Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 522/2023-T
Data da decisão: 2024-05-24   
Valor do pedido: € 888.004,22
Tema: IRC. Indemnização. Periodização do lucro tributável. Falta de audição prévia. Falta de fundamentação.
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SUMÁRIO

  1. As indemnizações estão sujeitas a tributação, em sede de IRC, como um proveito do exercício em que forem recebidas, nos termos dos artigos 18.º, n.º 1, e 20.º, n.º 1, alínea g), do Código do IRC.
  2. No caso de liquidação de IRC efetuada com base na declaração do contribuinte ocorre dispensa de audição prévia, nos termos previstos na alínea a) do n.º 2 do artigo 60.º da LGT, e inexiste vício de falta de fundamentação nos termos do artigo 77.º da LGT.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (Presidente), Professor Doutor Jónatas Machado (árbitro-adjunto) e Dr. João Santos Pinto (árbitro-adjunto e relator), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 25 de setembro de 2023, decidem o seguinte:

 

I. RELATÓRIO

A..., LDA., doravante designada “Requerente”, NIPC ..., com sede na ..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa, veio, em 17 de julho de 2023, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos nos 1 e 2 do artigo 10.º, ambos, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada “Requerida” ou “AT”), com vista à declaração de ilegalidade e anulação (a) da autoliquidação de IRC, relativa ao exercício de 2021, de onde resultou o saldo apurado no montante global de € 888.004,22 (oitocentos e oitenta e oito mil, quatro euros e vinte e dois cêntimos), e (b) do indeferimento tácito da reclamação graciosa deduzida pela Requerente contra a referida autoliquidação em 31 de janeiro de 2023.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 18 de julho de 2023.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo os aqui signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 5 de setembro de 2023 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 25 de setembro de 2023.

Em suporte das suas pretensões alega a Requerente, em síntese, que tributação que incidiu sobre as quantias que o Município de Lisboa foi condenado a pagar à Requerente pelos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09/03/2013, 04/06/2013, 18/10/2018, 16/12/2019 e 16/11/2021, a título de compensação ou indemnização por danos e prejuízos patrimoniais por si suportados, é ilegal e deve ser anulada, por inexistência de facto tributário, violação de normas e princípios constitucionais e legais, falta de audiência e defesa, preterição de formalidades legais, falta de fundamentação e erros de facto e de direito. Concretamente, alega a Requerente o seguinte:

  1. A tributação que incidiu sobre as quantias que o Município de Lisboa foi condenado a pagar viola frontalmente o disposto nos artigos 22.º, 62.º, 103.º e 104.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), nos artigos 4.º, 8.º e 11.º e segs., e 36.º da LGT, bem como nos artigos 562.º e segs. do Código Civil, lesando e onerando os direitos e interesses legalmente protegidos da ora requerente de forma absolutamente injusta e desproporcionada (artigos 8.º, n.º 1, e 12.º da LGT);
  2. As normas do Código do IRC (“CIRC”) aplicadas nos atos impugnados, com o alcance e sentido normativo que lhes foi atribuído, no sentido de permitirem a tributação de valores pagos em execução de decisões judiciais transitadas em julgado e que assumem natureza indemnizatória ou compensatória de danos ou perdas patrimoniais suportados pela contribuinte que foi lesada por atuações abusivas e ilícitas de entidades públicas, como se tratasse de acréscimos patrimoniais ou rendimentos, constituem dispositivos legais claramente inconstitucionais, por violação do disposto nos artigos 2.º, 9.º, 17.º, 18.º, 22.º, 62.º, 103.º, 104.º, 202.º e 205.º da CRP, sendo claramente inaplicáveis in casu (artigo 204.º da CRP);
  3. Os citados normativos, com o sentido e alcance normativo que lhe foi atribuído nos atos tributários sub judice, sempre violariam frontalmente os princípios da igualdade perante os encargos públicos, nas suas vertentes interna e externa, da repartição justa dos rendimentos, bem como da proporcionalidade, da capacidade contributiva e da tributação do rendimento real (v. artigos 13.º, 18.º, 103.º, n.º 1, 104.º e 266.º da CRP), impondo um injustificado e duplo sacrifício, pois a Requerente suportou prejuízos durante trinta anos, que, posteriormente, seriam e foram tributados como rendimentos, o que não tem qualquer razão, justificação ou fundamento (v. artigos 103.º, 104.º e 204.º da CRP);
  4. É manifesta a inexistência de facto tributário, causa e base legal dos atos tributários sub judice, bem como a falta de elementos essenciais ou “causa jurídica a que a constituição ou manutenção da obrigação tributária possa ser atribuída” (v. artigo 103.º da CRP, artigo 8.º da LGT e artigo 133.º, n.º 1, do CPA; cfr. Vieira de Andrade, CJA, n.º 43, pp. 46-48), tendo sido frontalmente violado o disposto nos artigos 2.º, 9.º, 13.º, 17.º, 18.º, 20.º, 22.º, 62.º, 103.º, 104.º e 266.º e segs. da CRP, nos artigos 4.º, 8.º e 11.º e segs., e 36.º da LGT, bem como nos artigos 562.º e segs. do Código Civil;
  5. Os atos tributários sub judice não foram precedidos de audiência e defesa da Requerente sobre as questões que foram objeto de decisão, e não se verifica nem foi invocado qualquer evento ou situação que permita a dispensa de audiência prévia, pelo que foram frontalmente violados os artigos 2.º, 18.º, 100.º e segs., e 267.º, n.º 5, da CRP, o artigo 45.º do CPPT, o artigo 60.º da LGT, e os artigos 12.º e 121.º e segs. do NCPA;
  6. Os atos tributários sub judice enfermam de manifesta falta de fundamentação de facto e de direito ou, pelo menos, esta é insuficiente, obscura e incongruente, tendo violado frontalmente, entre outros, o artigo 268.º, n.º 3, da CRP, os artigos 77.º e segs. da LGT, e os artigos 152.º e segs. do NCPA.

