Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 729/2023-T
Data da decisão: 2024-05-20  IRC  
Valor do pedido: € 7.163,02
Tema: IRS — art. 18.º, 1, 2, e 23.º, CIRC, e art. 74.º, LGT — princípio da especialização dos exercícios.
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Sumário:

 

I — Numa liquidação, tendo a AT demonstrado que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a correção aos elementos declarados pelo SP, incumbe a este a prova dos factos que ponham em causa essa correção, de acordo com a norma da repartição do ónus da prova, positivada no art. 74.º, 1, LGT.

 

II — O princípio da especialização dos exercícios não é absoluto, mas deve prevalecer quando se conclui que a sua violação resulta apenas de uma decisão de gestão por parte do SP, que só a ele compete tomar, devendo assumir por isso as devidas consequências fiscais.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            O árbitro Ricardo Marques Candeias, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral, decide nos termos que se seguem:

 

I – RELATÓRIO

 

A. Dinâmica processual

  1. A..., Lda (‘Requerente’), titular do NIPC e NIF..., sedeada em rua do ..., ..., ..., ...— .... .., apresentou pedido de pronúncia arbitral ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), para que sejam anulada as liquidações n.º 2023 ... e n.º 2023..., de 30 maio 2023, relativas ao Rendimento das Pessoas Coletivas (‘IRC’) do ano de 2019, no valor de € 7.163,03, e respetivas liquidações de juros compensatórios, e efetuado o reembolso correspondente, acrescido dos juros compensatórios e indemnizatórios à taxa legal em vigor.
  2. No dia 18 de outubro de 2023 o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à Requerente e à AT.
  3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, 1, e artigo 11.º, 1, b), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  4. Em 11 de dezembro de 2023 as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar.
  5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído a 2 de janeiro de 2024.
  6. No dia 15 de fevereiro de 2024, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta apresentando exceção parcial e defendendo-se por impugnação.
  7. Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art. 16.º, e n.º 2 do art. 29.º, ambos do RJAT, a 18 de março de 2024 foi dispensada a realização da reunião a que alude o art. 18.º do RJAT, bem como a de apresentação de alegações escritas. Mais foi indicado que a decisão final seria notificada até ao dia 23 de maio de 2024.

 

B. Posição das partes

 

            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que exerce a atividade de "Turismo no espaço rural". Foi alvo de uma ação inspetiva relativa ao ano de 2019 do qual resultou relatório que propôs correções em sede de IRC não aceitando o gasto reconhecido no montante de € 28.000,00, relativo a fatura com o descritivo “Trabalhos de Fotografia e Vídeo Institucionais (realizados em 2018)”, datada de 4 de janeiro de 2019.

            Entende que tal conclusão não pode ser admitida pois, não obstante resultar do descritivo da fatura “Trabalhos de Fotografia e Vídeo Institucionais (realizados em 2018)”, tais gastos devem ser, como foram, considerados em 2019, pois os trabalhos realizados em 2018 foram apenas preparatórios, materializando-se ao longo do ano de 2019, pelo que somente a partir desse exercício poderiam gerar proveitos. Considera que a autoridade tributária apenas se limitou a dar relevância ao descritivo que constava na fatura sem considerar o enquadramento efetuado pela Requerente relativamente aos serviços prestados. Por força do artigo 18.º, 1, CIRC, bem como considerando os princípios da justiça e da verdade material, o entendimento da autoridade tributária deveria ter sido outro, pois o princípio da especialização económica não é absoluto. Cita jurisprudência e doutrina nesse sentido.

            Perante este enquadramento, as liquidações de IRC e respetivos juros compensatórios que agora se impugnam padecem de erro na aplicação do direito, verificando-se violação do disposto no artigo 18.º, 1, CIRC.

            Daí que, não se conformando, apresentou junto do CAAD o presente PPA que ora se aprecia.

            Por sua vez, a AT defende-se alegando, desde logo, que as liquidações em causa resultam de correções aritméticas em sede de IRC relacionadas com gastos do período anterior, no montante de € 28.000,00, bem como com gastos não aceites, nos termos do artigo 23.º do CIRC, no montante de € 2.360,59. Ora, tendo a Requerente fundamentado a sua causa de pedir e o seu pedido num erróneo enquadramento dos gastos no montante de € 28.000,00, e apenas neste ponto, a dar razão a esta, apenas poderiam tais notas de liquidação ser parcialmente anuladas.

