Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 338/2023-T
Data da decisão: 2024-05-16  IRC  
Valor do pedido: € 273.279,86
Tema: IRC – RFAI – Indústria transformadora – Transformação de produtos agrícolas. Autoridade de caso julgado.
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SUMÁRIO

  1. Das disposições dos artigos 22.º do Código Fiscal do Investimento e 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, resulta que a concessão do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI), no âmbito da indústria transformadora, só não ocorre em relação a projetos de investimento de transformação de produtos agrícolas que continuem a ser produtos agrícolas, com a exceção a que se refere o artigo 1.º, n.º 3, alínea c), do Regulamento Geral por Isenção por Categoria (RGIC), que considera não aplicáveis os auxílios nas situações aí especialmente previstas.
  2. O ponto 10 das Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020 (OAR), ao mencionar que a Comissão Europeia aplicará as mesmas à “transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas”, está a referir-se à atividade de transformação de produtos agrícolas adquiridos no mercado primário em produtos que, pela sua natureza, não podem ser qualificados como produtos agrícolas.
  3. O processamento industrial de leguminosas secas e concentrado de tomate em alimentos apertizados, entendendo-se como tal os alimentos prontos a consumir, submetido a processo térmico após embalagem em recipiente hermético para garantir a sua conservação e introdução no mercado, não pode ser tida como uma atividade de transformação de produtos agrícolas na aceção do Capítulo 20 da Nomenclatura Combinada, que integra o Anexo I do Tratado de Funcionamento da União Europeia.

DECISÃO ARBITRAL

Os Árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha, Dra. Cristina Maria da Costa Pinto e Dra. Catarina Gonçalves, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:

 

I.  RELATÓRIO

É Requerente A..., LDA., pessoa coletiva n.º..., com sede na ..., ..., ...-... ..., ..., doravante designada de “Requerente” ou “Sujeito Passivo”.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, doravante designada de “Requerida” ou “AT”.

Em 08.05.2023, a Requerente requereu a constituição de tribunal arbitral e deduziu pedido de pronúncia arbitral (“PPA”) tendo em vista a declaração de ilegalidade e anulação do ato de liquidação de IRC n.º 2022..., relativo ao período de tributação de 2019, do respetivo ato de liquidação de juros compensatórios n.º 2022..., bem como da demonstração de acerto de contas n.º 2022..., que apurou um montante de imposto a pagar de € 273.279,86 (duzentos e setenta e três mil, duzentos e setenta e nove euros e oitenta e seis cêntimos) (“Liquidações Contestadas”), bem como a restituição do imposto indevidamente pago e a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico, designou os signatários como árbitros, que comunicaram a aceitação no prazo aplicável. Em 29.06.2023, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído em 17.07.2023 para apreciar e decidir o objeto do presente litígio, e automaticamente notificada a AT.

No dia 02.10.2023, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta, defendendo-se por impugnação, e juntou processo administrativo.

No dia 06.12.2023, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, onde começou por ser inquirido B..., Inspetor Tributário, enquanto testemunha arrolada pela Requerida. Na mesma data, foram também inquiridas as testemunhas apresentadas pela Requerente, designadamente:

-C..., funcionário da área “Controlo e Qualidade” da Requerente (doravante “Testemunha A”);

- D..., Professora Universitária no Instituto de Agronomia (doravante “Testemunha B”);

- E..., funcionário responsável pela área das exportações e importações da Requerente (doravante “Testemunha C”);

- F..., Diretor Geral da Requerente (doravante “Testemunha D”).

Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida, reiterando e desenvolvendo as respetivas posições jurídicas.

O prazo do artigo 21.º do RJAT foi prorrogado por despacho arbitral de 10.01.2024 e 15.03.2024.

 

 

II.  SUMÁRIO DA POSIÇÃO DAS PARTES

Posição da AT no Relatório de Inspeção Tributária (RIT)

A atividade principal da Requerente consiste na transformação de produtos agrícolas em produtos agrícolas, não sendo elegível para efeitos do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (“RFAI”). Tal como evidenciado nos documentos de exportação preenchidos pela Requerente, os produtos comercializados pela Requerente enquadram-se no Capítulo 20 – Preparações de produtos hortícolas, de frutas ou outras partes de plantas – da Nomenclatura Combinada (Nomenclatura de Bruxelas), que integra o Anexo I do Tratado de Funcionamento da União Europeia (“TFUE”).

Os pontos 10) e 11) do artigo 2.º (definições) do Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, que declara certas categorias de auxílio compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.º e 108.º do TFUE, publicado no Jornal Oficial da União Europeia, n.º L 187, de 26 de junho de 2014 (Regulamento Geral de Isenção por Categoria ou “RGIC”), definem “transformação de produtos agrícolas” e “produto agrícola” respetivamente:

“10) «Transformação de produtos agrícolas», qualquer operação realizada sobre um produto agrícola de que resulte um produto que continua a ser um produto agrícola, com exceção das atividades realizadas em explorações agrícolas necessárias à preparação de um produto animal ou vegetal para a primeira venda;

11) «Produto agrícola», um produto enumerado no anexo I do Tratado, exceto os produtos da pesca e da aquicultura constantes do anexo I do Regulamento (UE) n.o 1379/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013.”

Ora, se os produtos comercializados pela Requerente se enquadram no Capítulo 20 da Nomenclatura Combinada e são enumerados no Anexo I do TFUE, só se pode concluir que tratam de produtos agrícolas excluídos do âmbito do RFAI, por força do disposto no artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, aplicável ao RFAI por remissão do n.º 1 do artigo 22.º do Código Fiscal do Investimento (“CFI”), e do próprio n.º 1 do artigo 22.º deste diploma, que na sua parte final, exceciona do âmbito de aplicação do referido regime as atividades excluídas do âmbito setorial de aplicação das OAR.

 

Posição da Requerente no PPA

As Liquidações Contestadas foram emitidas pela AT com base no entendimento de que a atividade desenvolvida pela Requerente não é elegível para efeitos do RFAI: “(…) a transformação de produtos agrícolas de que resulte um produto agrícola enumerado no Anexo I do TFUE encontra-se excluída do âmbito do RFAI, por força do disposto no artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, aplicável ao RFAI por remissão  do n.º 1 do artigo 22° do CFI, e do próprio n.º 1 do artigo 22° deste diploma, que na sua parte final, exceciona do âmbito de aplicação do referido regime as atividades excluídas do âmbito setorial de aplicação das OAR e do RGIC”.

