Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1/2014-T
Data da decisão: 2014-07-21  IUC  
Valor do pedido: € 45.124,22
Tema: IUC – Incidência subjectiva; anulação do acto de liquidação
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CAAD: Arbitragem Tributária

Processo n.º 1/2014 – T

Tema: IUC – Incidência subjectiva ; anulação do acto de liquidação

 

 

Decisão Arbitral

 

I.          RELATÓRIO

A, S.A., sociedade com sede na …, n.º, titular do número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva …, doravante designada por Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2º nº 1 a) e 10º nº 1 a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por RJAT), peticionando a anulação de 684 actos tributários de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) referentes ao exercício de 2009, no montante de € 38.352,67, e respectivos juros compensatórios, no valor de € 6.771,55.

Para fundamentar o seu pedido alega, em síntese:

 

a)      A Requerente incorporou por fusão as seguintes sociedades:

(i)                 B - S.A., em 01/10/2003;

(ii)               C- Lda., em 30/11/2004;

(iii)             D- Lda., em 30/11/2004.

b)      Por força da fusão, as sociedades incorporadas operaram a transferência global do seu património para a sociedade incorporante, aqui Requerente;

c)      As sociedades incorporadas extinguiram-se na data da fusão;

d)     A sociedade Requerente e as sociedades incorporadas foram notificadas, na qualidade de sujeito passivo de IUC, das liquidações ora em crise;

e)      A Requerente é uma instituição financeira de crédito, sendo que, no âmbito da sua actividade, concede aos seus clientes financiamentos destinados à compra de veículos automóveis;

f)       Os financiamentos são formalizados ou através da celebração de contratos de mútuo, nos quais, como garantia do pagamento do capital mutuado, o mutuário concede a favor do mutuante uma reserva de propriedade do veículo automóvel adquirido, ou através de contratos de locação financeira;

g)      A Requerente foi notificada para exercer o direito de audição prévia, por alegadamente ser o sujeito passivo de IUC devido no exercício de 2009 e não liquidado;

h)      A Requerente não é sujeito passivo de imposto quer porque não era proprietária dos veículos à data da ocorrência do facto gerador de imposto, quer porque estes se encontravam locados nessa mesma data;

i)        Das 684 liquidações, 602 referem-se a veículos alienados em data anterior à da ocorrência do facto gerador de imposto e 82 a veículos que se encontravam locados durante o exercício de 2009;

j)        Nos termos do artigo 3º do CIUC, são sujeitos passivos de IUC os proprietários dos veículos, sendo equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força de contrato de locação;

k)      A presunção estabelecida no artigo 3º nº 1 do CIUC é uma presunção ilidível;

l)        Assim, sujeito passivo de IUC é o proprietário, ainda que não figure no registo automóvel, desde que seja feita prova bastante para ilidir a presunção legal proveniente do registo, ou o locatário;

m)    A AT não pode ser considerada um terceiro para efeitos de registo, por via de que os contratos de compra e venda e de locação financeira lhe seriam inoponíveis;

n)      Quer o contrato de compra e venda, quer a locação, são contratos com eficácia real que implicam a transferência da propriedade e da posse por mero efeito do contrato;

o)      No caso das 684 liquidações em crise, a Requerente não é sujeito passivo de IUC;

p)      A falta de cumprimento da obrigação declarativa resultante do artigo 19º do CIUC não tem como consequência passar a ser a parte faltosa o sujeito passivo do imposto, podendo apenas ser sancionado ao nível contra-ordenacional.

 

A Requerente juntou 10 documentos, não tendo arrolado testemunhas.

Já após a apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral, foi junto pela Requerente o projecto de decisão de reclamação graciosa apresentada relativamente ao IUC do exercício de 2008, o que, pese embora a oposição da Requerida, veio a ser admitido, em nome do princípio da livre determinação das diligências de prova necessárias e a almejada obtenção de uma verdadeira justiça material.