            Quanto à questão de fundo, defende a AT que o art. 18.º, CIRC, estabelece o princípio da periodização do lucro tributável sendo que a imputação de um rendimento ou gasto a certo exercício obedece a um critério económico (e não a um critério financeiro), isto é, as operações nele efetuadas afetam o respetivo resultado, independentemente do recebimento ou pagamento do respetivo preço ou outra contrapartida, isto é, não releva para a imputação temporal de um gasto, o momento em que a empresa extingue os seus débitos, mas sim o momento em que tais obrigações nascem. Só assim o princípio da especialização dos exercícios assegura, do ponto de vista contabilístico, uma imagem verdadeira e apropriada do património ou da situação financeira, do desempenho e das alterações a ocorrer à posição financeira da empresa.

            A obrigatoriedade de considerar os gastos e os rendimentos no exercício em que são gerados/incorridos impede também que os contribuintes difiram os gastos e os rendimentos com finalidades de gestão fiscal, diversas daquelas que o legislador fiscal entendeu privilegiar no sistema fiscal português.

            Este enquadramento normativo resulta do disposto dos § 2, §§ 14 e 19 da Estrutura Conceptual do SNC que, por sua vez, devem ser lidos em consonância com o artigo 17.º, 3, a), CIRC, quanto à sua força vinculativa.

            Além do mais, a versão apresentada pela Requerente não resulta provada, pois sustenta-se em documentação que a contradiz. Aliás, a Requerente, nem no RIT nem nos presentes autos, apresentou documentação adicional para além da fatura que suporte as suas afirmações, e nem sequer concretiza qual o efeito jurídico que pretende delas extrair.

Na perspetiva da AT, tendo em conta que a data de emissão da identificada fatura ocorreu em 04 de janeiro de 2019, muito antes do encerramento das contas de 2018, a Requerente deveria ter reconhecido esse gasto, no montante de 28.000,00 €, ainda com referência a esse exercício de 2018. Sendo assim, estamos perante um erro contabilístico refletido no indevido reconhecimento contabilístico de gastos em 2019 (conta SNC 62211 — ”Trabalhos Especializados c/IVA Dedutível”), quando tais gastos deveriam ter sido reconhecidos no período anterior (2018) em obediência aos normativos contabilísticos (§22 da Estrutura Conceptual (EC), SNC; §32, NCRF 4).

            Com relação à articulação entre o princípio da periodização do lucro tributável e o da justiça convoca a AT o entendimento que este não se impõe em absoluto àqueloutro no sentido de o neutralizar em todas e quaisquer circunstâncias, pois importa ponderar o caso concreto, nomeadamente, aferir se essa contração subsequente resulta ou não de uma conduta voluntária ou intencional do sujeito passivo.

            Assim, conclui a Requerida que é manifestamente infundada a pretensão de anulação das liquidações controvertidas.

 

II. SANEAMENTO

            O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, 1, a), 5.º, 6.º, 1, e 10.º, 1, RJAT.

            As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. arts. 4.º e 10.º, 2, RJAT, e art. 1.º, Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

            O processo não enferma de nulidades.

            Suscita a Requerida questão prévia, pois a Requerente apenas assenta a causa de pedir e o pedido num erróneo enquadramento dos gastos no montante de € 28.000,00, omitindo os gastos não aceites, nos termos do artigo 23.º do CIRC, no montante de € 2.360,59, que cumulativamente, concorreram para as notas de liquidação em discussão.

            Ora, por questões de ordenamento do presente texto, parece-nos ser mais adequado relegar tal questão para a final, pois, poderá ser a sua prévia apreciação esforço inglório já que ela apenas se coloque se for dada razão à Requerente quanto ao tema de fundo dos presentes autos.  Vai, pois, relegada para apreciação posterior, se ela ainda se mantiver como pertinente.

 

 

III FUNDAMENTAÇÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

A) A Requerente é uma sociedade comercial por quotas, tem por objeto social a «Indústria da construção civil, empreitadas de obras públicas e particulares, concepção, edificação e exploração de empreendimentos turísticos e imobiliários, a compra e venda de prédios rústicos e urbanos e a revenda dos adquiridos para esse fim», e exerce a atividade de “Turismo no Espaço Rural", inscrita desde 1 de março de 2020 — CAE 55202.

