Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 714/2023-T
Data da decisão: 2024-05-31  IRC  
Valor do pedido: € 54.580,31
Tema: Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC). Princípio da especialização dos exercícios. Princípio da justiça.
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SUMÁRIO:

O princípio da especialização dos exercícios deve ser interpretado em conformidade com o princípio da justiça, consagrado na Constituição e na lei (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT), de modo a permitir a imputação a um exercício de gastos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais com o objetivo de operar a transferência de resultados entre exercícios.

 

DECISÃO ARBITRAL

I – RELATÓRIO

  1. A..., S.A, adiante designada por “Requerente”, titular do n.º de identificação fiscal..., com sede em ..., ...-... ..., ... e ..., ..., veio, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e do artigo 10.º, ambos do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, requerer a constituição de Tribunal Arbitral, tendo em vista a anulação do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) com o n.º 2023 ... e respetivo ato de liquidação de Juros Compensatórios com o n.º 2023 ..., no montante total de 54.580,31€, relativos ao ano de 2019, e o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios.
  2. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada somente por “Requerida” ou “AT”).
  3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 10-10-2023.
  4. A Requerida foi notificada da apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral em 16-10-2023.
  5. Dado que o Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, foi o signatário designado como árbitro, pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 1, do RJAT, tendo a nomeação sido aceite no prazo e termos legalmente previstos.
  6. Em 29-11-2023 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos do disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, conjugado com os artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
  7. Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 20-12-2023.
  8. A Requerida remeteu o processo administrativo em 31-01-2024 e apresentou resposta em 01-02-2024, na qual se defende por impugnação, pugnando pela manutenção na ordem jurídica do ato de liquidação controvertido.
  9. Em 02-05-2024 realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, no âmbito da qual foram inquiridas as quatro testemunhas arroladas pela Requerente e foram prestadas declarações de Parte, tendo na mesma reunião sido determinado que o processo prosseguisse com a produção de alegações escritas.
  10. As Partes apresentaram alegações, tendo ambas reiterado, no essencial, os argumentos já expendidos em sede de PPA e de Resposta.

 

II – SANEADOR

  1. A apresentação do pedido de pronúncia arbitral foi tempestiva.
  2. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas quanto ao pedido de pronúncia arbitral e estão devidamente representadas, nos termos do disposto nos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
  3. Não foram alegadas exceções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
  4. Não se verificam nulidades, pelo que se impõe conhecer do mérito.

 

