Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 661/2023-T
Data da decisão: 2024-05-18  IRS  
Valor do pedido: € 28.659,46
Tema: IRS de 2019 – Mais valias imobiliárias – Valor recebido com a venda de imóvel – Artigo 73.º da LGT.
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SUMÁRIO:

 

Considera este Tribunal Arbitral a admissibilidade da Requerente vir, ao abrigo do artigo 73.º da LGT, ilidir a presunção estabelecida no artigo 10.º, n.º 3 do CIRS de forma a assegurar que a tributação não incida sobre rendimentos que efetivamente não auferiu, como de resto logrou provar.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

I. RELATÓRIO

 

A... (doravante Requerente), com morada na Rua ..., n.º ..., ...-... Braga,  sujeito passivo com número de identificação fiscal  ..., vem requerer pedido de pronúncia arbitral (doravante PPA), nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 10.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que regula o Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (doravante RJAT), submetendo à apreciação do Tribunal Arbitral a legalidade da liquidação adicional de IRS do ano de 2019 (Liquidação n.º 2023 –...), com data limite de pagamento em 21 de Junho de 2023, no montante de € 28.659,46 (vinte e oito mil seiscentos e cinquenta e nove euros e quarenta e seis cêntimos).

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente enviado email à Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT), a informar da entrada de um pedido de constituição de Tribunal Arbitral e do n.º do processo atribuído, em 20-09-2023, tendo por sua vez a AT sido notificada, em 26-09-2023.

Nos termos do disposto na alínea a), do n.º 2, do artigo 6.º e da alínea b), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, a signatária foi designada pelo Ex.mo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral singular, tendo aceitado nos termos legalmente previstos. 

Em 10-11-2023, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico.

Síntese da posição das Partes:          

  1.  Requerente

Entende a Requerente sublinhar os seguintes pontos de análise:

Conforme se verifica da citada escritura, os vendedores foram as três famílias descendentes do B...: 

a) C..., viúva e única herdeira de D...; 

b) – Requerente e sua irmã E... como descendentes e herdeiras de F... e G... e,

c) –A... e os primos D... e H..., herdeiros de seu tio B... .

De acordo com a Requerente, se quanto aos dois primos atrás indicados ainda perduravam as relações familiares o certo é que quanto à interessada C..., viúva do tio da Requerente D..., estas não existiam. 

Tendo sido a Requerente e a sua irmã as impulsionadoras da venda do prédio misto que vimos analisando.

De acordo com a Requerente, antes da venda estas terão recebido os prédios urbanos de que hoje são proprietárias e, na partilha adicional, as parcelas de terreno destinadas a aumento do logradouro dos prédios urbanos de que são proprietárias, bens esses que foram tidos na distribuição do valor da venda à empresa de ..., pelo valor de € 850.000,00.

De tal forma que, a título de sinal, conforme refere verificar-se na própria escritura de compra e venda, foram entregues quatro cheques em 2 de Abril de 2018, no valor global de € 74.994,02: os cheques com os números..., ..., ... e ...; e quatro cheques com os números ..., ..., ... e ..., no valor global de € 222.750,00, entregues em 16 de Outubro de 2018, para reforço do sinal, e ainda quatro cheques com os números ..., ..., ... e  ...4, no valor global de € 552.255,98 pagos na data da celebração da escritura de compra e venda.

«Contrariamente ao que é usual numa escritura de compra e venda em que é entregue o valor da venda a um dos interessados, que posteriormente faz a distribuição pelos restantes herdeiros.» E entregues quatro cheques em cada uma das ocasiões uma vez que um era para a impugnante, outro para a sua irmã E..., outro para a sua tia C... e um outro para a tia I..., viúva do tio B... .   

Alega a Requerente «(...) que equivale a dizer que os restantes herdeiros, que sucederam aos tios D... e B..., receberam o remanescente no valor de € 633.348,30, ou seja 74,51% do valor da venda. Conforme se pode verificar das cópias dos cheques entregues para pagamento do sinal, em que, do valor global de € 222 750,00, a Requerente e a sua irmã receberam, cada uma delas, o valor de € 28.383,08, enquanto à tia C... e à tia I... foram entregues cheques de € 82.991,92 a cada, o que representa 12,74 % para cada uma das irmãs e 37,25% para cada uma das tias. Percentagem que também se verificou no pagamento de reforço do sinal no montante de € 75.054,02, conforme notas de débito dos cheques à empresa vendedora. E no pagamento da parte restante do preço no valor de € 552.358,20, conforme se pode verificar das notas de débito dos cheques entregues pela compradora.

Pois para conseguirem proceder à alienação, conjuntamente com os restantes herdeiros, dos dois prédios que faziam parte da herança dos avós, a Requerente e a sua irmã tiveram de negociar e aceitar condições impostas pelos mesmos. Nomeadamente aceitar que os prédios urbanos que tinham recebido representavam a quota disponível que tinham recebido em testamento e que, da parte restante do valor da venda, tinham de abater o valor dos terrenos que receberam para ampliação do logradouro de tais prédios.   