Notificada para o efeito, a AT apresentou Resposta e juntou processo administrativo em 25 de outubro de 2023.

Em 30 de outubro de 2023 veio a Requerente dispensar a produção de prova testemunhal.

Em 9 de novembro de 2023 veio a Requerente requerer a junção aos autos do seu Relatório de Gestão, Balanço, Demonstração de Resultados por Naturezas, Balancete Geral (analítico), todos referentes ao exercício de 2021, para efeitos de contraprova do alegado pela AT no artigo 15.º da sua Resposta, no que tange a prova do reconhecimento contabilístico em 2021 do montante da indemnização paga pelo Município de Lisboa, informando que tal montante integrou o resultado líquido do período e, consequentemente, o lucro tributável declarado na Mod. 22 do IRC, no quadro 7, nos campos 701 e 708, respetivamente.

Por despacho de 14 de novembro de 2023, dispensou-se a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT. Nesse mesmo despacho foi admitida a junção dos documentos juntos pela Requerente em 9 de novembro de 2023, e concedido o prazo simultâneo de 10 dias para as partes apresentarem, querendo, as suas alegações.

Em 23 de novembro de 2023, a Requerente procedeu à junção do comprovativo do pagamento da taxa de justiça subsequente.

As partes apresentaram alegações. A Requerente, em 12 de dezembro de 2023, reiterou o posicionamento manifestado no PPA. A Requerida, em 11 de dezembro de 2023, onde assume o mesmo posicionamento manifestado na Resposta, e requer o desentranhamento dos documentos juntos pela Requerente em 9 de novembro de 2023, com base no princípio processual civil da preclusão.

Em 14 de dezembro de 2023, a Requerente apresentou requerimento pronunciando-se sobre o desentranhamento de documentos requerido pela Requerida.

Em 20 de março de 2024 foi proferido despacho nos termos do n.º 2 do artigo 21.º do RJAT a prorrogar prazo da arbitragem por 2 meses, indicando-se como data limite para ser proferida a decisão o dia 25 de maio de 2024.

 

II. SANEAMENTO

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (cfr. artigos 4.º e 10,º, n.º 2, do RJAT e 1.º da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março).

O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer do pedido (cfr. artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).

Relativamente à materialidade e oportunidade de junção de documentos pela Requerente em 9 de novembro de 2023, contestada pela Requerida nas suas alegações com base no princípio processual civil da preclusão, cumpre notar que o Tribunal Arbitral já determinou a admissão dos mesmos, e sublinhar que o processo arbitral é um processo flexível e célere, em que são, no entanto, obrigatoriamente observados os princípios da igualdade e do contraditório. No caso concreto, a Requerida teve oportunidade para se pronunciar sobre o teor dos documentos em causa no prazo determinado pelo Tribunal Arbitral. Não se tendo oposto à admissão dos documentos no prazo fixado pelo Tribunal Arbitral, ficou precludida de o fazer posteriormente.

Aliás, como referido na Decisão Arbitral proferida em 3 de julho de 2017, processo n.º 717/2016-T (Tribunal presidido pelo Senhor Conselheiro Jorge Lopes de Sousa), não são aplicáveis, no processo arbitral, as regras de preclusão que se preveem no CPC:

“Nos processos arbitrais não se aplicam necessariamente as regras do CPC ou do CPPT, aplicando-se um princípio da informalidade e impondo-se ao Tribunal Arbitral que defina a tramitação mais adequada a cada processo, obrigação esta que é considerada de relevância primacial, como se infere do facto de ela ser referida insistentemente no RJAT, prevendo-se na alínea a) do n.º 1 do artigo 18.º do RJAT a realização de uma reunião para «definir a tramitação processual a adoptar em função das circunstâncias do caso e da complexidade do processo» e impondo-se ao Tribunal Arbitral, no n.º 2 do artigo 29.º, o dever de «definir a tramitação mais adequada a cada processo especificamente considerado».

