Tributário Anotado e Comentado, vol. I, Lisboa, 2011, pág. 115, e Serena Cabrita Neto/Carla Castelo Trindade, Contencioso Tributário, vol. I, Coimbra, 2017, pág. 98).
Para além da legitimidade ativa da Requerente se encontrar coberta pela referida disposição da LGT, essa legitimidade é também reconhecida pela regra geral do artigo 9.º, n.º 1, do CPPT, segundo a qual “têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido”. Ou seja, ainda que se entendesse que a situação do caso não corresponde a repercussão legal, mas a mera repercussão económica ou de facto, não pode deixar de considerar-se que a entidade que suporta o imposto no âmbito da cadeia de comercialização dispõe de legitimação para impugnar o acto de liquidação com fundamento em ilegalidade.
Alega ainda a Autoridade Tributária que, face ao regime especial dos artigos 15.º e 16.º do CIEC, apenas os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do ISP e da CSR possuem legitimidade para solicitar o reembolso do valor pago, e, como tal, os adquirentes dos produtos não têm legitimidade para efeitos de solicitação da revisão do ato tributário e consequente pedido de reembolso do imposto.
Há que fazer notar, a este propósito, que o artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 55/2007 apenas remete para o CIEC o procedimento de liquidação e cobrança do imposto, remissão que igualmente é efetuada para a LGT e o CPPT, significando que, nesse âmbito, haverá de ter-se em consideração as disposições conjugadas do CIEC e da demais legislação tributária aplicável.
Por outro lado, o regime específico previsto nos artigos 15.º e seguintes do CIEC abrange o reembolso com fundamento em erro na liquidação ou em caso de expedição ou exportação, ao passo que o que está em causa no presente processo arbitral não é um qualquer pedido de reembolso, mas a declaração de ilegalidade dos atos tributários de repercussão do imposto por violação do direito europeu.
E, nesses termos, a questão da legitimidade ativa terá de ser analisada à luz das regras processuais aplicáveis, e não do regime específico do reembolso do imposto que consta das citadas disposições do CIEC.
Por todo o exposto, a alegada exceção de ilegitimidade ativa, tal como se encontra formulada, é improcedente e nada obsta ao prosseguimento do processo no tocante aos falados atos de liquidação como meio de obter a consequente anulação dos atos de repercussão.
12. A Autoridade Tributária refere ainda que a Requerente, não sendo sujeito passivo do imposto, carece não apenas de ilegitimidade processual, mas também de ilegitimidade substantiva, que constitui uma excepção peremptória e conduz à absolvição do pedido.
Como é entendimento corrente, a chamada a legitimidade substancial ou substantiva tem a ver com a efetividade da relação material, interessando já ao mérito da causa e, nesse sentido, constitui um requisito da procedência do pedido (cfr. acórdão da Relação do Porto de 4 de outubro de 2021, Processo n.º 10910/20).
Não é possível considerar verificada liminarmente a inviabilidade da pretensão deduzida em juízo com base em meras alegações da parte contra quem vem deduzido o pedido, quando essa é a questão de fundo que carece de ser analisada em função do direito aplicável face aos factos que venham a ser dados como provados ou não provados.
Nem a alegação aduzida pela Requerida poderá caracterizar uma exceção perentória. As exceções perentórias consistem na invocação de factos que, em face da lei substantiva, possam integrar uma causa impeditiva, extintiva ou modificativa do direito invocado pelo autor na ação e que assim determinem a improcedência total ou parcial do pedido. São impeditivos os factos que excluem ou impedem a eficácia do direito alegado (incapacidade, falta ou vícios de vontade), modificativos os que alteram a relação jurídica modificando a natureza da prestação ou as condições da sua exigibilidade (alteração das circunstâncias em que foi celebrado um contrato), extintivos os que fazem cessar o direito tornando inviável o respetivo exercício (caducidade, prescrição, cumprimento da obrigação).
Assim sendo, o que vem alegado quanto à legitimidade substantiva não integra a defesa por exceção e apenas poderá relevar em sede de apreciação do mérito.
O que vem de dizer-se é igualmente aplicável quanto à alegada inexistência de prova de efetiva repercussão da CSR por efeito da aquisição de combustíveis, a que a Requerida se refere nos artigos 185.º a 198.º da resposta. Essa é matéria de prova que terá de ser analisada no âmbito da decisão arbitral e que não integra, em si, uma qualquer exceção perentória.