De tal forma que, nas importâncias entregues para reforço do sinal, foram entregues os seguintes cheques:  

  a) Cheque n.º ... no montante de € 82.991,92 à tia C..., que representa 37,25% de tal reforço de sinal; 

b) Cheque n.º ... no montante de € 82.991,92 à tia I... que representa 37,25% de tal reforço de sinal; 

c) Cheque n.º ... no montante de € 28.383,08 à sua irmã E... que representa € 12,74% do reforço do sinal, e 

d) Cheque n.º ... no montante de € 28.383,08 para a Requerente que representa 12,74% do reforço do sinal.  

Precisamente as percentagens que os diversos interessados convencionaram entre eles para que o negócio da venda se pudesse realizar e que foram os valores contratualizados com os compradores e com os restantes interessados na venda dos imóveis, acordo sem o qual não seria possível a realização do negócio jurídico de alienação dos imóveis. Tendo a Requerente englobado, na declaração modelo 3 apresentada no prazo legal, os valores efetivamente recebidos em tal alienação onerosa, no valor global de € 108.325,85».   

E acrescenta «Tendo a ATA corrigido tal declaração considerando que a Requerente recebeu € 200.694,36 de tal valor de alienação, o que representa 23,61% do valor da herança quando o valor recebido foi de apenas 12,74% de tal valor. Já que a ATA não teve em conta que houve uma primeira partilha dos bens em que a impugnante recebeu o prédio inscrito na matriz urbana de ... sob o artigo ... . E que, antes da alienação do prédio que originou os ganhos de mais valias, recebeu ainda uma parcela de terreno com a área de 1.371,74m2 para aumento do logradouro do prédio urbano recebido».  

Ainda segundo a Requerente,  na escritura de compra e venda os diversos interessados procederam à alienação de direitos reais sobre bens imóveis herdados e não do direito à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito dos avós da Requerente «(…) até porque ainda existem outros bens na herança». Tendo a Requerente aceitado alienar os direitos que tinha em tais prédios pelo valor que mencionou na declaração modelo 3 de IRS do ano de 2019, que representa 12,74% do valor da venda. Tal como a sua irmã E..., ficando a parte restante do preço para os restantes herdeiros.

Conclui que a AT está a tributar a Requerente por ganhos que não auferiu com a venda dos imóveis. E que no despacho de alteração da declaração de rendimentos não foram apreciados os elementos factuais ou jurídicos invocados pela impugnante o que constitui vício de forma, por deficiência de fundamentação, suscetível de levar à anulação da decisão do procedimento.

2. Da Requerida

Os argumentos apresentados na Resposta da AT e nas suas alegações que, no essencial, não divergem1, sublinham o seguinte:

«De acordo com o presente PPA, não está em causa a quota-parte determinada pela AT e que corresponde à quota ideal da R., na partilha por morte dos seus avós – que a R. admite ser a correta - nem está em causa o valor de aquisição apurado pela AT e que também foi objeto de correção, mas apenas a contrapartida financeira dessa quota-parte para efeitos de apuramento do correspondente valor de realização. Sucede que, como se irá demonstrar, a AT fez a correta aplicação da lei aos factos, não merecendo o ato de liquidação visado no presente PPA, qualquer censura».  

E desenvolve a Requerida: «O procedimento de divergências foi objeto do exercício de audição prévia no qual a R. veio a defender, na linha da argumentação expendida no presente PPA, que teria direito a, efetivamente, receber o valor de € 200.694,43, acrescentando que, na realidade, de tal valor global da alienação, apenas receb(eu) a quantia de € 108.325,85. (…) Tal divergência com a previsão legal para o efeito, deveu-se a um acordo celebrado entre todos os vendedores/herdeiros que, em consenso e unanimidade, decidiram que, por factos pessoais e patrimoniais que apenas a eles dizem respeito, assim deveria ter sido efetuada a divisão do produto de tal alienação, cabendo depois, a cada um deles efectuar a respetiva participação de tais valores em sede das declarações e IRS. Acrescenta ainda a R. que a presunção de imputação dos rendimentos comuns segundo as quotas-partes é uma presunção legal ilidível».     

Defende a Requerida que, no essencial, o presente PPA assenta na argumentação de que a AT presumiu, à luz do artigo 19.º do CIRS, que a Requerente recebeu, pela venda dos imóveis já identificados, a quantia de € 200.694,43, não tendo apreciado a prova que carreou para o processo, pelo que, alegadamente, o ato de liquidação padece de vício de forma, por falta de fundamentação.  

Assinalando que «A propósito do dever de fundamentação dos atos tributários, o art. 77.º da LGT estipula o seguinte:

“1. A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.

2. A fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.” 

No caso dos presentes autos, a declaração Modelo 3 de IRS, do ano de 2019, apresentada pela R. foi objecto de um procedimento de gestão de divergências, do qual aquela foi notificada, e no qual exerceu o seu direito ao contraditório, tendo, a final, sido notificada da decisão e dos seus fundamentos, de facto e de direito.»

Segundo a AT a «fundamentação da liquidação agora impugnada é, portanto, do conhecimento da R., não deixando, contudo, de se referir que apenas nesta sede arbitral – e ainda que tal não ponha em crise a legalidade  da liquidação adicional – a R. veio juntar cópia de uns cheques que lhe foram entregues pelo comprador do imóvel com os quais pretende fundamentar a sua argumentação.»    