III. MÉRITO

III. 1. MATÉRIA DE FACTO

§1.       Factos provados

  1. Consideram-se provados os seguintes factos:
  1. A Requerente tem como objeto social a extração de argilas, moagem de pedra calcária, comercialização de matérias-primas para cerâmica e compra e venda de imóveis, bem como prestação de serviços de transporte rodoviário nacional e internacional;
  2. Em 6 de outubro de 2016 foi realizado um Contrato Promessa de Compra e Venda de ações, que se junta como doc. n.º 7, que previa a concretização futura da aquisição das ações representativas da totalidade do capital social da B... pela sociedade C..., SGPS, S.A e por D..., promitentes compradoras;
  3. À data da realização do referido contrato e do ano ora em causa (2019), D... era a Presidente do Conselho de Administração da Requerente;
  4. No âmbito do aludido contrato-promessa, nos termos da cláusula 6.ª, “Os Promitentes Vendedores [Sócios da B...] procedem à entrega/tradição da “Sociedade” [B...] aos Promitentes Compradores [ C..., SGPS, S.A e D...], a quem competirá administrar a empresa de forma diligente e assumindo integralmente a sua responsabilidade”;
  5. De acordo com o estabelecido no contrato, os sócios da B... procederam à traditio da Sociedade à C..., SA. e D... que, enquanto promitentes compradoras da totalidade das ações da B..., assumiam a sua administração e, por conseguinte, a gestão operacional;
  6. Sendo a aquisição das participações sociais feita na proporção de 70% para a promitente-compradora D... e 30% para a promitente compradora C... ;
  7. Celebrado o contrato, a partir dessa data, a C... transmitiu a gestão operacional da  B... para a sua sociedade-filha, E..., LDA (“E...”), NIPC..., a qual detém (e detinha à data) a 100%;
  8. D..., Administradora da Requerente à data, cedeu a sua posição contratual, no referido contrato-promessa, à Requerente;
  9. Desde o final do ano de 2016 (após celebração do referido contrato), a Requerente passou a explorar as concessões mineiras da B..., sem proceder a qualquer faturação de tais inertes entre B... e A...;
  10. Em novembro de 2018, os promitentes vendedores da B... decidiram resolver o contrato promessa, dando origem a um litígio judicial entre os promitentes vendedores da B..., a própria B..., os promitentes compradores e a Requerente;
  11. A Requerente iniciou um litígio judicial, com vista à cobrança dos créditos que detinha sobre a B..., dando origem ao processo n.º.../18....YIPRT que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juízo Central Cível de Leiria - Juiz 2, em finais de 2018, no qual a Requerente era a A... e a Requerida era a B...;
  12. Em 19/12/2019, foi celebrado o acordo denominado “memorando de entendimento”, no qual a B... reconheceu dever à Requerente o montante de 532.643,27€ (n.º 1 da Cláusula Primeira) e de 130.681,71€ [Ponto Aa) da 4ª Cláusula do memorando)], e a Requerente reconheceu dever àquela o valor de 218.531,26€ acrescido de IVA (perfazendo 268.793,45€);
  13. O acordo denominado “memorando de entendimento” foi homologado judicialmente, em 06/01/2020;
  14. Na sequência do referido “memorando de entendimento”, a B... emitiu uma Fatura em 19/12/2019 (Fatura FT 02/426), com a descrição “Caulino” e a quantidade “16.810,0969 to.”, com um preço unitário de 13,00€ por to., perfazendo o montante de 218.531,26€, acrescido de IVA à taxa de 23%, num valor total de 268.793,45€, sem indicação do momento da colocação à disposição;
  15. A fatura emitida pela B... não indica o momento ou os momentos em que as matérias-primas foram colocadas à disposição da Requerente;
  16. As aquisições das matérias primas descritas na referida Fatura emitida pela B... respeitam a períodos anteriores a 2019;
  17. A Requerente registou a referida “Fatura” na sua contabilidade em 2019, pretendendo deduzi-la como gasto;
  18. Em cumprimento da ordem de Serviço n.º OI2022..., a Requerente foi sujeita a um procedimento de inspeção interna, iniciado em 11/11/2022, relativo ao ano de 2019;
  19. A Requerente foi notificada do projeto de RIT para, querendo, exercer o direito de audição;
  20. A Requerente não exerceu o direito de audição no prazo que tinha para o efeito, pelo que se mantiveram integralmente no RIT as correções propostas no projeto de RIT;
  21. Em sede de ação de inspeção tributária e consequente relatório final, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, a Autoridade Tributária e Aduaneira determinou as seguintes correções:

 

  1. A Requerente não aceitou as correções referentes a “Gasto não dedutível – Fatura n.º 02/426, emitida pela B..., SA”, no montante de 218.531,26 €, a “Correção da variação dos inventários de produtos acabados”, no montante 83.733,13 €, e a “Gasto não dedutível – Periodização do lucro tributável”, no montante total de 5.459,18 €, tendo aceitado as restantes correções;
  2. No que diz respeito ao “Gasto não dedutível – Fatura n.º 02/426, emitida pela B..., SA”, o RIT refere, além do mais, o seguinte:

 

 

 

 

 

 

  1. No que se refere à “Correção da variação dos inventários de produtos acabados”, o RIT refere, designadamente o seguinte:

 

[…]

 

[…]

 

 

 

[…]

 

 

  1. No que diz respeito ao “Gasto não dedutível – Periodização do lucro tributável”, o RIT refere, designadamente, o seguinte:

 

[…]

 

  1. A Requerida procedeu às referidas correções e, na sequência das mesmas, emitiu a liquidação adicional de IRC com o n.º 2023 ... e respetiva liquidação de Juros Compensatórios com o n.º 2023..., no montante total de 54.580,31€;
  2. Em 10-07-2023, a Requerente procedeu ao pagamento da totalidade dos montantes liquidados (num total de 54.580,31€);
  3. Em 09-10-2023, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem aos presentes autos;
  4. A variação dos inventários dos produtos e matérias-primas Argila VA11, Argila AG11, Argila EN-17, Argila BFL, Argila BRS, Argila KSL, Composto SAN-07, Composto E-07, Barro AB0740 e Composto CRS-18, deveu-se ao facto de esses produtos serem igualmente incorporados na produção de outros produtos, bem como ao facto de perderem peso devido a perda de humidade;
  5.  A Fatura n.º DR F018/1811000320, no montante de 5.459,18€ relativo a juros de mora, emitida pela F..., Lda., apenas chegou ao conhecimento da Requerente em maio de 2019.