Por isso, ao abrigo desse princípio da informalidade, o Tribunal Arbitral pode admitir a junção ao processo dos documentos em qualquer momento, se entender que isso é adequado para o processo, desde que seja assegurado o princípio do contraditório, não sendo aplicáveis as regras sobre preclusão que se prevêem no CPC relativas à junção de documentos”.

O processo não enferma de nulidades.

 

III. QUESTÕES DECIDENDAS

Face ao exposto nos números anteriores, relativamente à exposição das partes e aos argumentos apresentados, as principais questões a decidir são as seguintes:

a. Da tributação de indemnizações como rendimentos;

b. Da preterição de audição prévia;

c. Da falta de fundamentação.

 

IV. DA MATÉRIA DE FACTO

FACTOS PROVADOS

  1. A Requerente é uma sociedade comercial matriculada no registo comercial em 13/04/1963, anteriormente denominada B..., Lda., que tem por objeto “o comércio de compra de prédios, revenda dos mesmos e construções urbanas”. [cfr. Docs. n.ºs 5 e 6 juntos ao PPA]
  2. Na década de 1970, a Requerente era proprietária dos seguintes imóveis:
    1.   Prédio denominado “Quinta ...” ou “Quinta ...”, sito na ... e Rua ..., freguesia de ..., município de Lisboa, descrito na ... Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º..., a fls. 6 do Livro B-..., da referida freguesia;
    2.   Prédio sito na Rua ..., freguesia de ..., município de Lisboa, inscrito na matriz predial da referida freguesia, sob os artigos  ... (urbano) e ... (rústico)

[cfr. Docs. n.ºs 5 e 6 juntos ao PPA]

  1. Nos finais da década de 1970, na sequência de requerimento da Requerente apresentado no Município de Lisboa com vista ao licenciamento da construção de três edifícios no seu prédio sito na Rua ..., freguesia de ..., em Lisboa (os quais correspondem atualmente aos n.ºs ... ... da Rua ... e ao n.º ... da Rua ...), foi referido aos representantes da Requerente, nas reuniões ocorridas antes da aprovação e licenciamento da construção dos referidos edifícios com membros da Câmara Municipal de Lisboa, que a Requerente teria de efetuar “a cedência do terreno envolvente dos lotes” a construir no ..., “terreno esse destinado a utilidade pública e acessos secundários”, tendo ainda a Requerente sido informada de que as licenças de construção dos edifícios que esta pretendia erigir no ... só seriam emitidas após a outorga da escritura de doação dos terrenos envolventes [cfr. Doc. n.º 16, fls. 24, junto ao PPA]
  2. Com vista a tal desiderato, a Requerente, por escritura outorgada em 16 de janeiro de 1981, doou ao R. Município de Lisboa o “prédio constituído por terreno para construção com a área de onze mil cento e vinte e nove metros quadrados, sito na Rua ..., e Rua ..., freguesia de ..., desta cidade, descrito sob o número ... (…), tendo ficado a constar da referida escritura que o prédio doado se destinava a via pública e equipamentos. [cfr. Doc n.º 5, fls. 24 e 25, junto ao PPA]
  3. De acordo com a referida escritura de 16 de janeiro de 1981, o Município de Lisboa aceitou a doação “do prédio, destinado a via pública e equipamentos”, de acordo “com a deliberação da Câmara Municipal de Lisboa, tomada em sua reunião de vinte e sete de Agosto” de 1980. [cfr. Doc n.º 5, fls. 25, junto ao PPA]
  4. O prédio doado pela Requerente foi posteriormente vendido pelo Município de Lisboa a entidades privadas, tendo sido afeto à construção de habitação, comércio e serviços de interesse privado, na sequência de atos de licenciamento imputáveis aos órgãos e serviços do Município de Lisboa. [cfr. Doc. n.º 5 junto ao PPA]
  5. Em 2005, a Requerente, sentindo-se lesada com o fim dado pelo Município de Lisboa aos terrenos por si cedidos, interpôs ação judicial contra o Município de Lisboa. [cfr. Docs. n.ºs 16 e 17 juntos ao PPA]
  6. Em 03/03/2017, o Município de Lisboa pagou à Requerente o montante de €2.920.000,00 (dois milhões novecentos e vinte mil euros), que tinha sido fixado na sentença do Tribunal da Comarca de Lisboa, de 02/11/2016. [cfr. Doc 1 junto ao Requerimento da Requerente de 9/11/2023]
  7. Após diversas decisões judiciais e acórdãos, foi determinado definitivamente pelo Tribunal da Relação de Lisboa - 7ª Secção – Processo n.º .../05.4TVLSB.L2 – no Acórdão de 19/05/2020, alterado posteriormente pelo teor do Acórdão do mesmo Tribunal, de 13/10/2020 (proferido em resultado da apresentação de arguição de nulidade por parte do Município de Lisboa), o seguinte:

“Julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, alterar a decisão recorrida e condenar agora a R. Município de Lisboa a pagar à A..., Lda, a quantia de €6.200.000,00 (seis milhões e duzentos mil euros), acrescido de juros desde a data da liquidação realizada em 1ª instância até ao efetivo e integral pagamento, à taxa legal, tomando-se não obstante em consideração - para efeitos de imputação no montante total devido – os pagamentos parciais efetuados na pendência dos autos à requerente A..., Lda, e a sua correspetiva contabilização para efeitos do cálculo dos juros de mora que serão devidos”. [cfr. Docs. n.ºs 16 e 17 juntos ao PPA]

