SUMÁRIO:
1. Não sendo a Requerente o sujeito passivo da CSR, nem repercutido legal desta contribuição, não lhe assiste legitimidade processual, a menos que, como interessada, alegue e demonstre factos que suportem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade.
2. A declaração genérica do fornecedor de combustíveis não permite atestar que a Requerente suportou, efectivamente, o tributo contra o qual reage. E esta seria a única forma de lhe poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente acção arbitral.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Dra. Alexandra Coelho Martins (Presidente), Dr. Hélder Faustino (relator) e Dra. Elisabete Flora Louro Martins Cardoso, designados pelo CAAD para formar o Tribunal Arbitral Colectivo, constituído em 6 de Dezembro de 2023, acordam no seguinte:
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RELATÓRIO
1. No dia 26 de Setembro de 2023, na sequência da presunção de indeferimento tácito de um pedido de revisão oficiosa apresentado em 29 de Março de 2023, junto da Alfândega do Jardim do Tabaco, A..., S.A., pessoa colectiva n.º..., com sede no ..., ..., ...-... ... (“Requerente)”, formulou pedido de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (“Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária – RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“Requerida” ou “AT”), solicitando a ilegalidade dos actos de repercussão da Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”) consubstanciados nas facturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pela Requerente no decurso do período compreendido entre Março de 2019 e Dezembro de 2022, e, bem assim, das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela AT com base nas DIC submetidas pela respectiva fornecedora de combustíveis, determinando-se, nessa medida, a sua anulação com as demais consequências legais, designadamente, com o reembolso à Requerente de todas as quantias suportadas a esse título, acrescidas dos respectivos juros indemnizatórios.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.
2.1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitros, pelo que, nos termos do disposto na al. a) do n.º 2 do artigo 6.º e das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os presentes signatários como árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, os quais comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
2.2. As partes foram devidamente notificadas das designações, não tendo manifestado vontade de recusar as mesmas, nos termos conjugados do disposto no artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
2.3. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 6 de Dezembro de 2023.
3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.
4. A Requerida apresentou resposta, defendendo-se por excepção(ões) e impugnação. Em relação às excepções, a Requerente apresentou resposta escrita, em respeito do princípio do contraditório.
5. Foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais.
6. As Partes apresentaram alegações escritas, reproduzindo, no essencial as posições apresentadas nas suas peças anteriores.
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SANEAMENTO
7. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
8. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão devidamente representadas (cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
9. Em face das excepções invocadas (relativas à competência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, à ilegitimidade da Requerente, à ineptidão do pedido de pronúncia arbitral por falta de objecto e à caducidade do direito de açcão) e, bem assim o incidente de intervenção provocada da fornecedora de combustível – preterição de litisconsórcio necessário, impõe-se o conhecimento prioritário das mesmas (vd., ponto IV abaixo) – numa ordem diferente daquela que vem apresentada na resposta da Requerida. Seguir-se-á – se a resposta àquelas o permitir – a análise do mérito do pedido.
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FUNDAMENTAÇÃO
III.1. MATÉRIA DE FACTO
10. Com relevância para a presente decisão, consideram-se assentes e provados os seguintes factos:
10.1. A Requerente é uma sociedade comercial com sede e direcção efectiva em território nacional, que exerce, a título principal, a actividade de transportes aéreos de passageiros.
10.2. A B..., S.A. é uma empresa que comercializa combustíveis (Documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
10.3. Durante o período compreendido entre Março de 2019 e Dezembro de 2022, a Requerente adquiriu à B..., S.A., 25.454,71 litros de gasolina e 5.747.031,34 litros de gasóleo rodoviário (Documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
10.4. A B..., S.A. emitiu uma declaração com o seguinte teor: “(…) para os devidos efeitos, que a Contribuição de Serviço Rodoviário por si entregue, na qualidade de sujeito passivo, junto dos cofres do Estado, por referência ao combustível rodoviário fornecido à empresa A... S.A. -“A...”- (NIF -...), nos anos de 2019 a 2022, foi por si integralmente repercutida na esfera da referida empresa (…)” (Documento n.º 1 junto com o requerimento de 15 de Dezembro de 2023).
10.5. Em 29 de Março de 2023, a Requerente deduziu, junto da Alfândega do Jardim do Tabaco, um pedido de promoção de revisão oficiosa com vista à anulação das liquidações de CSR e dos consequentes actos de repercussão consubstanciados nas facturas emitidas pela B..., S.A. referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina à mesma adquiridos pela Requerente do decurso do referido período de Março de 2019 a Dezembro de 2022 – pedido sobre o qual não recaiu, até ao momento, qualquer decisão (Documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
10.6. Para tanto, a Requerente alegou que com a aquisição do referido combustível, em resultado da repercussão efectuada pela B..., S.A., suportou, a título de CSR, a quantia global de € 638.136,82 (Documento n.º 1 e n.º 2 juntos com o pedido de pronúncia arbitral).