No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, nos termos do disposto no artigo 6º nº 2 a) do RJAT, foi designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, o signatário. tendo a nomeação sido aceite nos termos legalmente previstos.

O tribunal arbitral colectivo foi constituído em 4 de Março de 2014.

Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º do RJAT, a Requerida apresentou resposta, alegando, em síntese, o seguinte:

a)      O artigo 3º do CIUC não estabelece qualquer presunção de propriedade, mas uma verdadeira ficção de propriedade – o legislador não diz que se presumem proprietários mas que se consideram proprietários;

b)      A falta de inscrição no registo das alterações de propriedade ou das situações de locação tem como consequência que a obrigação de pagamento do IUC recaia no proprietário inscrito, não podendo a AT liquidar o imposto com base em elementos que não constem do registo;

c)      O IUC é devido pelas pessoas que constam no registo como proprietárias dos veículos;

d)     As facturas juntas pela Requerente como prova da celebração do contrato de compra e venda não são aptas a fazer tal prova;

e)      Relativamente a várias matrículas, a Requerente não junta qualquer elemento de prova da sua alienação;

f)       Sendo certo que várias das facturas encontram-se irregularmente emitidas, pelo que não podem ser aceites como meio de prova;

g)      Quanto aos contratos de locação financeira, a falta de cumprimento da obrigação prevista no artigo 19º do CIUC faz impender sobre a Requerente a obrigatoriedade de pagamento do imposto.

 

A Requerida juntou 20 documentos e cópia do processo administrativo, não tendo arrolado nenhuma testemunha.

 

Em 08/05/2014 teve lugar a primeira reunião do Tribunal Arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 18.º do RJAT, tendo a Requerida sido notificada para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos todos os contratos e facturas relativas aos veículos vendidos e esclarecer as liquidações em crise, bem como para juntar aos autos o documento nº 5 junto com o requerimento inicial em formato editável, o que a Requerente fez dentro do prazo fixado.

A Requerida foi notificada do teor dos esclarecimentos prestados e documentos juntos pela Requerente, não se tendo pronunciado sobre os mesmos.

As partes prescindiram de alegações orais, remetendo para o alegado nos respectivos articulados, não tendo sido apresentadas alegações escritas.

 

II.          SANEAMENTO:

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.

Não existem nulidades que invalidem o processado.

As partes têm personalidade e capacidade judiciária e são legítimas, não ocorrendo vícios de patrocínio.

Não existem nulidades, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito e de que cumpra oficiosamente conhecer.

 

 

III.         QUESTÕES A DECIDIR:

As questões a decidir são as seguintes:

(i)                 determinar se a norma de incidência subjectiva prevista no artigo 3º nº 1 do CIUC prevê uma presunção ilidível ou, ao invés, uma ficção legal, insusceptível, por isso, de ser ilidida mediante prova em contrário;

(ii)               determinar qual a consequência do incumprimento da obrigação decorrente do artigo 19º do CIUC;

(iii)             determinar qual o valor jurídico do registo dos veículos automóveis;

(iv)             determinar qual o valor probatório das facturas juntas pela Requerente;

(v)               determinar qual o valor probatório dos contratos de locação financeira juntos pela Requerente.

 

 

IV)                 MATÉRIA DE FACTO:

 

a.                       FACTOS PROVADOS:

Com relevância para a decisão de mérito, foi provada a seguinte factualidade:

 

a)                 A Requerente é uma instituição financeira de crédito que tem por objecto social a prática das operações permitidas aos bancos, com excepção da recepção de depósitos;

b)                 No âmbito da sua actividade a Requerente concede aos seus clientes financiamentos destinados à compra de viaturas automóveis;

c)                  O financiamento de veículos automóveis é formalizado através da celebração de contratos de mútuo, ficando o mutuante com reserva de propriedade do veículo, ou através da celebração de contratos de locação financeira;

d)                 Por escritura pública outorgada em 01/10/2003, a Requerente incorporou, por fusão, a sociedade B, S.A.;