  1. Os recursos de revista do acórdão proferido em 19/05/2020 pelo Tribunal da Relação de Lisboa, não obtiveram provimento, conforme determinou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, em 16/11/2021, transitado em julgado em 2021. [cfr. Doc. 18 junto ao PPA]
  2. Em 23/12/2021, o Município de Lisboa pagou à Requerente o remanescente dos valores que foi condenado a pagar pelas referidas decisões judiciais, transitadas em julgado, nos montantes parcelares de € 3.280.000,00 (três milhões duzentos e oitenta mil euros) e de € 708.098,63 (setecentos e oito mil e noventa e oito euros e sessenta e três cêntimos) [cfr. Doc 5 junto ao Requerimento da Requerente de 9/11/2023]
  3. A 19/05/2022, a Requerente apresentou a declaração de rendimentos Mod. 22 do IRC, referente ao período de tributação de 2021, apurando o valor a pagar de €888.004,22, pago em 28/05/2022, conforme consta do sistema informático da AT. [cfr. Doc 19 junto ao PPA]
  4. Em 31/01/2023 deu entrada no Serviço de Finanças de Lisboa-... reclamação graciosa apresentada contra a autoliquidação de IRC, referente ao período de tributação de 2021, com o número de processo de SICAT: ...2023... . [cfr. Doc n.º 2 junto ao PPA]
  5. Até à presente data, verifica-se que a reclamação graciosa não foi objeto de decisão.
  6. O PPA que deu origem aos presentes autos foi apresentado em 17 de julho de 2023.

 

FACTOS NÃO PROVADOS

Com relevo para a decisão, não existem outros factos alegados que devam considerar-se não provados.

 

 

FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA E NÃO PROVADA

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe sim o dever de selecionar os factos que importa, para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental, bem como o processo administrativo junto aos autos, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos supra elencados.

 

V. MATÉRIA DE DIREITO

DA TRIBUTAÇÃO DE INDEMNIZAÇÕES COMO RENDIMENTOS

Da inconstitucionalidade

A ora Requerente ao longo do seu arrazoado veio invocar de forma profusa a violação de diversas normas constitucionais (artigo 2.º, 57.º, 58.º 59.º, 60.º 62.º, 66.º 69.º, 72.º 73.º, 74.º 75.º 76.º, 77.º, 78.º, 79.º, 81.º, 85.º, 89.º, 91.º, 92 e 93.º, todos da CRP), que cumpre ao presente Tribunal Arbitral apreciar, porquanto decorre do próprio RJAT, mais propriamente do n.º 1 do artigo 25.º, que o Tribunal Arbitral deve recusar a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade.

Nesta sede, vem a Requerente alegar, em síntese, que se tratando de uma indemnização que tem natureza indemnizatória ou compensatória de danos ou perdas patrimoniais, não deveria ser tributado como se fosse rendimento. Nessa medida defende que é injustificada tal tributação porquanto, segundo a mesma, esta “suportou prejuízos durante trinta anos, que, posteriormente, seriam tributados como rendimentos”. E na mesma senda, alega que inexiste facto tributário para tributar tal situação. E de forma derradeira argumenta que o pagamento de tal indemnização visou a mera reintegração do património da Requerente e a substituição de um bem que nele preexistia, razão pela qual entende que a sua tributação não seria proporcional e não sequer fundamento.

Note-se que, no caso em apreço, conforme se irá analisar supra, o legislador prevê uma norma de incidência específica para tributar indemnizações, independentemente da sua natureza (alínea i) do n.º 1 do artigo 20.º do CIRC). Ainda assim, vem a Requerente pugnar pela não conformidade da tributação em causa com a nossa Constituição - embora não formulando no pedido qualquer pedido específico de declaração de inconstitucionalidade das normas que fundamenta a liquidação.

Acresce ainda que, a Requerente invocou diversos princípios e artigos da CRP, sem depois explicar em concreto em que sentido seriam relevantes in casu. O que impede que este Tribunal Arbitral tome posição individualizada sobre os mesmos.

No mesmo sentido, veja-se o Acórdão do STA de 12 de janeiro de 2022, o qual precisamente decidiu que “O recorrente não densificou, no recurso que veio dirigido a este Supremo Tribunal, as defendidas violações dos princípios/direitos constitucionais que cita. Pelo que, a falta de concretização/densificação das enumeradas violações dos preceitos constitucionais invocados impede que este Tribunal emita também uma apreciação individualizada sobre as mesmas.”

E no caso em concreto, o que se verificou foi apenas uma mera indemnização para reposição da anterior situação?

Na realidade não. Atente-se no trecho do acórdão junto pela Requerente como Doc. n.º 16, pág. 10:

A A. não se propôs contemplar o Município com tal doação por finalidades meramente altruístas, filantrópicos ou de simples empenhamento no engrandecimento do património público e autárquico.