 

§2. Factos não provados

  1. A Requerente não logrou provar que a fatura emitida pela B... em 19/12/2019, no montante total de 268.793,45€ (218.531,26€ mais iva), tem subjacente uma indemnização paga pela Requerente à B... .
  2. Não ficou provado que a Requerente tenha imputado ao exercício de 2019, de forma deliberada, o gasto a que se refere a fatura emitida pela B... em 19/12/2019, com o intuito de operar a transferência de resultados entre exercícios, nem ficou demonstrado que o diferimento da dedução desse gasto seja causador de prejuízo ao erário público.
  3. Não ficou provado que a Requerente tenha imputado ao exercício de 2019, de forma deliberada, o gasto a que se refere a fatura n.º DR F018/1811000320, no montante de 5.459,18€, relativo a juros de mora, emitida pela F..., Lda,, com o intuito de operar a transferência de resultados entre exercícios, nem ficou demonstrado que o diferimento da dedução desse gasto seja causador de prejuízo ao erário público.

 

§3. Motivação quanto à matéria de facto

  1. Cabe ao Tribunal selecionar os factos relevantes para a decisão e discriminar a matéria provada e não provada [artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT].
  2. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito (cfr. artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].
  3. Consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo por base a prova documental e o processo administrativo juntos aos autos, as declarações de parte e a prova testemunhal produzida e considerando, ainda, as posições assumidas pelas partes, e não contestadas, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT.

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

  1. A questão principal a apreciar e decidir nos presentes autos é a que se prende com saber se são legais as liquidações de IRC e de juros compensatórios, relativas ao ano de 2019, emitidas na sequência das seguintes correções à matéria coletável da Requerente, efetuadas pela Requerida na sequência de procedimento inspetivo:
    1. correção à matéria coletável decorrente de gastos considerados não dedutíveis, no montante de 218.531,26€;
    2. correção à matéria coletável decorrente da desconsideração das diferenças negativas nos inventários de produtos acabados, no montante de 83.733,13€;
    3. correção à matéria coletável decorrente da desconsideração dos gastos com juros de mora, no montante de 5.459,18 €, com base na alegada inobservância do princípio da periodização.
  2. Em caso de procedência do pedido de pronúncia arbitral, importará decidir, ainda, sobre o pedido de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios.

 

  1. Quanto à correção à matéria coletável decorrente de gastos considerados não dedutíveis, no montante de 218.531,26€

 