e)                  Por escritura pública outorgada em 30/11/2004, a Requerente incorporou, por fusão, a sociedade C, L.DA;

f)                  Por escritura pública outorgada em 30/11/2004, a Requerente incorporou, por fusão, a sociedade D, L.DA;

g)                 As sociedades incorporadas transferiram globalmente para a sociedade incorporante todo o seu património, incluindo todo o activo e passivo;

h)                 As sociedades incorporadas extinguiram-se aquando das fusões operadas;

i)                   A Requerente e as sociedades incorporadas foram notificadas de 684 liquidações de IUC relativas ao exercício de 2009, no valor global de € 38.352,67, e respectivos juros compensatórios, no montante total de € 6.771,55;

j)                   Previamente às liquidações, a Requerente foi notificada para exercer o direito de audição prévia, por alegadamente ser o sujeito passivo de IUC devido no exercício de 2009 e não liquidado;

k)                 A Requerente não exerceu o direito de audição prévia;

l)                   A Requerente encontra-se inscrita, no registo automóvel, como proprietária dos 684 veículos em relação aos quais foram emitidas as liquidações em crise, não se encontrando averbado qualquer contrato de locação financeira;

m)               Nenhum dos 684 veículos pertence às categorias F ou G, a que alude o artigo 4º do CUIC;

n)                 Das 684 liquidações notificadas, 602 referem-se a veículos em relação aos quais, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, havia sido emitida pela Requerente (ou, anteriormente, pelas sociedades incorporadas) uma factura de venda a terceiro, com os números, nas datas de emissão e valores constantes do documento 7 junto com o requerimento inicial bem como dos documentos juntos após a realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT, que aqui se dão por integralmente reproduzidos;

o)                 Das 684 liquidações notificadas, 82 referem-se a veículos que, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, se encontravam locados a terceiros, nos termos dos contratos juntos com o requerimento inicial sob o número 8, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

 

 

b.                      FACTOS NÃO PROVADOS:

Com interesse para os autos não se provou mais nenhum facto.

 

 

c.                       FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:

A convicção sobre os factos dados como provados fundou-se na prova documental indicada em relação a cada um dos pontos, junta pela Requerente, cuja autenticidade e correspondência à realidade não foram questionadas pela Requerida.

 

V.        DIREITO:

a. Interpretação do artigo 3º nº 1 do CIUC:

Invoca a Requerente que, relativamente às 684 liquidações de IUC em crise, não se encontram preenchidos os pressupostos de incidência subjectiva previstos no artigo 3º do CIUC, não sendo, por isso, sujeito passivo de IUC.

 

Para o efeito alega, em síntese, que o artigo 3º do CIUC estabelece uma presunção implícita de propriedade dos veículos a favor de quem os mesmos se encontrem registados, presunção essa que, por força da aplicação da regra geral prevista no artigo 73º da Lei Geral Tributária, é ilidível mediante prova em contrário.

 

Por seu turno, a Requerida defende que o artigo 3º do CIUC não estabelece qualquer presunção implícita, mas uma verdadeira ficção legal, inilidível, portanto, mediante prova em contrário.

 

Atenta a posição das partes, vejamos aquela que deverá ser, de acordo com as regras de hermenêutica jurídica consagradas, a interpretação do artigo 3º nº 1 do CIUC.

 

Dispõe o número 1 do artigo 3º do CIUC:

 

“São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

 

 

Da simples leitura do número um do indicado preceito verifica-se, sem grandes dificuldades, que a pedra de toque está na expressão “considerando-se” utilizada pelo legislador.

 

Atenta a terminologia utilizada, deverá entender-se que o legislador pretendeu estabelecer uma presunção implícita ou uma verdadeira ficção legal?

 

Para a apreciação desta questão, importa, antes de mais, trazer aqui à colação alguns conceitos jurídicos e definições legais.

 

Assim,

 

Nos termos do disposto no artigo 349º do Código Civil, presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.

 

Relativamente às presunções legais, prescreve o número 2 do artigo 350º do mesmo Código que estas podem ser ilididas mediante prova em contrário, salvo nos casos em que a lei o proibir.