III.2. FACTOS NÃO PROVADOS
11. Não foi feita prova de que tenha sido a Requerente a suportar economicamente o imposto em causa, dado que, para fazer tal prova, seria necessário demonstrar duas vertentes cumulativas: i. Que a CSR foi repercutida à Requerente, quais os montantes e em que períodos; ii. Que foi a Requerente que suportou em definitivo o encargo da CSR, ou seja., que no preço dos serviços de transportes que presta aos seus clientes não estava contemplada a repercussão de CSR (e/ou a medida em que não o estava), por forma a poder sustentar que suportou, de forma efectiva, o encargo do imposto. A Requerente limitou-se a juntar uma declaração genérica do seu fornecedor de combustíveis, a qual está longe de conter os elementos concretos indispensáveis à comprovação do acima exposto.
III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA FIXAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
12. O Tribunal Arbitral não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
13. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objecto do litígio no direito aplicável (cfr. artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
14. A convicção do Tribunal Arbitral fundou-se na livre apreciação das posições assumidas pelas Partes (em sede de facto) e no teor dos documentos juntos aos autos.
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APRECIAÇÃO DE EXCEPÇÕES E QUESTÕES PRÉVIAS QUE PODEM OBSTAR (OU NÃO) AO CONHECIMENTO DO MÉRITO DO PRESENTE PEDIDO ARBITRAL
IV.1. INTRODUÇÃO E SEQUÊNCIA
15. A questão jurídica material ou de fundo reporta-se à ilegalidade (ou não) da CSR, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, por ser (ou não) um tributo desconforme ao Direito da União Europeia, nomeadamente com o n.º 2 do artigo 1.º da Directiva 2008/118/CE, de 16 de Dezembro de 2008, tendo por base o entendimento sufragado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia de 7 de Fevereiro de 2022, no Processo n.º C-460/21.
16. Porém, na resposta, a Requerida invoca várias excepções (muito bem resumidas na réplica da Requerente) e questões prévias, que, a proceder alguma, obstam ao conhecimento do pedido – e que, por isso, são de decisão prévia e antecedente.
17. A decisão arbitral tem de conhecer, em primeiro lugar, estas questões – as quais, a proceder, algum delas, prejudicam o conhecimento das restantes (das questões materiais suscitadas nos presentes autos) – cfr. artigo 608.º do CPC.
IV.2. A POSIÇÃO DAS PARTES
18. Efectua-se, de seguida, a súmula dos argumentos das partes, sem prejuízo de mais desenvolvimentos aquando da decisão destes temas na decisão arbitral.
IV.2.1. QUANTO À (IN)COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL
19. A Requerida argui, em síntese, que: i. Nos termos do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, cotejado com o disposto no artigo 2.º do RJAT, apenas serão arbitráveis pretensões relativas a impostos cuja administração esteja cometida à AT; ii “[T]ratando-se de uma contribuição e não de um imposto, as matérias sobre CSR encontram-se, assim, excluídas da arbitragem tributária”, sendo o Tribunal Arbitral, em consequência, materialmente incompetente para apreciar as questões suscitadas pela Requerente; iii. A incompetência absoluta do Tribunal Arbitral resultaria ainda, em qualquer caso, da impossibilidade deste Tribunal sindicar a validade intrínseca de normas ou de diplomas, sindicância que é – na opinião da AT – peticionada pela Requerente, mas que se encontra expressa e exclusivamente cometida ao Tribunal Constitucional.
20. A Requerente entende, por seu turno, que a CSR deve, atenta a sua qualidade de contribuição especial por maiores despesas (segregada pelo legislador constitucional de 1997 do conceito de contribuições financeiras consagrado na alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa), ser perspetivada como um verdadeiro imposto, quer em sede constitucional, quer, consequentemente, em sede infraconstitucional. E que todos os actos tributários relacionados com a CSR – como sucede com os actos objecto da presente acção – serão plenamente arbitráveis nos termos dos artigos 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, e 2.º do RJAT, improcedendo, em conformidade, a excepção de incompetência material invocada pela Requerida.
IV.2.2. SOBRE A EXCEPÇÃO DE ILEGITIMIDADE DA REQUERENTE
21. A Requerida defende, em síntese, que: i. Nos termos dos artigos 15.º e 16.º do CIEC, a legitimidade para pedir a revisão e reembolso da CSR encontra-se recortada apenas em torno dos respectivos sujeitos passivos, não abrangendo, portanto, as entidades repercutidas que acabaram por suportar o encargo económico da CSR; ii A Requerente não integra, enquanto entidade repercutida, o âmbito de aplicação do artigo 18.º, n.º 4, alínea a) da LGT, porquanto “A CSR não é (...) um tributo de repercussão legal”; iii “A Requerente não apresentou quaisquer factos concretos indispensáveis à comprovação de ter suportado a CSR nas aquisições de combustíveis ao seu fornecedor”.
22. A Requerente defende que, além do regime especial previsto nos artigos 15.º e 16.º do CIEC não ser aplicável à CSR, a repercussão da CSR nos consumidores de combustível tem natureza legal, assistindo, portanto, à Requerente o direito de pedir (e de obter) junto da Requerida o reembolso da CSR indevidamente suportada.