Autoridade do caso julgado

Uma vez que a Administração Tributária sustenta a sua argumentação com base numa tese que já foi considerada ilegal por enfermar de um vício de erro sobre os pressupostos de facto e de direito que justificaram a anulação das liquidações impugnadas nos processos n.ºs 670/2020-T e 655/2021-T, a questão encontra-se coberta pela autoridade do caso julgado. Aliás, a AT, ao não intentar recurso das decisões, demonstra que está conformada com as referidas decisões. É, aliás, isso que decorre do princípio da legalidade tributária e dos princípios fundamentais sobre os quais se deve reger a atuação da AT, nomeadamente, subordinar a sua atuação à Constituição da República Portuguesa e à lei (conforme determina o artigo 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), e os princípios elencados nos artigos 55.º e 59.º da Lei Geral Tributária (princípio da colaboração, da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade, da celeridade, e do respeito pelas garantias dos contribuintes).

Guias de exportação

Relativamente aos documentos de exportação preenchidos pela Requerente, note-se que a Requerente tem de identificar o produto com o código de mercadoria segundo as especificidades exigidas relativamente às guias de exportação. Sucede que, estando em causa produtos das indústrias alimentares (como seja feijões em grãos e  ervilhas), a única secção prevista na Nomenclatura Combinada é a secção IV, capítulo 20, relativo a “Preparação de produtos hortícolas, fruta ou de outras plantas”, não existindo efetivamente outra secção onde se podem inserir os produtos exportados pela Requerente.

Direito Comunitário

Os produtos que a Requerente recebe nas suas instalações industriais são produtos agrícolas que já passaram por um primeiro ou segundo estádio de transformação, sendo novamente objeto de transformação nas linhas de produção da fábrica da Requerente. Os produtos que saem das instalações da fábrica da Requerente, após o processo industrial, não são produtos agrícolas, quer tendo em consideração quer o conceito de transformação previsto no direito europeu, quer o conceito de produto agrícola constante do RGIC.

Para efeitos do TFUE, não são considerados produtos agrícolas, os produtos do segundo, terceiro, ou quarto estádio de transformação que estejam em relação direta com os produtos agrícolas, constantes do referido Anexo I, nos quais se incluem, no Capítulo 20, os preparados de produtos hortícolas, de frutas e de outras plantas ou partes de plantas.

Independentemente de os produtos resultantes da atividade da Requerente se tratarem ou não de produtos enumerados no Anexo I do TFUE, o RGIC é aplicável aos auxílios concedidos no setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas em todos os outros casos cuja exclusão não esteja prevista na alínea c) do n.º 3 do artigo 1.º do RGIC, o que significa que a atividade de transformação e comercialização de produtos agrícolas é abrangida pelo RGIC, desde que não estejam em causa auxílios fixados com base no preço ou na quantidade dos produto, ou subordinados à condição de serem repercutidos nos produtos primários. Conforme decorre do CFI, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de setembro, bem como do Decreto-Lei n.º 297/2015, de 21 de setembro, que regulamentou o RFAI, a aplicação deste benefício fiscal não está dependente da verificação das condições acima referidas, pelo que mais uma vez se conclui que a atividade desenvolvida pela Requerente não se encontra excluída do RGIC.

Em relação aos auxílios com finalidade regional que visam as atividades de transformação e comercialização de produtos agrícolas, o ponto 32 dos considerandos do RGIC reforça que os mesmos devem beneficiar da isenção por categoria e, como tal, os Estados-Membros estão isentos da obrigação de notificação prévia à Comissão. Mais, as OAR com finalidade regional preveem, expressamente, no ponto 10, o seguinte: “A Comissão aplicará estas orientações à transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas”. Logo, não há dúvidas de que, tanto o RGIC, como as OAR com finalidade regional, são aplicáveis à atividade de transformação de produtos agrícolas.

Já quanto aos auxílios estatais à produção primária e transformação de produtos agrícolas, que deem origem a produtos agrícolas enumerados no Anexo I do TFUE, bem como à respetiva comercialização desses produtos agrícolas, os mesmos estão sujeitos às regras estabelecidas nas orientações para os auxílios estatais nos setores agrícola e florestal. Tal resulta expressamente do Ponto 20 do âmbito de aplicação das referidas OAR: “As presentes orientações aplicam-se aos auxílios estatais à produção agrícola primária, à transformação dos produtos agrícolas que resultem num produto agrícola e à comercialização de produtos agrícolas”.

Direito nacional

De acordo com o disposto no artigo 22.º do CFI, que remete para os n.ºs 2 e 3 do artigo 2.º do mesmo diploma, os beneficiários do RFAI devem ser sujeitos passivos de IRC e ter o seu objeto compreendido em determinadas atividades económicas (incluindo a indústria transformadora), com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR com finalidade regional e do RGIC. Assim, sendo apenas excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC, as atividades constantes dos Pontos 9 a 11 das OAR e do considerando (10) e do artigo 13.º do RGIC, podemos concluir que a atividade industrial desenvolvida pela Requerente não se encontra excluída, estando aliás incluída na “indústria transformadora” referida no citado normativo do CFI e no conceito de transformação e comercialização de produtos agrícolas, constante do considerando 11 do RGIC.

A exclusão incluída pela Portaria n.º 282/2014 da atividade de “transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do TFUE” não decorre nem das OAR, nem do RGIC. O que resulta do Direito Europeu é diferente do que veio a ser plasmado nesta Portaria, que, ao não acolher corretamente o conceito de “transformação de produto agrícola” constante do Direito Europeu, violou o mesmo. De facto, tendo o legislador nacional, através do CFI, vinculado o Governo a regulamentar por portaria, de acordo com o RGIC e as OAR, não podia o Governo, sob pena de extravasar a competência legislativa que lhe foi atribuída, excluir mais atividades do que aquelas que estão excluídas do âmbito de aplicação das citadas OAR e do RGIC.

 

Posição da Requerida na Resposta

Preliminarmente cumpre-nos evidenciar que decisão do CAAD proferida no âmbito do processo nº 561/2022-T (exercícios de 2018 e 2019) assenta nos mesmos pressupostos e fundamentos da decisão do CAAD no processo nº 55/2021-T (período de 2017), a qual, por sua vez, assenta também nos mesmos pressupostos da decisão no processo nº 670/2020-T. Porém, a fundamentação subjacente aos atos tributários, promovida pela AT, não foi sempre a mesma. Num balanço global importa evidenciar que a decisão proferida no processo n.º 561/2022-T refere fundamentação que o RIT não invoca (exclusão no âmbito do RGIT) e, paralelamente, não diz nada sobre a demonstração feita pela IT (comprovada com documentos, não apenas invocada) de que os produtos vendidos estão no capítulo 20, previsto no Anexo I do TFUE.