Incidente de intervenção provocada
13. Para o caso de se entender que a Requerente mantém legitimidade ativa, a Autoridade Tributária suscita o incidente de intervenção provocada da B..., S. A., enquanto sujeito passivo do imposto, e, considerando que a intervenção em processos arbitrais é facultativa para os interessados particulares, sustenta que a não aceitação do demandado para intervir na causa implica a inviabilidade do prosseguimento do processo.
Ora, nos termos previstos nas disposições conjugadas dos artigos 33.º e 316.º, n.º 1, do CPC, a não aceitação do chamamento à demanda, em incidente de intervenção provocada, por parte de quem tem legitimidade para intervir na causa, apenas pode constituir motivo de ilegitimidade, em caso de preterição de litisconsórcio necessário.
Conforme estatui aquela primeira disposição, o litisconsórcio é necessário quando seja imposto por lei, ou seja imposto pelas partes de um negócio jurídico (artigo 33.º, n.º 1), ou quando a intervenção de todos os interessados seja necessária, pela própria natureza da relação jurídica, para que a decisão a proferir produza o seu efeito útil normal, ou seja, quando sem a intervenção de todos os interessados não seja possível a composição definitiva dos interesses em causa (artigo 33.º, n.º 2).
Como se deixou entrever, a relação jurídica tributária de liquidação do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e da contribuição de serviço rodoviário e a relação jurídica tributária de repercussão da contribuição de serviço rodoviário são de distinta natureza e originam diferentes obrigações tributárias. Sendo possível concluir que a entidade que explora postos de abastecimento de produtos petrolíferos e procede à sua introdução no consumo, enquanto sujeito passivo do imposto, dispõe de legitimidade para impugnar os atos de liquidação, ao passo que a entidade sobre a qual é possível repercutir o imposto, não sendo sujeito passivo do tributo, mantém o direito de impugnar o encargo tributário que suporta por efeito da repercussão.
E, desse modo, as entidades repercutentes e repercutidas têm diferentes interesses em demandar e quanto a elas não se verifica qualquer dos critérios legais que justificam o litisconsórcio necessário. O que equivale por dizer que não se torna obrigatória a intervenção provocada da B..., S. A., nem a falta de intervenção implica a preterição de litisconsórcio necessário ou constitui motivo de ilegitimidade.
Falta de interesse em agir
14. A Autoridade Tributária invoca ainda a falta de interesse em agir por parte da Requerente, na medida em que não se encontra provado que tenham procedido ao pagamento dos valores referentes à CSR, não podendo obter, por isso, qualquer proveito ou utilidade do prosseguimento da ação.
O interesse em agir tem sido entendido como um pressuposto processual autónomo, distinto da legitimidade activa, e que se traduz na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer seguir a acção, e assume especial relevo nas chamadas acções de simples apreciação quando se verifica um estado de incerteza sobre a existência ou inexistência do direito a apreciar. O autor poderá ser titular de uma situação jurídica substantiva (direito de propriedade, direito de crédito), que lhe confere, à partida, a legitimidade para a fazer valer em juízo, mas, simultaneamente, poderá não estar carecido de tutela judicial, por esse seu direito não ter sido negado ou, de algum modo, posto em causa por um acto de uma autoridade pública ou por iniciativa de um particular. É nesse sentido que a ausência do interesse em agir poderá ser considerada como circunstância que obsta ao prosseguimento do processo, determinando a absolvição da instância.
É claro que não é a mera alegação da parte, ainda na fase dos articulados, de que não foi feita prova da repercussão que pode conduzir, por si, à falta de interesse em agir. É ao tribunal arbitral que cabe fixar a matéria de facto, com base na instrução do processo, e caso, eventualmente, venha a considerar como não provado que a Requerente suportou o pagamento da CSR por repercussão, a questão que se coloca tem a ver com a procedência ou a improcedência do pedido, e, por conseguinte, com a matéria de fundo, e não, evidentemente, com os pressupostos processuais da acção.
Ineptidão da petição inicial
15. A Autoridade Tributária invoca a ineptidão da petição inicial por falta de objeto, por não terem sido identificados, no pedido de pronúncia arbitral, os atos tributários impugnados, aduzindo, em síntese, que não é possível estabelecer a correlação entre os atos de liquidação praticados a montante pelo fornecedor de combustíveis, sujeito passivo do imposto, e as faturas de compra mencionadas pela Requerente.
A ineptidão da petição inicial, gerando a nulidade do processo, ocorre quando se verifiquem alguns dos vícios mencionados no artigo 186.º, n.º 2, do CPC, ou seja, quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir ou se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis. Para se considerar inepta a petição, no primeiro caso, não basta uma qualquer deficiência da petição, tornando-se necessária a absoluta falta de indicação do pedido ou a sua formulação em termos insanavelmente obscuros ou contraditórios de modo a não permitir determinar, em face do articulado, qual é o pedido ou a causa de pedir (cfr. Manuel Andrade, Lições Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1976, pág. 177).