IV.2.3. SOBRE A INEPTIDÃO DO PEDIDO ARBITRAL
23. A Requerida invoca, em síntese, que: i. Nos termos do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, deve constar do pedido de pronúncia arbitral a “identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral”, sob pena de ineptidão do respectivo pedido; ii. A esta luz, entende a Requerida que a Requerente não cumpriu o ónus que sobre si impendia de identificar o objecto da presente acção, na medida em que não juntou aos autos, nem identificou, os actos de liquidação de CSR subjacentes ao tributo que lhe foi repercutido; iii. A Requerida prossegue sublinhando que, em qualquer caso, encontrar-se-ia sempre impossibilitada de suprir oficiosamente uma tal omissão da Requerente, não lhe sendo possível identificar os respectivos actos de liquidação de CSR, seja por falta de correspondência entre as quantidades de combustível introduzidas no consumo pelos sujeitos passivos e as quantidades adquiridas pela Requerente, seja por tal informação se encontrar dispersa no tempo ou por respeitar, potencialmente, a estâncias aduaneiras distintas, seja ainda por tal informação se encontrar abrangida pelo sigilo fiscal dos respectivos sujeitos passivos; iv. Finalmente, a Requerida tece ainda várias considerações acerca da impossibilidade de estabelecer uma relação quantitativa directa entre os valores de CSR liquidados pelos respectivos sujeitos passivos e os valores de CSR suportados pelos terceiros repercutidos – as quais, no seu entender, apenas reforçariam a ineptidão do pedido arbitral em virtude de impedirem a Requerida de “fazer qualquer correspondência entre as quantidades de produtos introduzidos no consumo pelas fornecedoras que são sujeitos passivos de imposto e as quantidades de produto alegadamente adquiridas pela Requerente” –, como sejam a diferente temperatura dos combustíveis no momento da sua introdução no consumo e no momento da sua posterior venda (com implicações no respectivo volume de combustível) ou a falta de prova da repercussão da totalidade ou de parte da CSR no valor pago pelos combustíveis adquiridos pela Requerente.
24. A Requerente riposta, dizendo, em síntese, que sendo a Requerida a entidade incumbida de promover a liquidação da CSR, é esta quem está, na verdade, em condições de identificar os actos pressupostos pelos actos de repercussão, através dos meios ao seu dispor e ao abrigo dos respectivos poderes de indagação, averiguar a correlação entre os identificados actos de repercussão da CSR e o imposto liquidado, e, assim, proceder à específica identificação dos actos de liquidação de CSR aqui em causa (promovendo, nessa sequência, a sua junção aos presentes autos – tal como requerido no pedido de pronúncia arbitral). E que, mesmo não sendo necessário, a comprovação da repercussão da CSR sai reforçada pela declaração que a Requerente logrou obter junto da entidade fornecedora de combustível (o sujeito repercutente da CSR na Requerente – a B..., S.A.) e que vem atestar expressamente que repercutiu efectiva e integralmente na Requerente a CSR incidente sobre o combustível consumido pela mesma.
IV.2.4. SOBRE A CADUCIDADE DO DIREITO À ACÇÃO
25. A Requerida invoca em abono da exceçpão de caducidade do direito à açcão que antecedeu a instauração da presente acção arbitral, em síntese, o seguinte: i. A Requerida destaca a impossibilidade de identificação do dies a quo dos prazos de contestação dos actos de liquidação de CSR que foram repercutidos sobre a Requerente, em virtude de a Requerente não ter cumprido o ónus de identificação e de junção aos autos dos pertinentes actos de liquidação de CSR, concluindo, neste contexto; ii. A Requerida observa que “estando a Requerida vinculada ao princípio da legalidade e tendo a Requerida efetuado toda e qualquer liquidação em estrita observância dos normativos legais em vigor e aplicáveis à data dos factos, não existe qualquer erro de direito imputável aos serviços”; iii. Finalmente, a Requerida sustenta que a contestação dos actos de liquidação de CSR se encontrava sujeita ao regime especial dos artigos 15.º e 16.º do CIEC, prescrevendo este regime que o respectivo pedido deveria ser apresentado no prazo de três anos a contar da data da liquidação do imposto.
26. Já a Requerente começa por demonstrar a incoerência dos argumentos aduzidos a propósito da impossibilidade de apuramento do dies a quo dos prazos de reacção, invocando o incumprimento de um ónus que impende sobre si própria – ou seja, o ónus de identificar os actos de liquidação de CSR – para fundamentar uma excepção que imputa à Requerente, seja por justificar a excepção de caducidade do direito à açcão numa mera insinuação ou juízo probabilístico, incumprindo, também neste domínio, o ónus que sobre si impende de comprovar as excepções invocadas. A Requerente aborda, igualmente, a questão da (in)aplicabilidade do regime de reembolso prescrito pelos artigos 15.º e 16.º do CIEC ao caso vertente, posto que se retira de uma leitura linear do artigo 5.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, que o regime especial do CIEC é, neste ponto, manifestamente inaplicável à CSR, devendo aplicar-se, ao invés, os meios gerais de reacção previstos no ordenamento jurídico-tributário. A finalizar, cabe à Requerente demonstrar que, contrariamente ao que afirma a Requerida, a subsistência de uma desconformidade entre o regime da CSR (que fundamenta os actos de repercussão praticados) e a Directiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo, consubstancia um erro imputável aos serviços.