B) O capital social da Requerente é de € 6.000,00, representado por duas quotas, sendo a quota de € 4.440,00 detida por B... e a quota de € 1.560,00 detida por “C..., Unipessoal, Lda”.

C) Está enquadrada, em sede de IRC, no regime geral de tributação e, em sede de IVA, no regime normal de periodicidade trimestral.

D) Explora o alojamento turístico “Quinta ...”.

E) No exercício da sua atividade, a Requerente celebrou contrato de prestação de serviços com a “C...Unipessoal, Lda.

F) A C... Unipessoal, Lda, recolheu imagens e vídeo institucionais a favor da Requerente durante o ano de 2018.

G) A C... Unipessoal, Lda, emitiu a fatura n.º 1 2019/1 a favor da Requerente, com o importância de € 28.000,00, a que acresceu o IVA à taxa legal de 23%, com o descritivo «Trabalhos de Fotografia e vídeo institucionais (realizados em 2018)», datada de 4 de janeiro de 2019.

H) A Requerente registou em gastos no ano de 2019 o montante de € 28.000,00, a débito da conta SNC 62211 — "Trab.Especializados c/IVA Dedutível”, em contrapartida da conta SNC 21111001 — "C...  Unipessoal, Lda”, suportada pela fatura identificada no ponto anterior.

I) O sítio "Quinta ..." que se encontra na plataforma “manage.wix.com” foi editado, pelo menos, em janeiro, fevereiro e maio de 2019.

J) Consta da Meo Cloud pastas com as designações "Exterior", "Loft", "Receção", "Studio standard", "Studio superior", "Villa family", "Villa Mezzanin2", "Villa standard", todas com a data de 20 de novembro 2019.

K) Consta print screen da plataforma Vimeo com a pasta "Quinta ...", "4 years ago".

L) A Requerente foi objeto de um procedimento inspetivo externo, de âmbito geral, ao exercício de 2019, credenciado pela Ordem de Serviço n.º OI2023..., tendo sido notificada do projeto de RIT.

M) A Requerente exercer o seu direito de audição prévia opondo-se às conclusões do projeto de decisão, defendendo que tal despesa devia ser registada em 2018, como efetivamente foi.

N) Do referido RIT resulta:

"Da análise à fatura verificou-se que a mesma possui com descritivo “Trabalhos de Fotografia e Vídeo Institucionais (realizados em 2018)”. (...)

Ou seja, o regime do acréscimo define que os efeitos das operações e outros acontecimentos devem ser registados aquando da sua ocorrência relativos aos períodos com que se relacionam, independentemente dos pagamentos ou recebimentos associados se verificarem em período anterior ou posterior. (...)

Ou seja, de acordo com o regime de periodização económica, o sujeito passivo deveria ter reconhecido os gastos da fatura acima referenciada no período a que respeitam (2018), e dado que a mesma foi emitida em 04-01- 2019, antes do encerramento das contas de 2018, pela sociedade detida pelo gerente da A..., o sujeito passivo não pode vir alegar que à data do fecho das contas de 2018 não tinha conhecimento da sua existência, não se enquadrado no disposto no n.º 2 do artigo 18.º do Código do IRC.

Deste modo, o montante de € 28.000,00, referente ao gasto imputável a 2018, reconhecido em gastos no período de 2019, não é aceite como gasto fiscal nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 18.º do Código do IRC, pelo que será acrescido no quadro 07 da Modelo 22 de IRC 2019 para efeitos de apuramento do lucro tributável» (...)

Verificando-se o cumprimento do disposto nos artigos 7.º e 36.º do Código do IVA, a transação em causa encontra-se suportada pela fatura n.º 1 2019/1 emitida a 04-01-2019, com o descritivo “Trabalhos de Fotografia e vídeo institucionais (realizados em 2018)”. Na referida fatura não existe qualquer indicação de que a mesma é referente a pagamentos efetuados com caráter de adiantamento.

Assim, aquando da emissão da fatura, os trabalhos de fotografia e de vídeos nela contemplados foram considerados como já realizados, conforme respetivo descrito, não mencionando a fatura qualquer periodização para entrega dos trabalhos, antes pelo contrário, evidenciando que foram realizados em 2018, não podendo vir agora o sujeito passivo afirmar que os mesmos apenas foram realizados em 2019.