Bem pelo contrário, tratou-se aqui de um acto praticado igualmente com vista à prossecução do seu interesse pessoal, comportando, indirecta e instrumentalmente, significativos lucros para a doadora – sociedade cujo objecto social se reconduz à compra e venda de imóveis e que, dessa forma, pode construir três edifícios em área próxima, rentabilizando-os.

Houve, neste sentido e contexto, um plano negocial comportando, na prática, contrapartidas recíprocas: O Município viabilizaria o projecto da A. no que concerne à construção, nos seus terrenos, de edifícios para a venda; como condição prévia a tal desiderato, a A. procederia em seu favor à identificada doação.

Na ocasião em que se procedeu a tal transferência de propriedade, a A. havia esgotado o seu direito de edificar naquela mesma área.

Resulta assim que não se verificou uma simples doação, mas, ao invés, uma complexa negociação que resultou em diversos benefícios para a Requerente, mormente o licenciamento de diversos edifícios. E nesta medida, presume-se que não quererá a Requerente também reverter todos os benefícios a que alude o douto aresto e que a mesma obteve por via de tal doação.

E continuando a citar o referido Acórdão (cfr. Doc n.º 16 junto ao PPA, pág. 13):

A medida do prejuízo sofrido pela A. nada tem que ver com o valor actual – passados mais de vinte anos – do imóvel doado, descontada a quantia que, no longínquo ano de 1981, figurou na escritura de aquisição como correspondendo ao seu valor.

De resto, a solução propugnada na decisão recorrida redundaria num desproporcional e injustificado enriquecimento para a A. que, passados mais vinte anos após a doação do imóvel – e cumprido pelo Município a condição imposta para a rentabilização de outro imóvel da doadora, que lhe esteve indissociavelmente na base -, arrecadaria o valor actual dos terrenos que não lhe pertencem (no impressionante montante de € 5.747.924,00), sofrendo apenas um ligeiro (e praticamente simbólico) desconto de € 2.775,56, correspondente ao que as partes indicaram, em 1981, como valor venal do bem doado.

E por último, tal como consta dos pontos III e IV do sumário do mesmo acórdão (cfr. Doc. n.º 16 junto ao PPA, pág. 53):

III – É, neste contexto, impossível olvidar que, na génese da operação formalizada através da dita doação com encargo modal esteve igualmente a obtenção de um significativo lucro da parte da A., proporcionado pela donatária, à qual (doadora), num contexto global, chegaram outrossim lucros que de outra forma não obteria.

IV - A verba de € 6.200.000,00 (seis milhões e duzentos mil euros) satisfaz, a nosso ver, a necessária relação de equilíbrio e adequação entre os dois interesses em contraposição, afigurando-se equitativa, e respeitando escrupulosamente o resultado dos diversos juízos periciais encontrados nos autos, que aliás foram oscilando de avaliação em avaliação para se fixar naquele que entendemos ter por referencial.

Dúvidas assim não restam que a indemnização em causa não se trata de uma mera compensação in natura, tal como veio a Requerente qualificar. E por essa via, entende-se que inexiste qualquer violação em específico do princípio constitucional da tributação pelo lucro real, conforme previsto no artigo 104.º, n.º 2, da CRP. Ora, como é consabido tal princípio determina que a tributação deve incidir sobre o rendimento que foi obtido pelo contribuinte e do qual o mesmo tem a disponibilidade. In casu, a indemnização, como se viu, teve também em consideração os benefícios diretos e indiretos que a Requerente obteve com o acordado com o ML.

Veio ainda a Requerente invocar diversos acórdãos do Tribunal Constitucional, sem, contudo, explicitar de forma consubstanciada como os mesmos poderiam ter aplicação ao caso em questão. Da panóplia da jurisprudência do Tribunal Constitucional citada pela Requerente, apenas alguns se referem a questões específicas de indemnização[1]. Contudo, compulsados os acórdãos em questão resulta que não têm aplicação à situação concreta dos autos, dada a natureza da indemnização. Pelo que falece a argumentação da Requerente no que tange a violação de normas constitucionais.

Deste modo, na ponderação de todos os factos, normas e circunstâncias relevantes, a solução legislativa existente, de tributação das indemnizações, consegue atingir, relativamente às operações concretamente em causa, um nível de equidade razoável, incluindo no plano fiscal. Conceitos e princípios como equidade fiscal, rendimento, reparação, restauração natural ou indemnização admitem uma margem razoável de conformação legislativa, sendo compatíveis com diferentes modalidades e graus de concretização. No caso concreto, não entende este Tribunal Arbitral que se possa falar de forma categórica da existência, na norma de incidência fiscal em causa, de uma injustiça notória, arbitrária, intolerável e desproporcional, suscetível de fundamentar um juízo de inconstitucionalidade.