A questão central que nos deverá ocupar é a de apurar se estamos ou não em presença de uma transformação de produtos agrícolas que resultam em produtos agrícolas. Para estes efeitos, um «produto agrícola» é um produto enumerado no anexo I do Tratado, do qual fazem parte os produtos do capítulo 20 da nomenclatura, classificação que a AT demonstrou claramente que é a dos produtos que a Requerente vende. Também no que se refere às decisões do CAAD nos processos n.º 670/2020-T e 655/2021-T, interposto pela Requerente e referentes às liquidações adicionais de IRC dos exercícios de 2016 e 2017, esta questão não foi, com o devido respeito, devidamente analisada. E assim é porque centrou a análise e decisão na diferenciação entre as várias fases do processo produtivo, o que nunca foi posto em causa pela AT, não cuidando de aferir da verdadeira natureza do(s) produto(s) final(ais) produzido(s) pela Requerente.

A "transformação e comercialização de produtos agrícolas” enumerados no anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) não é elegível para efeitos do RFAI (Portaria n.º 282/2014 de 30/12). Através da conjugação das alíneas 10) e 11) do artigo 2.º do RGIC, conclui-se que a transformação de produtos agrícolas é qualquer operação realizada sobre um produto agrícola de que resulte um produto que ainda contínua ser um produto agrícola. E o que é um produto agrícola? Um produto enumerado no anexo I do TFUE (cf. alínea 11) do artigo 2.º do RGIC).

E o que se retira da análise ao âmbito setorial de aplicação das OAR? A transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no Anexo I do Tratado estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola e não às OAR, conforme ficou evidenciado anteriormente. Na nota de rodapé (11) das OAR esclarece-se o seguinte: “Os auxílios estatais à produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado e à silvicultura estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola”. Relembrando o disposto no n.º 1 do artigo 22.º do CFI: “O RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos setores especificamente previstos no nº 2 do artigo 2º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no nº 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC.”

A Requerente centra a sua exposição na demonstração de que a sua atividade se situa na segunda ou terceira fase da transformação do produto agrícola. Contudo, o que importa não é conhecer e/ou discutir as várias fases de transformação que os produtos sofrem desde a sua aquisição até à obtenção do produto final; o que importa é saber se após a transformação do produto agrícola efetuada pela Requerente, no final, se obtém ou não um produto agrícola.

A este propósito, é de assinalar que as conservas de legumes estão enquadradas no capítulo 20 da Nomenclatura Combinada (Nomenclatura de Bruxelas), que integra, na totalidade, o Anexo I do TFUE. Daqui se retira que o resultado final é um “produto agrícola” conforme definição prevista no artigo 2.º alínea 11) do RGIC.

Conclui-se, assim, que a Requerente procede à transformação de produtos agrícolas que resultam em produtos agrícolas, enumerados no Anexo I do TFUE, encontrando-se excluída do âmbito do RFAI, por força do disposto no artigo 1.º da Portaria nº 282/2014, de 30 de dezembro, aplicável ao RFAI por remissão do n.º 1 do artigo 22.º do CFI, e do próprio n.º 1 do artigo 22.º deste diploma, que na sua parte final, exceciona do âmbito de aplicação do referido regime as atividades excluídas do âmbito setorial de aplicação das OAR.

Juros indemnizatórios

Não se verificando, nos presentes autos, erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, não deve ser reconhecido à Requerente qualquer direito a juros indemnizatórios.

 

III.  SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 5.º, todos do RJAT.

O PPA é tempestivo porquanto foi apresentado em 08.05.2023, ou seja, no prazo de 90 dias contados do termo do prazo para pagamento voluntário do imposto em apreço (08.02.2023), conforme resulta dos artigos 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e 102.º, n.º 1, alínea a), do CPPT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

No PPA, a Requerente invocou a exceção (perentória) de autoridade de caso julgado, por entender que a questão central nos presentes autos se encontra coberta pela autoridade do caso julgado formado nos processos n.ºs 670/2020-T, 655/2021-T e 561/2022-T. Entende a Requerente que “a força de caso julgado vincula o tribunal a aplicar a definição do direito já transitada em julgado relativamente a uma mesma questão que volte a suscitar-se numa outra ação, precisamente para acautelar a proibição de contradição, que é garantida através da autoridade do caso julgado”. Argumenta a Requerente que a liquidação que se impugna no caso sub judice assenta na mesma tese que levou a AT a efetuar as correções no procedimento inspetivo dos exercícios de 2016 e 2017 e que essa tese já foi considerada ilegal por enfermar de um vício de erro sobre os pressupostos de facto e de direito.

Temos que não assiste razão à Requerente quanto a esta questão.

Importa começar por distinguir a exceção (perentória) invocada pela Requerente (autoridade de caso julgado), cuja procedência implica a absolvição do pedido, nos termos do artigo 576.º, n.º 3, do CPC, da exceção (dilatória) de caso julgado a que alude o artigo 580.º do CPC, que supõe a “repetição de uma causa” e pressupõe uma tríplice identidade entre duas ações (uma coincidência de sujeitos, de pedido e de causa de pedir), cuja procedência implica a absolvição da instância (cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça proferidos nos processos n.ºs 1565/15.8T8VFR-A.P1.S1 em 05.12.2017, e 7473/21.6T8PRT.P1.S2 em 10.05.2023).

In casu, verifica-se uma coincidência de sujeitos relativamente aos processos n.ºs 670/2020-T, 655/2021-T e 561/2022-T, mas não se verifica uma coincidência do pedido, visto que (1) aquelas ações disseram respeito a liquidações de IRC de 2016, 2017 e 2018, enquanto que a presente ação diz respeito a uma liquidação de IRC de 2019, ou seja, a uma relação material distinta, e (2) o efeito útil daquelas ações (anulação das liquidações de 2016, 2017 e 2018) não se confunde com o efeito útil da presente ação (eventual anulação de liquidação de 2019). Assim, sendo certo que não se verifica a exceção (dilatória) de caso julgado, interessa averiguar se se verifica a exceção (perentória) de autoridade de caso julgado.

No Acórdão de 7473/21.6T8PRT.P1.S2, de 10.05.2023 o Supremo Tribunal de Justiça citou Rui Pinto na obra Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias:[1]

“O efeito positivo ou autoridade do caso lato sensu consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo judicata pro veritate habetur.

Enquanto o efeito negativo do caso julgado leva a que apenas uma decisão possa ser produzida sobre um mesmo objeto processual, mediante a exclusão de poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, o efeito positivo admite a produção de decisões de mérito sobre objetos processuais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão. […]

Explicado de outro modo, enquanto com o efeito negativo um ato processual decisório anterior obsta a um ato processual decisório posterior, com o efeito positivo um ato processual decisório anterior determina (ou pode determinar) o sentido de um ato processual decisório posterior.

O efeito negativo tem por destinatário os tribunais e apresenta natureza processual. Traduz-se na exceção dilatória de caso julgado.