  1. Posição das Partes:
  1. A Requerida entende que, no “Memorando de Entendimento” que formalizou a resolução extrajudicial de diversos litígios existentes entre a Requerente e a B..., originados por factos anteriores a novembro de 2018, a Requerente reconheceu a existência de um dívida para com a B..., decorrente da apropriação de matérias-primas (caulino) retiradas das instalações /explorações da B..., nos exercícios de 2016 a 2018, sem que tenha sido emitida fatura ou efetuado qualquer registo de tais operações.
  2. E sustenta, consequentemente, que o montante faturado pela B..., em 19/12/2019, respeita a operações realizadas em exercícios anteriores e, como tal, o corresponde gasto deve ser imputado aos períodos em que os bens foram consumidos ou vendidos.
  3. Segundo a Requerida, estamos perante gastos relativos a períodos anteriores que não cumprem os requisitos previstos no artigo 18.º, n.º 2, do Código do IRC para poderem ser imputados ao exercício de 2019, pois não foi demonstrado que nas datas de encerramento das contas daqueles a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.
  4. A Requerente, por seu lado, sustenta que o montante faturado pela B..., em 19/12/2019, diz respeito a uma indemnização, e não a qualquer transmissão de bens.
  5. Segundo a Requerente, a emissão da fatura foi uma decorrência do acordo judicial de transação, pelo que o descritivo da fatura deveria ter sido “Indemnização Processo n.º .../18...YIPRT” e não a referência aos inertes e quantidades que estiveram na base da definição do quantum indemnizatório.
  6. Assim sendo, entende a Requerente que estamos perante uma indemnização admissível como gasto, dedutível nos termos do artigo 23.º, n.º 1 e n.º 2, al. m) do CIRC, com referência ao exercício de 2019, uma vez que se trata, segundo a Requerente, de indemnização por um evento cujo risco não é segurável.
  7. A Requerente entende que se encontrava legitimada a explorar os inertes provenientes da unidade da B..., sem que se procedesse a qualquer faturação entre a B... e A... por esses inertes, e, consequentemente, a sua comercialização, pelo que não reconheceu, à data, qualquer gasto com caulinos que explorava e comercializava, pois que, de facto, tal não consubstanciava um gasto.
  8. Sustenta a Requerente que apenas reconheceu que tais caulinos consubstanciavam um gasto, deduzindo-o, no fim do litígio judicial iniciado com a B..., do qual resultou um memorando de entendimento (2019), momento em que foi emitida a fatura que consubstanciava a assunção da responsabilidade do prejuízo causado com tal exploração e comercialização que, à data, era legítima.
  9. Alega, ainda, a Requerente, que agiu de boa-fé e que a dedução do referido gasto em 2019, e não em anos anteriores, não implica qualquer redução na receita fiscal arrecadada pela AT.
  10. Por outro lado, a Requerente entende que se não for aceite a dedução do gasto ficará prejudicada, pelo que deverá prevalecer o princípio da justiça, consagrado no artigo 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e no artigo 55.º da Lei Geral Tributária.

 

ii) Apreciação:

  1. Resulta da factualidade dada como assente que a Requerente não logrou provar que o montante de 218.531,26€, a que se refere a fatura emitida pela B..., diz respeito a uma indemnização paga pela Requerente à B... .
  2. Em primeiro lugar, importa referir que o “Memorando de Entendimento” celebrado entre a B... e a A... não refere o pagamento de qualquer indemnização, nem os danos que a mesma supostamente ressarciria.
  3. O que o “Memorando de Entendimento” contém é um reconhecimento de dívidas recíprocas, dele resultando um acerto de contas.
  4. Apesar de o depoimento das testemunhas indicar que o referido montante se referia a uma indemnização, a verdade é que a mesma não é apta a afastar a prova documental consubstanciada no “Memorando de Entendimento” e na fatura emitida pela B... .
  5. Com efeito, a subalínea Aa) da Claúsula Quarta do “Memorando de Entendimento” refere expressamente que a A... (ora Requerente) reconhece dever à B... a quantia de 218.531,26€, acrescida de IVA à taxa legal de 23%.
  6. E a referida subalínea Aa), tal como as subalíneas Ab) a Ag), concretizam a alínea A), de forma a regularizar contabilisticamente os saldos das entidades mencionadas em cada uma das subalíneas – no caso da subalínea Aa), das entidades B... e A... .
  7. Assim, tem razão a Requerida quando alega que no referido “Memorando de Entendimento” a Requerente reconhece uma dívida para com a B... .
  8. E, em consequência da assinatura do “Memorando”, a B... emitiu a fatura na qual descreve a operação que lhe está subjacente – a transmissão de “Caulino”, na quantidade “16.810,0969 to.”, com um preço unitário de 13,00€ por to., perfazendo o montante de 218.531,26€, acrescido de IVA à taxa de 23%, num valor total de 268.793,45€, sem que seja indicado o momento da colocação à disposição.
  9. Os SIT apresentaram no RIT indícios suficientemente fortes e convincentes de que essa transmissão ocorreu em exercícios anteriores a 2019, não tendo a Requerente conseguido fazer prova do contrário.
  10. Uma vez que o montante faturado em 2019 respeita a operações realizadas em exercícios anteriores, o corresponde gasto deveria ter sido imputado aos mesmos, conforme resulta do disposto no artigo 18.º. n.º 1 e n.º 3, alínea a), do CIRC.
  11. O artigo 18.º, n.º 1, do CIRC dispõe o seguinte:

1 — Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.”