 

Já no que diz respeito, em concreto, às presunções de incidência tributária, estabelece o artigo 73º da Lei Geral Tributária que estas admitem sempre prova em contrário.

Para além de presunções, o legislador recorre também às chamadas “ficções legais”, as quais se traduzem “num processo jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir consequências jurídicas”[1].

 

De acordo com a tese avançada pela Requerida, o facto de o artigo 3º nº 1 do CIUC estabelecer que se “consideram” como proprietários, ao invés de “presumem-se” como proprietários, revela que o legislador, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, pretendeu expressamente determinar que as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados se consideram, sem admissibilidade de qualquer prova em contrário, proprietários dos mesmos.

 

Ainda de acordo com a Requerida, se o legislador pretendesse criar uma presunção e não uma ficção legal, teria escrito, como faz em diversos outros diplomas, que se presumem proprietários e não que se consideram proprietários.

 

Desde já poderemos adiantar não sufragar este tribunal do entendimento defendido pela Requerida.

 

Isto porque, pela análise dos elementos histórico e teleológico, para além, naturalmente, do elemento literal, de interpretação legislativa, chegaremos, inevitavelmente, à conclusão de que o legislador não pretendeu estabelecer qualquer ficção legal mas apenas e só uma presunção, ilidível mediante prova em contrário nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 73º da Lei Geral Tributária.

 

Senão vejamos:

 

Quanto ao elemento histórico, importa referir que o actual IUC teve a sua génese na criação, através do DL 599/72, de 30 de Dezembro, do imposto sobre veículos.

 

Este imposto sobre veículos, que se manteve em vigor até à criação do actual CIUC, consagrava expressamente que o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas em nome de quem os mesmos se encontram matriculados ou registados – vd. artigo 3º do Regulamento do Imposto sobre Veículos, anexo ao indicado DL 599/72, de 30 de Dezembro.

 

Aquando da aprovação do novo CIUC, o legislador substituiu a expressão “presumindo-se como tais” pela expressão “considerando-se como tais”, mas nem por isso se poderá defender que tal alteração signifique uma verdadeira substituição de uma presunção (ilidível) por uma ficção legal (inilidível).

 

É que, conforme nos ensina JORGE LOPES DE SOUSA[2], em matéria de incidência tributária, as presunções podem ser reveladas pela expressão “presume-se” ou por expressão semelhante. A título de exemplo, avança o autor que no artigo 40º nº 1 do CIRS  se utiliza a expressão “presume-se”, ao passo que no artigo 46º nº 2 do mesmo Código se faz uso da expressão “considera-se”, não havendo qualquer diferença entre uma e outra expressão, ambas significando, afinal, o mesmo: uma presunção legal.

 

O mesmo se passou com o CIUC em que, não obstante ter sido alterada, em relação à redacção original, a expressão “presume-se” pela expressão “considera-se”, nenhuma alteração de fundo se produziu, tendo as diferentes expressões exactamente o mesmo significado.

 

À mesmíssima conclusão chegamos pela análise do elemento teleológico.

 

De facto, importa ter presente a exposição de motivos da Proposta de Lei nº 118/X de 07/03/2007, subjacente à Lei nº 22-A/2007, de 29 de Junho.

 

Analisada esta exposição de motivos, verifica-se que o que se pretendeu foi empreender uma “reforma global e coerente dos impostos ligados à aquisição e propriedade dos veículos automóveis” a qual resulta da “necessidade imperiosa de trazer clareza e coerência a esta área do sistema fiscal e da necessidade, mais imperiosa ainda, de subordiná-la aos princípios e preocupações de ordem ambiental e energética que hoje em dia marcam a discussão da tributação automóvel”.