E acrescenta «O que foi partilhado na escritura, de 9/5/2019, foram dois terrenos destacados do dito prédio misto, sendo que, este último, no momento em que foi alienado continuava em herança indivisa. Dispõe o artigo 19.º do CIRS que ”Os rendimentos que pertençam em comum a várias pessoas são imputados a estas na proporção das respetivas quotas, que se presumem iguais quando indeterminadas”. Logo, e conforme o artigo 19.º do CIRS, os rendimentos resultantes da alienação desse prédio misto são tributados na esfera jurídica de cada um dos herdeiros na proporção da sua quota-parte. 

A presunção prevista no artigo 19.º do CIRS, como expressamente consignado na parte final do preceito legal, apenas tem aplicação quando as quotas são indeterminadas – o que não aconteceu no caso em apreço. O rendimento imputado à R. resultou da sua quota-parte na herança, quota-parte essa, aliás, que a própria R. assumiu estar correta, na pronúncia apresentada no procedimento de divergências, e que também não põe em causa nestes autos.»  

Por seu turno, alega ainda a Requerida que a «(...) cópia dos cheques apresentados com o PPA não tem a virtualidade de afastar a aplicação do regime legal previsto no artigo 19.º do CIRS e, especificamente, a forma de imputação dos rendimentos em regime de contitularidade.  A AT desconhece, e não tem de conhecer, se o preço que a R. recebeu pela alienação do imóvel foi inferior ao que lhe cabia de acordo com a sua quota-parte na herança e se tal resultou de um acordo entre os co-herdeiros do qual, aliás, não foi feita qualquer prova. A escritura de compra e venda serve de título à transmissão do imóvel nela mencionado, o qual se encontrava em herança indivisa e, portanto, sujeito à imputação e rendimentos previsto no artigo 19.º do CIRS – nada aí se dizendo em sentido contrário, nem se fazendo alusão a qualquer acordo de pagamento do preço entre os compradores.  

Ainda assim, sempre se diga que a administração tributária continua a desconhecer as condicionantes a que a R. alude no art. 50.º do PPA que poderiam hipoteticamente justificar uma venda do prédio a um preço inferior ao que lhe correspondia por direito. Sendo, contudo, certo que essas condicionantes não poderão ter a sua razão de ser na escritura de partilha realizada em 11/05/1998, pois consta da mesma que a R. pagou tornas aos demais herdeiros pelo excesso da sua quota ideal.  

A quota-parte de 12,74% declarada pela R., na Modelo 3 de IRS apresentada, foi, alegadamente apurada, em função do alegado preço recebido pela venda do imóvel, sendo certo, contudo, que não é esse o regime legal de imputação dos rendimentos aos bens em regime de contitularidade – razão pela qual não assiste razão à R. na presente impugnação».  

Conclui, por último, a Requerida que «A quota-parte de 12,74% declarada pela R., na Modelo 3 de IRS apresentada, foi, alegadamente apurada, em função do preço recebido pela venda do imóvel, sendo certo, contudo, que não é esse o regime legal de imputação dos rendimentos aos bens em regime de contitularidade – razão pela qual não assiste razão à R. na presente impugnação.  

 

***

 

Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º, do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral singular, foi constituído em 28-11-2023.

Em 01-12-2023, foi proferido despacho arbitral ordenando a notificação do dirigente máximo do serviço da administração tributária para apresentar resposta, nos termos e prazo do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT, o que efetuou, em 16-01-2024, juntando Processo Administrativo (doravante PA).

Em 19-04-2024, foram notificadas as partes do despacho, de 18-04-2024, proferido pelo Tribunal Arbitral, no qual se dispensava a reunião prevista no artigo 18.º, n.º 1, do RJAT, bem como a audição de testemunhas, convidando-se as partes, querendo, a apresentar alegações escritas por prazo simultâneo, em 30 dias, o que a AT efetuou, em 16-05-2024, reproduzindo, no essencial, o argumentário apresentado na sua Resposta2.

Estimou-se, no mesmo despacho, a prolação de decisão arbitral dentro do prazo previsto no n.º 1, do artigo 21.º do RJAT, convidando-se o Requerente a pagar a taxa arbitral subsequente prevista no artigo 4.º, n.º 3 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária. 

 

II. SANEAMENTO

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à luz do preceituado nos artigos 2.º n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT), e é competente.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

Não foram suscitadas exceções de que deva conhecer-se.

O processo não enferma de nulidades.

Inexiste, deste modo, qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

III. MATÉRIA DE FACTO

 

1. Factos provados:

Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

Por escritura de partilha, de 11-05-1998, foi realizada uma partilha parcial, por morte, em 13-11-1967, de J... (avó da Requerente) e, em 17-02-1989, de B... (casado, no regime de comunhão geral de bens, com J...), da qual se destaca: 

(i) Bens partilhados: 

NÚMERO UM - Prédio urbano para habitação (…) onde se encontra registado a favor em comum e sem determinação de parte ou direito pelas inscrições G-um e G-dois , e está inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., com o valor patrimonial atribuído de (…); 

NÚMERO DOIS – Prédio urbano para habitação (…) onde se encontra registado a favor em comum e sem determinação de parte ou direito pelas inscrições G-um e G-dois, e está inscrito na matriz respetiva sob o artigo ..., com o valor patrimonial atribuído de (…). 