Compulsando o pedido arbitral, constata-se que a Requerente, no petitório, veio requerer a declaração de ilegalidade dos atos de liquidação da CSR referentes aos meses de março de 2019 a dezembro de 2022, incidentes sobre os fornecedores B..., S.A., C..., Lda. e D..., Lda., e, bem assim, os atos de repercussão na sua esfera jurídica relativamente ao total de 740.982,30 litros de gasóleo rodoviário adquiridos a essas entidades nesse período. E, sendo assim, o pedido apresenta-se perfeitamente delimitado e formulado em termos compreensíveis.
Como resulta da citada norma do artigo 18.º, n.º 4, alínea a), da LGT, quem suporte o encargo do imposto por repercussão legal, ainda que não seja sujeito passivo da relação jurídica tributária, mantém o direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias contra os atos de liquidação que geram a repercussão. Assim sendo, a Requerente, embora não seja o sujeito passivo da relação tributária subjacente à repercussão, enquanto entidade repercutida, pode impugnar os próprios atos de liquidação do imposto, através de qualquer daqueles meios procedimentais ou processuais, como modo de reagir contra a ilegalidade da repercussão.
Acresce que a Requerente, no pedido arbitral, mediante a remissão para os documentos n.º 1 e 5 juntos ao pedido arbitral, identifica as faturas emitidas pelos fornecedores de combustíveis em que terá havido lugar à repercussão da CSR, e indica a quantia global especificadamente suportada a esse título.
Nada obsta, por conseguinte, que a Requerente possa deduzir um pedido de pronúncia arbitral contra os atos tributários de liquidação da CSR, e, por outro lado, esses atos encontram-se identificados e documentados pelo único meio possível qual seja a emissão de faturas emitidas pelo fornecedor do combustível.
Resta referir que, não sendo a Requerente o sujeito passivo do imposto, nem o direto responsável pela sua liquidação, mas apenas a entidade que alegadamente suporta o encargo por efeito da repercussão, não lhe compete o ónus de identificação e de comprovação dos atos de liquidação repercutidos, sendo certo que o contribuinte se encontra na impossibilidade de obter elementos de informação que estão na posse de uma terceira entidade.
Não se verifica, por conseguinte, a ineptidão da petição por falta ou inintelegibilidade da indicação do pedido ou da causa de pedir, nem por alguma das outras causas enunciadas no artigo 186.º do CPC, e a questão de saber se houve uma efectiva repercussão do encargo tributário na esfera jurídica da adquirente, ou se existe correlação entre os atos de liquidação da CSR e as faturas de compra, apenas poderá relevar no âmbito da apreciação da matéria de fundo para efeito do julgamento de procedência do pedido.
Caducidade do direito de ação
16. A Autoridade Tributária alega ainda que a falta de identificação dos atos de liquidação impede aferição da tempestividade do pedido de revisão oficiosa, na medida em que a contagem do prazo para a sua apresentação se inicia a partir do termo do prazo de pagamento do imposto, tendo por referência a data do ato de liquidação. E considera, por outro lado, que o pedido de revisão oficiosa não poderia ser apresentado no prazo de 4 anos previsto no artigo 78.º, n.º 1, da LGT, porquanto esse prazo apenas é aplicável quando o ato de liquidação seja imputável a um erro dos serviços, e, na situação do caso, encontrando-se a Administração vinculada ao princípio da legalidade e tendo efetuado a liquidação em estrita observância das normas legais, não ocorreu qualquer erro de direito imputável aos serviços.
Como se deixou já exposto, a Requerente deduziu um pedido de pronúncia arbitral contra os atos tributários de liquidação da CSR e consequentes actos de repercussão. E não sendo a Requerente o sujeito passivo do imposto, nem o direto responsável pela sua liquidação, mas apenas a entidade que alegadamente suporta o encargo por efeito da repercussão, não lhe compete o ónus de identificação e de comprovação dos atos de liquidação repercutidos, sendo antes sobre a Autoridade Tributária que impede o ónus de realizar, no âmbito do procedimento de revisão oficiosa, as diligências oficiosas que permitissem verificar a existência dos atos de liquidação do imposto.
E assim sendo, a alegada falta de identificação dos atos de liquidação não é imputável à Requerente.