O efeito positivo tem por destinatário as partes e os tribunais e apresenta diversa natureza, em razão do objeto da decisão. Assim, nas decisões que têm por objeto a relação processual o efeito positivo é estritamente processual; já nas decisões sobre o mérito da causa o efeito positivo é material – a sentença é título bastante de efeitos materiais. […]

A ocorrência da exceção de caso julgado supõe uma particular relação entre ações judiciais: uma relação de identidade entre os sujeitos e os objetos de duas causas. Em termos lógicos, pressupõe-se, então, a “repetição de uma causa”, conforme enuncia o artigo 580.º, n.º 1. […]

O efeito positivo externo consiste na vinculação de uma decisão posterior a uma decisão já transitada em razão de uma relação de prejudicialidade ou de concurso entre os respetivos objetos processuais, ou, em termos mais simples, em razão de objetos processuais conexos. […]

A possibilidade de um efeito positivo externo do caso julgado apresenta duas condições objetivas, negativa e positiva.

Assim, como condição objetiva negativa, a autoridade de caso julgado opera em simetria com a exceção de caso julgado: opera em qualquer configuração de uma causa que não seja a de identidade com causa anterior; ou seja, supõe uma não repetição de causas. Se houvesse uma repetição de causas, haveria, ipso facto, exceção de caso julgado. […]

[A] a condição objetiva positiva consiste na existência de uma relação entre os objetos processuais de dois processos de tal ordem que a desconsideração do teor da primeira decisão redundaria na prolação de efeitos que seriam lógica ou juridicamente incompatíveis com esse teor. […]

Deste modo, se o efeito negativo do caso julgado (exceção de caso julgado) leva à admissão de apenas uma decisão de mérito sobre um mesmo objeto processual, mediante a exclusão de poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, o efeito positivo (autoridade de caso julgado) admite a produção de decisões de mérito sobre objetos processuais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão.

Em termos de construção lógica da decisão, na autoridade de caso julgado a decisão anterior determina os fundamentos da segunda decisão; na exceção de caso julgado a decisão anterior obsta à segunda decisão. […]”.

O Douto Acórdão faz também referência a um artigo de José Lebre de Freitas, Um polvo chamado autoridade do caso julgado, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, Julho - Dez 2019, pp.691 – 722.[2]

In casu, a Requerida levanta uma questão que não foi apreciada nas decisões de processos n.ºs 670/2020-T, 655/2021-T e 561/2022-T, designadamente a de saber se a classificação dos produtos comercializados pela Requerente nas guias de exportação (no Capítulo 20 da Nomenclatura) suporta a conclusão de que os produtos produzidos pela Requerente se encontram enumerados no Anexo I do TFEU, constituindo, por esse motivo, produtos agrícolas excluídos do RFAI. Resta, pois, extrair a conclusão de que as decisões proferidas nos referidos processos não relevam, em termos de autoridade de caso julgado, para efeitos da apreciação do mérito da presente causa. Pelo exposto, julga-se improcedente a exceção invocada pela Requerente.

O processo não enferma de nulidades.

 

IV.  QuestÕES decidendas

As partes contendem sobre se a atividade da Requerente é elegível para efeitos do benefício fiscal RFAI, mais especificamente se (a) a atividade da Requerente se traduz na transformação de produtos agrícolas de que resulta um produto agrícola, encontrando-se excluída do âmbito do RFAI (como defende a Requerida), ou (b) a atividade da Requerente se traduz na transformação de produtos agrícolas de que resulta um produto que já não de pode qualificar como um produto agrícola, constituindo uma atividade elegível para efeitos do RFAI (como defende a Requerente). Em comum, as partes aceitam que a resposta a esta questão depende do conceito de “produtos agrícola” constante do RGIC e do Direito da União Europeia relevante.

 

V.  MATÉRIA DE FACTO

§1. Factos provados

Para a análise da questão submetida à apreciação do Tribunal Arbitral, cumpre enunciar, de seguida, a matéria de facto relevante, baseada na prova documental constante dos autos e na prova testemunhal produzida na reunião do artigo 18.º do RJAT realizada em 06.12.2023:

  1. A Requerente é uma sociedade por quotas não classificada como micro, pequena ou média empresa para efeitos da Recomendação n.º 2003 da Comissão Europeia, de 6 de maio de 2003 (cf. alegado nos artigos 10.º e 11.º do PPA e não contestado pela Requerida - facto não controvertido).
  2. A Requerente transforma na sua fábrica, comercializa a cadeias de distribuição, retalhistas e hipermercados nacionais, e exporta para o estrangeiro conservas de legumes (tais como feijão branco, feijão manteiga, feijão encarnado e grão-de-bico), polpa de tomate e molhos apertizados, utilizando para efeitos de exportação o código de mercadorias constante do capítulo 20 da Nomenclatura Combinada das mercadorias da União Europeia (Nomenclatura de Bruxelas) (cf. referido por B..., Inspetor Tributário, e pela Testemunha C, na reunião realizada em 06-12-2023, e cf. alegado no artigo 78.º do PPA - facto não controvertido).
  3. Relativamente à conservas de legumes, a atividade da Requerente consiste na transformação leguminosas secas em produtos cozidos, prontos a consumir, com capacidade de preservação por um período alargado de tempo, incluindo: (1) aquisição de leguminosas secas a empresas “preparadoras” que procederam à primeira transformação das mesmas (secagem, limpeza, calibragem e seleção) com vista à remoção de corpos estranhos, “produto não conforme”, e bagos escuros (seleção por cor), de acordo com as especificações da Requerente, (2) uma segunda transformação das leguminosas secas em conservas de legumes (hidratação em água; cozedura / escaldão seguida de arrefecimento; inspeção eletrónica para remoção de grãos não característicos; esterilização a uma temperatura de 120.º graus já dentro do recipiente, que consubstancia um segundo processo de cozimento), e (3) rotulagem e embalamento automáticos em frascos e latas de diversos volumes (cf. Testemunhas A, B e D, e Documentos 7, 8, 9 e 10 junto ao PPA).
  4. Relativamente à polpa de tomate e molhos apertizados, a atividade da Requerente consiste na transformação de concentrado de tomate em polpa de tomate e molhos apertizados, incluindo: (1) aquisição de concentrado de tomate a empresas “preparadoras” que procederam à primeira transformação do mesmo de acordo com as especificações da Requerente, (2) processamento do concentrado de tomate, adicionando água ao preparado e, por vezes, ervas aromáticas ou outros temperos, e pasteurização já em garrafas de vidro ou lata, e (3) rotulagem e embalamento automáticos em frascos e latas de diversos volumes (cf. Testemunha A, B e D, e Documentos 8 e 9 junto ao PPA).
  5. Em 21.04.2015, umas das diretoras da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal informou a Requerente de que o seu Código de Atividade Económica (CAE) “10613”, correspondente à “transformação de cereais e leguminosas", é teoricamente enquadrável no CFI, conforme a Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, que define os códigos de atividade económica relativos aos setores de atividade elegíveis para efeitos de concessão de benefícios fiscais (cf. Documento 3 junto ao PPA - facto não controvertido).
  6. Em 2016, o CAE principal inicial da Requerente (“10613”) foi alterado para “10395”, correspondente a “preparação e conservação de frutos e produtos hortícolas por outros processos”, descrita como compreendendo “a preparação de polpas e concentrados de tomate, massas de pimento e de outros produtos hortícolas e o fabrico de azeitona de mesa, assim como a preparação de produtos conservados transitoriamente em sal, salmoura, gás sulfuroso, vinagre e outros conservantes. Inclui preparações e o acondicionamento de frutos e de produtos hortícolas em recipientes hermeticamente fechados, nos quais se incluem os produtos em natureza (saladas, frutos e produtos hortícolas, cortados e/ou descascados), refrigerados e acondicionados em atmosfera inerte” (cf. Documentos 2 e 8 junto ao PPA e CAE-Rev.3 - facto não controvertido).
  7. No decorrer do ano de 2019, a Requerente efetuou vários investimentos que deram continuidade a um projeto de investimento inicial relacionado com o aumento da capacidade de um estabelecimento já existente, com o valor global de € 1.029.733,95, designadamente: a construção de um novo armazém, desenvolvimento de uma unidade de produção fotovoltaica, aquisição de semi-reboques, e implementação de um novo sistema de tratamento de efluentes (cf. informação contida no processo administrativo, fls. 6-7).
  8. A Requerente procedeu à entrega da Declaração Modelo 22, referente ao exercício de 2019, em que considerou o benefício fiscal RFAI, como dedução à coleta do IRC, com os seguintes valores:

 

(cf. alegado no artigo 16 do PPA e não contestado pela Requerida).

  1. No âmbito do processo arbitral n.º 655/2021-T, relativo ao IRC do período de 2017, foram repostos os valores do benefício fiscal do RFAI desse período, tendo transitado o valor de € 131.190,77 para o período de 2019 (cf. alegado nos artigos 20.º e 21.º do PPA).
  2. A Requerente foi alvo da ação inspetiva (interna) credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI2022..., respeitante ao exercício de 2019, com início em 27.04.2022, que teve como objetivo o controlo dos benefícios fiscais declarados nesse exercício, tendo sido notificada do Projeto de Relatório de Inspeção e exercido o direito de audição (cf. informação contida no processo administrativo, fls. 2, 276 e ss. e 301 e ss. - facto não controvertido).
  3. Desta ação inspetiva resultou uma correção em sede de IRC respeitante ao exercício de 2019, no montante de € 257.433,49, resultante da desconsideração do benefício fiscal RFAI transitado do exercício de 2018, e uma correção ao campo 355 da Modelo 22, para o seguinte montante:

 

(cf. Relatório de Inspeção Tributária a fls. 451 e ss. do processo administrativo).

  • No Relatório de Inspeção Tributária, pode ler-se que as referidas correções resultam da conclusão de que a atividade da Requerente não se enquadra no âmbito do RFAI:

 

(...)

 

(...)

 

 

 

 

 

 

 

(cf. Relatório de Inspeção Tributária a fls. 451 e ss. do processo administrativo).

  1. Na sequência do procedimento inspetivo foi emitido o ato de liquidação de IRC n.º 2022 ..., relativo ao período de tributação de 2019, o respetivo ato de liquidação de juros compensatórios, bem como a demonstração de acerto de contas, que apurou um montante de imposto a pagar de € 273.279,86 (cf. Documento 1 junto ao PPA - facto não controvertido).
  2. A Requerente procedeu ao pagamento de imposto e juros compensatórios, respeitante ao exercício de 2019, no montante total de € 273.279,86 (cf. Documento 1 junto ao PPA - facto não controvertido).
  3. Nos processos n.ºs 670/2020-T, relativo ao IRC de 2016, 655/2021-T, relativo ao IRC de 2017, e 561/2022-T, relativo ao IRC de 2018, a Requerente discutiu a legalidade dos atos liquidação emitidos pela AT, na sequência das correções efetuadas ao RFAI, tendo os respetivos Tribunais Arbitrais concluído que a atividade desenvolvida pela Requerente é elegível para efeitos da aplicação daquele benefício fiscal (cf. Documentos 4, 5 e 6 juntos ao PPA).
  4. A Requerente interpôs o pedido de pronúncia arbitral que deu origem aos presentes autos em 08.05.2023.

 

§2. Factos não provados

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

 

 

§3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção, formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cf. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 4, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cf. artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cf. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados como factos provados, tendo por base a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, que não foram impugnados, da prova testemunhal produzida, e dos factos alegados pelas partes que não foram impugnados, e a adequada ponderação dos mesmos à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum, e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.

Relativamente à prova testemunhal produzida na reunião do artigo 18.º realizada no dia 06.12.2023, importa sublinhar que B..., Inspetor Tributário, admitiu que (1) após a visita às instalações da Requerente, não foi feito qualquer análise relativamente ao primeiro estadio de transformação dos productos em causa, e que (2) não existe outro código que a empresa possa utilizar nos seus documentos de exportação que não o código de mercadorias constante do Capítulo 20 da Nomenclatura Combinada das mercadorias da União Europeia (Nomenclatura de Bruxelas).

Na mesma reunião, as Testemunhas A, B e D descreveram detalhadamente o processo de transformação que ocorre nas instalações da Requerente, nos termos referidos nos pontos c. e d. da matéria de facto. Relativamente às conservas de legumes, a Testemunha B, Professora Universitária do Instituto de Agronomia, explicitou, designadamente, que o feijão que sai do produtor é um ser vivo que pode ser reproduzido (um produto agrícola), e que, após a cozedura realizada nas instalações da Requerente, o feijão já não é um ser vivo, podendo ser ingerido como alimento (um produto não agrícola). Relativamente aos molhos de tomate, a mesma testemunha explicitou que a concentração de tomate adquirida pela Requerente não pode ser ingerida, ao contrário do que sucede com os molhos condimentados que resultam da transformação operada nas instalações da Requerente (um produto não agrícola). Concluiu a Testemunha B que os produtos comercializados pela Requerente são considerados como alimentos e não produtos agrícolas.