(ii) Quota-parte da Requerente:  

No que se refere ao quinhão hereditário da Requerente, na aludida partilha, diz-se que é-lhe adjudicado o prédio identificado sob o número dois no valor de trinta e sete mil quatrocentos e dois escudos, pelo que leva a mais a quantia de trinta e três mil novecentos e dez escudos e cinquenta centavos, que já repôs em dinheiro aos restantes interessados. 

Em 09-05-2019, foi lavrada uma escritura de partilha parcial, por morte, em 13-11-1967, de J..., em 17-02-1989, de B..., em 07-07-2001, da qual se destacam os seguintes elementos: 

(i) Bens partilhados: 

NÚMERO UM- Parcela de terreno, com a área de mil trezentos e setenta e um metros quadrados e setenta e quatro decímetros a confrontar do norte com E..., do sul, nascente e poente com Herança de B... e Outros, ainda sem valor patrimonial tributário e atribuído de quinhentos euros. 

NÚMERO DOIS – Parcela de terreno, com a área de setecentos e setenta e três metros quadrados e dezasseis decímetros a confrontar do norte com A..., do sul, nascente e poente com Herança de B... e Outros, ainda sem valor patrimonial tributário e atribuído de quinhentos euros.  

Ambas as parcelas são a desanexar da parte rústica do prédio misto, composto de terreno de cultivo e uma casa sobradada, descrito na Conservatória sob o número .../..., aí registado, em comum e sem determinação de parte ou direito a favor dos herdeiros já falecidos, conforme inscrição da ap cento e vinte e nove de vinte e três de fevereiro de mil novecentos e setenta e oito e ap treze de vinte e oito de dezembro de mil novecentos e oitenta e dois, inscrito na matriz urbana sob o artigo ... e na matriz rústica sob o artigo ..., com os valores patrimoniais tributários de 27.546,71 € e 109,96€, respetivamente. 

(ii) Valor da herança: 10.000,00 €; 

(iii) Quota-parte da herdeira/Requerente: 236,12€.

Em 09-05-2019 foi celebrada escritura pública de compra e venda na qual é vendido à “K...Lda.”, o “Prédio misto, composto de terreno de cultivo com a área de onze mil duzentos e vente e três metros quadrados e uma casa sobradada com área coberta de trezentos e sessenta e nove metros quadrados e setenta e um decímetros e descoberta de dois mil e quinhentos e vinte metros quadrados e vinte e nove decímetros, sito no lugar ..., freguesia de ..., concelho de Braga, (…) descrito na Conservatória sob o número .../..., aí registado, em comum e sem determinação de parte ou direito a favor dos herdeiros já falecidos conforme inscrição da ap cento e vinte e nove de vinte e três de fevereiro de mil novecentos e setenta e oito e ap treze de vinte e oito de dezembro de mil novecentos e oitenta e dois, inscrito na matriz urbana sob o artigo ... e na matriz rústica sob o artigo ... (sublinhado nosso), com os valores patrimoniais tributários de 27.546,71 € e 109,96 €, e atribuídos de cento e vinte cinco mil euros e setecentos e vinte cinco mil euros, respetivamente". 

O preço da venda foi de € 850.000, tendo sido atribuído ao imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... o valor de € 125.000 e ao inscrito na matriz predial rústica sob o artigo..., o valor de € 725.000. 

A título de sinal, conforme se verifica da própria escritura de compra e venda, foram entregues quatro cheques, em 2 de Abril de 2018, no valor global de € 74.994,02, os cheques com os números ..., ..., ... e ...; 

Quatro cheques com os números ..., ..., ... e ..., no valor global de € 222.750,00, entregues em 16 de Outubro de 2018, para reforço do sinal;

E quatro cheques com os números ..., ..., ... e..., no valor global de € 55.2255,98, pagos na data da celebração da escritura de compra e venda.    

Os quatro cheques foram entregues em cada uma das ocasiões porquanto um foi emitido em nome da Requerente, outro em nome de sua irmã E..., outro mais em nome de sua tia C..., e um outro em nome de sua tia I..., viúva de seu tio B... .   

Tendo a Requerente recebido os seguintes cheques: 

a) Cheque n.º ..., no valor de € 9.555,83, em 20-4-2018; 

b) Cheque n.º ..., no valor de € 28.383,08, em 5-8-2018;

c) Cheque n...., no valor de € 70.386,94, em 14-5-2019;

Tudo no valor global de € 108.325,85.

Montante igual ao valor recebido pela sua irmã E..., conforme cheques com os n.ºs..., ... e ....

Os restantes herdeiros, que sucederam aos tios da Requerente D... e B..., receberam o remanescente no valor de € 633.348,30.

No caso das importâncias entregues para reforço do sinal, foram entregues os seguintes cheques cuja numeração foi acima identificada:  

a) Cheque n.º ..., no montante de € 82.991,92, a C...;

b) Cheque n.º..., no montante de € 82.991,92, a I...; 

c) Cheque n.º ..., no montante de € 28.383,08 à irmã E...;

d) Cheque n.º..., no montante de € 28.383,08 à Requerente.