 

Continuando, explica a referida exposição de motivos que “os dois novos impostos que agora se criam, o imposto sobre veículos e o imposto único de circulação, constituem muito mais do que o prolongamento técnico das figuras criadas nos anos 70 e 80 que os antecederam, voltadas predominantemente para a angariação da receita, indiferentes ao custo social resultante da circulação automóvel. Constituem algo diferente, figuras já do século em que vivemos, com as quais se pretende, com certeza, angariar receita pública, mas angariá-la na medida do custo que cada indivíduo provoca à comunidade.

 

O que levou, inclusive, à consagração do principio da equivalência, inscrito no artigo 1º do CIUC, “deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária. É este princípio que dita a oneração dos veículos em função da respectiva propriedade e até ao momento do abate”.

 

O IUC, enquanto verdadeiro imposto ambiental, tem, pois, por sujeito passivo o poluidor, mais não passando, afinal, da consagração do princípio do poluidor-pagador.

 

Por onde se verifica que o princípio estruturante da reforma da tributação automóvel é justamente a incidência da tributação sobre o verdadeiro utilizador do veículo, não se coadunando este princípio com a leitura “cega” da letra da lei, que poderia levar, afinal, a tributar quem não fosse proprietário e, dessa forma, quem não fosse o sujeito causador do “custo ambiental e viário” provocado pelo veículo, a que alude o artigo 1º do CIUC.

 

De tudo quanto ficou exposto resulta que os elementos literal, histórico e teleológico de interpretação da lei conduzem necessariamente à conclusão de que a expressão “considerando-se” tem exactamente o mesmo sentido que a expressão “presumindo-se”, devendo, desta forma, entender-se que o artigo 3º nº 1 do CIUC consagra uma verdadeira presunção de propriedade e não qualquer ficção, sendo, por isso, tal presunção ilidível.

 

Nos termos do disposto no número 1 do artigo 3º do CIUC, sujeito passivo do imposto é, em principio, o proprietário, já que a lei presume que é este quem utiliza o bem. Mas se se provar que, afinal, não é o proprietário quem faz uso do veículo, mas um terceiro, então será este, fatalmente, o sujeito passivo do imposto.

 

É esta, salvo melhor, a interpretação que está em sintonia, por um lado, com o princípio enunciado no artigo 11º nº 3, da Lei Geral Tributária, de que, nos casos de dúvida sobre a interpretação das normas tributárias «deve atender-se à substância económica dos factos tributários» e, por outro lado, com o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, que impõe que a tributação da generalidade dos contribuintes, sempre que possível, assente na realidade económica subjacente aos factos tributários[3].

Aliás, qualquer outra interpretação violaria, desde logo, o já falado princípio da equivalência consagrado no artigo 1º do CIUC, nos termos do qual se estabelece que o IUC procura “onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.

 

 

b. Do incumprimento da obrigação prevista no artigo 19º do CIUC:

 

Dispõe o artigo 19º do CIUC:

 

Para efeitos do disposto no artigo 3º do presente código (…) ficam as entidades que procedam à locação financeira, à locação operacional ou ao aluguer de longa duração de veículos obrigadas a fornecer à Direcção-Geral dos Impostos os dados relativos à identificação fiscal dos utilizadores dos veículos locados”.

 

De acordo com a Requerente, o incumprimento desta obrigação não tem como consequência que o sujeito passivo do imposto passe, sem mais, a ser o proprietário, podendo apenas gerar responsabilidade contra-ordenacional do prevaricador.

 

Por seu turno, a Requerida defende precisamente o oposto, cominando com a sujeição a imposto o incumprimento desta obrigação.

 

A bondade da posição defendida pela Requerente é desde logo indiciada pela inserção sistemática do citado artigo 19º, que se insere no Capítulo III do CIUC, respeitante a obrigações acessórias, fiscalização e regime contra-ordenacional.

 

A obrigação constante do artigo 19º do CIUC é, pois, uma obrigação meramente declarativa, não tendo qualquer virtualidade de alterar as regras de incidência subjectiva do imposto, previstas no Capítulo I sob a epígrafe “Princípios e regras gerais”.

 

E que assim é resulta, também, do facto de o próprio artigo 19º não prever essa sanção para o seu incumprimento.