Assinale-se que as testemunhas revelaram conhecimento dos factos, designadamente da atividade da Requerente e dos produtos por ela produzidos e comercializados. Com especial relevância, o Tribunal deu como provado que a atividade da Requerente consiste na transformação de leguminosas (produtos agrícolas) em conservas de legumes (alimentos), e de concentrado de tomate (não consumível) em polpa de tomate e molhos apertizados (prontos a consumir), sendo o resultado da referida transformação produtos compostos, enlatados, prontos a consumir.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

VI. MATÉRIA DE DIREITO

§1. Legislação aplicável

Em 2019, no plano europeu, aplicavam-se o Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, que declara certas categorias de auxílio compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.º e 108.º do TFEU, publicado no Jornal Oficial da União Europeia, n.º L 187, de 26 de junho de 2014 (RGIC), bem como as “Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020”, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209, de 23 de julho de 2013 (“OAR”). No plano nacional, aplicavam-se o Código Fiscal do Investimento (“CFI”) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 31 de outubro, a Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, que define os CAE correspondentes a várias atividades (“Portaria CAE”), e a Portaria n.º 297/2015, de 21 de setembro, que regulamenta o RFAI e o regime da dedução por lucros retidos e reinvestidos (“Portaria RFAI”).

O RFAI foi criado em 2009 através da Lei n.º 10/2009, de 10 de março, com o intuito de abarcar um conjunto de medidas de incentivos fiscais que visavam promover o investimento produtivo, o crescimento económico e o emprego, contribuindo para o reforço da modernização e da competitividade do nosso país e para o desenvolvimento das regiões mais desfavorecidas. Mais tarde, o RFAI foi reformulado em 2014, com a entrada em vigor do CFI aprovado pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 31 de outubro, mas manteve o mesmo propósito: aumentar o apoio ao investimento num contexto fiscal mais favorável, criar emprego e reforçar os capitais próprios das empresas que acedem a esses auxílios.

Em 2019 (período relevante in casu), o benefício fiscal RFAI consubstanciava-se numa dedução à coleta de IRC, e até à concorrência de 50% da mesma, das seguintes importâncias (i) 25% do investimento relevante, até ao montante € 15.000.000,00; e (ii) 10% do investimento relevante, relativamente ao investimento de valor superior a € 15.000.000,00.

Estabelece o n.º 1 do artigo 22.º do CFI:

“O RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos setores especificamente previstos no n.º 2 do art.º 2.º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC.”

O artigo 2.º do CFI elenca as atividades que podem usufruir de benefícios fiscais, entre as quais se inclui a “indústria transformadora” (alínea a) do n.º 2), mas reafirmando o respeito do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC.

Para efeitos do Direito da União Europeia, o RFAI constitui um regime de auxílio com finalidade regional aprovado nos termos do RGIC. Sendo que, para além do RGIC, devem também ser observadas as OAR, uma vez que podem trazer restrições a estes auxílios. Estes instrumentos disciplinam a concessão dos auxílios, impondo limitações aos Estados-Membros.

Os pontos 10) e 11) do artigo 2.º (definições) do RGIC definem “transformação de produtos agrícolas” e “produto agrícola” respetivamente:

“10) «Transformação de produtos agrícolas», qualquer operação realizada sobre um produto agrícola de que resulte um produto que continua a ser um produto agrícola, com exceção das atividades realizadas em explorações agrícolas necessárias à preparação de um produto animal ou vegetal para a primeira venda;

11) «Produto agrícola», um produto enumerado no anexo I do Tratado, exceto os produtos da pesca e da aquicultura constantes do anexo I do Regulamento (UE) n.o 1379/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013.”

O artigo 1.º, n.º 3, alínea c), do RGIC consigna o seguinte:

“O presente regulamento não é aplicável aos seguintes auxílios: (...)

 c) Auxílios concedidos no sector da transformação e comercialização de produtos agrícolas nos seguintes casos:

(i) sempre que o montante dos auxílios for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados em empresas no mercado pelas empresas em causa;

(ii) sempre que o auxílio for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários.”

Relativamente às OAR, assume particular relevância para o caso concreto o ponto 10:

“10. A Comissão aplicará os princípios estabelecidos nas presentes orientações aos auxílios com finalidade regional em todos os setores de atividade económica, com exceção da pesca e da aquicultura, da agricultura e dos transportes, que estão sujeitos a regras especiais previstas em instrumentos jurídicos específicos, suscetíveis de derrogar total ou parcialmente as presentes orientações”.

Pode ler-se ainda na nota de rodapé 11 respeitante ao acima mencionado ponto 10 das OAR, que:

“(11) Os auxílios estatais à produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado e à silvicultura estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola”.

No ponto (33) das OAR do setor agrícola, pode ler-se:

“Em virtude das especificidades do sector, não se aplicam aos auxílios à produção de produtos primários as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020(27). Aplicam-se, no entanto, à transformação de produtos agrícolas e à comercialização de produtos agrícolas, dentro dos limites fixados nas presentes orientações”.

Na secção 1.1.1.4., ponto (168), das OAR do setor agrícola estabelece-se que:

“Os Estados-Membros podem conceder auxílios a investimentos relacionados com a transformação de produtos agrícolas e a comercialização de produtos agrícolas, desde que satisfaçam as condições de um dos seguintes instrumentos de auxílio:

(a)  Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 17 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílios compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.o e 108.o do Tratado;

(b)  Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020;

(c)  As condições estabelecidas na presente secção.”

O n.º 1 do artigo 22.º do CFI remete para a Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, a qual definiu os códigos CAE respeitantes aos setores de atividade elegíveis para efeitos de concessão do benefício fiscal RFAI. O artigo 1.º da Portaria nº 282/2014, de 30 de dezembro, determina que:

“Em conformidade com as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209, de 27 de julho de 2013 e com o Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014, publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 187, de 26 de junho de 2014 (Regulamento Geral de Isenção por Categoria), não são elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas dos setores siderúrgico, do carvão, da pesca e da aquicultura, da produção agrícola primária, da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), da silvicultura, da construção naval, das fibras sintéticas, dos transportes e das infraestruturas conexas e da produção, distribuição e infraestruturas energéticas.”

O artigo 2.º, n.º 1, da Portaria nº 297/2015, de 21 de setembro estabelece que:

“Para efeitos da determinação do âmbito setorial estabelecido na Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, aplicável ao RFAI por remissão do n.º 1 do artigo 22.º do Código Fiscal do Investimento, aplicam-se as definições relativas a atividades económicas estabelecidas no artigo 2.º do RGIC”.

 

§2. Da ilegibilidade da atividade da Requerente para efeitos do RFAI

A AT considerou não elegível, para efeitos do RFAI, o investimento realizado pela Requerente no período de tributação de 2019 por considerar que a Requerente prossegue atividades de transformação de produtos agrícolas enumerados no Anexo I do TFUE.

Das disposições supra referidas, é de concluir, portanto, que as atividades transformadoras de produtos agrícolas prosseguidas pela Requerente são diretamente reguladas pelas OAR. Também resulta claro que o RFAI não preenche nenhuma das condições referidas na alínea c) do n.º 3 do artigo 1.º do RGIC. Depreende-se desta limitação que o RGIC é aplicável aos auxílios concedidos no setor de transformação e comercialização de produtos agrícolas em todos os outros casos cuja exclusão não esteja prevista. Na verdade, o RGIC não exclui as atividades de agricultura nem de transformação e comercialização de produtos agrícolas na aplicação de auxílios com finalidade regional, pelo que não poderá este instrumento ser mobilizado para legitimar – indevidamente – a exclusão da atividade económica prosseguida pela Requerente do âmbito de aplicação do RFAI.