Da interpretação da alínea i) do n.º 1 do artigo 20.º do CIRC

Centremo-nos agora na questão jurídica que se encontra na base do litígio dos presentes autos de arbitragem: saber se os montantes pagos pelo Município de Lisboa deverão ou não serem tributados?

Analise-se:

O artigo 562.º do Código Civil estabelece um princípio geral quanto à obrigação de indemnizar, o da reparação natural, ao prever que: “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.           Por seu turno, o n. º 1 do artigo 566.º do Código Civil prevê a indemnização em dinheiro nos casos em que a mesma reconstituição natural não seja possível, ou que a mesma seja excessivamente onerosa, ao estatuir que “A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.

Conforme resulta das decisões judiciais que decidiram sobre o litígio entre a Requerente e o Município de Lisboa, nomeadamente da sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, 6ª Vara, 1ª Secção, processo n.º .../05.4TVLSB, foi determinado que os edifícios implantados no prédio doado encontram-se totalmente construídos, pelo que se tornava impossível a restituição do prédio doado ao autor, assistindo-lhe o direito a receber o valor atual da parcela do terreno.

A Requerente argumenta que tal compensação constitui um mero sucedâneo (ou valor de substituição) da obrigação de restituição in natura de um prédio que já pertencia e sempre pertenceu à Requerente, decorrente da resolução judicial da sua doação, de 16/01/1981, com eficácia retroativa, visando simplesmente colocar as partes na mesma situação em que estariam se o negócio não tivesse sido celebrado.

Ora, ainda antes de nos debruçarmos sobre o enquadramento do ponto de vista fiscal, não obstante a argumentação da Requerente no sentido de qualificar a compensação como “mero sucedâneo da obrigação de restituição e de colocar as partes na mesma situação em que estariam se o negócio não tivesse sido celebrado”, dúvidas não restam que se trata de uma verdadeira indemnização.

Nos termos do Código Civil, uma indemnização pode ser satisfeita por duas formas. E independentemente da forma que vier a ter lugar, o que se pretende é a reparação do dano, seja pela reposição in natura ou pelo pagamento de uma indeminização em dinheiro. Atente-se inclusivamente que tanto o artigo 562.º e 566.º do Código Civil encontram-se na secção “VIII – Obrigação de indemnização”.

Assim, independentemente de como a Requerente qualifica tal pagamento, dúvidas não restam de que se trata de uma verdadeira indemnização. Pelo que, há que apurar qual o tratamento fiscal de tal compensação.

Vejamos:

Nos termos da alínea i) do n.º 1 do artigo 20.º do CIRC consideram-se rendimentos “Indemnizações auferidas, seja a que título for”. Resulta desta norma de incidência que o legislador, ao determinar seja a que título for, quis abarcar qualquer tipo de indemnização, incluído aquela que tenha natureza compensatória.

E nessa medida, a redação da norma é clara e abrangente o suficiente para inexistir qualquer dúvida em subsumir a compensação paga pelo Município de Lisboa na aludida alínea i) do n.º 1 do artigo 20.º do CIRC. Pelo que, sem mais delongas, deve considerar-se tal compensação como um rendimento tributável em sede de IRC.

Veio ainda a Requerente invocar a circunstância do terreno ter sido adquirido em 1963, em momento anterior ao Código do Imposto das Mais-Valias (CIVM), e o facto da doação ter ocorrido em 1981, ou seja, em momento anterior à entrada em vigor do Código da Contribuição Industrial, pretendendo por essa via justificar uma exclusão de tributação.

É certo que o CIVM foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 373, de 9 de junho de 1965, tendo a transmissão de terrenos para construção passado a serem tributada nos termos do artigo 1.º, n.º 1: “transmissão onerosa de terreno para construção, qualquer que seja o título porque se opere, quando dela resultem ganhos não sujeitos aos encargos de mais-valia previstos no artigo 17° da Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948, ou no artigo 4° do Decreto-Lei nº 41 616, de 10 de Maio de 1958, e que não tenham a natureza de rendimentos tributáveis em contribuição industrial

E por seu turno, o Código da Contribuição Industrial foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 45103, de 1 de julho de 1963, prevê no artigo 23.º:

§ 2 “São ainda havidas como proveitos ou ganhos as indemnizações que, de algum modo, representem compensação dos que deixaram de ser obtidos.

Contudo, há que determinar em primeira instância o ano do facto gerador de imposto para efeitos de IRC, que se passa a analisar. Nessa medida, há que apurar se o rendimento da Requerente proveniente da indemnização paga pelo Município de Lisboa, por decisão transitada em julgado em 16/11/2021, deve ser tributado como rendimento do exercício correspondente a esse ano, ou, ao invés, tal rendimento deve ser imputado noutro exercício diferente, nomeadamente ao exercício de 1981, coincidente com a doação ao Município de Lisboa ou hipoteticamente ao exercício 1963, aquando da respetiva aquisição.

Analise-se:

Quanto à questão da tributação em sede de IRC o legislador estabeleceu o princípio da especialização dos exercícios como um princípio geral, e por força do qual os proveitos e os custos de um período devem ser registados contabilisticamente no exercício a que dizem respeito, independentemente do momento em que são pagos ou recebidos. E como decorrência de tal princípio, sobre a periodização do lucro tributável o artigo 18.º, n.ºs 1 e 2 do CIRC, estabelece que:

1 - Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.