 

De onde se retira, sem qualquer margem para dúvidas, que o incumprimento desta obrigação não determina, sem mais, que o sujeito passivo do imposto passe a ser o locador.

 

Assim, a expressão “para efeitos do artigo 3º do presente código”, constante do dito artigo 19º do CIUC tem apenas e só o sentido de que, com vista à aplicação da presunção prevista no artigo 3º nº 2, de que se consideram proprietários os locatários, terão as entidades locadoras de dar cumprimento a este artigo.

 

Coisa diferente é saber se a inversa é verdadeira, isto é, se incumprida esta obrigação declarativa, fica o locador impossibilitado de gozar da presunção de propriedade a favor do locatário prevista no artigo 3º nº 2 do CIUC.

 

Vejamos:

 

Dispõe o número 2 do artigo 3º do CIUC:

 

“São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

 

In casu estamos, uma vez mais, perante uma presunção, a qual, por força da aplicação do disposto no artigo 73º da Lei Geral Tributária e à semelhança da prevista no número 1 do artigo 3º a que vem a fazer-se referência, pode ser ilidida mediante prova em contrária.

 

Pelo que, incumprida a obrigação prevista no artigo 19º do CUIC, podem ainda assim as entidades locadoras recorrer a qualquer meio para provar que o locatário é um terceiro e assim fazer renascer a presunção do citado preceito.

 

 

c. O valor jurídico do registo automóvel:

 

Nos termos do disposto no número 1 do artigo 1º do DL 54/75, de 12 de Fevereiro, que instituiu o Registo da Propriedade Automóvel, “o registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos amotor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”.

 

Por seu turno, prescreve o artigo 7º do Código do Registo Predial, legislação supletiva do registo de automóveis, que “o registo definitivo constituiu presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.

 

Conforme é sabido, o registo de propriedade não tem natureza constitutiva, mas meramente declarativa, permitindo apenas a inscrição no registo presumir a existência do direito e a sua titularidade. Note-se, presumir, e não ficcionar, o que significa que a presunção resultante do registo pode ser ilidida mediante prova em contrário.

 

E isto é assim justamente porque, nos termos do disposto no artigo 408º do Código Civil, salvas as excepções previstas na lei, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, não ficando a sua validade dependente da inscrição no registo.

 

No caso de um contrato de compra e venda de um veículo automóvel, não prevendo a lei qualquer excepção para o mesmo, o contrato tem eficácia real, passando o adquirente a ser o seu proprietário, independentemente do registo.

 

Ora, da mesma forma que o adquirente passa a ser o proprietário independentemente do registo, também o titular inscrito deixa de ser o proprietário, pese embora ainda constar do registo como tal.

 

Note-se que, in casu, pese embora a falta de inscrição no registo, as transmissões efectuadas são oponíveis à Requerente, apesar do disposto no número 1 do artigo 5º do Código do Registo Predial, que dispõe que os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros quando registados.

 

Isto porque a Requerida não é, para efeitos do disposto neste artigo, considerada terceiro para efeitos de registo.

 

A noção de terceiros para efeitos de registo está consagrada no número 4 do mesmo artigo 5º: terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si, o que, manifestamente não é o caso dos autos.

 

O mesmo raciocínio se terá, naturalmente, de aplicar às hipóteses de locação financeira, em relação às quais também o registo não tem qualquer eficácia constitutiva, mais não passando de uma presunção de que o direito existe, ilidível, do mesmo passo, mediante prova em contrário.

 

E, da mesma forma, a falta de inscrição no registo do contrato de locação financeira não significa que este não exista.

 

No caso dos autos, a Requerente figura no registo como proprietária dos veículos objecto das liquidações em crise, pese embora, em relação a 602 dos veículos, alegar não ser, à data do facto gerador do imposto, a sua proprietária, por já os haverá alienado e, em relação aos restantes 82 veículos, apesar de ser a proprietária, não ter o seu uso e fruição, por se encontrarem os veículos dados em locação financeira, embora não registada.