Acresce que - como se afirma, entre outros, nos acórdãos do STA de 14 de Março de 2012 (Processo n.º 01007/11) e de 8 de Março de 2017 (Processo n.º 01019/14) - a revisão oficiosa do ato tributário pode ser efetuada a pedido do contribuinte no prazo de quatro anos contados da liquidação (ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago) quando houver erro imputável aos serviços, devendo entender-se como tal o erro material, o erro de facto ou o erro de direito, independentemente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação.
É o que resulta do disposto no artigo 78.º, n.º 7, da LGT, pelo qual a revisão oficiosa, nos termos previstos no n.º 1 desse artigo, pode ser desencadeada pelo sujeito passivo mediante requerimento dirigido ao órgão competente da Administração Tributária e com base nos mesmos pressupostos legais: no prazo de quatro anos e com fundamento em erro imputável aos serviços. O que se tem entendido como uma decorrência do princípio da justiça e da verdade material (cfr., neste sentido, Joaquim Freitas da Rocha, Lições de Procedimento Tributário, 5.ª edição, Coimbra, págs. 227-228; Serena Cabrita Neto/Carla Castelo Trindade, Contencioso Tributário, vol. I, Coimbra, 2017, pág. 605, e Leonardo Marques dos Santos, “A revisão do ato tributário, as garantias dos contribuintes e a fiscalidade internacional”, in Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Alberto Xavier, Economia, Finanças Públicas e Direito Fiscal, Vol. II, págs. 14 e segs.).
Conforme é também jurisprudencialmente aceite, existindo um erro de direito numa liquidação efetuada pelos serviços da administração tributária, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços, em resultado da obrigação genérica de a administração tributária atuar em plena conformidade com a lei.
Por outro lado, como é evidente, a existência do erro que constitui fundamento do pedido de revisão não pode ser aferida a partir da posição jurídica que tenha sido assumida pela Autoridade Tributária na apreciação do pedido de revisão, mas com base nos vícios de ilegalidade que tenham sido arguidos pelo contribuinte na formulação do pedido de impugnação judicial. Sendo que o processo arbitral foi deduzido precisamente para discutir a validade do entendimento adotado pela Administração na decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa.
Nestes termos, tendo sido invocado um erro imputável aos serviços e verificando-se que o pedido de revisão oficiosa deu entrada em 3 de abril de 2023 e reportam-se a atos de repercussão da CSR no período compreendido entre março de 2019 a dezembro de 2022, no momento da apresentação do pedido de revisão oficiosa não tinha ainda decorrido o prazo de quatro anos a que se refere o artigo 78.º, n.º 1, da LGT.
Tendo sido apresentado o pedido arbitral em 2 de novembro de 2023, dentro do prazo de 90 dias após o decurso do prazo para a apreciação do pedido de revisão oficiosa, que ocorreu em 4 de agosto de 2023, o pedido arbitral é igualmente tempestivo.
Não se verifica, por conseguinte, a pretendida caducidade do direito de ação.
Não exigibilidade de juros indemnizatórios
17. Alega a Autoridade Tributária, por fim, que, segundo o disposto no artigo 43.º, n.º 3, alínea d), da LGT, são devidos juros indemnizatórios quando exista uma decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução, o que, no caso, se não verifica. Daí concluindo que não se encontram reunidos os pressupostos legais para que se efetue o reembolso do imposto e o pagamento de juros indemnizatórios.
E acrescenta que, face ao despacho do TJUE proferido no âmbito do processo n.º C-460/21, não se pode afirmar que existe uma desconformidade do regime da CSR com o previsto na Diretiva 2008/118/CE.
Ora, a mencionada norma da alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, aditada pela Lei n.º 9/2019, de 1 de fevereiro, ao referir-se a decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária, constitui apenas uma das circunstâncias em que são devidos juros indemnizatórios, sendo que os juros indemnizatórios, para além das situações elencadas nesse n.º 3, são igualmente devidos nos termos do n.º 1 desse artigo, ou seja, “quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Nada poderá obstar, por conseguinte, que venha a ser determinada a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, caso se venha a concluir, na presente impugnação judicial, pela ilegalidade dos atos de liquidação da Contribuição de Serviço Rodoviário impugnados e dos correspondentes atos de repercussão.
Por outro lado, a desconformidade do regime da CSR com o previsto na Diretiva 2008/118/CE constitui o próprio objeto do pedido arbitral, cabendo ao tribunal definir o direito aplicável para efeito de verificar se a pretensão é ou não procedente.
III - Fundamentação
Matéria de facto
17. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.
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A Requerente é uma sociedade comercial anónima que, para exercer a sua atividade comercial, se dedica ao transporte rodoviário de mercadorias.