IV.2.5. SOBRE O INCIDENTE DE INTERVENÇÃO PROVOCADA –LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
27. A Requerida suscitou o incidente de intervenção provocada da fornecedora de combustível – a B..., S.A. –, na medida em que entende que “a matéria relativa à discussão da legalidade de um ato de liquidação desta natureza implica, necessariamente, que sejam chamados à demanda os sujeitos passivos, os únicos que têm legitimidade para pôr em crise o ato ou atos de liquidação, identificando-os”.
28. A Requerente refuta esta argumentação, pois no âmbito da relação jurídico-tributária de repercussão legal, a legitimidade – e, nessa medida, a necessidade de intervenção – dos sujeitos passivos da relação tributária subjacente e dos respectivos repercutidos é mutuamente excludente. Conclui que sendo reconhecida legitimidade para contestar a validade da CSR aos repercutidos (como sucede no caso concreto com a Requerente), deverá, necessária e reflexamente, ser negada a legitimidade para esse mesmo efeito aos respectivo(s) repercutente(s).
IV.2.6. SOBRE A NECESSIDADE DE REENVIO PREJUDICIAL, EM CASO DE DÚVIDAS
29. A Requerente requer, ainda, que, caso subsistam dúvidas sobre a interpretação que deve ser conferida a qualquer uma das disposições supra invocadas do Direito da União, deve ser promovido o reenvio prejudicial do presente processo para o TJUE, nos termos previstos no artigo 267.º do TFUE, em particular: i. Quanto à legitimidade da Requerente para solicitar directamente a restituição da CSR suportada em violação do direito da União; ii. Quanto à impossibilidade de projecção sobre a Requerente – na sua qualidade de repercutida – do ónus de identificar e de juntar aos autos actos tributários de que não foi destinatária no âmbito da relação jurídico-tributária subjacente, nem tem forma de conhecer; iii. Quanto à aptidão, à luz do princípio jus-europeu da efectividade, das facturas de consumo de combustível juntas aos presentes autos para comprovar, ainda que por via da presunção, a repercussão da CSR na esfera da Requerente; ou, bem assim, iv. Quanto ao efeito directo do artigo 1.º, n.º 2 da Directiva 2008/118/CE, e, nesse domínio, quanto ao alcance, no caso concreto, dos princípios jus-europeus do primado do direito da União e da cooperação leal.
IV.3. DECISÃO
IV.3.1. QUANTO À (IN)COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL
30. O Tribunal Arbitral é competente para conhecer da ilegalidade de liquidações de CSR, por se tratar de um imposto, em linha com a argumentação constante da decisão do processo arbitral 304/2022-T, de 5 de Janeiro de 2023. Neste sentido, reproduzem-se alguns excertos da mencionada decisão:
«Baseando-nos em todas os anteriores contributos jurisprudenciais e doutrinários, mas sobretudo no último acórdão citado do STA, concluímos que não é o simples facto de um tributo ter, desde logo, a designação de “contribuição” (ac. TC n.º 539/2015) e nem o facto de esse tributo ter a respetiva receita consignada (ac. TC n.º 232/2022), que o qualifica automaticamente como “contribuição financeira”; antes é, para tal, necessário, como judicia o STA, que esse tributo tenha com finalidade compensar prestações administrativas realizadas de que o sujeito passivo seja presumidamente beneficiário.”
Com efeito, o sistema tributário comporta tributos que têm a designação de “contribuições” e são verdadeiros impostos, como se extrai, desde logo, do n.º 3 do art.º 4.º da LGT.
Por outro lado, o sistema tributário comporta igualmente impostos que, ao arrepio do princípio da não consignação da receita dos impostos (estabelecido no art.º 7.º da Lei de Enquadramento Orçamental[5]), têm a sua receita consignada (vg. ac. TC n.º 369/99, de 16.06.1999, proc. 750/98).
Por conseguinte, nem o nomen juris “contribuição”, nem a afetação da receita a uma finalidade específica são suficientes para qualificar um tributo como “contribuição financeira”.
O elemento decisivo para essa qualificação é a existência de uma estrutura de comutatividade que se estabelece entre o ente beneficiário da receita e os sujeitos passivos do tributo.
[...]
Ou seja, para que possamos afirmar estar-se perante uma “contribuição financeira”, é necessário que as prestações públicas que constituem a contrapartida coletiva do tributo beneficiem ou sejam causadas pelos respetivos sujeitos passivos.
[...]
Entendemos, assim, que o que distingue uma “contribuição financeira” de um imposto de receita consignada é a necessária circunstância, de, na primeira, a atividade da entidade pública titular da receita tributária ter um vínculo direto e especial com os sujeitos passivos da contribuição. Tal vínculo pode consistir no benefício que os sujeitos passivos, em particular, retiram da atividade da entidade pública, ou pode consistir num nexo de causalidade entre a atividade dos sujeitos passivos e a necessidade da atividade administrativa da entidade pública.
A Contribuição de Serviço Rodoviário não cabe em nenhuma destas hipóteses. Desde logo, a CSR não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva. A contribuição é estabelecida a favor da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art. 3.º, n.º 2 da Lei n.º 55/2007), sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (art.º 6.º). No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (art. 3.º, n.º 2 da Lei n.º 55/2007).