Em 30-06-2020, a Requerente procedeu à entrega de uma declaração modelo 3, referente ao IRS relativo ao ano de 2019, a qual foi acompanhada, designadamente, do Anexo G, no qual fez constar dos campos 4001 a 4004 do quadro 4 a venda de quatro quotas-partes de 12,74% (duas adquiridas em fevereiro de 1989 e outras duas em setembro de 2003) dos prédios inscritos matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de Braga, sob o artigo ... e na matriz predial rústica dos mesmos concelho e freguesia sob o artigo ... . 

Tendo a Requerente englobado, na declaração modelo 3 apresentada no prazo legal, o valor global de € 108.325,85.  

Os respetivos valores declarados de realização e aquisição das quotas-partes (abaixo designados “QP”, “VR” e “VA”, respetivamente) foram os seguintes: - Campo 4001: QP U-..., adquirida em 02-1989 - VR: € 1.656,72; VA: € 3.010,48; 

- Campo 4002: QP U-..., adquirida em 09- 2003 - VR.: € 14.273,28; VA: € 7.137,36. 

- Campo 4003: QP R-..., adquirida em 02-1989 - VR: € 9.609,16; VA: € 109,66. 

- Campo 4004: QP R-..., adquirida em 09-2003 - VR: € 82.786,61; VA: € 109,66. 

O que perfez um VR total de € 108.325,77, um VA total de € 10.367,16 e ainda um montante de € 395,24 a titulo de despesas e encargos com a aquisição e/ou alienação ou valorização das quotas partes alienadas (€98,81 por cada prédio).

A declaração modelo 3 de IRS apresentada pela R. deu origem à liquidação de IRS n.º 2020..., na qual veio a ser apurada a quantia de imposto a pagar de € 17.245,13. 

A antecedente liquidação foi objeto de um procedimento de gestão de divergência, na qual se procedeu à correção do número e percentagem das quotas-partes alienadas, bem como dos valores de realização e aquisição daquelas, obtendo-se um VR total de € 200.694,43. 

O procedimento de divergências foi objeto do exercício de audição prévia no qual a Requerente veio a defender, na linha da argumentação expendida no presente PPA, que teria direito a receber efetivamente o valor de 200.694,43€, acrescentando que, na realidade, de tal valor global da alienação, apenas recebeu a quantia de 108.325,85€, juntando documentos ao PA.

O projeto de decisão foi convertido em decisão final, e comunicado à Requerente por ofício de 02-05-2023.

 2. Factos não provados:

Com relevo para a decisão da causa, não existem outros factos que não tenham ficado provados.

3. Fundamentação da fixação da matéria de facto:

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe antes o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.

Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º n.º 1 alínea e), do RJAT).

Os factos dados como “provados” e “não provados” foram-no com base nos documentos juntos aos autos com o PPA, e no PA - todos documentos que se dão por integralmente reproduzidos - e, bem assim, no consenso das partes.

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º n.º 7, do CPPT (aqui aplicável por força do disposto no artigo 29.º n.º 1, alínea a), do RJAT), a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

IV. DO DIREITO

1. A questão a decidir

Atendendo às posições das partes assumidas nos articulados apresentados, a questão central a dirimir pelo presente Tribunal Arbitral consiste em apreciar a legalidade do ato de liquidação visado nos autos resultante de uma correção tributária em sede de mais valias imobiliárias declaradas pela Requerente através do modelo 3 de IRS, do ano de 2019, decorrente da alienação de prédio misto descrito na Conservatória de ..., sob o n.º..., inscrito na matriz urbana sob o artigo... e na matriz rústica sob o artigo ... .

Está em causa, o apuramento do efetivo valor de realização obtido com a venda do imóvel. 

No essencial, o presente PPA assenta na argumentação de que a AT considerou, à luz do artigo 19.º do CIRS, que a Requerente recebeu pela venda descrita a quantia de € 200.694,43, não tendo apreciado a prova que esta carreou para o processo, pelo que o ato de liquidação padece de vício de forma, por falta de fundamentação. 

Segundo a Requerente, esta terá recebido apenas a a quantia de € 108.325,85, a título de contraprestação pela outorga da escritura de venda, pelo que no seu entendimento não será aceitável que o chamado “valor de realização” a declarar para efeitos de tributação das Requerentes em sede de IRS (categoria G, mais valias) venha a corresponder ao montante de € 200.694,43, tendo a AT desatendido ao informado pela Requerente e aos elementos juntos para efeitos de prova.

Perante a factualidade dada como provada suscetível de integrar a causa de pedir – nessa medida é apenas aquela a questão que o Tribunal deve apreciar –, e as normas legais em vigor à data dos factos, procede-se ao conhecimento do mérito da causa apreciando a invocada falta de fundamentação.  

Cumpre apreciar e decidir.