A questão relativa à classificação dos produtos produzidos pela Requerente para efeitos do Anexo I do TFUE tem sido alvo de amplo debate na jurisprudência (veja-se a título de exemplo, processo n.º 642/2022-T, de 26.03.2022, e processo n.º 142/2021-T, de 03.02.2022), tendo a questão sido, inclusivamente, já analisada especificamente a propósito de outros investimentos efetuados pela Requerente, em períodos de tributação anteriores. No processo n.º 655/2021-T, pode ler-se:

«O âmbito de aplicação do RFAI terá de ser assim, em primeiro lugar, analisado à luz dos Regulamentos da União Europeia (anterior CE) em vigor à data dos factos que, por força do primado do direito europeu prevalecem sobre o direito interno português, em concreto no que respeita às atividades de natureza agrícola que podem suscitar mais dúvidas no contexto da presente análise.

Neste ponto, teremos que atender aos Regulamentos da Comissão e orientações relativas aos auxílios estatais, cujo âmbito de aplicação daqueles Regulamentos relativamente às referidas atividades de natureza agrícola, transcrevemos, convocando em particular o Regulamento Geral de Isenção por Categoria que declara as categorias de auxílio compatíveis com o mercado interno, pela relação direta com o caso em análise:

• (n.º 3, do artigo 1.º do Regulamento (CE) n.º 800/2008) “O presente regulamento é aplicável (sublinhado nosso) aos auxílios concedidos em todos os sectores da economia, com exceção dos seguintes: (…)

c) Auxílios a favor de atividades de transformação e comercialização de produtos agrícolas, nos seguintes casos:

i) Sempre que o montante do auxílio for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados no mercado pelas empresas em causa; ou ii) Sempre que o auxílio estiver subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido para os produtores primários.”

(n.º 3, do artigo 1.º do Regulamento (UE) n.º 651/2014) “O presente regulamento não é aplicável aos seguintes auxílios (sublinhado nosso): (…)

c) Auxílios concedidos no setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas, nos seguintes casos:

i) Sempre que o montante do auxílio for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados no mercado pelas empresas em causa; ou

ii) Sempre que o auxílio estiver subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido para os produtores primários”.

Pese embora algumas atividades de transformação e comercialização de produtos agrícolas se possam encontrar excluídas do âmbito de aplicação dos referidos Regulamentos, tal apenas ocorre quando estejam em causa auxílios cujo montante seja fixado com base no preço ou quantidade dos produtos adquiridos ou colocados no mercado ou auxílios subordinados à condição de serem repercutidos nos produtores. O que inequivocamente não ocorre com o benefício do RFAI, na medida em que este assenta em projetos de investimento realizados. 

Por fim, e no que se refere às orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da UE, de 23 de julho de 2013 (OAR) estas determinam que “a Comissão aplicará os princípios estabelecidos nas presentes orientações aos auxílios com finalidade regional em todos os setores de atividade económica (9), com exceção da pesca e da aquicultura (10), da agricultura (11) e dos transportes (12), que estão sujeitos a regras especiais previstas em instrumentos jurídicos específicos, suscetíveis de derrogar total ou parcialmente as presentes orientações.

A Comissão aplicará estas orientações à transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas.”

Chegados aqui, podemos ainda socorrer-nos da nota de rodapé (11) onde se clarifica que se encontram excluídos do setor de atividade agrícola (apenas) “Os auxílios estatais à produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado e à silvicultura [os quais] estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola”.

Explica ainda o ponto (11) do preâmbulo do Regulamento (UE) n.º 651/2014 que “Nem as atividades de preparação dos produtos para a primeira venda efetuadas nas explorações agrícolas, nem a primeira venda por um produtor primário a revendedores ou a transformadores, nem qualquer atividade que prepare um produto para uma primeira venda, devem ser consideradas atividades de transformação ou de comercialização” para efeitos dos Regulamentos mencionados.

Para melhor compreensão sobre o que se entende por “transformação e comercialização de produtos agrícolas”, é possível por fim recorrer às definições que constam do artigo 2.º do RGIC, em particular das suas alíneas 9), 10) e 11), onde se pode ler: 9) «Produção agrícola primária», a produção de produtos da terra e da criação animal, enumerados no anexo I do Tratado, sem qualquer outra operação que altere a natureza de tais produtos; 10) «Transformação de produtos agrícolas», qualquer operação realizada sobre um produto agrícola de que resulte um produto que continua a ser um produto agrícola, com exceção das atividades realizadas em explorações agrícolas necessárias à preparação de um produto animal ou vegetal para a primeira venda; 11) «Produto agrícola», um produto enumerado no anexo I do Tratado, exceto os produtos da pesca e da aquicultura constantes do anexo I do Regulamento (UE) n.º 1379/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013.

Em suma, e tal como resulta da factualidade enunciada a respeito da atividade desenvolvida pela Requerente, em resultado do segundo e/ou terceiro estágio de transformação das leguminosas secas e dos preparados de tomate – produtos rececionados nas suas instalações para transformação e comercialização – podemos acompanhar com segurança o entendimento de que os produtos que saem das instalações da fábrica não são produtos agrícolas, quer tendo em consideração o conceito de produto agrícola constante do Regime Geral de Isenção por Categoria (RGIC), quer do próprio conceito de transformação previsto no direito europeu.

Ora, conforme decorre do Código Fiscal do Investimento (CFI), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de setembro, bem como do Decreto-Lei n.º 297/2015, de 21 de setembro, que regulamentou o RFAI, a aplicação deste benefício fiscal não está dependente da verificação das condições acima elencadas, pelo que mais uma vez se observa que a atividade desenvolvida pela Requerente não se encontra excluída do RGIC.

Estamos por este modo a concluir que, a Requerente se enquadra no âmbito da atividade de transformação de produtos agrícolas – tal como a mesma se encontra definida no RGIC – cumprindo com as condições previstas no RGIC.»

Na mesma linha, a Decisão Arbitral proferida no processo n.º 670/2020-T, em 16.09.2021:

“Ora, resulta, com evidência, de todos os elementos dos autos que a atividade da Requerente não se traduz na transformação de produtos agrícolas de que resulte um produto agrícola. A Requerente procede ao processamento industrial de leguminosas secas e concentrado de tomate que adquire a terceiras empresas, sendo estas que preparam os produtos diretamente provenientes dos produtores agrícolas mediante uma primeira transformação de limpeza, escolha, calibragem, secagem e embalagem e que, no caso do concentrado de tomate, consiste já numa matéria-prima secundária na medida em que é objeto de uma transformação primária através de operações de concentração.