Em segundo lugar, também não se encontra base legal alguma para afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da tarefa administrativa em causa – que no caso será a “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas” – é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários. Pelo contrário, o art.º 2.º da Lei n.º 55/2007 diz expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E.P. E., (...), é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.”
Portanto, apesar de ser visível, de forma clara, o elemento de afetação da contribuição para financiar a atividade de uma entidade pública não territorial – a EP - Estradas de Portugal, E. P. E. – não é de modo algum evidente a existência, pelo contrário, afigura-se inexistir um “nexo de comutatividade coletiva” entre os sujeitos passivos e a responsabilidade pelo financiamento da respetiva atividade, ou entre os sujeitos passivos e os benefícios retirados dessa atividade.
A Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art.º 1.º da Lei 55/2007). O financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., é assegurado pelos respetivos utilizadores (art.º 2.º). São, estes, como se conclui, os sujeitos que têm um vínculo com a atividade da entidade titular da contribuição e com a atividade pública financiada pelo tributo; são eles os beneficiários, e são eles os responsáveis pelo seu financiamento.
No entanto, a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do art.º 4.º n.º 1, al. a) do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”, não existindo qualquer nexo específico entre o benefício emanado da atividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos respetivos sujeitos passivos.
Embora a Autoridade Tributária afirme que a posição dos revendedores de produtos petrolíferos é a de uma “espécie de substituição tributária”, não entendemos assim, pois tal entendimento não tem apoio na lei.
Nos termos do n.º 1 do art.º 20.º da LGT, “a substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte”.
Para que estivéssemos, no caso presente, perante uma situação de substituição tributária, era necessário que os consumidores que pagam o preço dos combustíveis aos revendedores estivessem na posição de “contribuintes”.
Sobre o conceito de contribuintes, o n.º 3 do art.º 18.º diz que “o sujeito passivo é a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.” De onde se retira que o contribuinte é uma das espécies da categoria “sujeitos passivos” e estes são as pessoas (ou entidades) que estão obrigadas ao pagamento da prestação tributária, o que não acontece com os consumidores dos combustíveis. Concluímos, assim, que não estamos perante uma situação de substituição, pelo que os sujeitos passivos da CSR são igualmente os respetivos contribuintes diretos.
Ainda poderia acrescentar-se que o universo de entidades que beneficiam ou dão causa à atividade financiada pela CSR não é um grupo delimitado de pessoas, mas é toda a população de um modo geral. E que o efetivo sacrifício fiscal, suportado através de uma repercussão meramente económica, não é suportado apenas pelos que efetivamente utilizam a rede de estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal S.A., mas também pelos que utilizam vias rodoviárias que não se incluem nessa rede.
Por conseguinte, conclui também este tribunal que a Contribuição de Serviço Rodoviário, apesar do seu nomen juris e de a sua receita se destinar a financiar uma atividade pública específica, não tem o caráter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou coletiva que é necessária à contribuição financeira.
[...]”.
31. Em relação aos “actos de repercussão” impugnados, o Tribunal Arbitral não pode conhecer dos mesmos, pois não são actos tributários, não estando prevista a sua sindicabilidade (cfr. artigo 2.º do RJAT). No entanto, como foram, em simultâneo, contestados pela Requerente os actos de liquidação de CSR, é sobre estes que recai a pronúncia do Tribunal Arbitral.
IV.3.2. SOBRE A EXCEPÇÃO DE ILEGITIMIDADE DA REQUERENTE
32. Não consta do RJAT a regulação do pressuposto processual da legitimidade, como possibilidade de intervenção num processo contencioso, cuja conformação jurídica tem, assim, de proceder do direito subsidiariamente aplicável, como previsto na closure rule do artigo 29.º, n.º 1, do RJAT, em concreto e de acordo com a natureza dos casos omissos, das normas de natureza processual do CPPT, do CPTA e do CPC.
33. A regra geral do direito processual, que emana do artigo 30.º do CPC, é a de que é parte legítima quem tem “interesse directo” em demandar[1], sendo considerados titulares do interesse relevante, para este efeito, na falta de indicação da lei em contrário, “os sujeitos da relação controvertida”. A mesma regra é reproduzida no processo administrativo, que confere legitimidade activa a quem “alegue ser parte na relação material controvertida” (cfr. artigo 9.º, n.º 1, do CPTA).
34. A legitimidade no processo é, pois, recortada pelo conceito central de “relação material” que, no âmbito fiscal, há de ser uma relação regida pelo direito tributário, à qual subjaz um acto tributário[2], cujo sujeito passivo é delimitado no artigo 18.º, n.º 3 da LGT, como “a pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável.”.
35. No domínio tributário, a legitimidade não pode deixar de ser enquadrada no âmbito das relações jurídicas tributárias que se estabelecem entre a AT, agindo como tal, e as pessoas singulares ou colectivas e entidades equiparadas (cfr. artigo 1.º, n.º 2, da LGT).
36. O CPPT contém uma norma específica sobre a legitimidade no processo judicial tributário, atribuindo-a aos “contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (cfr. artigo 9.º, n.º 1 e n.º 4, do CPPT). No mesmo sentido, ainda que referindo- se somente à legitimidade no procedimento, a LGT determina no seu artigo 65.º que “têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.”.