2 - As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.

Ou seja:

No âmbito do IRC, a regra é a de que a imputação de um proveito ou custo a certo exercício obedece a um critério económico, ou seja, as operações nele efetuadas afetam o respetivo resultado, independentemente do recebimento ou pagamento do respetivo preço ou outra contrapartida. [cfr. Rui Duarte Morais, “Apontamentos ao IRC, Almedina, 2007, págs. 64 e segs]

Voltando ao caso dos autos, verifica-se que até à data do trânsito em julgado da sentença que reconheceu o direito da Requerente de ser indemnizada pelo Município de Lisboa, a mesma Requerente tinha apenas uma expectativa de ser ressarcida. Dito de outro modo, apenas com a decisão transitada em julgado passou a integrar a esfera jurídica da Requerente o direito à aludida compensação, que se tornou certa, líquida e exigível. Tendo a Requerente sido apenas posteriormente ressarcida na sequência de tal decisão judicial.

Este entendimento, ao qual se adere, foi acolhido em anterior decisão do CAAD, no âmbito do processo n.º 308/18-T. Por se entender que tal é o entendimento mais convergente com as normas legais aplicáveis, e em face da necessidade de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito, como resulta do disposto no artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, seguir-se-á o mesmo nos presentes autos.

Conforme foi entendido no citado processo, “Daí que, ao contrário do que sustenta a Requerente, o direito à indemnização que lhe foi, definitivamente, reconhecido pela transacção homologada judicialmente a 22-01-2016, não era, até essa data, um activo reconhecível, mas, meramente, um activo contingente, que, apenas a partir daquela data de 22-01-2016 podia e devia ser reconhecido nas suas contas.

Razão pela qual, já anteriormente o TCA-Norte, processo n.º 00114/04, datado de 16 de fevereiro de 2006, tinha entendido que “As indemnizações auferidas, seja a que título for» estão sujeitas a tributação em IRC como um proveito do exercício em que forem recebidas, nos termos dos arts. 18.º, n.º 1, e 20.º, n.º 1, alínea g), do CIRC.

Neste âmbito, cabe ainda fazer referência ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 03/04/2013, proferido no âmbito do processo n.º 0963/12, que com as devidas adaptações se aplica ao caso dos autos (também citado na decisão arbitral supra mencionada):

“Antes da aprovação de uma candidatura a subsídios pelas entidades oficiais competentes não pode haver uma certeza ou segura previsibilidade de que eles serão concedidos, imperando a imprevisibilidade quanto à sua aprovação e ao crédito que será concedido, o que obsta à sua imputação no exercício económico da candidatura. Tal imputação impõe-se no exercício em que ocorre a aprovação da candidatura, independentemente do recebimento do subsídio neste exercício.”

E, na mesma senda, o Acórdão do TCA-Sul, no âmbito do processo n.º 972/08 datado de 11 de março de 2021, julgou que:

III. Nos casos como os dos autos em que o montante indemnizatório devido pelas nacionalizações de bens foi definitivamente fixado ano de 1996, é esse o ano do facto gerador de imposto para os efeitos do IRC

Desta forma, em complemento do já acima referido, nomeadamente, daquilo que deve resultar a título interpretativo do referido artigo 18.º, n.º 1, e 20.º, n.º 1, alínea g) do CIRC, resultante da jurisprudência citada supra, é possível concluir que a referida norma legal pretende que o pagamento de quaisquer indemnizações, seja a que título for, são tributadas em sede de IRC no exercício em que por decisão judicial transitada em julgado tenha sido determinado o montante da respectiva compensação.

Destarte, não merece qualquer censura a autoliquidação, não devendo o pedido igualmente proceder nessa parte.

 

 

 

DA PRETERIÇÃO DE AUDIÇÃO PRÉVIA

Vem a Requerente ainda sustentar que (a) os atos tributários sub judice não foram precedidos de audição da Requerente no âmbito da formação das decisões que lhe dizem respeito e afetam diretamente os seus direitos e interesses, e (b) não se verifica, nem foi invocado, qualquer evento ou situação que permita a dispensa de audiência prévia, pelo que foram frontalmente violados os artigos 2.º, 18.º, 100.º e segs. e 267.º, n.º 5, da CRP, o artigo 45.º do CPPT, o artigo 60.º da LGT, e os artigos 12.º e 121.º e segs. do NCPA.

Vejamos, pois:

É certo que a alínea a) do n.º 1 do artigo 60.º, n.º 1, da LGT dispõe que:

“1 — A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efectuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas:

a) Direito de audição antes da liquidação;

(…)”

Contudo, prevê a alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo que:

“2 — É dispensada a audição:

a) No caso de a liquidação se efectuar com base na declaração do contribuinte ou a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe seja favorável;

(…)

 

In casu, não houve lugar a qualquer liquidação oficiosa por iniciativa da AT, mas a entrega da respetiva modelo 22 do IRC pela própria Requerente.[2] Pelo que dúvidas não restam que, de acordo com a alínea a) do n.º 2 do artigo 60.º da LGT, há dispensa de audição prévia e que, portanto, não se verifica qualquer violação por parte da AT.