  1. E o artigo 18.º, n.º 3, alínea a), do Código do IRC, estipula o seguinte:

3 - Para efeitos de aplicação do disposto no n.º 1:

 a) Os réditos relativos a vendas consideram-se em geral realizados, e os correspondentes gastos suportados, na data da entrega ou expedição dos bens correspondentes ou, se anterior, na data em que se opera a transferência de propriedade;

[…]”

  1. Ou seja, as regras de periodização do lucro tributável impõem que, em princípio, os réditos das vendas e os gastos correspondentes aos produtos vendidos sejam reconhecidos no mesmo período, pelo que apenas poderiam ser dedutíveis os gastos com compras cujos produtos tivessem sido consumidos ou vendidos no exercício de 2019.
  2. Ainda assim, o artigo 18.º, n.º 2, do CIRC determina que “[a]s componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas”.
  3. Porém, conforme tem sido reconhecido pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA), o princípio da especialização dos exercícios deve ser interpretado em conformidade com o princípio da justiça, consagrado no n.º 2 do artigo 266.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e também no artigo 55.º da Lei Geral Tributária (LGT), ao qual a AT está vinculada (cfr., designadamente: Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 05-02-2003, processo n.º 01648/02; de 02-04-2008, processo n.º 0807/07; de 25-06-2008, processo n.º 0291/08; de 21-11-2012, processo n.º 0809/12; de 09-10-2019, processo n.º 01278/12.2BELRS 0574/18; de 28-04-2021, processo n.º 01540/13.7BELRS; de 27-10-2021, processo n.º 0610/15.1BELRA; de 07-09-2022, processo n.º 0304/15.8BELLE; de 08-02-2023, processo n.º 01292/20.4BEBRG; de 08-11-2023, processo n.º 0655/16.4BEBRG).
  4. De acordo com o STA, no acórdão proferido no processo n.º 0807/07, de 02-04-2008, o princípio da especialização dos exercícios “deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), por forma a permitir a imputação a um exercício de custos (agora gastos) referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios”.
  5. No caso sub judice, o diferimento da dedução do gasto em causa não gera qualquer prejuízo para o erário público.
  6. E não está demonstrado que a Requerente tenha imputado, de forma deliberada, ao exercício de 2019 o gasto em causa com o intuito de operar a transferência de resultados entre exercícios.
  7. Não se identifica, portanto, no caso vertente, qualquer vantagem para a Requerente na dedução do referido gasto em 2019 e não em exercícios anteriores.
  8. Assim sendo, e em linha com a jurisprudência do STA citada, deve prevalecer, no caso em apreço, o princípio da justiça, admitindo-se a dedução, em 2019, do gasto a que se refere a Fatura n.º 02/426, emitida pela B..., SA”, no montante de 218.531,26 €.

 

  1. Quanto à correção à matéria coletável decorrente da desconsideração das diferenças negativas nos inventários de produtos acabados, no montante de 83.733,13€

 

  1. Posição das Partes:
  1. A Requerida salienta que os SIT efetuaram uma comparação entre as quantidades de produtos acabados declaradas a 31-12-2019 e as quantidades desse mesmo produto declaradas em 31-12-2018 e as vendas registadas ao longo de 2019 do mesmo, tendo concluído pela existência de divergências que se traduziram numa diminuição da variação de produção não justificada, refletida contabilisticamente na conta 73 – variação de produção, representando concomitantemente uma redução de rendimentos no valor de 83.733,13 €.
  2. E afasta a admissibilidade das razões apresentadas pela Requerente, quer a alegação de que os produtos apresentados são vendidos tal qual como produto acabado, mas também são incorporados na produção de outros produtos, quer a alegação de que, com o passar do tempo, os produtos acabados em armazém podem perder até 12% de humidade, com a consequente perda de peso.
  3. De acordo com a Requerida, a Requerente não apresentou quaisquer elementos contabilísticos ou extra contabilísticos de prova que suportassem as referidas alegações.
  4. E os mapas apresentados pela Requerente configuram, segundo a Requerida, documentação interna que contradiz os próprios registos contabilísticos da Requerente.
  5. Entende a Requerente, diversamente, que as alegadas divergências se explicam pelo facto de os produtos apresentados serem vendidos tal qual como produto acabado e serem igualmente incorporados na produção de outros produtos, e, para além disso, alega que estão em causa materiais que têm, aquando da sua produção, em média 23% a 25% de humidade, podendo perder até 12% de humidade, o que corresponde, necessariamente, a uma perda de peso.