 

Uma vez que a presunção resultante do registo é, como vimos, ilidível, vejamos se os documentos juntos pela Requerente são aptos a ilidir tal presunção.

 

 

d. Do valor probatório das facturas juntas pela Requerente:

 

Com vista a provar que 602 dos veículos cujas liquidações estão em causa nos presentes autos foram por si alienados em data anterior ao nascimento do facto gerador do imposto, a Requerente juntou as respectivas facturas de venda.

 

Note-se que a Requerida alegou que, relativamente a vários veículos, a Requerente não juntou qualquer factura de venda, sendo que algumas das facturas juntas não se encontram regularmente emitidas pelo que não podem ser atendidas.

 

Quanto à primeira questão – falta de junção de facturas -, cotejados todos os documentos juntos aos autos, verifica-se que a Requerente juntou, para cada uma das matrículas em causa, ou factura de venda, nos casos em que alega que os veículos foram vendidos, ou contrato de locação financeira, nos casos em que alega que os veículos se encontram dados em locação financeira.

 

Pelo que não se vislumbra existirem quaisquer elementos em falta.

 

Já no que diz respeito à segunda questão – facturas emitidas de forma irregular -, a verdade é que a Requerente, após a realização da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT, veio aos autos juntar segundas vias destas facturas, não tendo a Requerente impugnado estes novos documentos, pelo que terá de se considerar suprida a invocada irregularidade.

Isto posto,

 

Conforme resulta dos factos provados, nenhum dos 684 veículos em causa nos presentes autos pertence às categorias F ou G a que alude o artigo 4º do CIUC, pelo que o facto gerador do imposto ocorre na data da respectiva matrícula ou em cada um dos seus aniversários.

 

Decorre ainda dos factos provados que, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, havia sido emitida pela Requerente, relativamente a cada um destes 602 veículos, uma factura de venda a terceiro.

 

Sem prejuízo das matrículas em relação às quais a Requerida alega não ter sido junta qualquer factura pela Requerente (tendo nestes casos, como já visto, procedido à junção dos contratos de locação financeira) e das que, tendo sido junta factura, a Requerida invoca encontrar-se esta irregularmente emitida (situação que, como vimos, foi ultrapassada pela junção posterior de novas facturas), a Requerida defende que a factura não é documento idóneo a comprovar a venda do veículo, não passando a mesma de um documento unilateralmente emitido pela Requerente, alegando que “como é do conhecimento público, não faltam casos de emissão de facturas referentes a transmissões de bens e/ou de prestações se serviços que nunca ocorreram”.

 

É certo, como invoca a Requerida, que existem muitas situações em que as facturas não titulam qualquer negócio jurídico.

 

No caso dos autos, porém, nenhum elemento nos permite concluir que as facturas juntas não titulem nenhum negócio, sendo certo que a sua falsidade não foi sequer arguida pela Requerida, que se limitou a invocar existirem várias situações dessas, sem concretamente referir que a situação dos autos se subsumia a tal.

 

Pelo que, à míngua de quaisquer elementos ou fundamentos que nos permitam concluir o contrário, teremos, naturalmente, de aceitar a veracidade dos documentos juntos.

 

Tanto mais que, conforme é sabido, as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos da lei e os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita gozam de uma presunção de veracidade e de boa fé, nos termos do disposto no artigo 75º da Lei Geral Tributária.

 

Presunção esta que, à semelhança das demais presunções analisadas nestes autos, são ilidíveis mediante prova em contrário, sendo certo que a Requerida não logrou ilidir esta presunção (nem em bom rigor tentou).

 

Assente a veracidade das facturas juntas pela Requerente, teremos de considerar, sem necessidade de quaisquer outras considerações, serem estas documentos aptos a provar a alienação dos  veículos em causa.

 

Com efeito, não prevendo a lei qualquer forma específica para a celebração de um contrato de compra e venda de um bem móvel, terá, necessariamente, de se aceitar como prova do dito contrato a factura emitida nos termos legais.