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No período compreendido entre março de 2019 e dezembro de 2022, a Requerente adquiriu aos fornecedores B..., S.A., C..., Lda. e D..., Lda. um total de 740.982,30 litros de gasóleo.
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As aquisições de combustíveis encontram-se documentadas nas faturas que constam dos documentos n.ºs 1.1, 1.2, 1.3 e 1.4 juntos ao pedido arbitral, que aqui se dão como reproduzidas.
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A Requerente juntou aos autos, como documento n.º 5, que aqui se dá como reproduzido, uma relação de facturas de aquisição de combustíveis, no período de março de 2019 e dezembro de 2022, correspondente ao total de 740.982,30 litros de gasóleo, no qual se menciona o apuramento da contribuição de serviço rodoviário relativamente a cada uma das facturas, no montante global de € 82.249,04.
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A Requerente juntou aos autos, através do requerimento de 3 de abril de 2024, documentos comprovativos do pagamento das facturas de aquisição de combustíveis, que aqui se dão como reproduzidos.
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Em 31 de março de 2023, a Requerente apresentou, perante a Alfândega de Braga, um pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação da Contribuição de Serviço Rodoviário, referente ao período de março de 2019 a dezembro de 2022, referente à aquisição de 740.982,30 litros de gasóleo, invocando que o encargo tributário foi repercutido na sua esfera jurídica pelos fornecedores B..., S.A., C..., Lda. e D..., LDA.
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O pedido de revisão oficiosa foi recebido em 3 de abril seguinte.
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A Autoridade Tributária e Aduaneira não emitiu decisão quanto ao pedido de revisão oficiosa no prazo legalmente cominado para o efeito, considerando-se o pedido tacitamente indeferido em 4 de agosto de 2023.
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O pedido arbitral deu entrada em 2 de novembro de 2023.
Factos não provados
Não se encontra provado que se tenha verificado a efectiva repercussão da Contribuição de Serviço Rodoviário na esfera jurídica da Requerente relativamente ao combustível adquirido aos fornecedores B..., S.A., C..., Lda. e D..., no período de março de 2019 a dezembro de 2022 e no montante de € 82.249,04.
Motivação da matéria de facto
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição inicial e ao requerimento de 15 de dezembro de 2023 e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta.
Para fazer a prova da repercussão, a Requerente limitou-se a juntar ao pedido arbitral as facturas de aquisição de combustível, e, posteriormente, através do requerimento de 3 de abril de 2024, os documentos comprovativos do pagamento das facturas. No entanto, nem as facturas nem os documentos comprovativos do pagamento evidenciam a repercussão da CSR no preço de venda, nada permitindo concluir se ouve lugar ao pagamento do imposto por repercussão e qual tenha sido o montante apurado a esse título. E, por outro lado, o documento n.º 5 junto ao pedido arbitral constituiu um documento ad hoc, correspondendo a um mapa resumo do cálculo do valor da contribuição a apurar relativamente às quantidades de combustível adquiridos, que, sendo passível de livre apreciação pelo tribunal, não tem suficiente valor probatório material quanto à efectiva repercussão do imposto relativamente a cada uma das aquisições realizadas.
Matéria de direito
18. A questão que vem colocada é a de saber se a Contribuição de Serviço Rodoviário, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que constitui um imposto incidente sobre os combustíveis rodoviários também sujeitos ao Imposto sobre Produtos Petrolíferos, e que se encontra enquadrada pela Diretiva n.º 2008/118/CE, tem um “motivo específico” na aceção do artigo 1.º, n.º 2, dessa Diretiva.
Nos termos da referida Lei n.º 55/2007, na sua redação originária, a Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E. P. E. (artigo 1.º), que, entretanto, passou a denominar-se Infraestruturas de Portugal, S.A., sendo que o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo desta entidade é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável (artigo 2.º).
A mesma contribuição corresponde à contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis, e constitui uma fonte de financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da Infraestruturas de Portugal, S.A, no que respeita à respetiva conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento, ainda que a exigência da contribuição não prejudique a eventual aplicação de portagens em vias específicas ou o recurso da entidade concessionária a outras formas de financiamento (artigo 3.º).
A contribuição incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e dele não isentos (artigo 4.º, n.º 1) e é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo (artigo 5.º, n.º 1).
O produto da Contribuição de Serviço Rodoviário constitui receita própria da atualmente denominada Infraestruturas de Portugal, S.A. (artigo 6.º).
À luz do regime jurídico sucintamente exposto, a Requerente sustenta que a Contribuição de Serviço Rodoviário foi criada por razões de ordem puramente orçamental, em vista à angariação de receitas próprias para financiamento da empresa pública concessionária da rede nacional de estradas, em violação do direito europeu, e, especialmente, do referido artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 2008/118/CE.