37. De notar que, em relação aos responsáveis (sujeitos passivos não originários, tal como os substitutos), o legislador teve a preocupação de justificar a razão pela qual lhes é concedida legitimidade processual. Quanto aos responsáveis solidários, deriva “da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal” (cfr. artigo 9.º, n.º 2, do CPPT). No tocante aos responsáveis subsidiários, está associada ao facto “de ter sido contra eles ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários” (cfr. artigo 9.º, n.º 3, do CPPT). Em ambas as situações, apesar de não corresponderem à figura do sujeito passivo originário, constitui-se uma relação jurídico-tributária entre estas categorias de sujeitos passivos derivados e o credor tributário Estado, que encerra prestações – principais (de pagamento da obrigação tributária) e acessórias, o que sucede igualmente com o substituto.
38. Na situação em análise, a Requerente invoca a qualidade de repercutido legal para deduzir a acção arbitral.
39. Importa começar por notar que a figura do repercutido não se enquadra na categoria de sujeito passivo, nos termos do citado artigo 18.º, n.º 3, da LGT, pelo que, não sendo parte em contratos fiscais, a legitimidade, neste caso, só pode advir da comprovação de que é titular de um interesse legalmente protegido (cfr. artigo 9.º, n.º 1 e n.º 4, do CPPT).
40. Apesar de o repercutido não ser sujeito passivo, a alínea a) do n.º 4 do artigo 18.º da LGT pressupõe que assiste o “direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias” a quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”, estendendo a posição jurídica adjectiva ao repercutido (apesar de não o considerar sujeito passivo), na condição de estarmos perante um caso de “repercussão legal”. A lei implica desta forma que o repercutido legal é titular de um interesse legalmente protegido, condição exigida para que possa intervir em juízo (cfr. artigo 9.º, n.º 1 e n.º 4, do CPPT).
41. Neste âmbito, assinala JORGE LOPES DE SOUSA: “nos casos de repercussão legal do imposto, apesar de aquele que suporta o encargo do imposto não ser sujeito passivo, é-lhe assegurado o direito de reclamação, recurso e impugnação [art. 18.o, n.o 4, da LGT]. São casos de repercussão legal os do IVA e dos impostos especiais de consumo, pois, em face do respectivo regime legal, a lei exige o pagamento dos tributos aos intervenientes no processo de comercialização dos bens ou serviços, visando fazer com que eles venham a ser pagos pelos consumidores finais, que são os titulares da capacidade contributiva que se pretende tributar.” – cfr. Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6.ª edição, 2011, I volume, p. 115.
42. JORGE LOPES DE SOUSA assinala ainda que, em matéria tributária, “é de considerar ser titular de um interesse susceptível de justificar a intervenção no procedimento tributário quem possa ser directamente afectado pelo que nele possa vir a ser decidido, inclusivamente quando esteja em causa uma mera situação de vantagem derivada do ordenamento jurídico, o que será a interpretação que melhor se compagina com o direito constitucionalmente garantido de participação dos cidadãos nas decisões que lhes disserem respeito (art . 267.º, n.º 5, da CRP), como tal se tendo de considerar, necessariamente, todas as que tenham repercussão directa na sua esfera jurídica.” – cfr. Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6.ª edição, 2011, I volume, p. 120. Raciocínio que, atenta a identidade de razões, deve considerar-se aplicável ao processo judicial tributário.
43. Com posição similar, LIMA GUERREIRO, em anotação ao artigo 18.º, n.º 4, da LGT, refere que o preceito “admite que, da repercussão do IVA, possa resultar a lesão de um interesse legitimamente protegido (é no mesmo sentido a anotação de Saldanha Sanches ao referido Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, in ‘Fisco’, número 28, pgs. 29 e sgs.). Essa lesão será suficiente para a fundamentação de impugnação judicial ou, se verificasse que este não era o meio apropriado dado o princípio constitucional da tutela plena e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos, da acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido. A fórmula utilizada declara expressamente, no entanto, a possibilidade de reclamação, impugnação ou recurso contra repercussão ilegalmente efectuada pelo sujeito passivo do IVA, imposto de selo ou de outros tributos sujeitos a mecanismo idêntico, pelo que se infere implicitamente não ser em geral a acção para o reconhecimento de um direito ou interesse, mas a impugnação judicial o meio adequado para reacção contra a repercussão ilegal do imposto, por razões certamente resultantes da similitude da lesão causada por acto ilegal de liquidação e da lesão resultante de repercussão ilegal e do facto de, no nosso sistema processual tributário, a impugnação não visar necessariamente efeitos meramente demolitórios do acto tributário mas também a reparação de qualquer lesão sofrida pelo impugnante. [...]. O não ser sujeito passivo não quer dizer obrigatoriamente ilegitimidade para intervir no procedimento, em caso de lesão de direito ou interesse legalmente protegido de qualquer natureza.”.