Ficou provado nos autos que a Requerente recebeu os seguintes cheques: 

a) Cheque n.º ..., no valor de € 9.555,83, em 20-4-2018; 

b) Cheque n.º ..., no valor de € 28383,08, em 5-8-2018;

c) Cheque n.º..., no valor de € 70.386,94, em 14-5-2019;

Tudo no valor global de € 108.325,85, valor que a Requerente englobou na declaração modelo 3, apresentada no prazo legal.

Este montante é idêntico ao valor recebido pela sua irmã E..., conforme cheques com os n.ºs ..., ... e ... .

Os restantes herdeiros, que sucederam aos tios da Requerente D... e B..., receberam o remanescente no valor de € 633.348,30.

Ora, conforme resulta do probatório, e de uma leitura conjunta da escritura de compra e venda (celebrada em 09-05-2019, na qual os herdeiros venderam o prédio misto à “K... Lda.”), com os comprovativos de movimentos de conta da Requerente (docs. 2 e 4, não se localizando o doc. 3 no PA remetido pela AT) entregues aquando do exercício do direito de audição e, bem assim, das notas de débito referentes a cheques bancários com identificação dos restantes beneficiários/herdeiros, a Requerente logrou ilidir a presunção aplicada pela AT.

Com efeito, demonstrou que o valor de realização do imóvel em causa nos autos correspondeu ao valor recebido de € 108.325,85  (tal como valor idêntico recebido pela sua irmã) tendo ficado provado que foi esse apenas o montante efetivamente recebido, por oposição ao valor global constante do contrato de € 850.000,00 e aos cheques devidamente identificados também na escritura de compra e venda e emitidos a favor dos outros herdeiros cujos valores coincidem com as notas de débito referentes aos cheques bancários supra citados3 que incluem uma parcela de rendimento que as duas irmãs não receberam, no montante de € 633.348,30.

Assim, a Requerente mencionou na declaração modelo 3 apresentada o valor que na venda efetuada entrou efetivamente no seu património conforme se comprova, nomeadamente, através dos extratos bancários relativos aos cheques nominativos que lhe foram entregues em contraposição com os cheques recebidos pelos restantes interessados.

A tributação das mais valias surge na medida em que a alienação de um determinado bem por um valor superior àquele por que foi adquirido tem por resultado um acréscimo patrimonial na esfera do sujeito alienante, em relação ao qual o princípio da capacidade contributiva reclama a existência de normas de incidência objetiva – cf. André Salgado de Matos, no Código do IRS Anotado, Instituto Superior de Gestão, 1999, em anotação ao artigo.

A AT na liquidação ora impugnada, está a tributar a Requerente por ganhos que não auferiu com a venda do prédio misto.  

A este propósito, trazemos à colação a decisão arbitral proferida no âmbito do Processo n.º 468/2021-T,do CAAD, cujas conclusões acompanhamos e onde se pode ler no seu Sumário, o seguinte:

«1. Ainda que o proémio do artigo 10.º, n.º 3, do Código do IRS determine que os ganhos se consideram obtidos no momento da alienação do imóvel, a verdade é que a interpretação/aplicação dessa presunção não poderá implicar uma tributação que não tome em conta os rendimentos efectivamente auferidos pelos contribuintes e que redunde em violações do princípio da capacidade contributiva. 

2. Enquanto norma de incidência que consagra uma presunção de incidência/rendimento, podem os contribuintes objecto da mesma efectuar a sua ilisão nos termos e para os efeitos previstos no artigo 73.º da LGT e provar que efectivamente não receberam os rendimentos que a aplicação da referida norma lhes imputa.»

Em síntese, o que nos vem dizer a citada decisão arbitral do CAAD, é que ainda que o proémio do referido artigo 10.º, n.º 3, do Código do IRS determine que os ganhos se consideram obtidos no momento da alienação do imóvel, a verdade é que a interpretação/aplicação dessa presunção não poderá implicar uma tributação que não tome em conta os rendimentos efetivamente auferidos pelos contribuintes e que redunde em violações do princípio da capacidade contributiva, podendo esta norma de incidência ser ilidida nos termos e para os efeitos previstos no artigo 73.º, da LGT e provando-se que os contribuintes não receberam, de facto, os rendimentos que a aplicação da referida norma lhes imputa.   

Este entendimento tem sido sufragado pela maioria da jurisprudência, e pese embora o aresto proferido pelo STA, no processo 0320/03, de 9 de Abril de 2003, que passamos a citar, não obedeça a enquadramento jurídico inteiramente coincidente com o dos autos, aproveitamo-lo no que aqui é aplicável:

«(..) Todavia e a nosso ver, esta norma não pode ser interpretada sem atender ao carácter globalizante da tributação de IRS, de que se fala no preâmbulo do CIRS (nº 3) e aos princípios essenciais em que assenta este imposto, como o impõe o princípio da "unidade do sistema jurídico. "Dos três factores interpretativos a que se refere o nº 1 do art. 9º, este é sem dúvida o mais importante. (...)

A isto há que acrescentar que, se o legislador actual insuflou de espírito novo o ordenamento jurídico ou o regime de uma dada matéria, se altera o termo de referência para a compreensão da fórmula verbal de uma norma antiga que se mantenha em vigor. Engisch fala a este propósito em "referência do sentido de cada norma ao ordenamento jurídico global" e menciona neste contexto, designadamente, a "interpretação conforme à Constituição"" (Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, págs. 191 e 192). Ora e como é sabido, a introdução do IRS teve em vista não só a obtenção de uma receita mais elevada, através do alargamento da sua base de incidência, mas também que esse aumento se fizesse sem prejuízo da justiça e equidade. 