 

  1. Assim, entende a Requerente que se encontram justificadas as referidas divergências, estando devidamente documentadas e consubstanciando gastos necessários à obtenção de rendimentos da Requerente e no interesse da empresa, razão pela qual entende ser dedutível o referido gasto nos termos do n.º 1 e 3 do artigo 23.º do CIRC.

 

  1. Apreciação:
  1. No que diz respeito às disparidades detetadas nos inventários dos produtos acabados, as mesmas foram devidamente justificadas pelo Requerida.
  2. Conforme resultou do depoimento das testemunhas, que se considera claro e idóneo, os produtos em causa são vendidos como produto acabado, mas também são incorporados como matéria-prima na produção de outros produtos (incorporações essas que são registadas nas folhas de produção, em papel, pelos trabalhadores, e posteriormente transpostas para o sistema informático), e, em alguns casos, com designações diferentes (apesar de consistirem na mesma matéria-prima ou de terem características semelhantes), e, para além disso, há uma perda de peso decorrente da perda de humidade (registada e controlada em laboratório), o que afeta os inventários.
  3. Pelo que se entende ter havido erro da AT quanto aos pressupostos de facto da correção efetuada, no montante de 83.733,13€.

 

  1. Quanto à correção à matéria coletável decorrente da desconsideração dos gastos com juros de mora, no montante de 5.459,18 €, com base na alegada inobservância do princípio da periodização económica

 

  1. Posição das partes:
  1. A Requerida entende que o gasto com juros relacionados com os valores em dívida para com o fornecedor “F..., Ldª “ ( Fatura nº DR F018/1811000320 ), contabilizados no ano de 2019, não se mostrava desconhecido pela Requerente no exercício de 2018, pelo que consideraram ter sido violado o disposto no artigo 18.º, números 1 e 2 do Código do IRC.
  2. Sustenta a Requerida que a lei fiscal contempla apenas uma exceção ao cumprimento da regra do artigo 18.º, nº 1, do Código do IRC, que é no caso de as componentes positivas e negativas serem, à data do encerramento das contas do período, imprevisíveis ou desconhecidas, de acordo com o artigo18.º, nº 2, do CIRC, o que não é o caso dos presentes autos conforme decorre da prova aduzida pela Requerente (email do fornecedor F...).
  3. Sublinha, ainda, a Requerida que esta norma contabilística e fiscal é imperativa, na medida em que do articulado da mesma se extrai a conclusão de que a mesma interfere de forma absoluta e inelutável na relação jurídico tributária, só admitindo derrogação no caso legalmente previsto, precisamente por ser o único caso em que a aplicação “cega” daquele princípio poderia resultar numa situação de injustiça.
  4. Já a Requerente alega que, embora emitida em outubro de 2018, a referida fatura apenas chegou ao seu conhecimento em maio de 2019.
  5. A Requerente afirma desconhecer tal gasto antes de 2019, não se tendo verificando qualquer omissão voluntária e intencional, devendo tal gasto ser aceite ao abrigo do disposto no artigo 18.º, n.º 2, do CIRC.
  6. Defende, ainda, que não teve qualquer vantagem fiscal ao não reconhecer previamente, como gasto, o referido montante, pelo que entende que também em nome do princípio da justiça deve ser aceite a respetiva dedução no período em que causa.

 

  1. Apreciação:
  1. Resulta matéria de facto dada como assente que a Fatura n.º DR F018/1811000320, no montante de 5.459,18€ relativo a juros de mora, emitida pela F..., Lda., apenas chegou ao conhecimento da Requerente em maio de 2019, não se verificando uma omissão voluntária e intencional, pela Requerente, do referido gasto no exercício anterior.
  2. Assim, sendo, entende este tribunal tratar-se de um gasto que, na data de encerramento das contas de 2018 era manifestamente desconhecido da Requerente, razão pela qual, nos termos do n.º 2 do artigo 18.º do CIRC, o gasto no montante de 5.459,18€ é imputável ao período de tributação de 2019. 
  3. Mas ainda que assim não fosse, e atendendo a que não há prejuízo para o erário público e a que não há qualquer indício de que a Requerente procurou, de forma deliberada, operar a transferência de resultados entre exercícios, sempre prevaleceria o princípio da justiça, conforme explanado supra, em linha com a citada jurisprudência do STA e os critérios nela considerados, sendo, consequentemente, também por esta razão, de considerar como dedutível em 2019 o referido gasto com juros de mora, no montante de 5.459,18 €.