 

DA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO

Veio a Requerente sustentar que os atos tributários são ilegais por se verificar o vício de falta de fundamentação. Para o efeito, alega que os atos tributários sub judice não mencionam, nomeadamente, (i) as normas legais aplicáveis, (ii) os factos a que são aplicadas, e (iii) o cálculo justificativo dos conjeturais valores e demais critérios, que apenas foram conclusivamente indicados, demonstrando claramente que apenas se pretendeu tributar, como se de rendimento se tratasse, quantias que integram mero sucedâneo do cumprimento de uma obrigação de restituição in natura, pelo que enfermam de manifesta falta de fundamentação de facto e de direito (v. artigo 268.º, n.º 3, da CRP, artigos 77.º e segs. da LGT, e artigos 152.º e segs. do NCPA (cfr. artigos 124.º e 125.º do CPA).

Analisemos, pois, o alegado pela Requerente.

Nos termos do n.º 3 do artigo 268.º da CRP, “os atos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos.”

A nota de liquidação consubstancia-se num ato tributário em sentido estrito, sujeito aos deveres de fundamentação previstos na Constituição e reforçados no artigo 77.º da LGT, que estabelece que “que a decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram”.

Contudo, tratando-se de uma autoliquidação cuja iniciativa pertenceu à Requerente, foi a própria que a elaborou, sendo totalmente conhecedora das circunstâncias relevantes. A este propósito, veja-se o Acórdão do TCA-SUL, processo n.º 1221/12.9BELRS, datado de 30 de setembro de 2020, que exige, no sentido inverso, fundamentação da liquidação (ato tributário em sentido estrito) nos casos em que a liquidação é emitida pela AT na sequência de correções à declaração apresentada pelo contribuinte:

I. Não estamos perante uma autoliquidação quando a liquidação é emitida pela AT na sequência de correções à declaração apresentada pelo contribuinte;

II. Havendo correções aos valores inscritos na declaração de imposto apresentada pelo contribuinte que estão na origem de um ato de liquidação tributário, este deverá ser fundamentado, devendo conter, ainda que sumariamente, as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo, tal como exigido no n.º 2, do art. 77.º da LGT.

Acresce ainda que, no caso em apreço, o PPA foi intentado com base no indeferimento tácito da reclamação graciosa, pelo que nesta sede também não pode ocorrer falta de fundamentação de uma decisão que não foi proferida.

Improcede, deste modo, o pedido de declaração de ilegalidade e anulação da autoliquidação de IRC impugnada, relativa ao exercício de 2021, e do indeferimento tácito da reclamação graciosa deduzida pela Requerente contra a referida autoliquidação em 31 de janeiro de 2023.

 

VI. DECISÃO

Termos em que, com os fundamentos de facto e de direito que supra ficaram expostos, decide o Tribunal Arbitral Coletivo julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, absolver a Requerida do pedido.

 

VII. VALOR DO PROCESSO

Fixa-se ao processo o valor de € 888.004,22 (oitocentos e oitenta e oito mil, quatro euros e vinte e dois cêntimos), correspondente à liquidação de IRC que a Requerente impugnou – v. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do RCPAT.

 

VIII. CUSTAS

Custas no montante de € 12.546,00 (doze mil, quinhentos e quarenta e seis euros), a cargo da Requerente, em razão do decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com os artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5, do RCPAT, e 527.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

 

CAAD, 24 de maio de 2024

 

Arbitro Presidente,

 

(Professora Doutora Rita Correia da Cunha)

 

Arbitro-Adjunto

 

(Professor Doutor Jónatas Machado)

 

Arbitro-Adjunto (Relator)

 

(Dr. João Santos Pinto)

 



[1] A saber: Proc. n.º 285/92 quanto a indemnização da função pública; Proc. n.º 740/2002 quanto à questão da tributação dos juros moratórios em sede de responsabilidade civil extracontratual; Acórdão 453/93 quanto a juros em acidente de viação; Acórdão 453/97 e Proc. 300/03 relativo à tributação de juros de mora no pagamento de uma indemnização por acidente de viação; Proc. n.º 393/2016 e Acórdão 393/16 relativo a indemnização por expropriações; Proc. 288/01 referente a indemnização atribuída judicialmente numa ação de responsabilidade civil por acidente de viação; Acórdão TC 183/86 relativo a taxa de juros de mora das letras; Acórdão 287/90 relativo a ação de reinvidicação de propriedade.

 

[2] Veja-se a título meramente exemplificativo o Acórdão TCA-Norte, 26/04/2018, proc. n.º 00828/12.9BEAVR, onde foi entendido que existe violação do dever de audiência no caso de liquidação oficiosa e não em caso de declaração apresentada pela impugnante.