O) Na sequência do referido relatório foram efetuadas as seguintes correções aritméticas em sede de IRC: (i)  V.1.1.1. Gastos de período anterior — no montante de € 28.000,00, respeitante à fatura n.º 1 2019/1 emitida em 04 de janeiro de 2019, no montante total € 34.440,00 (cfr. pág. 14 e 15 do RIT); (ii)  V.1.1.2. Gastos não aceites nos termos do artigo 23.º do CIRC — no montante de € € 2.360,59.

P) Consequentemente, foram emitidas as seguintes liquidações, com base nas correções efetuadas: i) Liquidação de IRC n.º 2023..., de 30 de maio de 2023; ii) Liquidação de Juros Compensatórios de IRC n.º 2023..., de 30 de maio de 2023, tudo num total de € 7.163,02.

Q) A requerente procedeu ao pagamento da referida importância a 12 de julho de 2023.

 

A.2. Factos dados como não provados

            Não foi dado como provado qual o destino pretendido das referidas imagens e quando foram utilizadas.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

            Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, 2, CPPT, e art. 607.º, 3, CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, 1, a) e e), RJAT).

            Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (cfr. anterior art. 511.º, 1, CPC, correspondente ao atual art. 596.º, aplicável ex vi art. 29.º, 1, e), RJAT).

            Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do art. 110.º, 7, CPPT, e a prova documental aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

            Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

            Em particular, não foi dado como provado que os trabalhos realizados e que sustentam a emissão da fatura identificada tenham sido preparatórios para outros serviços executados em 2019 e que estariam relacionados com um alegado website. Com efeito, antes pelo contrário, resulta claramente do descritivo da fatura identificada que, em 2019, os trabalhos referidos já tinham sido concluídos no ano anterior.

            Na verdade, trabalhos de fotografia e de vídeo, em particular, não se confundem com trabalhos de comunicação ou de marketing pois, embora estes possam abranger aqueles, tal também pode não acontecer, no sentido de poderem ser, como foram, no caso concreto, segmentados. E, em concreto, o que resulta do descritivo da referida fatura é que esses trabalhos especializados de fotografia e vídeo foram realizados em 2018, mas ignora-se quando foram realizados os de comunicação e de marketing e quanto eles custaram.

            Além do mais, não foi estabelecido qualquer nexo entre as imagens recolhidas em 2018 e as inseridas no website da Requerente em novembro de 2019. É certo que o sítio "Quinta ..." que se encontra na plataforma “manage.wix.com” foi editado, pelo menos, em janeiro, fevereiro e maio de 2019 assim como consta da Meo Cloud pastas com as designações "Exterior", "Loft", "Receção", "Studio standard", "Studio superior", "Villa family", "Villa Mezzanin2", "Villa standard", todas com a data de 20 de novembro 2019. No entanto, ignora-se que edições foram realizadas assim como que documentos foram descarregados.

            A reforçar este entendimento — a ausência de um nexo entre a recolha das fotografias, em 2018, e o destino que lhes era pretendido dar — verificamos que a inscrição do sujeito passivo para o exercício da atividade de turismo no espaço rural só ocorre em 2020.

            Posto isto, entende-se que a Requerente não juntou prova suficiente aos autos para convencer o Tribunal da sua versão assim como não apresentou qualquer prova testemunhal para esse efeito, como poderia ter feito.

            Na verdade, segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

            Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (v.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º, CCiv.) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

            O ónus da prova dos factos constitutivos do direito que agora se alega recai sobre quem o invoca, neste caso, a Requerente (art. 74.º, 1, LGT). Com a particularidade de a Requerente não poder usufruir da presunção estabelecida no artigo 75.º, idem, pois a presunção que poderia beneficiar colide com o erro material que ela própria alega em seu favor (art. 75.º, 2, a), LGT).

 

 

B. DE DIREITO

 

            B.1 — Do mérito

            A questão que constitui o thema decidendum centra-se em saber qual o tratamento fiscal a dar a uma fatura no valor de € 28.000,00 (a que acresce IVA à taxa legal) com o descritivo «Trabalhos de Fotografia e vídeo institucionais (realizados em 2018)», datada de 4 de janeiro de 2019, que foi registada em gastos no ano de 2019 quando, pelo que resulta do seu descritivo, esses serviços foram integralmente realizados em 2018.

            A questão convoca o disposto nos arts. 18.º, e 23.º, CIRC, nomeadamente como conciliar, in casu, os princípios da especialização dos exercícios, da legalidade e da justiça.