E por ser assim, é que o legislador acolheu um conceito amplo de rendimento, ao mesmo tempo que determinou que a tributação incidisse, fundamentalmente, sobre o rendimento real efectivo. Assim o impõe, de facto, o art. 107.º, n.º 2 da CRP e vem também afirmado, em termos gerais, no art. 4º, nº 4 da Lei nº 106/88 de 12/9, que autorizou o Governo a aprovar o CIRS. Por outro lado, um dos princípios também determinantes, em matéria de IRS, é o da anualidade, entendido este no sentido de que os rendimentos que ele procura tributar são todos aqueles que, em cada ano, são nele auferidos ou postos à disposição do seu titular (cfr . artºs 1º, 21º, nº 1 e 41º, nº 1 do CIRS). 

Deste modo, da globalidade das normas do IRS decorre que, em relação a cada contribuinte e em cada ano, o IRS incide não só sobre o rendimento efectivo, mas também sobre o que nele aquele obteve. E se assim é, importa interpretar o predito art. 10.º, n.ºs 1, al. b) e 3 não como determinando, no acto da prática do acto, a tributação de rendimentos não efectivamente auferidos nem postos à disposição do titular nesse ano, mas sim como uma presunção de que os rendimentos que constituem mais-valias são os auferidos no momento da prática do acto. Daí que e no caso dos autos, para efeito de determinação da matéria tributável dos impugnantes, não se pode, assim, deixar de atender senão ao rendimento que efectivamente receberam naquele ano de 1994 e que foi aquele que foi colocado à sua disposição na altura em que celebraram a escritura da cessão das quotas e alteração e não o que resultaria da totalidade do valor convencionado, a liquidar, no que à parte restante diz respeito, em prestações nos anos seguintes. (…) 

Por último, mesmo a admitir-se que o preceito legal em causa consagra uma presunção iuris et iure e, como tal, inilidível, sempre esta teria, actualmente, de ser considerada susceptível de ilisão, por força do disposto no art. 73.º da LGT».

A propósito do respeito pelo princípio da capacidade contributiva, que impõe que a tributação incida sobre o rendimento efetivamente auferido (rendimento-acréscimo), sobre o rendimento real, veja-se também o Acórdão 430/2016, de 30 de Setembro, que segue os acórdãos do mesmo tribunal 197/2013, de 09/04/2013, bem como para os acórdãos n.º 84/03, 162/04, 601/04 e 85/10, todos do Tribunal Constitucional, conforme vem invocado pela Requerente.

Nestes termos, considera este Tribunal Arbitral a admissibilidade da Requerente vir, ao abrigo do artigo 73.º da LGT, ilidir a presunção estabelecida no artigo 10.º, n.º 3 do CIRS de forma a assegurar que a tributação não incida sobre rendimentos que efetivamente não auferiu, como de resto logrou provar. O que se pretende “sempre” é tributar rendimentos reais e não inexistentes, e daí a admissibilidade da ilisão. Tudo porque o princípio da capacidade contributiva consagrado no artigo 104.º, n.º 1 da CRP constitui “o pressuposto, o limite e o critério da tributação”, conforme evidencia SÉRGIO VASQUES, em Manual de Direito Fiscal, reimpressão, Almedina, 2015, p. 296.   

Aqui chegados, recordamos por fim o teor da decisão arbitral proferida no quadro do Processo n.º 686/2018-T, que quanto aos conceitos de "Fundamentação" a que está obrigada a AT, rezava assim:

«Deverão distinguir-se os conceitos de “fundamentação material” e “fundamentação formal”. Esta última “pode ser entendida como uma exposição enunciadora das razões ou motivos da decisão”, enquanto a fundamentação material corresponde à “recondução do decidido a um parâmetro valorativo que o justifique: no primeiro sentido, privilegia-se o aspecto formal da operação, associando-a à transparência da perspectiva decisória; no segundo, dá-se relevo à idoneidade substancial do acto praticado, integrando-o num sistema de referência em que encontre bases de legitimidade”. (...) “O dever da fundamentação expressa obriga a que o órgão administrativo indique as razões de facto e de direito que o determinaram a praticar aquele acto, exteriorizando, nos seus traços decisivos, o procedimento interno de formação da vontade decisória. O dever cumpre-se desde que exista uma declaração a exprimir um discurso que pretenda justificar a decisão, independentemente de esse arrazoado”. (VIEIRA DE ANDRADE, O dever da Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, páginas 11-13). Apenas a falta de fundamentação formal constituirá vício de forma. A falta de fundamentação substancial, por incorreção ou falta de prova dos pressupostos de facto ou o erro de direito, consubstanciará vício de erro sobre os pressupostos de facto ou erro sobre os pressupostos de direito. Neste sentido, refere-se no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28-09- 2011, proferido no processo n.º 0494/11: O facto de, porventura, a valia substancial dos fundamentos aduzidos nesse discurso fundamentador não ser suficiente para retirar a conclusão que aí se retirou, isto é, ser insuficiente ou inapta, do ponto de vista legal, para suportar a correção efetuada, é matéria que não contende com a fundamentação formal do acto, mas sim com a fundamentação substancial, que pode levar à procedência da impugnação por força dos vícios de violação de lei que foram invocados. Com efeito, não deve confundir-se a suficiência da fundamentação com a exatidão ou a validade substancial dos fundamentos invocados. É que, como adverte SÉRVULO CORREIA ("Noções de Direito Administrativo", I, pág. 403.), “a fundamentação pode ser inexata e ser suficiente, por permitir entender quais os  pressupostos de facto e de direito considerados pelo autor do acto. Deste modo, a inexatidão dos fundamentos não conduz ao vício de forma por falta de fundamentação. Ela pode sim revelar a existência de outros vícios, como o vicio de violação de lei por erro de interpretação ou aplicação de norma, ou (...) por erro nos pressupostos de facto» (...)”. No caso em apreço, a Requerente imputa às liquidações impugnadas vícios de falta de fundamentação formal e falta de fundamentação material, como se vê pelo artigo 39.º do pedido de pronúncia arbitral, em que refere: E, assim, a inspeção não deu a conhecer os motivos que a determinaram a atuar como atuou, questão que se situa no âmbito da validade formal do ato; nem o facto invocado para tributação à taxa normal (a falta de indicação das verbas no ficheiro) é suficiente para legitimar a concreta atuação administrativa, o que se situa já no âmbito da validade substancial do ato.» 

No caso sub judice, a AT ignorou os elementos de prova apresentados pela Requerente no âmbito do exercício do direito de audição (docs. 1 a 4 do PA), não contendo o despacho de decisão final qualquer apreciação acerca dos elementos factuais invocados pela Requerente, o que constitui vício de forma por deficiência de fundamentação suscetível de levar à anulação da decisão do procedimento, e bem assim, a AT está a coberto da correção efetuada a tributar a Requerente por ganhos que não auferiu com a venda do prédio misto.

Pelo que também, in casu, estamos perante vícios de falta de fundamentação formal, e falta de fundamentação material que constitui vício de violação de lei, o que justifica a sua anulação nos termos do artigo 163.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c) da LGT, e aplicável ao processo arbitral por força do disposto no artigo 29.º do RJAT.

Assim se conclui, sem mais delongas, pelo ilegalidade da liquidação de IRS, respeitante ao ano de 2019, e correspondente demonstração de acerto de contas n.º 2023..., decidindo este Tribunal Arbitral anular em consequência os atos tributários objeto dos presentes autos na parte correspondente ao valor de realização, que se fixa em € 108.325,85, com as demais consequências legais, correspondendo ao pedido da Requerente tal como vem formulado no PPA.

2. Juros Compensatórios

Pese embora a Requerente não impute vícios próprios e autónomos ao ato de liquidação de juros compensatórios n.º 2023..., constante da demonstração de acerto de contas n.º 2023..., a AT afirma categoricamente que a correção tributária efetuada deu origem à liquidação de IRS n.º 2023..., a que corresponde imposto a pagar de € 44.230,75. 22, acrescendo a quantia de € 1.673,84, a título de juros compensatórios – e que esta é a liquidação visada nos presentes autos arbitrais.

O direito a juros compensatórios encontra-se regulado no artigo 35.º, n.º 1 da LGT, onde se refere que «[s]ão devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária».    

Considerando-se ilegal o ato de liquidação de liquidação de IRS impugnado pela Requerente, verifica-se que não ocorreu qualquer retardamento da liquidação e entrega do imposto para efeitos do artigo mencionado, motivo pelo qual se julga igualmente ilegal o ato de liquidação de juros compensatórios.   

A Requerente terá assim direito a receber da AT o reembolso correspondente aos juros compensatórios cobrados e pagos sobre o montante de imposto cobrado e pago em excesso.   

 

V. DECISÃO

Nestes termos, decide o Tribunal Arbitral singular: 

  1. Julgar procedente a presente ação e anular a liquidação adicional de IRS do ano de 2019 e, em consequência, a liquidação de juros compensatórios;
  2. De harmonia com o disposto nos artigos 296.º e 306.º, do Código do Processo Civil (CPC) e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1 alíneas a) e e), do RJAT, e 3.º, n.ºs 2 e 3, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 28.659,46 (vinte e oito mil seiscentos e cinquenta e nove euros e quarenta e seis cêntimos) atendendo ao valor económico aferido pelo montante da liquidação de imposto impugnada;
  3. Condenar a Requerida nas custas judiciais. Nos termos dos artigos 12.º e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigos 2.º e 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas, em € 1.530,00 (mil quinhentos e trinta euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Notifique-se.

Lisboa, 18 de maio de 20244     

 

A Árbitra

 

 

 

/Alexandra Iglésias/

 

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.

 

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.

 

 



1 De acordo com o Despacho de Retificação de 2024-05-18

2 De acordo com o Despacho de Retificação de 2024-05-18

3 De acordo com o Despacho de Retificação de 2024-05-18

4 De acordo com o Despacho de Retificação de 2024-05-18