Em contraposição, a Autoridade Tributária considera que a atividade da Infraestruturas de Portugal tem subjacente a prossecução de objetivos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental, que se pode entender como “motivo específico” da criação da contribuição e não pode circunscrever-se a uma mera finalidade de natureza orçamental.
19. Analisando esta questão, interessa começar por ter presente a Diretiva 2008/118/CE, que estabelece o regime geral dos impostos especiais de consumo que incidem direta ou indiretamente sobre o consumo, entre outros, dos produtos energéticos, e, em especial, o seu artigo 1.º, n.º 2, que tem a seguinte redação:
Os Estados-Membros podem cobrar, por motivos específicos, outros impostos indiretos sobre os produtos sujeitos a impostos especiais de consumo, desde que esses impostos sejam conformes com as normas fiscais da Comunidade aplicáveis ao imposto especial de consumo e ao imposto sobre o valor acrescentado no que diz respeito à determinação da base tributável, à liquidação, à exigibilidade e ao controlo do imposto, regras estas que não incluem as disposições relativas às isenções.
Interpretando esta disposição na perspetiva de saber se a CSR prossegue um “motivo específico” na aceção da Diretiva, o despacho do TJUE de 7 de fevereiro de 2022, proferido no Processo n.º C-460/21, começou por assinalar que “para se considerar que prossegue um motivo específico, na aceção da referida disposição, um imposto deve visar, por si só, assegurar a finalidade específica invocada, de tal forma que exista uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa” (parágrafo 25). Acrescentando que “só se pode considerar que um imposto que incide sobre produtos sujeitos a impostos especiais de consumo quando prossegue um motivo específico, na aceção do artigo 1.º, n.° 2, da Diretiva 2008/118/CE, se esse imposto for concebido, no que respeita à sua estrutura, nomeadamente, à matéria coletável ou à taxa de tributação, de modo a influenciar o comportamento dos contribuintes num sentido que permita realizar o motivo específico invocado, por exemplo, através da tributação significativa dos produtos considerados para desencorajar o respetivo consumo (parágrafo 27).
No desenvolvimento destes critérios gerais, o despacho do TJUE veio a considerar que o artigo l.°, n.° 2, da Diretiva 2008/118/CE deve ser interpretado no sentido de que não prossegue “motivos específicos”, na acepção desta disposição, um imposto cujas receitas ficam genericamente afectadas a uma empresa concessionária da rede rodoviária nacional e cuja estrutura não atesta a intenção de desmotivar o consumo dos principais combustíveis rodoviários.
Havendo de concluir-se, em conformidade, que a CSR, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, não prossegue “motivos específicos”, na aceção do artigo l.°, n.° 2, da Diretiva 2008/118/CE, na medida em que as suas receitas têm essencialmente como fim assegurar o financiamento da rede rodoviária nacional, não podendo considerar-se como suficiente, para estabelecer uma relação direta entre a utilização das receitas e um “motivo específico”, os objetivos genéricos de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental.
20. A jurisprudência do Tribunal de Justiça tem vindo a considerar que, “ainda que, na legislação nacional, os impostos indiretos tenham sido concebidos de modo a serem repercutidos no consumidor final e que, habitualmente, no comércio, esses impostos indiretos sejam parcial ou totalmente repercutidos, não se pode afirmar de uma maneira geral que, em todos os casos, o imposto é efetivamente repercutido. A repercussão efetiva, parcial ou total, depende de vários fatores próprios de cada transação comercial e que a diferenciam de outras situações, noutros contextos. Consequentemente, a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos” (cfr. Processo n.º C-460/21, parágrafo 44 e a jurisprudência nele citada).
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Por outro lado, segundo a mesma jurisprudência, não é de admitir que, no caso dos impostos indiretos, exista uma presunção segundo a qual a repercussão teve sempre lugar, e, mesmo quando o contribuinte tenha sido obrigado, pela legislação nacional aplicável, a incorporar o imposto no preço de custo do produto em causa, essa obrigação legal não permite presumir que a totalidade do imposto tenha sido repercutida (Processo n.º C-460/21, parágrafo 45).