            Positivam os referidos preceitos, na parte que para aqui interessa:

Artigo 18.º - Periodização do lucro tributável

       1 - Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.

Artigo 23.º - Gastos e perdas

       1 - Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.

       2 - Consideram-se abrangidos pelo número anterior, nomeadamente, os seguintes gastos e perdas:
              a) Os relativos à produção ou aquisição de quaisquer bens ou serviços, tais como matérias utilizadas, mão-de-obra, energia e outros gastos gerais de produção, conservação e reparação;

(...)

 3 - Os gastos dedutíveis nos termos dos números anteriores devem estar comprovados documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para esse efeito.

       4 - No caso de gastos incorridos ou suportados pelo sujeito passivo com a aquisição de bens ou serviços, o documento comprovativo a que se refere o número anterior deve conter, pelo menos, os seguintes elementos:


              a) Nome ou denominação social do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário;
              b) Números de identificação fiscal do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário, sempre que se tratem de entidades com residência ou estabelecimento estável no território nacional;

              c) Quantidade e denominação usual dos bens adquiridos ou dos serviços prestados;

              d) Valor da contraprestação, designadamente o preço;

              e) Data em que os bens foram adquiridos ou em que os serviços foram realizados.


       5 - (Revogado.)


       6 - Quando o fornecedor dos bens ou prestador dos serviços esteja obrigado à emissão de fatura ou documento legalmente equiparado nos termos do Código do IVA, o documento comprovativo das aquisições de bens ou serviços previsto no n.º 4 deve obrigatoriamente assumir essa forma.

 

            Ora, o citado art. 18.º determina que, independentemente do efetivo recebimento ou pagamento, os proveitos e custos a considerar nos resultados fiscais devem corresponder a um determinado ano económico, ano esse que é aquele onde os proveitos foram obtidos e os custos suportados.

            E o n.º 2, idem, admite a exceção a este princípio quando à data do encerramento das contas de um certo exercício os proveitos / custos sejam imprevisíveis ou manifestamente desconhecidos.

            Assim sendo, não pode o SP transportar para um ano diferente, ainda que tenha pago ou recebido nesse outro ano, qualquer fatura, uma vez que o CIRC sobre a imputação das componentes positivas ou negativas respeitantes a exercícios anteriores apenas poderá ser feita se as mesmas forem imprevisíveis ou desconhecidas na data das contas do exercício a que deveriam ser imputadas.

            Conforme prescreve o processo n.º 25/2012-T (CAAD) "Este (princípio da especialização de exercícios) é um dos mais importantes princípios contabilísticos porque faz uma clara distinção entre procedimentos de tesouraria e os procedimentos de gestão, i.e., entre pagamentos e recebimentos para a ótica financeira e o custo e proveito para a ótica de gestão. Assim sendo, todos os custos e proveitos que sejam reconhecidos em determinada data devem ser registados no exercício a que correspondem de modo a que se produza uma imagem fidedigna da posição da empresa para esse período".

            Por sua vez, a jurisprudência e a doutrina têm admitido temperar este princípio com o da justiça, não obstante ter presente o princípio da legalidade.

            Com efeito, nomeadamente, o Supremo Tribunal Administrativo tem decidido, relativamente ao princípio da especialização dos exercícios, que «esse princípio deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), por forma a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios».

            O CAAD também tem formulado decisões nesse sentido, vg., processo n.º 874/2019-T:

Como se afirma no acórdão do STA de 13 de outubro de 1996 (Processo n.º 20404), sem pôr em causa a relevância fiscal do princípio da especialização dos exercícios, é de admitir a imputação de custos a exercícios anteriores, quando ela não tenha resultado de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios, como é o caso em que está prestes a acabar ou iniciar um período de isenção, quando há interesse em reduzir prejuízos de determinado exercício ou retirar benefícios do seu reporte e quando se pretende reduzir o montante dos lucros tributários.”

            No entanto, in casu, não se compreende como se pode afirmar como o registo de tal gasto é lançado no ano de 2019 quando o documento que o suporta menciona expressamente que esse serviço foi realizado no ano fiscal anterior, o que resulta que a omissão foi intencional (eventualmente, por razões de mera gestão ou estratégia empresarial, que a Requerente determina por intermédio do seu órgão de administração e que só a ele compete apreciar).