44. No entanto, afigura-se claro que a CSR não constitui um caso de repercussão legal. A Lei n.º 55/2007, de 31de Agosto, que instituiu a CSR, não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal, nem sequer, adiante-se, de repercussão meramente económica, isto, sem prejuízo de ser um dado que, em princípio, as empresas[3] repassam nos preços praticados os gastos em que incorrem, independentemente da sua natureza (e, portanto, incluindo os gastos tributários), por forma a concretizarem o objectivo lucrativo que preside à sua criação e manutenção (cfr. artigos 22.º do Código das Sociedades Comerciais e 980.º do Código Civil).
45. Infere-se do articulado da Requerente que esta legitima a sua intervenção processual no facto singelo de lhe ter sido repercutida a CSR pela empresa distribuidora de combustíveis – a B..., S.A..
46. Contudo, importa, antes de mais, salientar que a repercussão económica não é, por si só, atributo de legitimidade processual, pois o artigo 9.º do CPPT requer a demonstração de um interesse legalmente protegido, ou seja, que mereça a tutela do direito substantivo. Além de que a Requerente não tem a qualidade de “consumidor” de combustíveis, no sentido de consumidor final sobre o qual recai ou deve recair o encargo do tributo, na lógica da repercussão económica que subjaz nomeadamente aos impostos especiais sobre o consumo. Na verdade, e começando por esta última parte, a Requerente é uma sociedade que se dedica ao transporte, nacional e internacional, de passageiros. Desta forma, o combustível adquirido é um factor de produção no circuito económico (de uma cadeia de comercialização de bens), um gasto da actividade de prestação de serviços de transporte realizada pela Requerente, não configurando um consumo final.
47. Acresce que, nos termos da Lei que prevê a CSR (Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto), não existe qualquer referência sobre quem deve recair o encargo do tributo do ponto de vista económico. Basta atentar, para esta conclusão, no artigo 5.º, n.º 1, da citada lei: “A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações.”[4] Assim, o legislador limitou-se a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão da mesma. Nem se identifica como prevendo tal repercussão a norma do artigo 3.º, n.º 1, da mesma lei que diz que a CSR “constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis”.
48. Importa também assinalar, com relevância para esta questão, que a remissão para o CIEC efectuada pela Lei da CSR é expressamente circunscrita aos procedimentos de “liquidação, cobrança e pagamento”.
49. Em resultado do acima exposto, conclui-se, em síntese, o seguinte:
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A referida Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, define o sujeito passivo e devedor da CSR, mas não contém qualquer regra de repercussão legal, nem se pronuncia sobre a sua repercussão económica;
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A Requerente não é consumidor final, o que significa que os gastos em que incorre são presumivelmente, de acordo com as regras da experiência comum, repercutidos no elo subsequente do circuito económico até atingirem os consumidores finais, esses sim, onerados com o encargo económico do imposto e demais gastos incorridos na produção dos bens e serviços;
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Se a CSR foi economicamente repercutida pelos distribuidores de combustíveis à Requerente, não há razões para crer que esta, no exercício de uma actividade económica que visa o lucro e dentro dessa racionalidade, não tenham também repassado de alguma forma o encargo da CSR, no todo ou em parte, para os seus clientes, os quais nem sequer são os consumidores finais (os próprios clientes).
50. Ora, não sendo a Requerente o sujeito passivo da CSR, nem repercutido legais desta contribuição, não lhes assiste legitimidade processual, a menos que, como interessada, alegue e demonstre factos que suportem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade, ou seja, a menos que evidencie a existência de um interesse directo e legalmente protegido na sua esfera, passível de justificar a faculdade de demandar a Requerida em juízo, ónus que sobre a mesma impende.
51. Contudo, o único facto que a Requerente alega para este efeito é o de lhe ter sido repercutida a CSR. Qualifica esta repercussão, erradamente, como legal, embora não indique onde está prevista essa repercussão – que, a ser “legal”, sempre teria de constar de uma norma com essa natureza (a qual, porém, não existe). O paralelismo que a Requerente estabelece entre a CSR e o IVA não tem qualquer suporte jurídico, pois a repercussão neste último imposto tem previsão legal expressa no artigo 37.º do Código do IVA, permitindo o seu controlo e prova, dado que o imposto e respectivo montante são mencionados na factura emitida pelo fornecedor de bens ou prestador de serviços.
52. Acresce que, sem prejuízo de a CSR ter sido consagrada como “contrapartida” da utilização da rede rodoviária nacional, a Lei não indica ou sequer sugere sobre quem é que deve constituir encargo.
53. Rigorosamente, a Requerente é tão-só cliente comercial do sujeito passivo que liquidou a CSR. Não é o sujeito passivo dos actos tributários – de liquidação de CSR – impugnados. Não integra, nem é parte da relação tributária, nem é repercutido legal. E também não se descortina, nem disso foi feita prova, que tenham sido a Requerente a suportar economicamente o imposto, para o que seria necessário demonstrar duas vertentes cumulativas:
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Que a CSR foi repercutida à Requerente, quais os montantes e em que períodos;
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Que, por sua vez, o preço dos serviços de transportes que presta aos seus clientes não comporta a repercussão de CSR (ou a medida em que não a comporta, se se tratar de repercussão parcial), por forma a poderem sustentar que suportou, de forma efectiva, o encargo do imposto e o respectivo quantum.