Neste sentido, constituindo a repercussão fiscal da CSR um facto positivo, o ónus da prova impende sobre quem o invoca, por forma a comprovar a qualidade de entidade repercutida e lesada no âmbito da relação jurídico-tributária, e, por conseguinte, é ao contribuinte, que pretende obter a declaração de ilegalidade dos actos de liquidação da CSR e dos correspondentes actos de repercussão na sua esfera jurídica, que cabe realizar a prova da efectiva repercussão. Sendo que a prova da repercussão deve ser objetivamente demonstrada por documentos que identifiquem o efetivo pagamento do imposto, não podendo assentar em juízos presuntivos ou em meras declarações genéricas que não contenham os necessários requisitos declarativos (neste sentido, a decisão arbitral proferida no Processo n.º 452/2023-T),
No caso, não se encontra provado que se tenha verificado a efectiva repercussão da CSR relativamente ao combustível adquirido pela Requerente no referido no período de março de 2019 a dezembro de 2022, e no montante total de € 82.249,04, na medida em que nem as facturas juntas ao pedido arbitral, nem os documentos comprovativos do pagamento das facturas juntos com o requerimento de 3 de abril de 2024, contêm qualquer especificação do valor da contribuição que tenha sido paga com a aquisição dos combustíveis. E, por outro lado, o mapa resumo que constitui o documento n.º 5 junto à petição inicial, limita-se a efectuar o cálculo do valor da contribuição que seria devida relativamente às quantidades de combustível que tenham sido adquiridos, e não é em si demonstrativo da ocorrência da repercussão do imposto.
Na ausência de prova bastante de que tenha havido lugar à repercussão do imposto, o pedido arbitral mostra-se ser improcedente.
Questão de inconstitucionalidade
21. A Requerente alega que o regime jurídico da contribuição de serviço rodoviário, definido pela Lei n.º 55/2007, ao fazer incidir o imposto sobre um conjunto restrito de contribuintes, padece de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da igualdade, na medida em que onera de forma injustificada um conjunto de contribuintes em face do seu setor de atividade económica, fazendo-os contribuir em maior medida para o financiamento de funções do Estado.
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Como é sabido, o controlo difuso da constitucionalidade pelos tribunais é normativo, incidindo sobre uma norma ou interpretação normativa que tenha sido aplicada em decisão judicial ou em ato administrativo, competindo à parte suscitar de modo processualmente adequado a questão de constitucionalidade que se pretende ver apreciada (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
A suscitação processualmente adequada da questão implica a precisa delimitação do seu objeto, mediante a especificação da norma, segmento normativo ou a dimensão normativa que se entende ser inconstitucional (acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 450/06, 21/06, 578/07, 131/08) e a indicação das razões pelas quais se considera verificada a violação de normas ou princípios constitucionais (acórdãos n.ºs 645/06, 708/06, 630/08), não bastando uma referência genérica a essas normas ou princípios.
Por outro lado, o recurso de constitucionalidade tem natureza instrumental, sendo que a decisão a proferir há de ter uma efetiva repercussão na solução do caso concreto, implicando a reforma da decisão recorrida. Não é admissível o recurso quando a interpretação questionada não constitui ratio decidendi mas mero obter dictum (acórdãos n.ºs 524/98, 319/94) ou quando o tribunal recorrido adota um fundamento alternativo (acórdãos n.ºs 513/06, 320/07, 270/08). Este princípio é necessariamente aplicável quando, num processo de impugnação judicial, seja colocada uma questão de constitucionalidade cuja decisão a proferir seja passível de recurso para o Tribunal Constitucional.
No caso vertente, a Requerente não suscitou a questão de constitucionalidade de modo processualmente adequado, na medida em que se limitou a imputar, genericamente, a violação do princípio constitucional da igualdade à Lei n.º 55/007, no seu todo, sem indicar a norma ou segmento normativo susceptível de violar esse princípio, nem desenvolveu minimamente as razões que justificam um juízo de inconstitucionalidade com aquele fundamento. E, por outro lado, ainda neste caso, a apreciação da questão de constitucionalidade seria inteiramente inútil, porquanto o tribunal julgou improcedente o pedido arbitral por ausência de prova da efectiva repercussão do imposto, e constituindo esse um fundamento alternativo de improcedência do pedido, a apreciação da questão da violação de princípio constitucional não teria qualquer efeito prático, nem obstaria a que o pedido arbitral fosse julgado improcedente por razões de direito probatório material.
Em conformidade, não é de conhecer da questão de constitucionalidade.
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Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios
22. Face à improcedência do pedido principal, fica necessariamente prejudicado o conhecimento do pedido acessório de reembolso do imposto pago e de pagamento de juros indemnizatórios.
III – Decisão
Termos em que se decide:
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Julgar improcedentes as exceções dilatórias e perentórias invocadas;
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Julgar improcedente o pedido arbitral e manter na ordem jurídica os atos de liquidação impugnados, bem como a decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa;
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Não conhecer da questão de constitucionalidade alegada pela Requerente;
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Julgar prejudicado o conhecimento do pedido acessório de reembolso do imposto pago e de pagamento de juros indemnizatórios.