            Com efeito, considerando a data de emissão do referido documento, à data de encerramento das contas de 2018, tal custo era conhecido ou deveria ser conhecido, ademais de que tal serviço foi prestado por uma entidade que, por sua vez, é sócia da Requerente.

            É verdade que não foi alegada a existência de qualquer uma das vantagens fiscais normalmente associadas ao desrespeito do princípio da especialização dos exercícios, como o de um benefício fiscal prestes a expirar, prejuízos cujo prazo de reporte esteja a expirar, minoração da progressividade do imposto, obstar a tributações adicionais, entre outros.

            No entanto, o SP também não municiou os autos de prova que sustentasse o prolongamento e conclusão dos trabalhos no ano de 2019, prova essa que era a ele que lhe competia efetuar, como já verificamos.

            Ora, por força do disposto no art. 18.º, o legislador quis afastar um critério de mera aleatoriedade em que a imputação dos gastos ou dos proveitos económico é determinada com base em meras opções de gestão do empresário (nesse sentido, vide processo CAAD 582/2017-T). In casu, tal verifica-se, pois, o registo de tal gasto em 2018 iria levar a um apuramento um resultado operacional negativo em mais de € 20.000 já que o resultado operacional positivo nas contas de 2018 é apenas de € 6.233,58.

            Portanto, neste caso concreto, parece-nos ser mais adequado e conforme aos princípios norteadores do direito fiscal o entendimento plasmado no já citado processo n.º 25/2012-T (CAAD): "não decorre deste princípio (da justiça) um dever jurídico de colmatar ou corrigir atos ou omissões dos contribuintes salvo se tal ocorrer de forma involuntária ou não intencional. Doutro modo, estaria sempre encontrada a forma de, à luz de tal princípio, tudo ser permitido, designadamente e v. g., atos processuais fora de prazo, recursos ainda que a lei os não permita, etc. Naturalmente que tal não pode ser porquanto e além do mais, razões e princípios se sobrepõem como os da segurança e certeza jurídicas."

            Continua o douto acórdão: "Ou seja: o princípio da justiça será (ou poderá ser) a válvula de escape para o exercício de um direito ou reposição da justiça duma concreta situação tão só e apenas quando na sua invocação não esteja um ato ou omissão voluntários e se considere intolerável vedar, por razões formais ou processuais, o exercício do direito

            Além do mais, na altura, a Requerente tinha a sua disposição mecanismos que lhe permitiriam corrigir, voluntariamente, os elementos contabilísticos do ano de 2018, pois era inquestionável o seu direito a fazê-lo.

            Portanto, no caso concreto, não nos parece que o princípio da justiça seja de aplicar como atenuador ou para se sobrepor ao princípio da especialização económica dos exercícios.

            Deste modo, face à prova produzida e dada como provada e não provada, as liquidações apreciadas são legais e válidas para todos os seus efeitos, determinando-se o indeferimento do peticionado pela Requerente, com todas as demais consequências.

 

            B.2 — Questão de conhecimento prejudicado

 

            Na sentença o juiz deve pronunciar-se sobre todas as questões que lhe são colocadas, abstendo-se de o fazer naquelas que não deva conhecer (artigo 121.º, 1, in fine, do CPPT). Contudo as questões sobre que recaem os poderes de cognição do tribunal, são, de acordo com o n.º 2 do artigo 608.º, do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, “as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)”.

            Em face da solução dada, de improcedência do pedido da Requerente, fica assim prejudicado o conhecimento da questão denominada pela Requerida como "prévia".

 

            B.3 — Do reembolso da quantia paga e dos juros compensatórios e indemnizatório

 

            Peticiona ainda a Requerente o reembolso da quantia paga e ainda o pagamento de juros compensatórios e indemnizatórios.

            Ora, atendendo a improcedência do pedido principal, improcede igualmente o presente pedido.

 

 

* * *

 

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

            a) julgar improcedente o pedido arbitral formulado por não verificação dos vícios que lhe eram apontados, absolvendo a Requerida;

b) Condenar a Requerente no pagamento integral das custas do presente processo.

 

D. Valor do processo

       Fixa-se o valor do processo em € 7.163,02, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

       Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 612,00 € nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, conforme o disposto no artigo 22.º, n.º 4, RJAT.

 

Notifique-se.

Lisboa

20 de maio de 2024

 

 

 

O Árbitro Singular

 

(Ricardo Marques Candeias)