O processo de transformação realizado nas instalações da Requerente, que se encontra descrito nas alíneas D) e E) da matéria de facto, visa a produção de alimentos apertizados, entendendo-se como tal o alimento pronto a consumir, submetido a processo térmico após embalagem em recipiente hermético (lata, vidro, plástico ou outros materiais com resistência térmica), e que deve garantir uma esterilização comercial, ou seja, que o alimento deva ficar estável à temperatura ambiente durante cerca de um ano.

A transformação de leguminosas secas origina produtos cozidos, prontos a consumir e com elevado poder de conservação, e, do mesmo modo, a partir do concentrado de tomate adquirido às empresas preparadoras a Requerente processa dois tipos de produtos (polpa de tomate e molhos) que são embalados em lata ou frasco e submetidos a tratamento térmico por forma a garantir a sua estabilidade à temperatura ambiente.

A este propósito, importa ter presente o que refere o considerando (11) do RGIC. O presente regulamento deve aplicar-se à transformação e comercialização de produtos agrícolas, desde que se encontrem reunidas determinadas condições. Para efeitos do presente regulamento, nem as atividades de preparação dos produtos para a primeira venda efetuadas nas explorações agrícolas, nem a primeira venda por um produtor primário a revendedores ou transformadores, nem qualquer atividade que prepare um produto para a primeira venda, devem ser consideradas atividades de transformação ou de comercialização.

Como daqui se depreende, não podem ser tidas como atividades de transformação e comercialização de produtos agrícolas as atividades de preparação de produtos para uma primeira venda ou para uma primeira venda por um produtor primário a revendedores ou transformadores agrícolas. E é a esse tipo de preparados a que se refere o Capítulo 20 do Anexo I do TFUE. Mas não é nesse o caso quando um empresário adquire produtos preparados, na aceção do Capítulo 20 do Anexo I do TFUE, e os transforma através de um processo industrial em produtos apertizados, embalados hermeticamente e destinados a serem conservados e comercializados por um longo período de tempo.”

No processo sub judice, a AT alega que os documentos de exportação preenchidos pela Requerente indicam que os produtos comercializados pela mesma de enquadram no Anexo I do TFEU. Todavia, tal como reconhecido pelo Inspetor Tributário que testemunhou no presente processo, não existe outro código que a Requerente possa utilizar nos seus documentos de exportação que não o código de mercadorias constante do Capítulo 20 da Nomenclatura Combinada das mercadorias da União Europeia (Nomenclatura de Bruxelas). Por este motivo, temos não ser relevante, para efeitos do RFAI, a informação contida nas guias de exportação.

Assim, não se vislumbra o Tribunal Arbitral razão fundada para afastar a jurisprudência acima referida. Até porque, conforme comanda o n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil, “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”.

Por último, cumpre referir que a interpretação de “produtos agrícolas” subscrita pelo Tribunal Arbitral é conforme ao disposto no artigo 2.º do Regulamento (CE) n.º 852/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativo à higiene dos géneros alimentícios, inclui as seguintes definições:

"Produtos primários": produtos da produção primária, incluindo os produtos da agricultura, da pecuária, da caça e da pesca;

"Transformação", acção que assegura uma modificação substancial do produto inicial por aquecimento, fumagem, cura, maturação, secagem, marinagem, extracção, extrusão ou uma combinação destes processos;

"Produtos não transformados", géneros alimentícios que não tenham sofrido transformação, incluindo produtos que tenham sido divididos, separados, seccionados, desossados, picados, esfolados, moídos, cortados, limpos, aparados, descascados, triturados, refrigerados, congelados ou ultracongelados;

"Produtos transformados", géneros alimentícios resultantes da transformação de produtos não transformados. Estes produtos podem conter ingredientes que sejam necessários ao seu fabrico, por forma a dar-lhes características específicas.

Não restam dúvidas que estamos perante produtos transformados, e não produtos agrícolas, para efeitos do Direito Europeu.

Pelo exposto, julga-se que a liquidação impugnada enferma de vícios de erro sobre os pressupostos de facto e de direito que justificam a sua anulação, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

§3. Pedido de reembolso das quantias pagas e juros indemnizatórios

A Requerente pede reembolso do imposto pago indevidamente, acrescido de juros indemnizatórios.

A procedência do pedido de anulação da liquidação adicional objeto do pedido de pronúncia arbitral tem por consequência vincular a AT nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º, do RJAT, e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, a “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que inclui, para além da restituição do indevido, “o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

Igual consequência decorre do disposto no n.º 1 do artigo 100.º, da LGT, aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, que estabelece: “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”.

No que concerne ao direito a juros indemnizatórios, é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:

Artigo 43.º

 Pagamento indevido da prestação tributária

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

No caso em apreço, conclui-se que há erro na liquidação imputável aos serviços da AT, pois foi esta que a elaborou por sua iniciativa. Os juros indemnizatórios devem ser contados desde a data em que a Requerente efetuou o pagamento da liquidação, até ao integral reembolso do montante pago em excesso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil, e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

VII. DECISÃO

Face a todo o exposto, o presente Tribunal Arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência:

  1. Anular o ato de liquidação de IRC n.º 2022 ..., relativo ao período de tributação de 2019, o respetivo ato de liquidação de juros compensatórios n.º 2022..., bem como a demonstração de acerto de contas n.º 2022..., que apurou um montante de imposto a pagar de € 273.279,86 (duzentos e setenta e três mil, duzentos e setenta e nove euros e oitenta e seis cêntimos),  
  2. Condenar a Requerida a pagar o valor de € 273.279,86 (duzentos e setenta e três mil, duzentos e setenta e nove euros e oitenta e seis cêntimos) à Requerente;
  3. Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios sobre o montante do imposto indevidamente pago, nos termos do artigo 43.º da LGT.

 

VIII. VALOR DO PROCESSO

Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em € 273.279,86 (duzentos e setenta e três mil, duzentos e setenta e nove euros e oitenta e seis cêntimos).

 

IX. CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 4.896,00 (quatro mil oitocentos e noventa e seis euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida, por ter sido total o seu decaimento.

***

Notifiquem-se as Partes, bem como Digno Representante do Ministério Público, nos termos e para os efeitos dos artigos 280.º, n.º 3, da Constituição e 72.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, do 185.º-A, n.º 2, do CPTA subsidiariamente aplicável, e do artigo 17.º, n.º 3, do RJAT.

CAAD, 16 de maio de 2024

A Árbitra Presidente,

 

 

Rita Correia da Cunha

 

A Árbitra Adjunta,

 

 

 

Cristina Maria da Costa Pinto

 

 

 

A Árbitra Adjunta,

 

Catarina Gonçalves