 

  1. Quanto à alegada ilegalidade da liquidação dos juros compensatórios
  1. Posição das Partes:
  1. A Requerida refere que o RIT contém a descrição dos factos imputados ao sujeito passivo que suportaram as correções e que conduziram ao retardamento da liquidação, bem como a sua qualificação como um comportamento ilícito, incluindo o seu enquadramento legal como um ilícito contraordenacional.
  2. Acresce que o contribuinte participou no procedimento que precedeu a liquidação, pelo que não desconhecia a situação fática violadora da lei.
  3. Assim sendo, entende a Requerida que, à luz do disposto no artigo 35.º da LGT, são devidos juros compensatórios, uma vez que houve retardamento daquela liquidação, existindo também um nexo de causalidade entre a atuação do sujeito passivo e as consequências referidas, lesivas para o Estado, na sua veste de credor.
  4. A Requerente entende não serem devidos juros compensatórios, por falta de um dos seus fundamentos ou pressupostos legais essenciais contidos no n.º 1 do artigo 35.º da LGT – de que o retardamento da liquidação do imposto se deva a facto imputável ao contribuinte.
  5. A Requerente alega que a AT não fez qualquer menção à sua culpa no suposto atraso na liquidação do imposto, o que impede a Requerente de conhecer, em toda a sua extensão, as razões do encargo adicional que lhe é imposto, bem como de apreciar a sua legalidade, invocando, assim, a ausência de fundamentação, que constitui vício de forma que determina a anulabilidade do respetivo ato de liquidação.

 

 

  1. Apreciação:
  1. Resulta de tudo o exposto supra que não se verificam os fundamentos invocados pela Requerida para as correções realizadas, o que determina a ilegalidade e a anulação da liquidação adicional de IRC n.º 2023... .
  2. Consequentemente, inexiste fundamento para a liquidação dos juros compensatórios pelo alegado retardamento do pagamento do montante de IRC liquidado, donde resulta a ilegalidade e a anulação da liquidação de juros compensatórios com o n.º 2023... .
  3. Pelo exposto, fica prejudicada, por desnecessária, a apreciação dos demais vícios invocados pela Requerente.

 

  1. Do pedido de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios
  1. De acordo com o disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 24.º do RJAT, “[a] decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários […] [r]estabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”.
  2. Consequentemente, e tendo ficado provado que a Requerente procedeu ao pagamento do montante total das liquidações contestadas, reconhece-se o direito da Requerente ao reembolso do mesmo.
  3. Acresce que, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, “[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
  4. Este Tribunal reconhece, igualmente, que a ilegalidade das liquidações objetos dos autos resultou de erro imputável aos serviços da AT, de acordo com os fundamentos expressos supra, pelo que são devidos juros indemnizatórios, conforme determinado pelo n.º 1 do artigo 43.º da LGT.
  5. Os juros indemnizatórios são devidos desde a data do pagamento do imposto pela Requerente até ao integral reembolso, por aplicação da taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril.

 

IV – DECISÃO

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, este Tribunal Arbitral decide:

a)  Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b)  Declarar ilegal e anular a liquidação de IRC n.º 2023 ... e a liquidação de juros compensatórios n.º 2023 ..., relativas ao ano de 2019;

c) Julgar procedente o pedido de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, e condenar a Requerida ao reembolso do montante de imposto pago indevidamente acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, contados desde a data do pagamento até integral reembolso, tudo conforme for apurado em sede de execução de sentença.

 

V- VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 54.580,31.

 

 

 

 

VI – CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.142,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida

 

Notifique-se.

 

 

Lisboa, 31 de maio de 2024  

 

O Árbitro

 

 

(Paulo Nogueira da Costa)