54. A Requerente limitou-se a juntar uma declaração genérica do seu fornecedor de combustíveis − a B..., S.A. −, a qual está longe de conter os elementos concretos indispensáveis à comprovação do acima exposto. De notar, ainda, que das facturas anexas ao pedido arbitral apenas constam valores referentes ao IVA, não contendo aquelas qualquer referência a montantes pagos a título de ISP ou CSR, sendo absolutamente omissas nesse aspecto. Não logrou, por isso, atestar que suportou o tributo contra o qual reage. E esta seria, segundo entendemos, a única forma de lhe poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente acção arbitral, tendo em conta que não é sujeito passivo, nas diversas modalidades que o conceito acomoda, nem repercutidos legais da CSR.
55. Aliás, compreende-se que o legislador não tenha adoptado um conceito irrestrito de legitimidade activa, rodeando-se de algumas cautelas, atentas as dificuldades práticas que uma tal abertura suscitaria, quer na ligação entre o acto de liquidação do imposto, a determinação da sua efectiva repercussão (económica) e a determinação do seu quantum; quer ainda no potencial desdobramento / duplicação de devoluções de imposto indevidas: simultaneamente ao sujeito passivo e ao(s) múltiplo(s) repercutido(s) económicos da cadeia de valor. Ou seja, o mesmo imposto poderia ser restituído a diversos intervenientes, de forma dificilmente controlável e mapeável, com manifesto prejuízo para o Estado, em colisão com os princípios da igualdade e da praticabilidade.
56. Por fim, não se diga que a Requerente ficou desprovida de tutela, pois nada impede o ressarcimento, através de uma acção civil de repetição do indevido instaurada contra o seu fornecedor, se reunirem os devidos pressupostos, nos termos declarados pelo Acórdão do Tribunal de Justiça, de 20 de Outubro de 2011, no processo C-94/10, Danfoss A/S (pontos 24 a 29). Nesta perspectiva, está acautelada a observância do princípio fundamental da tutela jurisdicional efectiva (cfr. artigo 20.º da Constituição).
57. De assinalar, adicionalmente, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo já entendeu, em relação a um caso de liquidação de Imposto Automóvel (correspondente ao actual Imposto sobre Veículos), que o adquirente não tem legitimidade para impugnar a respectiva liquidação precisamente por não se tratar de um caso de repercussão legal (cfr. Acórdão de 1/10/2003, processo n.º 0956/03).
58. Em face do exposto, deve julgar-se verificada a excepção de ilegitimidade da Requerente, constituindo a mesma excepção dilatória de conhecimento oficioso que obsta a que o Tribunal Arbitral conheça a questão de fundo e demais questões suscitadas, com a consequente absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a), e 89.º, n.º 2 e n.º 4, alínea e), do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1, do RJAT.
IV.3.3. SOBRE A INEPTIDÃO DO PEDIDO ARBITRAL, A CADUCIDADE DO DIREITO À ACÇÃO, O INCIDENTE DE INTERVENÇÃO PROVOCADA E A NECESSIDADE DE REENVIO PREJUDICIAL
59. Perante o que se concluiu quanto à ilegitimidade da Requerente, é desnecessário o pronunciamento sobre os temas da ineptidão do pedido arbitral, da caducidade do direito à acção, do litisconsórcio com os sujeitos passivos do imposto e, bem assim, da necessidade de reenvio prejudicial para o TJUE, nos termos do artigo 608.º do CPC, e porque prejudicados pela decisão dada ao tema da ilegitimidade.
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DECISÃO
Em face do supra exposto, o Tribunal Arbitral:
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Julga verificada a excepção de ilegitimidade (activa) da Requerente, constituindo uma excepção dilatória de conhecimento oficioso que obsta a que o Tribunal Arbitral conheça a questão de fundo e demais questões suscitadas, com a consequente absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a), e 89.º, n.º 2 e n.º 4, alínea e), do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1, do RJAT;
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Condena a Requerente no pagamento das custas do processo.
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VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 638.136,82 (seiscentos e trinta e oito mil, cento e trinta e seis euros e oitenta e dois cêntimos), nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
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CUSTAS
Custas a cargo da Requerente, no montante de € 9.486,00 (nove mil, quatrocentos e oitenta e seis euros), nos termos da Tabela I do RCPAT e do disposto no seu artigo 4.º, n.º 5, e nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 29 de Abril de 2024
Os Árbitros,
Alexandra Coelho Martins, Presidente
Hélder Faustino, relator
Elisabete Flora Louro Martins Cardoso
A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 excepto em transcrições que o sigam.
[1] Ou em contradizer, no caso da entidade demandada.
[2] Ou, nalguns casos específicos de sindicabilidade autónoma no processo impugnatório, um acto de fixação da matéria colectável (cfr. artigos 2.º do RJAT e 97.º do CPPT).
[3] No caso, a Requerente é uma empresa sob a forma societária.
[4] Atente-se ainda que o artigo 93.º-A do CIEC, regime para o qual remete o artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto que cria a CSR, prevê o reembolso parcial de imposto incorrido para o gasóleo e gás profissional utilizado pelas empresas de transporte de mercadorias e de transporte coletivo de passageiros, precisamente por não ser um consumo final mas tão-só um consumo intermédio no circuito produtivo de bens e serviços.