Valor da causa
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 82.249,04, que não foi questionado pela Requerida, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
Custas
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2.754,00, que fica a cargo da Requerente.
Notifique.
Lisboa, 14 de maio de 2024
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha (relator)
A Árbitro vogal
Marta Vicente (com declaração de voto)
O Árbitro vogal
Tomás Cantista Tavares (com declaração de voto)
Declaração de voto
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Concordo com a Sentença, na parte que decidiu, no sentido improcedência do pedido, por falta de prova documental da repercussão.
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Mas, por mim, teria considerado improcedente o pedido “a montante”, por ilegitimidade do requerente, com os argumentos aduzidos no proc. 408/2023-T, em que fui relator.
Tomás Cantista Tavares
Declaração de voto
1 - Adiro integralmente ao modo como o Tribunal Arbitral ajuizou as questões levantadas pela AT no âmbito da sua defesa por exceção. No que respeita à matéria de facto, apesar de concordar que, no presente caso, não se encontra provada a repercussão da CSR (Contribuição de Serviço Rodoviário) na esfera jurídica da Requerente, considero ser necessário clarificar a minha posição tendo em conta o já decidido noutros processos.
2 - A factualidade deste processo difere da de outros (ex., Processo n.º 491/2023-T, acórdão com data de 05-03-2024) em pelo menos dois aspetos. Primeiro, nem todos os fornecedores de combustível identificados pela Requerente são sujeitos passivos de CSR / ISP. A D..., Lda. será, neste sentido, um interveniente na cadeia de comercialização de combustível, mas falta-lhe a qualidade de sujeito passivo (facto avançado pela AT e não impugnado pela Requerente). Pelo que não terá sido a mencionada entidade a introduzir o combustível no mercado nem a submeter a correspondente DIC (Declaração de introdução no consumo).
3 – Segundo, a Requerente não juntou ao processo quaisquer documentos (ou outros meios de prova) que permitissem ao Tribunal arbitral formar a convicção de que, no presente caso, a entidade que introduziu o combustível no consumo e o alienou à Requerente terá efetivamente repercutido sobre esta os montantes que lhe foram liquidados a título de CSR. Esses meios de prova – uma declaração do sujeito passivo, por exemplo – teriam, no meu entender, a virtude de influenciar decisivamente o juízo do Tribunal arbitral sobre a questão de facto que importava dilucidar: a da ocorrência de repercussão da CSR.
4 - A repercussão de um imposto não se presume mesmo quando seja legalmente exigida a incorporação do imposto no preço de venda dos bens (repercussão legal obrigatória), ou mesmo que, habitualmente, no domínio do comércio, o imposto seja parcial ou totalmente repercutido. Neste sentido, para o Tribunal de Justiça, a repercussão tributária – obrigatória, ou não – é uma questão de facto, sobre a qual não recai qualquer presunção nem em benefício da AT nem em benefício da Requerente. A repercussão depende de fatores inerentes a cada transação comercial e será mais ou menos provável consoante as caraterísticas do mercado, mormente a sua elasticidade ou inelasticidade (Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, §44; Weber’s Wine, processo C-147/01, §96).
5 – Como o Tribunal arbitral sublinha, o regime jurídico da CSR (constante da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto) aponta no sentido da repercussão legal do imposto. Esse resultado normativo entronca no facto de a CSR, pretendendo ser “a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional” (artigo 3.º, n.º 1), incidir, todavia, sobre os sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos (artigo 5.º, n.º 1). O descompasso entre o titular da manifestação da capacidade contributiva que se pretende onerar e a incidência subjetiva do tributo é revelador de que, para o legislador, o normal andamento das coisas é a ocorrência de repercussão.
6 – Contudo, como se disse, a repercussão – mais ou menos provável, mais ou menos normal – não se presume e tem de ser demonstrada. Ora, no caso das faturas emitidas pela D..., Lda., não sendo esta sociedade sujeito passivo de CSR, desconhece-se a quem terá adquirido o combustível que forneceu à Requerente e se terá suportado CSR nessa aquisição (cf., neste sentido, Processo n.º 410/2023-T, acórdão com data de 08-11-2023). Nestas condições, e quanto àquela entidade, não considero provado que o valor da CSR tenha sido repercutido na Requerente.
7 – No que respeita à B..., S.A. C..., Lda., na falta de outro acervo probatório para além do constante dos autos, impõe-se, igualmente, a conclusão a que chegou o Tribunal Arbitral.
Marta Vicente