 

Por onde se verifica que, à data do facto gerador do imposto (data da matrícula ou de cada um dos seus aniversários) a Requerente havia alienado todos os 602 veículos cujas liquidações foram impugnadas, pese embora as referidas alienações não tenham sido objecto de inscrição no registo.

Assim, atento o facto de, conforme já exposto, a presunção resultante do registo ser ilidível mediante prova em contrário, prova essa que se considera suficiente com a apresentação das facturas de venda dos veículos, verifica-se que, relativamente a estes 602 veículos, a Requerente não é a sua proprietária, não sendo, por isso, sujeito passivo do IUC liquidado.

 

 

e. Do valor probatório dos contratos de locação financeira:

 

Para prova de que 82 dos veículos cujas liquidações estão em causa nos presentes autos se encontravam dados em locação financeira à data do nascimento do facto gerador do imposto, a Requerente juntou os respectivos contratos.

 

Encontra-se provado nos autos que todos os contratos foram celebrados em data anterior ao facto gerador do imposto.

 

A Requerida não questiona o valor probatório destes contratos, limitando-se a alegar que o incumprimento, por parte da Requerente, do disposto no artigo 19º do CIUC, tem como consequência passar a ser esta o sujeito passivo do imposto em causa.

 

Tal como já exposto supra, nada na lei nos permite chegar a tal conclusão, sendo certo que a expressão “para efeitos do artigo 3º do presente código”, constante do dito artigo 19º do CIUC não tem nem poderá ter este significado.

 

Tratando-se o contrato de locação de um contrato com eficácia real, transferindo-se a detenção do bem por mero efeito do contrato, dúvidas não restam de que os utilizadores do veículo são os locatários e não a locadora.

 

E se, conforme já visto, o IUC é um imposto que visa tributar o utilizador do veículo, por meio da regra do poluidor-pagador, então parece evidente que o sujeito passivo do imposto é o locatário e não a locadora, aqui Requerente.

 

Pelo que, atentas as datas da celebração dos contratos de locação financeira e as datas do nascimento do facto gerador do imposto, forçoso é concluir que, relativamente a estes 82 veículos, a Requerente não é o sujeito passivo do IUC liquidado.

 

Isto, note-se, pese embora os contratos de locação financeira não se encontrarem inscritos no registo já que a falta de inscrição não determina que, existindo prova suficiente em contrário, como é o caso, o sujeito passivo do imposto passe a ser o titular inscrito.

 

Em face de tudo quanto ficou exposto, não havendo fundamento legal para os actos de liquidação de IUC efectuados, impõe-se a sua anulação, bem como a anulação dos actos de liquidação de juros compensatórios, com todas as consequências legais.

 

 

 

VI.                  DISPOSITIVO:

 

Em face do exposto, decide-se:

a)      julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade dos 684 actos de liquidação do IUC relativos ao exercício de 2009, no valor de € 38.352,67, bem como dos juros compensatórios, no montante global de € 6.771,55, tudo com todas as consequências legais;

b)      condenar a Requerida nas custas do processo.

 

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Fixa-se o valor do processo em € 45.124,22, nos termos do artigo 97º-A nº 1 a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

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Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.071,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária,nos termos dos artigos 12º nº 2 e 22º nº 4, ambos do RJAT, e artigo 4º nº 4, do citado Regulamento, a pagar pela Requerida por ser a parte vencida.

 

 

 

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Registe e notifique.

 

Lisboa, 21 de Julho de 2014.

O Árbitro,

 

Alberto Amorim Pereira

 

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Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20/01.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.

 



[1]FRANCISCO RODRIGUES PARDAL, “O uso de presunções no direito tributário”, in Ciência e Técnica Fiscal, nº 325-327, página 20.

[2]In “Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado”, Volume I, 6ª Edição, Áreas Editora, Lisboa, 2011, página 589.

[3]JORGE LOPES DE SOUSA, op. cit, pp. 590 e ss.